porto alegre março 2012
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respirando com ressalvas
WANDOSEMCALCINHA linho-cânhamo • busão • nordestinos • atropelamento
N
o Dia Internacional da Mulher pouco temos a comemorar e muito a refletir. Sob panos quentes, a luta pela emancipação feminina vai sendo protelada e minimizada na pauta das discussões correntes do dia-a-dia. Estamos em 2012 e finalmente discute-se que a Lei Maria da Penha terá o devido amparo público estrutural, com delegacias especializadas e profissionais capacitados para lidar com casos de violência doméstica. Porém, até então, quantas vidas foram roubadas por encararem uma burocracia ineficaz e, sem a proteção do Estado, morreram à mercê de seus “parceiros”? Quantos talentos foram apagados pelo cotidiano doméstico opressor que mantém mulheres em cárcere privado pela não garantia de seus direitos? Até quando esses cativeiros serão naturalizados por nossa sociedade? A situação é tão dramática que neste mês foi instaurada uma comissão parlamentar mista de inquérito para discutir a eficácia das ações do governo no combate à violência contra a mulher. Dados alarmantes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2009 revelam que, de cada dez mulheres no Brasil, quatro já foram vítimas de violência doméstica. De todas as mulheres agredidas no país, quase 26% sofreram violência por companheiros ou ex-companheiros. Entre 73 países, o Brasil ocupa a 12º posição no ranking de nações onde há os maiores números da violência contra a mulher. O nível de assassinatos de mulheres no país é superior à média mundial: segundo o Instituto Sangari, foram assassinadas mais de 42 mil mulheres entre 1998 e 2008 - taxas piores que as encontradas em países como o México, a África do Sul e o Suriname. Cerca de 40% desses homicídios acontecem em casa, segundo a Pnad de 2009. A luta feminina avança por muitos frontes, mas seu coro não encontra eco no que tange a representação política. Em 1932, a mulher brasileira conquistou o direito ao voto. No entanto, passados 80 anos, a participação feminina no legislativo ainda não é equivalente à das urnas. A legislação prevê uma cota de 30% para mulheres nas candidaturas partidárias, mas isso está longe de garantir sua efetiva presença na política tradicional. Isso é comprovado pela pífia posição brasileira no ranking mundial de participação política feminina: 142º, atrás de países como Iraque, Moçambique e Angola. As mulheres, apesar de maioria na população, ocupam apenas 8,77% das vagas na Câmara Federal, somando 45 deputadas. No Senado, das 81 cadeiras, apenas 12 são femininas. As mulheres eram a minoria do eleitorado em 1998, passaram a ser maioria em 2000 e em 2010 já superavam os homens em 5 milhões. O Poder Legislativo não representa a mulher brasileira. Isso contribui com a manutenção da lógica de reprodução da sociedade patriarcal nos espaços ditos democráticos, o que em uma democracia representativa determina a maneira como são pautadas as questões a serem debatidas. O Congresso não endossa as lutas femininas porque as mulheres são tolhidas do acesso aos espaços de poder. Se não são as mulheres, quem está defendendo os seus interesses na esfera política?
Ariel Fagundes, Chico Guazzelli, Felipe Martini, Gabriel Jacobsen, Guilherme Dal Sasso, Iván Marrom, Jessica Dachs, Júlia Schwarz, Juliana Loureiro, Leandro Hein Rodrigues, Luísa Hervé, Luísa Santos, Luna Mendes, Maíra Oliveira, Matheus Chaparini, Marcus Pereira, Martino Piccinini, Natascha Castro Projeto Gráfico: Martino Piccinini Diagramação: Luísa Hervé Capa: Guazzelli Colaboradores: Dani Botelho, Guazzelli, Jéssica Albuquerque, Mario Arruda, Michele Oliveira, Rafael Corrêa Tiragem: 2 mil exemplares Contatos: comercial@tabare.net tabare@tabare.net facebook.com/jtabare @jornaltabare Distribuição: Fabico Famecos Instituto de Artes UFRGS Xerox da Clê Espaço Contraponto Palavraria Ocidente Tutti Giorni Casa de Cultura Mario Quintana Comitê Latino-americano Instituto NT Nova Olaria
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[Maíra Oliveira]
TABARÉ
[www.flavors.me/jessicaalbuquerque]
“Espere até eles verem o que acontece em primeiro de março” Andrew Breitbart anunciou: “Eu tenho vídeos de seus dias de faculdade que mostram por que a divisão racial e a luta de classes são fundamentais. Os vídeos vão sair”. As tais fitas de que falava o escritor e blogueiro da extrema-direita estadunidense mostrariam imagens de Barack Obama ao lado de dois terroristas internacionais. Só que no dia marcado o homi bateu as bota. O sogro disse em entrevista que a causa foi um ataque cardíaco. Breitbart tinha 43 anos. Macabro, né, che?
Eu piso, tu pisas, ele pisa O governo do estado diz que tá sem pila e não vai pagar o piso nacional dos professores, anunciado pelo Ministério da Educação: mil quatrocentos e cinquenta e um míseros tostões. O Cpers (Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul) não gostou, o Ministério Público moveu ação e a justiça determinou o pagamento. Ainda assim, o Piratini deve recorrer. Para o governo, o aumento deveria se basear na inflação medida pelo INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor) em 6%. Um problema é que a Lei do Piso, de 2008, prevê o aumento pelo valor-aluno, medido em 22% pelo FUNDEB (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação). Outro problema é que essa lei foi assinada pelo então Ministro da Educação e hoje governador Tarso Genro. Que dilema, hein, companheiro? Teixeira larga o osso Tem patrão novo na boca, malandragem! Depois de 23 anos mandando e desmandando, Ricardo Teixeira finalmente renunciou à presidência da Confederação Brasileira de Futebol - e falcatrua. Ao longo de sua carreira, Teixeira acumulou acusações de fraude, uma CPI na Câmara, outra no Senado e uma investigação no Superior Tribunal Federal da Suíça que ainda está correndo. Em seu lugar, assume automaticamente o vice-presidente mais velho: José Maria Marin, de 79 anos, que chegou a ser governador de São Paulo por 10 meses no final da ditadura militar. Em fevereiro, Marin foi flagrado embolsando na cara dura uma das medalhas da premiação da Copa São Paulo de Futebol Júnior. Pelo menos o tiozin mantém o grau de honestidade historicamente estabelecido pela CBF.
