LĂşcida
Chama
Lúcida
Chama Sônia Maria Santos
Goiânia, 2015
Lúcida
Chama © 2015 by Sônia Maria Santos Comissão Técnica Sandra Rosa Revisão
Sara Dantas / Felix Padua
Editoração e Arte Final de Capa
Amaury Menezes Ilustrações
Laerte Araújo Pereira Supervisão Gráfica
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca Pública Estadual Pio Vargas, GO, Brasil S237l SANTOS, Sônia Maria. Lúcida Chama / Sônia Maria Santos. – Goiânia: Kelps, 2015. 141 p. il. ISBN 978-85-400-1217-2 1. Literatura brasileira – Poesia. I. Título.
CDU: 821.134.3(81)-1
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida, armazenada em um sistema de recuperação ou transmitida de qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico, mecânico, fotocópia, microfilmagem, gravação ou outro, sem escrita permissão do editor. Impresso no Brasil
Para JosĂŠ Evaristo, esposo e companheiro. Para os filhos. Para os netos, no fluir do tempo: Bruna, LetĂcia, Beatriz, Guilherme, Belkiss e Klauss.
Sumário
POESIA (IN)QUIETA José Fernandes
Lúcida Chama 25 A VOZ INQUIETA LATEJA 27 A VOZ AMARDURECE 29 NO CONSCENSO DO CAMINHO 31 FAÇO O POSSÍVEL 33 DE MANHÃ 35 O INVERNO ESPERA 37 A MÃO ESCREVE 39 O CANTAR DISTANTE 41 ANTES DO PÃO DA PRESSA 43 ALHEIA À MORTE 45 ESCREVO 47 BEBO A VIDA 49 BEBO DOS QUE ME PRECEDERAM 51 NA PALMA DO SILÊNCIO 55 AGORA LUA É LUA 57 NO PROVISÓRIO INSTANTE 59 NO CAIR DA NOITE 61 POSSO ATÉ RIMAR 63 FECHA O MURO 65 HABITÁVEL COMO AS CASAS 67 MEU TAPETE 69 A FLOR DE LÓTUS 71 AINDA QUE EU PERCEBA
73 NA CARTILHA 75 AVES E FRUTOS 77 PONHO OS PÉS NO HORIZONTE 79 A VIDA EM PÉTALAS 81 DEPOIS DO SONO
O Coração Aceso 87 O CONVITE DO CÉU 89 UM DESEJO APENAS 91 O PENSAMENTO ENTORNA 93 POUSO AS PÁLPEBRAS 95 INTEIRA, FICO NO CÉU 97 TEMO A SERPENTE 99 A FACE DESARMADA 103 PAULO 105 NO ÚLTIMO DESEJO 107 LIMPO CADEIRAS E CANTOS 109 A GOTA ÚLTIMA, A ROSA ABERTA 111 PONHO FLORES EM JARRAS 113 A CASA CONSENTE AMAR 115 TRISTE
Cintilações 121 O POEMA SOBRE A MESA 123 O POEMA EM FLAUTA 125 SEGUE O POEMA 129 POEMA, HORTO 131 O RITMO SAGRADO SONDA 133 PALAVRAS, POUCAS E CUIDADAS 135 AS PALAVRAS 137 A POESIA SIM 139 UMA FACE PERMANECERÁ 141 SER COMO A LUA SUA PRATA
POESIA (IN)QUIETA José Fernandes*
A
matéria não mata o espírito, não extingue o sentimento do sublime, do superlativo do belo, que é forma e expressão de estados de ser em busca da plenitude, de ser que necessita revelar-se e, por isso, converte-se em arte de palavra, em estética de linguagem, em poesia. Exatamente por isso, a arte poética, a despeito de declarada morta por muitos, há tempos, continua viva, porque o ser, realmente humano, posto que em permanente conquista de essência, não pode prescindir da palavra, em sua concepção profunda de revelação do ser, em sua concepção metafísica, porque o homem é matéria e espírito, que necessita do permanente, para superar o efêmero, o passageiro, que o inquietam durante todo o existir. É com essa visão ontológica da poesia, arte inteira de linguagem, que nos pomos a ler Lúcida chama, de Sônia Maria Santos, que nos concedeu a honra desse prefácio. 1 – INQUIETAÇÃO EXISTENCIAL E METALINGUÍSTICA
Essa inquietude é observada já no poema de abertura, A voz inquieta lateja, em que o primeiro verso, como ocor* Professor da UFG e membro da Academia Goiana de Letras.
