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uantas máscaras uma pessoa normal usa ao longo de seu dia? De madeira ou de sarcasmo, pouco importa: o que está por trás delas é o mesmo ato de vestir uma realidade. Dimensão esta que encarna propriedades do ser anterior, mas que traz consigo um novo universo de propósitos íntimos, desejos ao mesmo tempo ocultos e expostos pela máscara posta. Foi assim desde que o mundo é mundo, ou pelo menos desde que o Homem parou de falar com os Animais. Mas essa tal pós-modernidade vigente, que embrutece as relações humanas post a post, clique a clique, também é responsável pela sofisticação crescente e infinita de meios de representação simbólica, que as pessoas alegremente incorporam como parte importante de sua identidade. Um partido político pode ser uma máscara. Assim como uma igreja. Ou um time de futebol. Uma corrente teórica. Estilo musical. O jornal que seguras hoje com certeza o é. E já faz um ano que vestimos essa máscara colorida em rituais de êxtase. Com direito a sacrifícios humanos, e tudo. E, de um solstício ao outro, uma volta em torno do Sol leva um bom tempo. Foram incontáveis as noites consumidas à beira de cuias, copos e cinzeiros. Foram inestimáveis os saberes que só a audácia de fazer antes de saber é capaz de trazer. E foram inesquecíveis os sorrisos que cada nova edição do Tabaré plantou no mundo. E quem sorri já não é mais um bando, ou uma tribo, ou uma aldeia: uma pátria de leitores acompanha os nossos passos. Armados com suas máscaras coloridas, eles preenchem as ruas com a arte dos ébrios e a paixão dos amantes. E o seu canto ecoa mesmo quando o fogo amansa e resta pouco mais de uma brasa iluminando a grama...

TABARÉ #13 edição especial de aniversário

[Martino Piccinini]

Porto Alegre, maio e junho de 2012 Ariel Fagundes, Chico Guazzelli, Felipe Martini, Gabriel Jacobsen, Guilherme Dal Sasso, Iván Marrom, Jessica Dachs, Júlia Schwarz, Juliana Loureiro, Leandro Hein Rodrigues, Luísa Santos, Luna Mendes, Maíra Oliveira, Matheus Chaparini, Marcus Pereira, Martino Piccinini, Natascha Castro Projeto Gráfico/Diagramação: Martino Piccinini Capa: Foto de Gabriel Jacobsen Colaboradores: Amanda Scharr, Fred Stumpf, Jéssica Albuquerque, Júlio Zanotta Luísa Hervé, Marineida Maia, Michele Oliveira, Paulo H. Lange , Rafael Corrêa, Said Salomón , Santiago, Ubiratan Carlos Gomes Tiragem: 2 mil exemplares Contatos: comercial@tabare.net tabare@tabare.net facebook.com/jtabare @jornaltabare Distribuição: Fabico Famecos Instituto de Artes UFRGS Espaço Contraponto Palavraria Ocidente Tutti Giorni Casa de Cultura Mario Quintana Comitê Latino-americano Instituto NT Nova Olaria


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s A no 4 2 á1 ico ce H o Públ e r a ri es a. P isté ndiçõ velh Min o c é ha não eceu. O am em , min a i a c as oão otí Acont alhav v i d e s sa n h a c a l h ad b a o a n i r r o c t b , “M es t ra ios tor end iam le a mo lei esmo l perár projeto SP. Os receb o b o i , o sil a níss tu tá m ue 90 bra do ópolis s e nã respon q Bra o, dig o a d s a r u n a a o a o a aà m Nã stat em um Fern té 15 h mpurr repass ré, n a o b m c e e ão Ta o ea es que z, a em rabalh cravid deral, das d idad sua ve da até a e s C e F n T ga jor das , por sà do rno bar e loga Gove tidos a istério m u á e q n a a tá e do mic Min bm a es a”, vid ram su iro. O Econô . A obr a e te s. res ário in a Caix LTDA olvida la r l a a s r a i c o sa idade p struto jam re n i vê n cra il se re v e m e s sab om Co dades b o s i c qu de Gec eg ular ata as r t r m n r i ín co as i e s m o ve r n o õ ç i o g d p n? te m a r c o n re s , o i o , h e i m E na d do óc eg i R P ra abalha ita neg , do g re s tr . Ba A le lu i r a e g u n o u t ro s l o or t i nc s na ood vi za o p a de P t u r a a n i m a i o o i am and u nd ra a efe a l h ei r a - d u a P r r e s pa 2 . S e g i s s a a Ag rim nce er to de 201 a n i m e A p con ve e co b m o o c t o, s lh r, n a s a e e s p o k a B e c de r ou o A g a r i z a d f i n a m p a r a d l o on pa ço o a ç ã p a n h a i s r e g u de c a o es n om Ca m h á c a s i s t e m p ouc ndo c d a “ m re nt o l el a , do e m c a m c o s of me a n u m i e f g a v lo c ar ab es vi l c m e a O u o , . ao, c o m m e n t o id a de ” e n t id a de c i s c v m e o o m o e a u p ouc a t r u isess a i z r q f r io m e f a aj ud a s . S e de o ra é da t n u a t a a i m o nfe ch uen P re i s ao i s bi peq nt re o a r, a n om ca d e aju a r o s n ho s c lor o i r s m el ho aqu me m ca s a r i i r ve ped g a s. de vé s r o m a n t qua um s t ir o e o v p r te m t e n t o u c a c h o r Em á j sT u u um ão g o n o de o le s g a t a l? E u a h u a r m ih ti nor Só ch c ur a ! r p tam o c a . ra s d d o n f re s c u s essa

Só para avisar que o correto é Face e não feice como está no último post. Aviso pq tá feio de olhar. Abs Daniela Rodrigues, professora de inglês Aham, abs. carai, alguém anotou a placa? Pedro Guazzelli, lutador perdidão Oi?

da maioria ao ignorar a situação e as causas. Muitos preferindo simplesmente julgar o ato sem ao menos se colocar no lugar ou procurar entender e refletir sobre as circunstâncias do aborto. Sério, leiam e, tomara, reflitam. Ana Elizabeth Soares, leitora reflexiva Tô mara, Beth.

Facebook removeu a página do Tabaré #12 que eu havia publicado aqui! Ofensiva!? Por favor!!! Era uma foto forte, não ofensiva! Gabriel Jacobsen, fotógrafo censurado. Foda, hein, Jacobsen. Pra quem quiser ver, a foto saiu na edição passada. Se tu não conseguiu pegar o teu exemplar, a íntegra tá lá no www.tabare.net

em dia com a ignorância da comunidade. Oscar Wilde, escritor. Fala isso na minha cara se tu é macho!

Mandei um vídeo sem querer! hahah Um editor de jornal é alguém Geraldo que separa o joio do trigo - e Bruno Bettim imprime o joio. Santos de Oliveira, Adlai Stevenson, agricultor O jornalismo moderno tem vulgo Dj Black E aqui no Tabaré a gente uma coisa a seu favor: ao Favor parar de mandar precisa de 17 pessoas pra nos oferecer a opinião dos putaria pro nosso fazer esse serviço. deseducados, ele nos mantém email. Passar bem.

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[Maíra Oliveira]

Tava aqui lendo a matéria sobre aborto... É muito real o fato das pessoas ignorarem a realidade das mulheres, da enorme diferença que existe entre cada caso, da hipocrisia

[Fred Stumpf]

rro r Dem das ch up or ma i s f á a r a m et a s d c ez il cria nça para o anos p ra pa e A fa s míl tava in ranóic pegar oO og do do d ia já e stav viajar overn sama, a co o m co ad m da f y ilha panhi entro m seus ankee as R iya . a d n C p d o a ror ista o casa érea p avião ais da om 18 na foi u F , l m ed da ma pr ló co e Uni pre dos oibido nstav iu-lhes Jet Blu rida pa ses de a . s idad sa r e que Ap ó na l a de v S eg q N ua n d i st a sm ur iaj do u ova Je e, a de s escess lia, ança n eia ho ar de e usp m p m em rsey. avi qu os ra peg e tem a Trans com o ão den eitos d orque pregap tro e at ar s s ag on s o o eu v cendê ortes (TS entes d u fora ividad me ncia oo. e A a d t á ra , na erAd m os E Em b e, sig st a tem in foi po f ina la orig istraç dos ã i na lme Trê l), a o de nte le B s sema l f i a ber na rad ada míaer emeye s antes par opo ,a a rf abr rto do oi ame f ilha d aça e aç K q esco ndo su ansas ada pe uatro a apó la m a av n ndi s el a al esm os de M ó. O por e g s a o que s ic f que em seu of iciai lag rar TSA e helcria s m r e u i m s a nça r u sp um a que m faze sinho de p eitaram crianç se d r u a e m eb u Me lhav a rev lúcia e que el d ic a i q a s u ta c i na em orp eriam lág r a l te Os o i r r m al n as.. a b o c a r a s n at i v a a rto, p eg se c a m cêu am o f tic e Beb o, moe m um eto da m ên m c dio atimo e fazem icroon línica r to d é pr de a os c s fa ta m odu em om r m b z é a pri ido an m aviã dado p no no ser ve. midos . O re rde oo a ra ste uv m a qua se t ia cor Coréia da Ch éu i r n eio do do nho Sul a sex e mel . Diz d u h q e te a a u o 120 l. O cu ra o d e cura ese sto pi gov ern la a un é equ mpeo iva i da a bo c leti oreano de. Ag lenor “fer nha p q ea orq uer ba a o d ue rr ig os v alor nidade o prod ar u e hum to Em s tem ”. a na po e Vem cá cara s n , che , u fala n r e m ca o u e s s e s vir viag ra? am