A décima edição do muy leal e valoroso jornal Tabaré já está na mão, recheada por Emir Sader, Boaventura de Souza Santos e Luis Enrique Mejía Godoy - músico da revolução sandinista. Impossível deixar os neurônios sossegados depois dessa leitura. Samir Oliveira, jornalista generoso Valeu, Samir. Não é querer se gabar, mas, pesquisas apontam que o Tabaré é o jornal favorito dos deficientes visuais.
Em tempo Tu acredita em coincidência? E em sogro?
Joelhaço legalize A bancada evangélica - e quem mais poderia ser? - na Câmara dos Deputados quer instituir o direito legal ao tratamento para a homossexualidade. O projeto de lei do deputado João Campos (PSDBGO) pretende anular uma resolução do Conselho Federal de Psicologia, que proíbe os profissionais de tratarem a homossexualidade como transtorno. O nobre parlamentar quer garantir o direito da pessoa a receber orientação psicológica. O projeto está sendo avaliado na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara. E tem o que avaliar numa maluquice dessa? Em tempo Para deputado federal, Analista de Bagé.
E aí moçada do Tabaré. Negócio é o seguinte: não rola de fazer um jornal com mais páginas? Quando chega de noite, falta folha de jornal pra eu me cobrir. Valeu!? PS.: curti a entrevista com o Emir Sader.
CARTAS @tabare.net
Zé da Redê, mendigo que frequenta lan houses. Grande Zé! Cara, estamos trabalhando pra isso. Mas, por hora, te aconselho a usar as páginas da Zero Horário. Abraço!
Cruz credo Mais um pequenino e importante passo rumo a um Estado verdadeiramente laico. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul decidiu pela retirada dos símbolos religiosos de todas as dependências da justiça gaúcha. O pedido havia sido feito no ano passado pela Liga Brasileira de Lésbicas, mas não fora acolhido pela antiga administração do TJ e foi necessário recorrer. Desta vez, a decisão coube ao Conselho da Magistratura, que foi unânime e decidiu pela retirada. A separação entre Estado e religiões está prevista na Constituição de 88 - ironicamente promulgada “sob a proteção de Deus”, segundo seu preâmbulo. Em tempo Aqui é a justiça dos homi, mano. Deuzulivre! É pau É pedra. É o fim do caminho.
Oi. Aviso aos amigos que finalmente adquiri um celular, depois do outro ter sido roubado, e que meu número é o mesmo de antes. Agora preciso refazer minha agenda, e peço por gentileza que mandem seus números ou me mandem SMS. Abraços!! João Zabaleta, músico com celular Beijos, me liga!
março/ 2012 #11
Vício na fala Para dizerem milho dizem mio Para melhor dizem mió Para pior pió Para telha dizem teia Para telhado dizem teiado E vão fazendo telhados Oswald de Andrade, poeta robusto e namorador Saudoso Oswald! Aqui em Porto Alegre, enquanto constroem telhados, dizem: “Aê, gostosa!”, “Ô, lá em casa!”, “Essa aí tomava até a água do banho!”...
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A estatal da maconha por Ariel Fagundes foto: Mario Arruda
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oje, cultivar Cannabis sativa dá cadeia, mas essa planta foi determinante para o maior meio de transporte e comércio da humanidade por milênios: a navegação. Foi com a fibra mui resistente do cânhamo que se produziu boa parte das velas e cordas dos navios antigos. Em meio às aventuras responsáveis pelos ditos Descobrimentos, Portugal torrou fortunas comprando essa fibra que chamavam de linhocânhamo. Para diminuir a importação e economizar sangrentas moedas de ouro, a Coroa portuguesa optou por investir no plantio de Cannabis a partir do século XVII. Em 1617, o Rei Filipe II criou a Feitoria do Linho-Cânhamo da Vila de Moncorvo. Em 1625, Filipe III criou mais duas: a Real Feitoria do Linho-Cânhamo de Coimbra e a da Vila de Santarém. As três feitorias transformaram muita maconha em fibra têxtil antes de serem fechadas em 25/02/1771 pelo Marquês do Pombal. Portugal também plantou cânhamo no Brasil. Em 1747, o Capitão-General Gomes Freire de Andrade fez a primeira tentativa oficial na Ilha de Santa Catarina (atual Florianópolis), mas lá o cultivo não vingou. Então, em 06/10/1764, o Vice-Rei do Brasil, Antônio Álvares da Cunha, pediu ao governador do Rio Grande de São Pedro (hoje, Rio Grande do Sul) que ajudasse Antônio Gonçalves de Pereira Lima, negociante que queria plantar Cannabis e manufaturar linho-cânhamo por aqui. Antônio Gonçalves teve sucesso em 1766 e, segundo o historiador Monsenhor Pizarro, o resultado foram 38 arrobas de linho (cerca de 570 kg), além de 80 arráteis de estopa (quase 40 kg) e muitas sementes. Essa boa experiência, aliada à necessidade portuguesa de substituir importações e de ocupar o sul do Brasil ameaçado pela Espanha, foi fundamental para que, em 10/10/1783, o Vice-Rei, Luis de Vasconcelos e Souza, fundasse a Real Feitoria do Linho-Cânhamo do Rincão do Canguçu, que após cinco anos seria transferida para onde depois surgiu São Leopoldo. MATÉRIA-PRIMA ESTRATÉGICA Aos 80 anos, o Coronel Claudio Moreira Bento é um dos maiores nomes vivos da historiografia militar brasileira: publicou 74 obras sobre o tema, dirigiu o Arquivo Histórico do Exército e hoje preside a Academia de História Militar Terrestre do Brasil, o Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul e a Academia Canguçuense de História. Natural de Canguçu, passou anos reconstituindo o passado de sua terra e lamenta: “Como toda história de Canguçu, [a Feitoria] foi esquecida”. Um dos seus feitos foi ter descoberto as ruínas da manufatura em 1972: “Eu era membro da Comissão de História do Exército, tava de férias, fui lá e me deparei com as ruínas do sobrado no meio do mato crescido”. O militar achou o local seguindo um mapa feito pelo Capitão de Infantaria Alexandre Portelli em 1783. O documento está na Biblioteca Nacional e mostra