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Nas Veias do Seringal por Luna Mendes

[Arte de Martino Piccinini sobre foto de Marineide Maia]

“Seringueira que estás na selva, multiplicados sejam os vossos dias, venha a nós o vosso leite e seja feita a nossa borracha, assim na prensa como na caixa, para o sustento de nossas famílias, nos daí hoje e todos os dias. Perdoai a nossa ingratidão, assim como nós enfrentamos as maldades do patrão, ajudai-nos e libertai-nos das garras do regatão, amém“. Oração do Pai Nosso dos Seringueiros criada por seringueiros do Amazonas

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seringueira é uma planta originária da Amazônia, que pode atingir 50 metros de altura. De cortes na casca do seu caule escorre um látex que serve para produzir borracha de primeira qualidade. A borracha já foi o principal produto de exportação do Acre. Após a falência de muitos seringalistas – donos dos meios de produção –, os seringueiros adotaram as áreas abandonadas para cultivar a terra e vender a borracha aos chamados regatões, para praticar a agricultura e a caça para subsistência, e extrair produtos da floresta, principalmente a castanha, base da sua alimentação. – Seringal é uma extensão de floresta que pode aglutinar até 300 famílias. Lá dentro, cada seringueiro tem uma área demarcada por divisas naturais que são as “colocações”, onde eles fazem suas moradias. Essa área pode variar de 200 até 1000 hectares, mas precisa ser grande porque o seringueiro precisa de cerca de 450 árvores de seringa para sobreviver. Osmarino Amâncio Rodrigues nasceu em um seringal chamado Bela Flor, no Acre. E desde cedo convive com todas as realidades do seringal. Militou com Wilson Pinheiro e Chico Mendes e acompanhou toda a estruturação da luta seringueira na Amazônia até a sua atual desmantelação através de políticas públicas para as quais direciona duras críticas. Expansão agrícola Nos anos 70, a ditadura militar adotou um modelo desenvolvimentista para a região a fim de implementar projetos agroflorestais, de mineração, madeireiros e agropecuários. Essa política de expansão da fronteira agrícola para o Acre implicou no êxodo das populações, em conflitos sangrentos, em uma

concentração fundiária e na devastação das florestas. Até 1986, 77% dos incentivos estatais feitos pela Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia eram dedicados à pecuária extensiva de corte*. Essa invasão de fazendeiros na região promoveu um embate entre os diferentes modelos produtivistas, que estimulou o movimento de resistência entre aqueles que se contrapunham à política militar. – Esse investimento na região tirava o nosso direito de permanecer na floresta. Tinha um grande comercial do governo federal dizendo que a Amazônia era um vazio demográfico, que precisava ser ocupada para que fosse feito o desenvolvimento, que tinha que ser “integrada para não entregar” [slogan nacionalista da ditadura militar]. A época era de crise na região, a política do latifúndio dos fazendeiros sulistas acabava com as práticas naturais de sobrevivência dos seringueiros e promovia a devastação da floresta que era transformada em área de pastagem, forçando as famílias a abandonarem suas terras. No ínicio desse movimento de expansão da fronteira, os campesinos do Acre formavam mais de 70% da população e desses, cerca de 85% não tinha a propriedade formal das terras que ocupava*. – Os fazendeiros queimaram quase 4 mil casas de seringueiros. Além da expulsão, eles faziam mulher e filha ser estuprada pelo jagunço, amarravam o seringueiro, e faziam todo o ato de violência na frente dele para deixá-lo sem força psicológica. Muita barbaridade aconteceu no meio daquela floresta. União Democrática Ruralista (UDR) era a entidade através da qual os fazendeiros se organizavam. A UDR existe até hoje e tem como princípio fundamental

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preservar o direito de propriedade. Ronaldo Ramos Caiado presidiu a UDR de 1986 a 1989. Hoje Caiado é deputado federal pelo DEM de Goiás. – Ele organizou o latifúndio em todo o Brasil. No Acre a concentração foi tão grande que em 1980, de 15 milhões de hectares de terra de floresta, dez pessoas eram donas de 8 milhões. O sangue corria pelas veias daqueles seringais, mas o embate entre fazendeiros e seringueiros nem sempre atingia um nome forte o suficiente para chamar a atenção da opinião pública. O fuzilamento de Wilson Pinheiro, presidente do sindicato dos trabalhadores rurais de Brasiléia, na noite de 21 de julho de 1978 e o aniquilamento de Chico Mendes, presidente do sindicato dos trabalhadores rurais de Xapuri, assassinado na porta de sua casa em 22 de dezembro de 1988, foram as poucas exceções que tiveram visibilidade. O fantasma da violência na Amazônia não assusta, mas indigna Osmarino. – O crime só é divulgado quando uma liderança de expressão é assassinada. Mas essa não é a estatística verdadeira porque aquela liderança que não tem expressão ninguém leva pra lista. Pra mim, a importância do Chico Mendes é a mesma daquele que não dirige um sindicato, mas que está lá dando apoio, fazendo a parte tarefeira. Nós tivemos mais de 172 pessoas em duas décadas que foram assassinadas e eles lançaram uma lista de 15. Resistência As comunidades eclesiais de base da igreja católica iniciaram e levaram muitos seringueiro à resistência nos anos 70, através da difusão da Teologia da Libertação. Em 1975 foi instalada no Acre uma


Delegacia Regional da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) que fundou sindicatos nos sete municípios existentes no estado entre 1975 e 1977. Foi o início da estruturação política dos seringueiros. Como resultado desse processo, em março de 1976 foi organizado o primeiro movimento liderado pelo sindicato, chamado Empate – uma técnica de resistência para evitar a derrubada das florestas –, que enfrentava o desmatamento no Seringal Carmem, em Brasiléia. – Quando chegaram no Sindicato dizendo que seríamos expulsos, Wilson Pinheiro e Chico Mendes disseram: “precisamos dessa floresta em pé para sobreviver, se ela cair, nós caímos com ela”. Então não derrubaríamos a floresta, mas não deixaríamos os fazendeiros derrubar, isso é Empate. Resistimos por quase três meses no enfrentamento mesmo.

O conflito foi resolvido com uma reunião em que se acordou que os seringueiros trocariam suas “colocações” por lotes de 25 hectares. O acordo mantinha a política fundiária da ditadura militar, mas esse foi o começo de um processo de luta em toda a região do Vale do Acre, que inclui os municípios de Xapuri, Brasiléia, Rio Branco, Assis Brasil e parte de Sena Madureira. Em 1985, foi realizado em Brasília o 1° Encontro Nacional dos Seringueiros com a participação de 130 seringueiros do Acre, Rondônia, Amazonas e Pará, em que foi colocada uma proposta de reforma agrária adequada para a região. – A reforma agrária da Amazônia não poderia ser a mesma do Rio Grande do Sul, porque no sul as pessoas conseguem sobreviver com 5 hectares de terra, lá não. Precisávamos de uma