Mario Arruda [www.flickr.com/arruda_mario]
a Feitoria no topo da Serra dos Tapes, entre o Arroio Corrente e o atual Arroio Turuçu (ou Arroio Grande). Segundo Claudio, o linho-cânhamo “era como o petróleo hoje, um item essencial para a navegação”. Por isso, a Feitoria sempre foi um empreendimento grande. Para tocá-la, o Vice-Rei designou dez homens livres assalariados: quatro feitores, escriturário, cirurgião, capelão, almoxarife e os administradores, o Primeiro e o Segundo Inspetor. O trabalho braçal ficou para 40 escravos trazidos do Rio de Janeiro – grupo que logo cresceu, pois em menos de três anos nasceram 17 crianças negras no local. Durante os cinco anos de funcionamento em Canguçu, a Feitoria do Linho-Cânhamo enviou à Coroa 1.380 kg de estopa e 8.400 kg de linho. Porém, relatos justificam sua transferência devido à infertilidade do solo. O Coronel Claudio questiona isso, crendo que a
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real razão foi a ameaça espanhola: “Estava indefinido o limite entre Espanha e Portugal, havia predisposição para uma guerra. Foi uma medida para proteger aquele estabelecimento”. Alguns historiadores especulam que a mudança tenha levado em conta o interesse econômico de particulares, mas o fato é que em 25/09/1788 a Feitoria foi levada para o Faxinal do Courita, às margens do Rio dos Sinos, a uns 30 km de Porto Alegre. Escravos d’El Rei e de mais ninguém Quando chegou onde depois nasceria São Leopoldo, a Real Feitoria do Linho-Cânhamo contava com 135 negros cativos, soma enorme para a época (era difícil alguém muito rico ter 20 deles). A historiadora Renata Finkler pesquisou os batismos e a relação de compadrio entre os negros da Feitoria e afirma que havia “uma realidade bem singular” no local: “Os escravos estavam
Uma história abandonada A iniciativa estatal de cultivar Cannabis sativa no RS para produzir fibra têxtil durou 41 anos, mas é tida pela historiografia geral como um fracasso. O linhocânhamo enviado à Coroa nunca foi suficiente a ponto de compensar o investimento feito. Houve várias causas, como solos impróprios, erros administrativos e a instabilidade política fruto da guerra com a Espanha. Mas Renata Finkler se alia à tese do pesquisador Maximiliano Menz: “Ele acredita que houve problemas, mas que a Feitoria provavelmente acabou por causa dos escravos terem uma autonomia relativa”. Segundo pesquisas de Menz, os negros souberam usar as falhas estruturais a seu favor,
[Maíra Oliveira]
ali sem um dono. O dono deles era uma entidade, o Rei, mas que nunca aparecia. Tinha um administrador, que muitas vezes não residia na Feitoria, e os feitores”. Isso permitiu uma autonomia rara para a escravidão. No início do século XIX, já eram 240 os negros da Feitoria e sua mão-de-obra subaproveitada era alugada para diversos fins em Porto Alegre. Assim, muitos deles andavam quase livremente pela região. Com o tempo, formou-se uma rede de comércio informal onde os negros vendiam o excedente do que produziam para si mesmos. “Os administradores reclamavam muito que os escravos estavam mais preocupados com suas próprias roças do que com a lavoura do cânhamo e que essa produção era vendida em Porto Alegre”, conta a historiadora. Não se sabe ao certo por que, mas o Brigadeiro Rafael Pinto Bandeira (que assumiu o governo gaúcho em 1784) proibiu que os escravos reais fossem açoitados na Feitoria. A sorte dos negros complicou os feitores, pois boa parte do incentivo ao trabalho escravo obviamente vinha dos açoites. Isso só mudou em 1801, quando foi nomeado um novo Inspetor disposto a acabar com tanta liberdade, o padre Antônio Gonçalves Cruz. Esse clérigo havia sido capelão da Feitoria e sua indisposição com os negros era feroz. Em 1803, os escravos fizeram um requerimento ao governador se queixando do padre e em seguida começaram as revoltas. Em carta desse período, o Pe. Cruz reclama que não dormia há três dias por causa dos “motins, bailes e fandangos” dos negros. “Eles tinham grande força, os escravos colocavam a ordem tanto na produção quanto na vida social ali dentro”, afirma Renata. Não há documento que comprove, mas muitos historiadores supõem que esses conflitos tenham causado o assassinato do padre, relatado em 14/12/1814 ao governador da época. Em 1822, houve mais violência. Conforme carta do Inspetor José Thomaz de Lima, os escravos roubavam gado da Feitoria diariamente e, para cessar isso, ele mandou “alguns soldados prenderem aqueles que eram os principais roubadores”. Mal sabia José que seu ato provocaria um levante: ao invés de se entregarem, os negros foram às senzalas e voltaram armados e furiosos a ponto de expulsarem os soldados apavorados. O Inspetor narra ainda que, após tal fiasco, ele juntou todos seus homens e foi em pessoa prender os rebelados. Porém: “Estando o partido mais engrossado, e até instigado pelas mulheres que gritavam que nos matassem, [os negros] saíram ao nosso encontro armados e dirigindo-me ameaças e injúrias, nos atacaram fortemente, levando eu uma bordoada em um braço e um camarada muitas de que está em perigo. Conhecendo a desproporção e vendo que se ia tornando mais sério o caso, retirei-me com o Destacamento”, assumiu o Inspetor derrotado. Ele foi o último administrador da Feitoria do Linho-Cânhamo, que fechou em 1824.