área razoável porque vivíamos do extrativismo natural. Lá plantamos só para o consumo porque a distância das cidades para a floresta é muito grande e as cidades são todas camponesas. Nesse mesmo período foi criado o Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS) que criou a proposta da Reserva Extrativista (RESEX), uma adaptação jurídica aos moldes extrativistas de lida com a terra e uma alternativa à forma como se dava a apropriação dos recursos naturais. Ao invés do extrativismo servir para a acumulação de capital privado, a gestão da terra seria coletiva e o título pertenceria a União com usufruto dos seringueiros. A consolidação jurídica dessa prática culminou com o Governo Federal reconhecendo a criação da Reserva Extrativista Chico Mendes através de um decreto de março de 1990. – Essa proposta foi inspirada nas áreas indígenas que tinham a conotação de firmar os índios na terra, porque elas não têm título de propriedade, e tínhamos essa mesma preocupação. Foi uma proposta polêmica porque não existia uma figura jurídica para criar reserva extrativista, então queriam que reivindicássemos o usucapião, mas esse modelo dá o título de propriedade que poderia ser vendido para o latifúndio. Nossa preocupação era evitar essa ciranda de êxitos, apesar de que a reserva extrativista tem uma concessão que pode ser de até 99 anos, mas qualquer presidente pode derrubar o decreto.

uma prática. Osmarino cita o exemplo da Lei de Florestas Públicas que permite concessões de milhões de hectares de terra para multinacionais. – Essa lei permite que um fazendeiro peça uma concessão de 40 anos para dominar uma área, por exemplo, de 500 mil hectares. A partir do momento que ele tem a concessão, nenhum seringueiro entra mais. Então ele pode implementar

Marina [Silva] privatizou a Amazônia por 70 anos

Criminalização das práticas extrativistas A prática extrativista implica uma convivência ecologicamente sustentável entre homem e natureza. O seringueiro preserva a floresta porque depende econômica e socialmente dela. No entanto, políticas governamentais vêm criminalizando práticas extrativistas em nome de uma sustentabilidade questionável. – Eles decretaram que não podemos mais tirar a subsistência da nossa terra. Antes eu poderia tirar a madeira para fazer minha casa, para fazer uma ponte, eu poderia matar a minha caça, pescar o meu peixe, hoje não. A realidade é que se aquela floresta está de pé é por nossa causa, por causa dos índios, dos seringueiros que se recusaram a deixar ela cair. Para impedir a prática extrativista existe uma bolsa auxílio para aqueles que migrarem para o trabalho do manejo madeireiro. É o programa Bolsa Verde que paga cerca de R$ 300 por trimestre para que os seringueiros não interfiram na floresta. – A Bolsa Floresta, ou “pochete miséria” como chamamos lá, tem um termo de adesão que obriga o seringueiro a obedecer toda a regra ambiental para não ser expulso da terra. Então o que antes era a nossa sobrevivência, agora é crime. Tudo em nome de uma economia verde que, na prática, dá lucro pra meia dúzia de multinacionais do agronegócio e de ONGs. Em nome dessa sustentabilidade, que não tem nada de sustentável, eles vão vendendo e privatizando todo os bens naturais. A nova economia verde está ameaçando a nossa fonte de renda. Desenvolvimentismo contemporâneo O fronte de batalha dos seringueiros extrapola as fronteiras da floresta amazônica. Pontos do Código Florestal e outras políticas governamentais contrariam a prática sustentável extrativista e reforçam o ponto de vista de que a privatização da Amazônia não é apenas um discurso, mas

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a biopirataria, trabalhar todo tipo de extração dessa área. E passados os 40 anos, ele pode refazer o contrato por mais 30. Então, a Marina [Silva] privatizou a Amazônia por 70 anos. A crítica às políticas públicas é potencializada por projetos como a regulamentação da questão fundiária, que perdoa todos aqueles que desmataram até o ano de 2008 e pela criação do Sistema Nacional de Unidade de Conservação (Snuc), que retira o poder político dos seringueiros sobre as reservas em favor do governo. – A reserva não é mais dos seringueiros. Com o Snuc, o presidente da reserva é o ministro do meio ambiente, antes qualquer projeto de expansão para dentro das reservas só podia ser criado com o apoio da assembleia dos moradores. Osmarino destaca que o desmatamento é resultado de um processo de desrespeito às formas de vida que vivem na Amazônia e que conta com a conivência de políticas públicas. – Hoje precisamos organizar um grande Empate contra o Estado, porque ele é o gestor das políticas implementadas pelo agronegócio e pelas multinacionais. O papel do Estado é fazer o comercial, a Dilma está sempre viajando para negociar a exportação de um produto. O sistema capitalista amordaçou, engessou e a gente já não tá mais na ofensiva porque defender os direitos humanos é estar na defensiva. O melhor time é o que ataca, porque o que se defende uma hora vai vacilar. A defesa da Amazônia não é uma luta só dos seringueiros e dos índios. Hoje o Empate contra o Estado é da comunidade acadêmica, do mundo científico, do pessoal que está nas zonas urbanas. Precisamos da aliança entre campo e cidade. * Fernandes B.M., Medeiros L.S., Paullilo M.I. Lutas Camponesas Contemporâneas. Unesp: São Paulo,2009.

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Quintas por Chico Guazzelli e Gabriel Jacobsen

Martino Piccinini (MP)

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ão mais que 60 homens e raras mulheres se espalham pelo saguão de apostas e pela arquibancada central do Hipódromo do Cristal em Porto Alegre. Reproduzem os mesmos gestos que milhares de pessoas já executaram ao longo dos 114 anos de Jockey Club do Rio Grande do Sul. Poucos têm menos de meio século de vida. Nós, dois repórteres anacrônicos e estupefatos, não sabemos por onde começar: a expectativa de um mundo à parte se confirmava. Não havia dúvida que éramos os únicos curiosos entre frequentadores. A única forma que encontramos para começar a compreender o que faz aqueles senhores irem todas as quintas-feiras até a zona sul da cidade, foi fazer o que todos estavam fazendo: apostar – o que, honestamente, não foi sacrifício. Entretanto, apostar naqueles equinos de nomes tão peculiares não é nada simples. Foi fácil perder com a Morena de Fé e dificílimo acertar a primeira trifeta (a ordem de chegada dos três primeiros colocados). O fim de cada páreo sempre traz consigo a euforia de poucos apostadores e a derrota de outros muitos, o que contamina os olhares e o chão – depósito de bilhetes não contemplados. No entanto, euforia e derrota se alternam, pois o vencedor de uma corrida certamente será perdedor em outra. O que os une é a expectativa alimentada pela espera durante os vinte minutos que antecedem cada páreo, quando os apostadores, sem exceção, recorrem à folha-programa que detalha os dados de cada cavalo, jockey, proprietário e haras envolvido na corrida. É neste tempo que existe, entre os apostadores, a conversa miúda, a busca pela informação privilegiada, os olhares atentos aos monitores que atualizam a cotação das apostas. É o momento dos humanos: da ansiedade, da aposta, da imaginação. Tanto que poucos se interessam pelo desfile dos cavalos que antecede as corridas. Os olhares

somente se concentram na pista durante o curto e definitivo tempo que vai da largada à foto da chegada. Assim são as quintas-feiras. *** Da arquibancada que sempre parece maior por estar vazia, avistamos uma careca conhecida. - Olha ali, é o Claudião?! - É, é o Claudião. Que que ele tá fazendo aqui!? Cláudio Duarte jogou no Inter multicampeão dos anos 1970 e já treinou a dupla Gre-Nal 11 vezes. Pelo tempo de dois páreos, entendemos o que fazia ali. Sem interesse em apostas, Claudião tem no Jockey um “desafogo”. - Eu tenho na minha carreira no futebol 19 títulos. Tu vai na minha casa, não tem um troféu, uma faixa. Eu sempre dei tudo pros meus amigos. Agora, se tu for lá em casa, tu vai ver quatro, cinco troféus de páreos [como proprietário de cavalo]. E nesses ninguém mexe! Mesmo quando eu era jogador ou quando eu treinava o Grêmio ou o Inter, que lugar eu poderia ir sem que ninguém falasse de futebol? Aqui. Porque no Hipódromo o combinado é que só se fala de cavalo. De trabalho ninguém fala. Em meio a conversa, lhe pedimos um palpite - que infelizmente não seguimos. Olhos Cor de Mel ganhou o páreo e nós deixamos as apostas de lado para percorrer outros recantos daquele mal cuidado prédio tão simbólico para a chamada escola carioca de arquitetura. *** É impossível circular nas dependências daquele hipódromo sem ouvir as vozes que, pelos autofalantes, detalham aos apostadores presentes as barbadas de cada páreo. Dessas vozes, a que mais ecoa durante a