inviabilizando a monocultura do cânhamo gaúcho. seu papel”, ele inclusive questiona por que o cânhamo foi A Feitoria foi desativada em março e, em 25/07/1824, abandonado enquanto matéria-prima: “As autoridades sua sede recebeu os primeiros imigrantes alemães ficam constrangidas em defender projetos que que chegaram no Brasil. Por causa disso, essa é descriminalizem o uso da maconha. É interessante. Por a data da fundação de São Leopoldo, cidade que, que não se utiliza ela pra fazer cordas novamente? Tudo como Canguçu, foi erguida ao redor de um cultivo é possível”. Mais possível do que parece, pois a Resolução estatal de maconha. A recente repressão à Cannabis Nº 94 da Câmara de Comércio Exterior do Brasil, transformou o fato em um tabu que adquiriu contornos publicada no Diário Oficial da União em 12/12/2011, racistas em um reduto alemão: “São Leopoldo por alterou a Tarifa Externa Comum do Mercosul, taxa que muito negou seu passado negro”, critica Renata. incide sobre muitos produtos, dentre eles, o “Cânhamo A Real Feitoria do Linho-Cânhamo do Faxinal do (Cannabis sativa l.), em bruto ou trabalhado, mas não Courita ainda está de pé, na Av. Feitoria nº 3249, no fiado” e “estopas e desperdícios de cânhamo (incluindo bairro Feitoria, mas hoje se os desperdícios de fios e chama Casa do Imigrante. os fiapos)” – prova de que Desde 1824, a construção alguma regulamentação esteve abandonada, existe até hoje. pertenceu à Igreja Quando a Feitoria fechou Evangélica de Confissão de vez, seus 328 escravos Luterana e foi até escola deveriam ter sido mandados municipal. Na década de de volta para a Corte, mas a 1940, a prefeitura comprou-a existência de comunidades dos luteranos e reformou-a quilombolas em Canguçu toda, dando à casa um e São Leopoldo indica que estilo enxaimel (construção Feitoria de São Leopoldo antes da reforma dos anos 1940 nem todos tenham partido. [Acervo Museu Histórico Visconde de São Leopoldo] típica alemã) que não existia Renata Finkler crê que esses antes disso. O local só virou museu em 1984, conforme grupos “sejam remanescentes dos escravos da Feitoria”: Márcio Linck, historiador e diretor do Museu Histórico “Provavelmente alguma leva ficou. Não se sabe pra onde Visconde de São Leopoldo, entidade para a qual o foram ou o que fizeram, mas seus descendentes estão município repassou a propriedade dessa casa histórica. por aí até hoje”. Ironicamente, o bairro Feitoria é um dos “O negro foi muito esquecido”, reconhece Márcio, mais violentos de São Leopoldo e lá é possível ver jovens mas ele garante que “está se tentando revalorizar os negros revendendo maconha trazida do Paraguai pelo demais elementos étnicos que compuseram a história crime organizado. Seriam eles parentes dos escravos de São Leopoldo”. Para o historiador, “a Feitoria teve o que foram obrigados a plantar Cannabis sativa no RS?
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a crítica social de wando Cantor falou sobre o início da carreira três meses antes de falecer por Júlia Schwarz e Marcus Pereira fotos: Dani Botelho e Michele Oliveira [Dani Botelho]
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cantor mineiro Wanderley Alves dos Reis – o Wando – cantava sobre as coisas do coração. Por ironia do destino, o artista faleceu por complicações cardíacas em fevereiro de 2012, aos 66 anos de idade. De fato, o coração é complicado. Mas, Wando parecia conhecer os caprichos do lado esquerdo do peito melhor que qualquer cardiologista. Mesmo assim, o ídolo que arrebatou milhares de corações durante a vida, teve a própria vida arrebatada pelo coração. É provável que, doravante, este mineiro de Cajuri seja lembrado por suas canções consideradas “bregas” e pelas calcinhas que as fãs lhe lançavam durante as apresentações. Entretanto, há algum grau de reducionismo neste tipo de reminiscências. Três meses antes de falecer, Wando falou para o jornal Tabaré sobre o início de sua carreira – quando compunha predominantemente músicas de temática social sob o ritmo do samba revestido por harmonias e arranjos bem elaborados. Sobretudo nos quatro primeiros discos do cantor (Glória a Deus no Céu e Samba da Terra, 1973; Wando, 1975; Porta do Sol, 1976; e Ilusão, 1977), fica evidente o talento dickensoniano para pintar personagens à margem da sociedade. São exemplos desta fase as composições O Ferroviário, Menino de Rua e Presidente da Favela (sobre Dalvino de Freitas, líder comunitário de uma favela carioca). Wando era de fato um cantor popular: não apenas compunha para o povo como também compunha sobre o povo. E mais: ele conhecia muito bem o cotidiano dos cidadãos menos abastados. Afinal, quando era jovem, lá no interior de Minas Gerais e depois em Volta Redonda no Rio de Janeiro, Wanderley desempenhou diversas profissões ligadas à população pobre: feirante, leiteiro, jornaleiro e caminhoneiro. Nesse aspecto, o ídolo romântico foi também um personagem como aqueles que retratava nas suas canções. Contudo, Wando admitia sem cerimônias que sua vocação era realmente compor músicas de amor. E revelou ainda que decidiu dar vazão ao romantismo depois do sucesso da música Moça (do segundo disco). Daí em diante, seus sambas começaram a dar lugar aos boleros; suas letras sociais, às amorosas. Embora nunca tenha abandonado completamente o samba e a crítica da sociedade, a guinada na carreira do compositor lhe rendeu o título de “brega” – além de mais de 17 mil calcinhas, é claro. De qualquer forma, a entrevista que segue aborda o início da carreira de Wando – um período que parece ter sido esquecido pela mídia e grande parte dos fãs.