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rápida corrida é a de Airton Bernasque, que do alto de sua cabine narra há seis anos os páreos dos cavalos. - Quem acha que narrar turfe é como narrar futebol, está enganado. É muito mais difícil. Esses dias eu tava conversando com o Haroldo de Souza [um dos principais narradores do rádio esportivo gaúcho], e ele estava dizendo que a grande dificuldade é segurar a audiência por 45 minutos. Mas a grande facilidade é que, se tu errar, tu consegue remendar. Aqui não tem como, é um minuto e pouco cada corrida. Tá todo mundo olhando, cada um joga num animal, cada um olha o seu animal, e tu tem que olhar todos. Airton está no Jockey desde que nasceu – há 37 anos – e é proprietário de cavalo desde os 8, quando ganhou de seu pai o primeiro animal. Advogado, apresentador da TV Jockey, ex-diretor da instituição, o narrador também já foi cooptado pela vertigem incontestável das apostas. - Eu posso dizer que, em algum momento da minha vida, eu fui um jogador compulsivo. Porque tu joga na primeira corrida e erra. Joga na segunda tentando recuperar a primeira. E são 11 corridas. E se tu acerta, quer aumentar o lucro. Então, na verdade, eu acredito que quase todo jogador é compulsivo. Já vi gente aqui dentro penhorar relógio e óculos para jogar mais. Isso pra mim funciona em qualquer jogo. Já joguei muito bingo, sinuca, pôquer e até hoje gosto de jogar. Mas hoje eu jogo normal, dentro do que eu posso. - E já ganhou e perdeu muito? - Perder? Dois mil num dia... três, quatro mil no outro. E ganhar? Há 3 anos, ganhei 37 mil reais. Mas eu posso te garantir: no turfe, como qualquer outro jogo, se tu botar o que ganhou e o que perdeu, por mais que tu ganhe, no final das contas, tu vai estar perdendo. Quando entra, entra bastante; mas quando sai, sai aos poucos. O jovem comentarista Jonathan Monteiro ocupa a outra cadeira da cabine. Aos 20 anos, alterna as análises turfísticas com seu trabalho principal


feiras Gabriel Jacobsen (GJ)

em uma firma de segurança. Filho de criador de cavalos, gostaria de ter sido jóquei, mas sua elevada altura não permitiu. Jonathan também aposta. - De todo meu dinheiro, uma parte é destinada a apostas. Qual foi minha maior derrota? É quase todos os dias. Mas nas vitórias já deu pra ganhar uns seis, sete mil reais de uma só vez. Com a mesma naturalidade de Airton e Jonathan – e tão íntimo do Jockey quanto eles –, o frequentador José Alberto entrou no Hipódromo do Cristal pela primeira vez por pura curiosidade, nos idos de 1964. Depois disso, foi até proprietário de cavalos. - Tive a infelicidade de acertar logo na primeira vez. Eu tava na arquibancada, juntei uma aposta do chão e disse pro meu irmão, ‘esse cavalo vai ganhar!’. Todo cara que começa no turfe é assim, acerta sem querer. Certa vez, um amigo meu entrou aqui para ver como era. Eu disse, ‘já viu, então vai embora, não joga, porque tu vai jogar, ganhar e amanhã vai estar aqui’. No outro dia tava ele, a irmã e o pai. E é viciado até hoje. Viciado no bom sentido. Eu já fui apostador, mas não me considero um viciado, porque não me faz falta. Às vezes, venho aqui e não jogo um tostão. - Tu ganhou mais como apostador ou como criador de cavalos? - Nenhum dos dois. Uma vez por ano, José Alberto embarca em um avião com um grupo de amigos e passa uma semana no Rio de Janeiro para assistir ao Grande Prêmio Brasil - prova mais importante do País - e apostar. - Nesse último Grande Prêmio, joguei 10 reais na exata [aposta em que se deve apontar o 1º e 2º colocados do páreo], e 10 reais na dupla [aposta em que se deve apontar os dois primeiros colocados do páreo, independentemente da ordem]. Eu acertei as duas. Então apostei 20 e ganhei 2750 reais. Tirei minha viagem. No hipódromo que frequentamos, o apostador entrega suas esperanças nas mãos de uma das várias

mulheres que, em troca, devolvem sempre um bilhete azul e branco. A atendente Magali Freitas, sempre sorridente, é uma delas. Com 26 anos de profissão, já viu muitos apostadores como nós entregarem três ou quatro reais, enquanto outros depositam pequenas fortunas nos quadrúpedes. - Uma vez o Jockey Club estava em uma forte crise financeira. E tinha um apostador que jogava muito alto e raramente ganhava. É uma pessoa bem conhecida, com posição social elevada. Agora faz tempo que não vem. Ele perdia uns 10 mil por semana. Teve um mês que só com o dinheiro das apostas dele, o Jockey conseguiu pagar o décimo-terceiro de todos os funcionários. *** Em nossa convivência semanal no hipódromo, só conseguimos nos aproximar de um frequentador. Na faixa etária da maioria, moreno, parrudo e sempre de óculos, Milton compartilhou conosco seu conhecimento turfístico. Seu aprendizado sobre o esporte foi adquirido em inúmeras quintas-feiras apostando, e noutros tantos dias em que circula e conversa com criadores, treinadores e jóqueis. Milton nos apresentou T.J. Pereira, que como a maioria dos jóqueis que correm no Cristal, veio do interior do Estado, onde as corridas de cavalos são muito mais frequentes nas chamadas canchas retas. Nesta modalidade, os cavalos correm em uma pista sem curvas, com até 500 metros de comprimento. Quando os jovens jóqueis de 13 ou 14 anos ultrapassam os 40 quilos e se tornam pesados para a categoria, o caminho natural é ingressarem no turfe. Tiago Josué, ou T.J. – como o chamam no turfe, seguindo a tradição de abreviar os nomes e preservar o sobrenome –, passou dois anos competindo no Cristal antes de vender seu Fusca vermelho ano 76 e embarcar rumo ao famoso Hipódromo da Gávea,

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no Rio de Janeiro. Atualmente, com 34 anos, monta em Macau, na China, oportunidade que conseguiu após vencer, em 2010, a Dubai Cup, uma das provas mais importantes do turfe mundial. Este prêmio pagou 10 milhões de dólares ao proprietário do cavalo vencedor. Dessa quantia, T.J. Pereira recebeu cerca de 600 mil reais. Mas, ele é a exceção. H.F. Santos, aos 52 anos, próximo da aposentadoria, nunca trocou de hipódromo. Há 35 anos disputando corridas na pista de grama ou na de areia do Cristal, almeja ainda vencer a prova mais importante do turfe gaúcho: o Grande Prêmio Bento Gonçalves. Conversamos com Santos em uma bela quinta-feira de outono, enquanto se preparava para correr – e vencer – o primeiro páreo da tarde. Antes de montar o Ultimate Tyrant, que estava pagando 17,8 reais para cada real apostado, nos falou sobre a vida de jóquei. - Quanto tu ganha por mês? - Tem semana que eu ganho 700, 800, e tem semana que ganho 100 reais. Em média, tiro mil e poucos por mês. Dá pra sobreviver. Tem jóquei que tira mais. Eu infelizmente nunca fui contratado, nunca tive essa sorte. Como Santos, a maior parte dos jóqueis do Cristal trabalha como “avulso”. Assim, dependem de ser escolhidos por um proprietário de cavalos a cada quinta-feira. Por corrida disputada, ganham 24 reais. Os cinco primeiros colocados recebem 10% do prêmio que o Jockey Club paga ao proprietário, o que no caso do vencedor representa cerca de 200 reais. Alguns são contratados por proprietários para montar em seus cavalos, recebendo um valor fixo por mês, além das possíveis premiações, como J. Mouta. O cearense, de 43 anos, já montou em Campos dos Goicatazes (RJ), Recife (PE), Teresina (PI) e Campinas (SP), de onde veio de carona em um caminhão, com sua esposa. A viagem a Porto Alegre durou 33 horas. J. Mouta, como todos os jóqueis do Cristal,

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(GJ)

Nestes casos, então, realizamos a eutanásia. Numa daquelas quintas-feiras, enquanto todos olhavam para a reta de chegada, Milton nos alertou para um imenso corpo estendido na pista de areia. A potranca de nome Golodice quebrou o pescoço e precisou ser retirada de trator. Golocide morreu naquele 25 de agosto sem uma única vitória na carreira e com diurético e antiinflamatório ainda fazendo efeito em seu organismo – substâncias permitidas nas corridas do Cristal. Milton (E) é um dos poucos que assiste ao desfile dos cavalos

***

(GJ)

Pela primeira vez em meses de reportagem usamos terno e gravata. Era o grande dia do turfe gaúcho. Entre canapés deliciosos e espumantes, senhores bem vestidos e senhoras de chapéu, políticos, jornalistas e colunistas sociais, assistimos ao Grande Prêmio Bento Gonçalves de 2011. Aquelas arquibancadas, outrora vazias, estavam agora cheias de gente de todas as idades. Famílias. A felicidade se refletia nas apostas generosas daquele excepcional domingo.