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Tu começaste os estudos musicais tocando violão clássico. Mas, numa entrevista, comentaste que abandonaste a música clássica porque era inútil para cantar as meninas... Quando eu comecei a estudar violão, realmente queria violão clássico. É um tipo de coisa muito difícil. Acontece que, quando você vai tocar aquelas músicas mais melosas, mais melodiosas, as pessoas demoram muito para prestar a atenção... Aí comecei a pensar nessa coisa de fazer música com letra e deu certo. A música, para mim, foi uma necessidade de espírito. Jamais imaginava que fosse fazer sucesso.
pernil maravilhoso – o melhor sanduíche de pernil que comi na minha vida. A partir daí, essa mesma pessoa me apresentou ao editor de música que chamavase Antonio de Almeida. E Antonio de Almeida me encaminhou exatamente para Jair Rodrigues em 1973. O Jair Rodrigues gravou minha música O Importante É Ser Fevereiro, que acabou virando um grande hit, sucesso de carnaval. Mas não é que eu fizesse música de carnaval, é que o Jair tem esse perfil. Foi uma música que dizia ♫ “O importante é ser fevereiro e ter carnaval pra gente sambar...” , que foi feito para um bloco do Rio de Janeiro.
Um dos caras que foi teu parceiro no início da tua carreira foi o Jair Rodrigues. Ele já era bastante conhecido e inclusive já havia ganhado o Festival da Música Popular Brasileira em 1966 com a música Disparada (empatado com A Banda, de Chico Buarque e Nara Leão). Como vocês se conheceram? Eu cheguei no Rio de Janeiro vindo de Minas Gerais. E, quando você começa a trilhar uma carreira, fica meio sem saber para que lado ir. Fui descoberto em Minas, quando tocava em bailes com o grupo Escaravelhos: fazíamos côveres de Beatles. Um cara chamado Nilo Amaro, do grupo Cantores de Ébano, me fez a proposta de ir para o Rio e São Paulo. Ele achava que daria certo, que seria bom para mim. Resolvi ir pro Rio, mas não deu muito certo. Então, fui para São Paulo onde morei num hotel com muitas dificuldades. Morava lá e não tinha nem o café da manhã. Aí, quando namorei a filha da camareira, passei a ter o café da manhã. Mas, quem me descobriu em São Paulo foi um dentista aposentado. Ele me convidou para um almoço e me serviu um sanduíche de
Quem tu ouvias antes de te “tornares” o Wando? Luiz Gonzaga, Roberto Carlos, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Orlando Dias, Paulinho Nogueira. Acho que eram esses caras aí que faziam sucesso. Eu ouvia essas pessoas antes mesmo de começar a carreira. Tem muito compositor bom que começou na minha época - Emílio Santiago, Djavan, Emir Andrade, Léo Karan. Muita gente que fazia música bacana, gente nova, começando um movimento de música em São Paulo. Benito de Paula também fazia muito sucesso na época.
que tipo de música fazer. Então, o que acontece? Fiz bastante coisa que na época, trinta e poucos anos atrás, tinha uma influência muito maior de música brasileira. Assim como outros artistas. A música brasileira era diferente, era mais criativa e obviamente as letras eram muito importantes, assim como as melodias. Aliás, tu fizeste muitas letras sociais, como as canções O Rei e O Ferroviário. A gente procura fazer um trabalho que seja diferente das coisas que são feitas na época atual. Agora, os compositores trabalham com muita manchete. Mas, uma manchete fica aquela coisa repetitiva. Então, as pessoas não se preocupam muito com a música, nem com o que vão dizer. E os arranjos dos primeiros quatro discos também eram bem elaborados... Eram coisas muito bem trabalhadas, difíceis de gravar na época. Quer dizer, era algo mais artesanal, aliás se fazia um trabalho mais artesanal. Até hoje, acho que meu trabalho continua meio por aí. Gosto dessa coisa de discutir. Eu e Carlinhos [baixista da banda] pensamos e discutimos muito sobre as coisas antes de fazer, para não ficar uma coisa muito ridícula.
A música no Brasil sempre foi uma máfia
Muitos desses músicos tiveram alguma influência do samba. E, no início da tua trajetória, especialmente nos quatro primeiros discos, tu foste reconhecido pelo trabalho como sambista. Por que paraste? Eu continuo fazendo samba. Mas, antes de tudo, eu faço é música. Quem é compositor não tem preconceito de
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Então, no início da tua carreira, tu fazias uma música com arranjos elaborados e letras criticando a ditadura militar
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brasileira (1964-1985). Por que tu achas que não foi reconhecido por este trabalho? Pois é o seguinte: a música no Brasil sempre foi uma máfia. Uma máfia no seguinte sentido: fulano de tal faz isso, beltrano faz aquilo e pronto, acabou. Naquela época, para você entrar nos grupos era muito complicado, como até hoje ainda é. Escrevi muitas coisas contra o regime, contra a forma de comportamento do regime. E foi muito bom porque as pessoas que escutam os meus discos hoje começam a entender esse lado. As pessoas pensam que eu só canto música de amor, mas não é bem assim. A gente tem o lado social também. Continuo até hoje fazendo músicas sociais.
uma matéria de jornal, o pessoal começou a tocar na questão dessa música e eu não esperava que a reação do público fosse tão boa. A gente tocou e foi maravilhoso, porque é uma música que conta a história de dois jovens: ela, filha de um sargento, ele, um guerrilheiro, ambos com 16 anos; o pai não aceita o namoro – é evidentemente um grande dramalhão – e daí a pouco ele morre numa frente de guerrilha, ela é expulsa de casa e tem um filho num lugar que chama-se Mussungo. A música é o maior sucesso em Angola. É uma música de amor, mas é uma música que fala de um drama que pode ter acontecido com muitas meninas no país. Adoro essa parte social, então, volta e meia me pego fazendo isso.