(GJ)

Minutos antes de cada páreo, as filam para apostas crescem

Em dia de Grande Prêmio, o público é excepcional

(MP)

treina todas as manhãs, exceto nas quintas (porque há corridas) e na folga dominical. Além de trabalhar, Mouta reside nas dependências do Jockey Club – assim como outros 24 jóqueis e 720 cavalos. Visitar a “coxeira” 59, onde ele e sua esposa moram, nos permitiu conhecer a Vila Hípica, um imenso ambiente à margem das apostas e corridas. Nela, convivem os cavalos, em suas coxeiras, com os seres humanos, em suas “coxeiras”. Há ainda na geografia do lugar uma outra vila, que não pertence ao Jockey Club, mas que o invade feito uma península: a Vila Cristal, cuja pobreza salta aos olhos. O convívio entre ambas é inevitável. Marta Lucia Baumgarten Vasconcellos, médica do Jockey há 10 anos, considera as possíveis influências entre as vilas. - O índice de drogadição é muito grande na população que vive na Vila Hípica e eu não admito isto. Se eu suspeitar que o jóquei está drogado, não permito que monte. A droga mais comum aqui é o crack. Essa gurizada sai muito cedo de casa, com 13 anos, para viver aqui. E o convite é uma barbada, afinal tem uma vila boca-braba ali do lado. Já aconteceu de jóquei aqui não aguentar e ir embora por não querer se envolver. Marta Lúcia examina, com auxílio de um enfermeiro, cada um dos jóqueis para garantir que estão aptos a cavalgar. Isto porque, não raro, os já pequenos e magros atletas desmaiam em decorrência de exaustivas horas na sauna do Jockey. Além disso, a necessidade de perder muitos quilos pouco antes da corrida frequentemente leva estes atletas a tomarem diuréticos, que podem causar danos à saúde. - Alguns me pedem ajuda para controlar a alimentação e não precisar tomar um monte de diurético ou fazer 4 horas de sauna. Alguns deles fazem um estrago de sexta a terça, e no dia anterior à corrida, na quarta, não comem nada, literalmente. Já tive um rapaz aqui que tomou três diuréticos, passou mais três horas na sauna, e quando terminou de correr o seu terceiro páreo do dia, veio para o consultório e parecia uma batucada. Estava com uma arritmia grave! Ainda há um outro perigo para os jóqueis que, por vezes, independe de seu arbítrio. Não bastasse se tratar de um esporte, e esportes de contato têm seus riscos, há animais envolvidos. Com uma média de 500 quilos e ultrapassando os 60 km/h, os cavalos puro sangue inglês, raça mais utilizada no turfe, podem ser mortíferos. A médica lembra alguns episódios: - Teve um caso na curva, durante os treinos. Dois jóqueis estavam treinando a largada. O cavalo de um deles era nervoso e foi para cima do outro que se assustou. O jóquei caiu na vala, que é de puro concreto, e teve intersecção de medula. Conseguiram entubar e levar para o HPS. Mesmo assim, depois de quatro semanas, ele morreu de infecção respiratória. Em maio do ano passado, dois animais se chocaram, mas por sorte, o joquei que mais se machucou sofreu apenas uma luxação. T.J. Pereira, que já correu em vários hipódromos do Brasil e do mundo, lembra de posturas que aumentam os perigos na pista. - No Brasil, os jóqueis não têm amor a si próprios. Eles se fecham, coisa que a gente normalmente não vê lá fora, onde são mais técnicos. Eu mesmo tenho uma fratura no braço. O outro jóquei vinha do meu lado e eu gritava, ‘Fulano, eu estou aqui, fulano, eu estou aqui!’. Até que ele me derrubou. Teve um amigo meu, chamado Luciano, que faleceu porque o cavalo disparou e se chocou contra uma cerca.

Antigo pavilhão geral (D) atualmente está desativado

São coisas que acontecem nesta profissão perigosa. Você entra na pista e não sabe se vai sair inteiro. Perseguindo a manada durante toda a corrida, a bordo da unidade móvel de saúde, sempre estão Pedro, o socorrista que nunca apostou, Guilherme, o veterinário que nunca apostou, e Alexandre, o enfermeiro, que esquecemos de perguntar se já apostou. Mas sabemos que Alexandre da Silva é o segundo enfermeiro em 114 anos do Jockey Club do Cristal – o primeiro morreu dormindo, aos 90 anos, dentro de seu consultório no Hipódromo. Ao contrário dos outros dois ocupantes do veículo, Guilherme Gonçalves Costa se preocupa com os equinos. - Uma vez por mês, um cavalo desses é sacrificado. Quando há fraturas expostas, ou de ossos longos como tíbia, fêmur, ou lesões no pescoço ou na medula, tu não consegue manter ele vivo porque não tem como tu pedir para o cavalo não se mexer, não apoiar o peso sobre determinado membro.

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*** Não fazia sentido. Por que todos os dias não eram dias de Bento Gonçalves? Um esporte emocionante, desses em que se torce até o final. Com animais majestosos que se prestam ao desfile. Com perdas e ganhos à beira do Guaíba. Com estacionamento e entrada gratuitos. E vazio. Como explicar, presidente? - O turfe, na década de 70, rivalizava só com a Loteria Esportiva. Os patrocinadores e a grande midia se interessavam. Agora tem uma avalanche de jogos. A Caixa Econômica tem jogo todo dia e levou nosso apostador. E o nosso público assiste às corrida de casa, pela internet. Tu não vê o público no Hipódromo circulando. Se tu for no Jockey Club da Gávea, tu não vai ver mais de 500 frequentadores. Além disso, tem as agências de aposta nos bairros. A pá de cal foi o bingo. Pegou nosso cliente porque é um ambiente fechado e glamuroso. Nossa atividade aqui é a céu aberto. Tem dias que faz 0 grau. É muito dificil trazer gente nova pro turfe. A minha geração, na casa dos 40, é a mais nova. José Vecchio Filho, presidente reeleito do Jockey Club do Cristal, é realista. - A gente trabalha no vermelho, e se aliena patrimônio para tapar furo. Isso tem que acabar. - E o que dá dinheiro no turfe? - Criar cavalo em haras dá dinheiro. Quem compra esses cavalos para correr, é por lazer, pelo esporte. Cada cavalo custa cerca de 500 reais por mês com comida e trato. Quem mira a indústria do turfe são os criadores. Inclusive, a criação brasileira é a melhor da América Latina. E a de Bagé é disparada a melhor. - E como vai se fazer para manter o Jockey quando estes frequentadores morrerem? - Esse é o maior desafio. Renovar o turfe. Como? Ninguém tem essa resposta. Por enquanto o horizonte é horroroso. Eu sempre disse que o turfe vai combalir por falta de proprietários de cavalos. Quando eu era piá, tinha proprietários com 30 cavalos. Hoje um grande proprietário tem 10. Apostador sempre vai existir. Se não for no turfe, em alguma coisa ele vai jogar. Se você não formar novos turfistas, quem vai comprar cavalos para os outros apostarem? Quando eu venho de táxi, o motorista me pergunta, ‘Isso ainda tá aberto?’. Isso me toca profundamente.