Não existe um respeito hoje com a música brasileira
E com essas letras de cunho social dos teus primeiros discos, tu chegaste a ser censurado? Convivi com a ditadura, todas as pessoas da minha faixa de idade conviveram. Só tive um problema direto com o regime, ainda no tempo que eu morava em Congonhas do Campo (MG). Na época, eu e uns amigos fazíamos teatro sempre criticando alguma coisa. Escrevemos uma peça que se chamava Musipapo - música com conversa criticando os poderosos dessa cidade onde foi feita a peça, que era um local com uma força religiosa católica muito grande. A gente contava a história de um padre, e um personagem pobre cantava assim: “Seu padre, o senhor fala na sua missa que todos temos os mesmos direitos, que a sua casa é a casa dos pobres, mas o senhor revestiu a sua igreja com ouro e mármore; e eu, quando venho aqui, me sinto muito pequeno, muito pequenininho, fico meio sem jeito de saber como toco nas coisas...” Aí isso acabou dando problema. Tanto que nos chamaram para ir a Belo Horizonte explicar por que a gente falava isso na peça. Perguntaram que tipo de livros eu lia, quais eram os lugares que eu frequentava, quem eram os meus amigos... essa coisa toda. Acharam até que eu era comunista. Pessoalmente, eu não era ligado a nenhum grupo político. Mas, obviamente, a gente tinha ideias totalmente contrárias daqueles que comandavam o Brasil na época. Mas, no final, eles conversaram com a gente e viram que não tinha nada a ver e acabaram nos liberando. Ao longo da tua carreira, tu mudaste o foco da música social para a música romântica, erótica. Como aconteceu essa transição? Quando gravei o segundo disco (Wando, 1975), fiz um sucesso muito grande com as músicas Moça e A Paz que Nasceu pra Mim, o que me rendeu um vasto público feminino. O álbum virou um hit estrondoso em todo país, vendeu um milhão e 700 mil cópias só em 1975. É um disco que até hoje as pessoas procuram ter. E, com certeza, não encontram no mercado com facilidade... E, veja só, quando começa a tocar para um público que gosta da sua música, você tem que ser grato. Percebi que a parte feminina entendia muito melhor o que eu fazia e comecei a me voltar para elas, já que tenho facilidade para compor e para escolher as músicas – porque têm músicas que não escrevi, mas fiz sucesso cantando. Então eu vejo assim, acho que faço uma música romântica, de amor, uma música honesta e que tem umas coisas de fazer umas brincadeiras com o público... às vezes, faço algumas coisas no meio dos shows que até eu me surpreendo. Isso faz parte. Agora há pouco fui para Angola. Há 21 anos, fiz uma música sobre o país chamada Lendas de um Menino Rei que fala da questão social – é uma música linda, maravilhosa. Nessa visita mais recente ao país fui fazer
Como em 1985, quando tu fizeste a música Presidente da Favela, para o líder de uma favela carioca, Dalvino de Freitas... Pois é, o Dalvino... foi num festival realizado no programa do Flávio Cavalcanti [então no SBT]. Lá, havia três compositores e, para cada um, foi designado um assunto. Para mim, foi proposto exatamente este tema, que era o presidente de uma favela, chamado Dalvino de Freitas. Acabei fazendo a música ♪♫ “Dalvino de Freitas/ presidente da favela onde tenho meu barraco/ disse que agora na favela é outro papo/ Vamos ter ruas calçadas, água boa de beber/ Pra você ver/ Vamos ter escolas/ Isso quer dizer/ que vamos ter status/ (…) Primeiro presidente da favela brasileira” ♪♫. Tem cara de Lula essa música. Não te incomoda ficar conhecido apenas pelas músicas de amor para a maioria do público? Isso me incomoda, sim. Porque sou uma dessas pessoas que observa isso. Observo que você que tem hoje uma condição financeira melhor fica preso dentro do seu próprio capital, entendeu? Você não pode expor isso que você tem. É difícil. E eu acho ruim? Claro que eu gostaria que todo mundo fosse rico, gostaria de que todo mundo estivesse em uma situação ótima. Eu me refiro à tua carreira, ao fato de que quase só se fala do teu lado romântico, erótico, sem focarem tanto nesta outra parte, social... Eu acho que quem não focaliza isso é a própria imprensa...
E isso não te incomoda um pouco? Não, porque, veja só, eu acho que todo artista, todo cara que faz uma carreira, ele quer uma história. Um dia, as pessoas começam a pesquisar a história dele: “Poxa, deixa eu olhar direito o que é isso aqui”, daí começam a fazer uma pesquisa. Vejo que vocês ouviram muitos discos que foram feitos há trinta anos, mas, daqui a pouco, tenho canções mais novas e também faço um disco dessa coleção, Millenium, com músicas que falam dos problemas do mundo. Mas, quando você faz um determinado tipo de música no Brasil, ou seja, quando você acontece com um tipo de música, as pessoas acreditam que você só faz aquilo, que você só tem aquele caminho. Uma grande bobagem você pensar que é só isso. Eu faço outras coisas também. Em 1971 foi o primeiro ano em que a indústria brasileira vendeu mais discos de artistas estrangeiros do que nacionais. Como tu vês a entrada da música estrangeira, principalmente da estadunidense, no Brasil? Antes tínhamos muito problema com a música estrangeira. Na época da discoteca, tivemos um boom de música internacional de péssima qualidade entrando aqui no Brasil, o que acabou com a música brasileira. Para você tocar uma música brasileira era muito difícil. Bom, percebo que isto está começando a acontecer de novo. O número de shows internacionais no Brasil é muito alto. Está todo mundo vindo buscar dinheiro aqui no Brasil, inclusive grandes nomes, porque a situação lá fora está muito difícil. Só que assim a cultura brasileira acaba ficando numa situação difícil. Porque hoje a qualidade da música nacional é muito baixa, as emissoras de rádio estão tocando um repertório muito ruim ou f lashback. Eles recorrem a músicas antigas, àquilo que já fez sucesso. E, com isso, a impressão que se dá é de que não tem ninguém produzindo coisas boas, o que é mentira. Não existe hoje um respeito com a cultura brasileira por parte de quem tem os veículos de comunicação na mão, tipo uma rádio – o rádio ainda é o grande sol da música, constrói o sucesso. Hoje, o número de repetições de músicas com nível baixo é muito grande. Você percebe que existe uma negociação em que prevalece a parte comercial. [Michele Oliveira]
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por Guilherme Dal Sasso e Luna Mendes
O
Travessia de Risco
ônibus pegou ele ali no Correio e arrastou até ali, na frente do Metais Santos. Foi horrível”, disse Margarete Rosa, 37 anos, que reside no loteamento Santa Terezinha, rua Voluntários da Pátria, bairro Floresta. São 50 metros que separam a gráfica do Correio do Povo, nº 1733, da funilaria Metais Santos, nº 1819, ambas situadas na mesma avenida do loteamento. E foi essa a distância que o ônibus da linha 703 Vila Farrapos, da Conorte, percorreu arrastando e tirando a vida de Gustavo da Silva Rosa, seis anos de idade, que andava na sua bicicleta na terça-feira do dia 7 de fevereiro de 2012. O acidente que chocou e revoltou os moradores do loteamento, onde vivia Gustavo, não foi uma surpresa. Já era anunciado pelo risco cotidiano que representa atravessar a Voluntários da Pátria. Em 19 de setembro de 2011, Wagner Porto Naimayer, 30 anos, morreu atropelado por um caminhão na altura da Rua Garibaldi. Nove dias depois foi a vez de Celoyr Lemos da Silva, 65 anos, ter sua vida encerrada por um ônibus, na mesma rua. O loteamento Santa Terezinha é um dos bolsões de miséria da capital gaúcha. Com um Índice de Desenvolvimento Humano Municipal de 0,641 (Pnud, 2009), o IDH do loteamento é comparável ao da Namíbia, de 0,634, e que ocupa a 129ª posição de um ranking com 179 países. Construído em 2006 pela prefeitura para os moradores da antiga Vila dos Papeleiros (destruída em 2005 por um incêndio devastador), o conjunto habitacional de 217 casas encontrase estrangulado entre a Avenida Castelo Branco e a Rua Voluntários da Pátria, duas das principais vias de acesso à Capital. E mesmo sendo a Voluntários a única via de ligação com a cidade, a infraestrutura para tanto até hoje permanece precária, para não dizer inexistente.
Sinalização A única travessia segura é uma sinaleira para pedestres que, conforme relatos, é constantemente desrespeitada pelos motoristas e raramente conta com fiscais da Empresa Pública de Transporte e Circulação para coibir os nada raros excessos de velocidade. “Era óbvio que ia acontecer”, reclama Margarete, que testemunhou a morte de Gustavo e teme pela vida de sua filha, também com seis anos, amiga e colega de creche do menino morto. “Faz um mês que a EPTC prometeu uma lombada eletrônica, dizendo que voltaria em duas semanas. Botaram uns cones ali e nunca mais voltaram”. Francisco Rodrigues, 45 anos, diz que a maioria dos catadores, inclusive ele, não utiliza a sinaleira. “Fica pouco tempo aberta, não dá tempo de atravessar”. Questionado sobre o assunto, Thiago Jardim, da Equipe de Planejamento Semafórico da EPTC, afirma que o tempo do sinal já foi alterado. “Antes era de 11 segundos, agora é de 18 mais os quatro segundos do tempo de segurança [quando o sinal fica fechado para os carros enquanto a luz vermelha pisca para os pedestres]”. Outra reclamação dos moradores é a demora da sinaleira, mas Jardim afirma que o tempo de espera máximo para o sinal de pedestres naquele local é de um minuto e dez segundos, e o tempo mínimo varia ao longo do dia. No entanto, a insuficiência da sinaleira solitária é gritante. Todos os dias, crianças cruzam a avenida para ir à escola e catadores têm de fazer a arriscada travessia puxando seus carros que pesam entre 300 e 400kg até as estações de reciclagem. Mas essas aventuras cotidianas não-narradas e as tragédias mencionadas anteriormente não serviram de lição ao poder público. Foi preciso mais. REVOLTA No dia 10 de fevereiro, manifestantes trancaram a Voluntários em protesto pela morte de Gustavo e para reivindicar melhorias na sinalização, incluindo quebra-molas e lombadas eletrônicas. Por enquanto, a única medida da EPTC foi colocar nove cones na faixa central para evitar ultrapassagens no local.
março/ 2012 #11
fotos: Júlia Schwarz
Sobre a promessa das lombadas, Margarete, como a maioria dos moradores, se mostra cética: “vão esperar outra criança morrer para colocar a lombada?”. Tarciso Kasper, gerente de trânsito da EPTC, diz que não. “Até o final de março, no máximo dia 30, serão instaladas duas lombadas eletrônicas, uma em cada sentido da rua, e entre elas ficará a atual sinaleira de pedestres”, afirma. Segundo Tarciso, o projeto técnico já está pronto e as instalações devem começar em breve. Além das lombadas, a EPTC promete estreitar as pistas para que dois carros não dividam a mesma faixa, e colocar tachões sobre a faixa central nos trechos críticos para impossibilitar ultrapassagens. As placas de sinalização deverão ser reforçadas e se estuda a possibilidade de mais uma sinaleira para pedestres. ILUSTRAÇÃO Enquanto as lombadas não chegam, as vítimas seguem sendo feitas. Na quinta-feira do dia 1º de março, Leonir Ferreira, 48 anos, papeleiro há 20, conhecido como Baixinho, foi atropelado por uma moto enquanto cruzava a Voluntários na altura da rua Paraíba carregando seu carrinho com cerca de 400 kg de material para reciclagem. Tombou desacordado. “Tenho sorte de estar vivo”, diz. Com o rosto marcado pelo acidente e dores nas costelas, diz só lembrar do momento em que chegou ao HPS. Baixinho carrega na pele as marcas do descaso que assola a região. Em um de seus acidentes mais graves, também a trabalho, foi derrubado por um carro, caiu no chão e teve o braço esmagado pelo ônibus que vinha atrás. O ombro, deslocado para frente como se estivesse solto, não o deixa mentir. Como é catador e não possui vínculo com o INSS, o tempo parado é a renda que faltará no final do mês. Diz ter vontade de retornar, mas as costelas ainda gritam: “não tem como trabalhar, me dói muito, me dói tudo. Ninguém respeita o papeleiro, principalmente os motoristas de ônibus e os taxistas. Tinha que ter quebra-molas aqui. Sinaleira eles passam por cima.”