O destino dos cadáveres depois da morte violenta por Marcus Pereira

[Ubiratan Carlos Gomes] ubiranima@yahoo.com.br

Os vivos são sempre e cada vez mais governados necessariamente pelos mortos - Auguste Comte Não jornalista profissional, jornalista necrofissional

A

h, vivíssimos leitores! O suicídio me ocorreu enquanto investigava a influência da morte na vida de fotógrafos-criminalísticos, médicos-legistas e coveiros – profissionais que não se cansam de ouvir as queixas silenciosas dos assassinados, suicidas e acidentados. A princípio, o auto-aniquilamento foi uma ideia que se manifestou tímida e fugaz em minha mente. Porém, uma vez imerso nos depoimentos e no ambiente mortuário dessas três profissões, o ímpeto autodestrutivo agiu sobre mim como um verme indolente: aos poucos foi me roendo os impulsos vitais até, enfim, me putrefar por completo o juízo. Aí, foi apenas questão de tempo até surgir a oportunidade de consumar minha ruína voluntária. A situação oportuna apareceu na última madrugada, na privacidade do meu apartamento. Em frente ao espelho da sala, engatilhei o revólver e o levei até perto da boca – como se aproximasse um microfone que permitiria a locução de um morto. Depois, abocanhei o cano da arma e... Bum!!! Cá estou eu para lhes dizer que sou um cadáver. Um defunto cuja última expressão do rosto traduziu simetricamente o pensamento mais doentio: “o suicídio há de me promover de jornalista profissional para jornalista necrofissional; dessa forma, escreverei uma reportagem a respeito da morte sob originalíssima perspectiva.” Eis então que fundei um ofício pós-mortem, parecido com aquele do fabuloso

Brás Cubas. Contudo, ao contrário do defunto-escritor, meu labor literário iniciou ainda em vida, quando entrevistei meia dúzia de personagens. Assim, esta matéria atravessará o limite entre vida e morte, pois se encerra agora, um tiro depois da minha existência. A propósito, a vizinhança deve ter ouvido o disparo. Certamente alguém já acionou a polícia. Logo as autoridades desencadearão o procedimento-padrão. Primeiro, chegará a Polícia Civil que, ao constatar que se trata de óbito violento (assassinato, suicídio ou acidente), solicitará os serviços do Instituto Geral de Perícias (IGP). O IGP deslocará um eito de peritos até esta cena fatídica – entre eles, um fotógrafocriminalístico. Aí, concluída a perícia, serei removido até o Departamento Médico-Legal (DML) de Porto Alegre, onde será feita a autópsia. Por fim, se em 30 dias não reclamarem meu corpo, serei enterrado num cemitério de indigentes ou doado para universidades a fim de ser usado em estudos anatômicos. Por certo, corados leitores, esta é a mais funesta das odisséias, cujas veredas em breve conhecerei. Fotógrafo-criminalístico, o retratista de cadáveres Cerca de uma hora depois da minha morte, a equipe de peritos adentra o apartamento. O fotógrafocriminalístico se aproxima para retratar minha morte. Ele me fotografa com destreza: primeiro busca enquadramentos mais abertos, depois mais fechados; primeiro a posição do meu corpo dentro da sala, depois os detalhes da minha face, do ferimento,

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da arma usada, etc. Além de produzir imagens do meu corpo, o fotógrafo deve registrar certos aspectos do ambiente, pois, os mínimos detalhes podem ser úteis à investigação. Não é o caso do meu óbito, cujo suicídio é evidente. Ainda assim, uma sucessão de flashes relampeja no recinto, na tentativa de esclarecer as circunstâncias em que morri. Todas as fotos serão usadas para ilustrar os autos judiciais que me oficializarão como suicida. E, a partir de tal ofício, meu corpo será convertido em mera prova perante a Justiça. Tal condição, por sua vez, impedirá que me cremem, visto que o Código Penal Brasileiro impede que evidências sejam destruídas. Além disso, depois de enterrado, deverei ficar disponível para possíveis exumações, caso o processo a meu respeito seja desarquivado. Tal legislação vale para qualquer vítima de morte violenta. Embora não se ocupe exclusivamente de defuntos, a fotografia-criminalística retrata mais os mortos do que os vivos. Os fotógrafos dessa área focalizam as lentes das suas câmeras em cadáveres baleados, esfaqueados, estrangulados, esquartejados, acidentados, corpos recém expirados ou em estágio de decomposição avançado. Sem dúvida, é uma profissão excruciante. Tanto que muitos fotógrafos sofrem abalos psicológicos irreversíveis como, por exemplo, a síndrome do pânico; outros se aposentam em decorrência das enfermidades da mente; outros ainda se refugiam no alcoolismo. Para agravar, o Estado não oferece acompanhamento psicológico para esta classe de funcionários públicos (o IGP é subordinado à Secretaria Estadual de Segurança).

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Mesmo assim, alguns profissionais conseguem manter a sanidade mental. Durante a etapa viva desta reportagem, quando fiz as entrevistas, conversei com Claudia Bacelar Rita – 20 anos dedicados à fotografiacriminalística. Claudia, que hoje trabalha no sindicato da categoria, aparenta ter uma boa saúde psíquica. Fala com voz animada e inequívoca, com algum bom humor. Ela fez algumas considerações sobre a profissão: – A fotógrafia-criminalística é uma função pesada, porque, você acaba normalizando a morte. Uma pessoa que trabalha com isso vê muito mais mortes que uma “pessoa comum.” Os assassinatos, os suicídios, os acidentes de trânsito acabam sendo uma coisa do cotidiano. Uma coisa é ler no jornal que alguém morreu, outra é presenciar aquilo. Além disso, passamos a ter uma noção maior de que a morte pode acontecer a qualquer hora, em qualquer lugar. Eu, por exemplo, me tornei neurótica: tenho medo de sair à noite, tenho medo de acidentes de carros, tenho medo quando a minha filha sai à noite. Enfim, quem trabalha com isso não pode negar a morte. De fato, quem trabalha como fotógrafocriminalístico não pode negar a morte. Para comprovar tal preposição, basta observar o fotógrafo que acaba de me retratar. Ele não nega a morte. Aliás, nenhum perito a nega. Na verdade, até se preocupam com a decomposição dos cadáveres. Tanto que, concluída a perícia, imediatamente sou embarcado no veículo que me conduzirá até o DML. Não há tempo a ser desperdiçado. Afinal, um exército de bactérias já começa a me desmanchar. Legista, o médico dos mortos Chego ao Departamento Médico-Legal quase três horas depois do meu óbito. Entretanto, é preciso esperar, pois, todos os defuntos devem aguardar no mínimo cinco horas antes de serem autopsiados. Este procedimento evita que o legista seja acometido por algum tipo de culpa durante a autópsia. Mas, nós – cadáveres – não nos importamos em aguardar. Esperamos pelo atendimento médico com muito mais paciência do que os vivos. Afinal de contas, não temos nada a perder. Além disso, nossa sala de espera possui condições ideais de temperatura e assepsia, o que retarda a nossa putrefação. Assim, espero com parcimônia pela consulta com o legista – que, apesar de ser chamado de médico, aqui desempenha mais a função pericial. Sete horas depois do meu suicídio, chega o momento da necropsia. Enquanto permaneço estendido sobre a mesa, o médico-legista veste o jaleco, as luvas de látex e a máscara cirúrgica. Prepara os utensílios. Imprime um formulário com uma série de itens a serem analisados. Tal questionário garante que nenhum aspecto pertinente será negligenciado. Enfim, ele se aproxima de mim e... Ah, que pena! Não é nenhum dos profissionais que entrevistei na parte pulsante desta reportagem. Mas, tudo bem. Afinal, como me relataram os próprios profissionais, o anonimato contribui para que o procedimento seja o mais objetivo possível. Na primeira parte da autópsia, o legista averigua alguns aspectos descritivos do meu corpo: sexo masculino, pele branca, 58 quilos, 1 metro e 64 centímetros de altura, bem nutrido, rigidez muscular generalizada, livores de hipóstase na região posterior, cabelos pretos, olhos depressíveis, córneas semitransparentes, pupilas dilatadas, ouvidos, narinas e boca secos, abdômen tenso e plano, genitália sem particularidades, ânus íntegro. Na sequência, prepara as ferramentas para me inspecionar a caixa craniana: corta-me o couro cabeludo de orelha a orelha; puxa a epiderme testa abaixo até que a calota do crânio fique

exposta; serra-me o osso da testa, das têmporas, da nuca; retira a calota do crânio; remove o cérebro; observa a perfuração da bala que atravessa o órgão pensador de baixo para cima, da fronte para trás. Por fim, examiname a caixa tóraco-abdominal: faz uma incisão profunda desde o peito até abaixo do umbigo; abre o tegumento como quem abre um par de cortinas; com um alicate, rompe-me as costelas; avalia-me a aparência dos órgãos; retira-os; analisa cada um separadamente; pulmões secos; coração de tamanho normal; estômago vazio; intestinos sem alterações; bexiga vazia; etc. Por fim, devolve tudo para dentro do corpo. Costura. E, no entanto, prezados leitores, não sinto um pingo de dor. Este procedimento é repetido em média 12 vezes por dia, segundo dados do DML de Porto Alegre (que atende a toda região metropolitana). Isso significa que 12 pessoas morrem de assassínio, suicídio ou acidentes todos os dias nos arrabaldes da capital. Em um mês, são 360 mortos. Em um ano, 4320. Mais da metade dessa hecatombe de desgraçados são jovens do sexo masculino, pertencentes às classes C, D e E, com no máximo o primeiro grau de escolaridade. De qualquer jeito, independentemente do perfil sócio-econômico, todos passam por um dos 36 médicos-legistas que atendem a capital e cidades circunvizinhas. Então, diante de tantos defuntos, quais seriam os efeitos da morte sobre a vida desses profissionais? O doutor Francisco Silveira Benfica – legista há 25 anos – me falou um pouco a esse respeito. Sujeito magro de baixa estatura, olhos pacíficos e profundos, observou que a convivência com a morte lhe reitera a vida: – Olha, trabalhando como médico-legista, você se torna mais humilde. Porque você percebe que a morte é democrática. Não importa se você é rico ou pobre, bonito ou feio, gordo ou magro, famoso ou anônimo... todos vão morrer. E, se passarem pelo necrotério do DML, todos vão ter que esperar para ser autopsiados. Ninguém fura a fila. Além disso, você passa a valorizar mais a vida. Porque, veja bem, fazemos 12 autópsias por dia. Isso significa que 12 pessoas saíram de casa para ir para seus trabalhos, para visitar parentes... porém, no caminho, se acidentaram no trânsito ou foram assassinados. Quer dizer, quando elas saíram de casa, não sabiam que iam morrer. Mas, morreram. Então, eu sei que, quando sair para a rua, posso ser atropelado, assassinado, etc. Isso faz com que eu aproveite mais o dia. Amanhã posso não estar mais aqui. Apesar de ter ouvido relatos sobre médicos-legistas que ficaram com sequelas psicológicas no meio de tantos cadáveres, a maioria tem um apreço incomum pela vida. Com certeza, uma estima maior que a minha. Contudo, robustos leitores, não guardo lamentos acerca do meu suicídio. E, mesmo que guardasse, seria inútil, pois, neste momento, acabo de ser engavetado no necrotério. Devo aguardar 30 dias até que alguém reclame meu corpo. Mas, não creio que alguém o fará. Fui homem de poucas relações e nenhuma família. Com sorte, meu destino será o cemitério de indigentes, onde terminarei esta matéria conforme o previsto. Cemitério, a cidade dos mortos Um mês se passou desde que morri. Ninguém reivindicou meu corpo. Os administradores do DML procuram, apressados, uma cova disponível em algum cemitério da cidade. A pressa é justificável: o necrotério não pode superlotar, visto que todos os dias novos cadáveres ingressam no Departamento Médico-Legal. Entretanto, existe certa dificuldade em encontrar uma sepultura para os indigentes, porque, a maioria dos cemitérios pertence à iniciativa privada. E cada espaço cedido para os defuntos abandonados

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significa uma mensalidade a menos para custear as finanças da necrópole. Apesar de tal impasse, há sempre entidades dispostas à caridade como, por exemplo, o Cemitério Santa Casa. Dentro dos 10,4 hectares da instituição, existe uma área destinada aos miseráveis: chama-se Campo Santo. É para lá que vai a maior parte dos cadáveres “esquecidos” no DML – inclusive aqueles que são frequentemente identificados, porém, renegados pelos parentes. É para esse mesmo lugar que me transportam agora. No caminho, uma constatação desagradável me vem à cabeça semi-putrefata: o Cemitério Santa Casa faz juízo ao substantivo necrópole, pois, apresenta mais semelhanças com a cidade do que o mero sufixo polis. Duvidam? Então, reparem bem, saudáveis leitores! A estratificação sócio-econômica se reflete na organização de qualquer urbe: existem bairros de ricos, de classe-média e de pobres. Em geral, quanto mais nobre o terreno, mais abastados os moradores e mais opulentas as edificações. Na necrópole, essa lógica se repete. O altiplano central do Cemitério Santa Casa é ocupado por mausoléus luxuosos e grandiloquentes, onde os restos mortais de cidadãos notabilíssimos descansam sob a vigília ebúrnea de querubins, gabriéis e virgens marias. Embora qualquer esqueleto não ocupe mais que meio metro-quadrado, no panteão da Santa Casa, são necessários túmulos espaçosos para abrigar os grandes nomes que residem ali – Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros, Otávio Rocha, Ramiro Barcelos, etc. Cerca de 150 metros dali, o cemitério vertical sustenta milhares de catacumbas tão pequenas quanto os quitinetes da classe média. Vizinha a esses edifícios, centenas de singelas sepulturas formam a casa eterna da pequena-burguesia. Por último, na periferia da cidade dos mortos, há o Campo Santo onde os jazigos se resumem a uma placa com o número de identificação do cadáver. Eis aí a favela dos mortos, onde chego agora exalando os cheiros da decomposição. Enquanto o coveiro termina de cavar o meu sepulcro, sou colocado num caixão feito de madeira tosca. O homem que arremata minha cova me é familiar: olhos contornados por fundas olheiras, pele erodida pelo sol, sorriso um tanto trágico. De onde conheço este sujeito? Ah, sim! Lembrei: conversamos de maneira informal há algumas semanas, durante uma visita à necrópole. Na ocasião, ele realocava uma ossada de uma catacumba do cemitério vertical para um ossário (gaveta menor localizada no mesmo prédio). Sem interromper o trabalho, ele me relatou que semestralmente os coveiros são submetidos a exames de saúde. Pergunteilhe se trabalhava no Campo Santo. Respondeu: – Ih! Trabalho sim, senhor! Lá é foda, porque, os defuntos são enterrados à revelia da família. Só que, depois de algum tempo, a família resolve reclamar o corpo. Aí, a gente tem que fazer a exumação. A gente coloca um par de botas, luvas, um macacão, uma máscara... e faz o serviço. Se o morto era magro é mais tranquilo, porque, passa uns seis meses, e sobra praticamente só os ossos. Mas, se o cara era gordo é complicado, porque, leva até dois anos para se decompor. Mas aí tem aquela coisa: se a família deixar um troco para o cafezinho, a gente separa a gordura dos ossos e entrega só o esqueleto para os parentes. Naquela situação, quando comecei a lhe questionar sobre outros aspectos da profissão, ele me interrompeu: “Senhor, tenho muito serviço aqui. Com licença!” Ali, ele encerrou o assunto. Agora, ele encerra esta reportagem à medida que me enterra a sete palmos do chão; à medida que me enterra a sete palmos da memória de vocês, vivos leitores.


Ela caminha severa. As duas mãos esmagam a alça da bolsa junto ao seio. Como um rosário em mãos amarelas.

De manhã cedo, o lençol já morno E uma curiosidade de criança invade os dedos E me faz revirar as cinzas dos nossos corpos, com um beijo.

por Said Salomón

No avesso do teu corpo, Eu vi tua carne em brasa me chamando. A janela aberta abanava a chama.

Teatro urbano

por Said Salomón

Escrevo Recomeço No avesso procuro pretexto para mais uma linha fina (mas de novo verso) que suicida tão logo principia. Precipício? Não. Vício talvez Ofício difícil esse Escrever Pronto Ponto .

Meus olhos de carvão ficaram na porta Encostados nas chaminés do teu peito.

por Amanda Scharr

Em brasa

por Said Salomón

A cidade

A vela, fora da gaveta, E o fósforo, fora da caixa, Evidenciam a escuridão da cidade.

A lua calada se diverte junto ao riso das estrelas, Pois os olhos da noite não precisam de lanternas, Mas a cidade precisa de luz para dormir sossegada no escuro.

Em busca da prosa

O MUNDO MIRA por Afonso Badanhas

O medo despiu-se dos princípios, e o Centro é cenário e máscara. O mundo mira No ponto alto da trama, um rapaz caminha ligeiro. Passou os olhos nos ponteiros, esqueceu de amarrar o cadarço... o olhar descrente das suas armas para minha cabeça. E os outros, alheios, escutam outras músicas. Caminham em outras velocidades. Não quero alguém Passeiam em outras calçadas, e estão bem calçados. que me salve do paredão de fuzilamento, Antes de atravessar o asfalto, passar a mão na testa, só alguém Desenhar a queda do suor. O rosário por entre os dedos. que me ame na hora dos disparos. E o rapaz, desatento, tropeça no cadarço... Pendura-se na bolsa da moça; some no meio dos alarmes. Roubou a cena e não ficou para os aplausos.