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O arauto galáctico do agreste
Ó
, que imensidão cósmica distancia Zé Ramalho de seu bem-intencionado colega Belchior. Enquanto o bigodudo cantor cearense concentrou seu tempo, seu talento e sua obra em uma lamúria eterna às agruras da Vida, o paraibano Zé soube condensar a Arte que verte de suas veias em um combustível fosforescente que usou para decolar do árido nordeste brasileiro direto às galáxias mais reluzentes. Isso não significa que uma grave preocupação com temáticas sociais não seja visível, e até mesmo marcante, na música de Zé Ramalho. Pelo contrário, uma canção que ele escreveu em sua longínqua juventude, e que acabaria por se tornar o seu maior sucesso comercial, aborda especificamente a realidade daqueles que são mastigados, deglutidos e defecados todo santo dia pelo gigante chamado Sistema: “Êêê, ô ôôô,
Cantador das coisas do porão
A
s canções nordestinas foram protagonistas da música popular brasileira das últimas décadas, mas apesar de estas serem cultuadas e adoradas, o mesmo tratamento não se reflete nos demais aspectos da cultura nordestina, nortista e todas que circundam as margens dos grandes centros. Destes músicos, que jovens desceram do norte para a cidade grande (pela lei da gravidade), resolvemos destacar Belchior e Zé Ramalho. Porém, afora o fato de terem trocado as aspirações pela medicina por essa escolha errante em que foram bem-sucedidos, as semelhanças entre ambos não vão muito além disso. Escolherei o ponto de vista cearense nesta disputa, e assim, o ponto de vista social tanto nordestino quanto brasileiro. De Sobral, surgiu o poeta cantante, maior nome da música brasileira - cerca de 50 caracteres. Belchior é a escolha das palavras cortantes, tão fortes na ditadura e tão fortes hoje, num mundo de injustiças muito além de acordes, sonho e som. Belchior foi e continua sendo maldito. Não por ser mal dito, mas porque a nem todos interessa a música que corta, torta, feito faca, do
por Ariel Fagundes vida de gado... Povo marcado, ê, povo feliz!”. A questão é que o paraibano não parou por aí. Desde seus primeiros discos, ele mistura personagens da mitologia grega com discosvoadores, ícones da cultura pop e elementos típicos do folclore nordestino. Tudo isso liquidificado em uma sonoridade deveras inovadora, que une perfeitamente a viola e a cadência dos repentistas às guitarras dos roqueiros mais lisérgicos do sertão. Além disso, as letras enigmáticas de Zé soam como o brado insano de um profeta místico, um dervixe do xote - alguém que já foi muito longe e voltou diferente para contar história. Belchior parece que fez questão de não se dar a esse trabalho. Seus escritos deixam bem claro que ele não está “interessado em nenhuma tioria (sic), nem nessas coisas do Oriente, romances astrais”. O mapa mundi do bigodudo cearense, a muito custo, engloba todo continente americano. O único Oriente que ele reconhece é La Banda Oriental del Uruguay, país para onde o cantor partiu em 2009 deixando para trás uma conta de R$ 12 mil no chiquérrimo Royal Jardins Boutique Hotel e outra dívida de R$ 18 mil no estacionamento do Aeroporto de Congonhas, ambos em São Paulo. Desse jeito, não tem como ter “dinheiro no banco” mesmo.
por Chico Guazzelli espírito de um nordestino criado, famigerado, por todos nós, e que em suas músicas encontra o cordial brasileiro, o cidadão comum, que ‘vive o dia e não o sol, a noite e não a lua’. Belchior faz música para quem a alucinação é suportar o dia-a-dia e o delírio é experiência com coisas reais. Enquanto os outros gigantes da música andaram por caminhos de experimentalismos musicais e espirituais, o repentista cearense focou nas palavras e no nordeste. Ao contrário de muitos, Belchior conhece o seu lugar. O gosto por Belchior não é em detrimento a outros e nem a Zé Ramalho, é uma consequência vinda da contrariedade de um mundo de ídolos. Belchior não se fez ídolo, porque pra quem gosta dele não importa se ele some, se foge, se casa, canta, pinta ou aparece no Fantástico (a muito contragosto). Belchior é acima de tudo um poeta cantante, e que, ao contrario dos outros colegas, em sua música não é nordestino só no sotaque.
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[Luísa Hervé]
Rafael Corrêa [www.rafaelcartum.blogspot.com] [Jessica Dachs]
Há 82 anos em Tabaré (13/03/1930)
o pó que vale ouro. Enviado especial em Nova Déli, Índia. O pó branco tem dado o que falar aqui no Oriente e a briga pelo sal continua. Algumas mobilizações começaram a sacudir o pacífico povo indiano. E quem vem encabeçando os protestos é o advogado tranquilinho Mahatma Gandhi. Ele convocou discípulos e simpatizantes da causa anticolonialista para uma caminhada de quase 400 quilômetros. O magrão começou ontem a marchar em direção ao litoral. Segundo estimativas, o trajeto que partiu de Sabarmati Ashram poderá ser finalizado depois de um mês, em passo lento. Se acelerar um pouco, a cousa termina mais cedo. A disposição pra tanto exercício não é só para curtir a praia, mas é também uma forma pacifista de lutar pelo direito de extrair o sal indiano. Eles acusam o império britânico de roubar as pedras salgadas para industrializar e devolver ao povo
em potinhos de preço abusivo. Indira, dona de casa de Nova Déli, simpatiza com as ideias do tal desobediente e é categórica: “sem sal não dá pra comer”. Ela já comprou sua nova roupa de banho e espera se juntar ao grupo na próxima semana. Com essas mobilizações, a Índia entra para o grande conjunto de países ignorados que lutam por sua independência. O maior diferencial, e que vem chamando a atenção do mundo ocidental, é a proposta desse magricelo e simpático pensador. Não sabemos se é por essa carinha de bom moço ou pela recusa à violência, mas suas frases carregadas de utopia e convicção estão contagiando muitas pessoas mundo afora.
OS UT DOS A OD PR TEST AIS M I O NÃ M AN E
LP'S NACIONAIS E IMPORTADOS
março/ 2012 #11
CD'S E DVD'S RARIDADES
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TABARÉ
Fala
[Luísa Hervé]