[Martino Piccinini]


O Caralho Voador por Júlio Zanotta

S

ou tabelião do Cartório de Registros Especiais e o meu negócio são contratos de risco. Recentemente viajei para registrar no Livro de Atas um acontecimento incomum. Viagens como esta são muito bem pagas e, confesso, não são exceções. Tabelião é uma profissão respeitada e bem remunerada. Meu nome é Roberto Kaufmann. Vesti um terno negro e passei a manhã de domingo no aeroporto. Acendi o cachimbo e abri o jornal Notícias Populares. Na página 3 havia uma entrevista com o eminente ufólogo Avarice sobre o andamento das obras do Portal Cósmico Hipertrônico, que estava sendo construído próximo ao município de Cruzeiro. Era ele que eu estava esperando. Avarice é a criptografia de uma antiga linhagem de magos sacrificadores, cujo nome consta do Compendiun Maleficarun, Milan 1626. Viajei com Avarice na tarde fria pelos planaltos irregulares da Serra, através de montanhas cobertas por mantos de nevoeiro. O carro seguiu por uma trilha pedregosa até um altiplano cercado por paredões basálticos. Liquens e manchas ferruginosas cobriam as pedras. Um arroio cortava o altiplano desgarrado, escondido por matos fechados e gigantescas araucárias. Estacionamos entre rochedos cinzentos. Flocos dispersos de cerração subiam por entre os blocos de pedra. Jurei nunca revelar o nome e a localização deste lugar. Numa casa colonial encontramos a Escolhida. Um grupo de discípulos com treinamento militar a protegia. Avarice assumiu uma pose que significava “estou acima de você, sou seu superior”. E falou: __ Fui chamado pelo Caralho Voador, Grande Piça Palpitante Primordial. Ele vem do cosmos profundo fervilhante e vai aterrissar entre as Cristas Paralelas. O Grande Caralho Voador, Cacete Considerável Cabeçudo. Ele escolheu a moça. Disse: “Esta é a Escolhida.” Entrei na casa para conhecer a Escolhida. Ela disse: __ Senhor, sou Virtuosa Vulva Invulgar. Fui Escolhida pelo Caralho Voador, Verga Venerável Vertiginosa. Vem para beber minhas entranhas. Tive uma visão. Da ferida jorra sangue e do sangue brotam flores. A Escolhida alimenta-se com sementes. Supus que os discípulos a mantinham sob controle com um potente antidepressivo. Havia um armário com medicamentos, anotei os nomes na minha caderneta. Isto poderia ser importante, mais tarde. Minha hipótese é que a Escolhida, Valente Vagina Vibrante, possuía um hirto hímem hipnótico. Hipertrônico, óbviamente. __ Serei sereia serena. Estarei em paz comigo mesma. Meu corpo, ou o que restar dele, repousará no Hipogeu Hipertrônico. Sou feliz, digam isto ao Caralho Voador, Grande Pênis Fulgurante Florescente. Não sou geólogo nem espeleólogo. Compreendo que há muito mais do que granito e quartzo nesta cordilheira

O Caralho Voador está grafitado na parede de um bordel de Pompéia. Em maio de 1822 Goethe viu o grafite e escreveu um epigrama erótico e frívolo: “Welche Hoffnung ich habe? Nur eine, die heut mich beschäftigt, morgem mein Liebchen zu sehn, das ich acht Tage nicht sah.”

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onde está sendo construído o Portal. Sei de muitas coisas, algumas banais, outras secretas. Em suas falhas, flexuras e fraturas, formas enérgicas do relevo foram revolvidas. Surgiram do dia para a noite novas escarpas, vales profundos, picos e morros arredondados. Transformações de pesadelo ocorreram. No conjunto das Cristas Paralelas, águas e vapores penetraram pelas fendas vulcânicas, formando fontes termais. Bem, eu entendo um pouco de exoarqueologia. Examinei fileiras de pedras com glifos gravados nos costados. Para mim, eram indecifráveis. Avarice se dirigiu para uma delas com uma bola de vidro. Dançou em volta da pedra. __ É aqui que o Caralho Voador, Fodedor Fecundo Ferino, marcou o seu encontro com Valente Vulva Invulgar. Os devotos deitaram a Escolhida na pedra e esperaram. Afastei-me. O assunto estava tomando um rumo comprometedor. Irrompendo por entre as massas de rochas plutônicas, de frente para a face do nascimento do céu, chegou o Caralho Voador. Voava deixando um rastro incandescente. Aproximou-se com um estrondo capaz de rebentar os tímpanos, raio medonho, brado de uma garganta perversa nascido num guincho estridente. Ecos ressoaram de vale em vale. Pensei que era o fim do mundo. O Caralho Voador pousou, Grande Pau Proeminente Projetado. Pousou e uivou. Corri pelo planalto em chamas, não queria ser testemunha. Mas não pude deixar de ver. Quando o Caralho Voador aterrisou, os cristais da serra choraram. Eu não queria, mas vi. Chegou o Caralho Voador, Pica Entumescida Numa Imperial Simetria. O Caralho Voador aproximou-se da Escolhida. Ela falou: __ Está escrito no Chilam-Balam, o livro dos bruxos de Yucatán: “De lascívia e loucura é tua palavra, de lascívia e loucura teu andar.” E o Caralho Voador respondeu: __ “Dispersados serão pelo mundo as mulheres que cantam e os homens que cantam e todos os que cantam.” Magma máxima, Gondwana! Eu não queria, mas testemunhei. Valente Vulva Invulgar, a Escolhida, encontrou o prazer. As coordenadas opostas do seu destino se harmonizaram no seu coração. O que corta e penetra, danificando o interior do ser, dignifica e transcende. O amor e a morte são um procedimento de rotina no Universo. Foi isto o que registrei no Livro de Atas, a chegada do Grande Piça Palpitante Primordial, Poderoso Fodedor do Cosmos, Cacete Pontudo Entumescido, Colossal Caralho Voador. E assinei como testemunha.


[Maíra Oliveira]

Há 1 ano em Tabaré (01/10/2010)

É HORA DE JORNAL É a alegria o sentimento que me acompanha ao escrever esta e-carta. E o motivo maior dessa euforia é que vemos, por fim, certa inquietação nos corredores fabicanos. O que era antes calmaria fez-se rebuliço e agora começa a crescer, a se multiplicar, a dar frutos... Se ainda não são melancias, já nos enchem de esperança essas pequenas amoras ou pitangas com o gosto doce da independência, da li-ber-da-de, se é que nossa geração ainda se lembra da palavra. Esse movimento que surge representado por 5 ou 6 sites, por folhas libertárias coladas nas paredes da Fabico e também pelas infinitas conversas que boa parte de nós anda mantendo pelos corredores, esse movimento assim meio torto, sem ordem e sem líder, não dá mostras de querer parar. E é por isso que nós 13 estamos aqui rumo à construção do nosso jornal, com a linda e sagrada pretensão de agitar ainda mais o mar da cultura, do jornalismo, do humor porto-alegrenses. Arrisco dizer que o que nos une (con estas increíbles ganas de decir NOSOTROS) é o gosto pelo jornalismo impuro e sincero que anda longe da imprensa que se vê por aí. E é essa vontade de dizer o que não se diz, de dizer como não se diz, de ser livre para a crítica e para a autocrítica, de ousar escrever com lirismo e humor sobre a vida que nos beija e nos golpeia a cara desse mesmo jeito, cômica e lírica, é essa vontade que nos reúne e é dessa ânsia que vai nascer este jornal com a alma

cheia de gente, com a tradição que nos brindaram os inquietos loucos de cara de um passado ainda recente (falo do Pasquim, do Coojornal, da revista Marcha, d’O Sol na bancas de revista) mas já tão apagado. Mas não só a vontade escreverá os textos ou buscará apoios ou distribuirá o jornal, é preciso, confesso, algum planejamento. E é por isso peço a todos que escrevam quando lhes seria mais conveniente uma reunião de toda a equipe. Sugiro como lugar o Museu de Comunicação Hipólito José da Costa (na Rua da Praia), que tem infinitas edições de todos esses jornais que temos como exemplo e referência. Podemos absorver ideias. Alguém se opõe que a reunião seja no sábado, dia 09/10, às 14h? O encontro será essencial pra distribuição efetiva de tarefas, e só então o jornal começará a caminhar. Espero a resposta (não se esqueçam de “responder a todos” haha) de todos e todas, indiada! E mandem também seus números de telefone aqui, pra facilitar o contato, quando necessário. E alguém pode criar um grupo google de e-mails? Abraceijos e saludos, Felipepe Martini “Ella está en el horizonte. Me acerco dos pasos; ella se aleja dos pasos. Camino diez pasos y el horizonte se corre diez pasos más allá. Por mucho que yo camine, nunca la alcanzaré. ¿Para qué sirve la utopía? Para eso sirve: para caminar”. ( Fernando Birri )

maio-junho/ 2012 #13

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