re em todos os textos do livro, figura como título, uma vez que, de forma muito perspicaz, utiliza elementos simples, mas detentores de forte simbolismo, para cristalizar uma existência em que convivem faces várias do tempo, muitas vezes contraditórias. Entre essas contradições colocam-se a luz, a água rasa, arbustos e, notadamente, tudo que vive e semeia, ou seja, que medra vida. Por outro lado, fazem também parte do existir as dificuldades típicas da condição humana, que marcam os seus limites. Assim entendido, o simbolismo que envolve estandartes, cruzes, ciladas, adagas e olho cego no trajeto temporal do existir, aponta para leituras inúmeras, que materializam estados de ser decaídos, reveladores dos limites inquietantes do humano. Justamente por isso, pouco ou nada permanece, a fim de que a alma lave, como sempre tem sido: Faz séculos. É por isso que A voz inquieta lateja, posto que o ser lírico não pode se calar, fechar-se em si mesmo; mas manifestar-se, a fim de superar, pelo menos, no discurso poético, essas deficiências do existir. Lançada essa espécie de grito, semelhante àquele de Edward Munch, a voz, sempre entre pólos, muitas vezes opostos, à medida que o ser, em seu sentido metafísico, e o ser lírico avançam em sua viagem existencial, como podemos ler na oposição sonora entre tambores e arpejos, no poema A voz amadurece, substantiva essa inquietude. A imagem polifônica, ao utilizar os sons estridentes e descontínuos dos tambores e o som continuado dos arpejos, traduz o processo contínuo e descontínuo dessa voz de ser que amadurece com o tempo. Essa inquietude se define, agora, como mal de humanidade, à medida que ela a acompanha, em silêncio e no
silêncio, desde os longes do tempo, inclusive no momento do caos, quando o sopro da palavra ainda não se pronunciara. Exatamente por isso, a dualidade persiste, entre o doce e o azedo, uma vez que os desejos são hóstias, isto é, sacrifício, como o expressa a imagem cristalizada pelo cristianismo. A despeito de a hóstia ligar-se inteiramente ao simbolismo de vítima, de libação, no poema, ela figura, simultaneamente, como motivo de inquietação, fruta azeda, e como quietude, fruta doce, pois a viagem empreendida pela humanidade só se realiza mediante essa dualidade, à medida que o homem carrega, dentro de si, tanto o bem quanto o mal. Por isso, o ser lírico compartilha sua hóstia. Esse estado de ser inquieto provém do fato de o homem encontrar-se em viagem, em um caminho que o conduz à substância do humano ou à derrelição, decorrente da inanidade, do contentamento de ser apenas homem, sem percorrer a estrada que compreende luta, conquista, ascensão ao humano. No caso específico do poema No consenso do caminho, a despeito de o ser lírico confessar que o percorre suavemente, não implica, absolutamente, que essa viagem não o inquiete. A tranquilidade do percurso se deve, na verdade, à circunstância de estar preparado ou preparada, já que a poetisa usa o feminino, ao ponto de, como ela o diz, Se colhida, de repente,/terei plantado um amor tranquilo. Ora, o amor, entendido em uma concepção metafísica, como é apresentado no poema, além de configurar a máxima realização do ser, constitui a sua confirmação, enquanto sentimento e ascensão à dimensão do sublime, entendido como transfiguração do humano. Justamente por isso, acrescenta o ser lírico, terei, em
escala mínima,/a soma do mundo por dentro. O mundo interior, assim entendido, compreende, ontologicamente, a elevação do estado de matéria ao estado de ser. Decorrente dessa consciência de se estar em caminho, a imagem urânica, a noite ascende estrelas, como se a escuridão se elevasse à luz, além de conferir ao poema aquele beleza imprescindível à instauração do poético, ainda substantiva a certeza de o ser encontrar-se em ascensão ao humano. Por isso, os dias se fazem nítidos, uma vez que se percorre um caminho totalmente iluminado. Intriga-nos, no entanto, o último verso, Um mistério jaz em cada filho, uma vez que esse filho pode se referir ao desejo de continuidade, posto que ele conforma aquela vontade de ser e de permanecer inerente ao ser homem, e, tratando-se do discurso poético, pode, ainda, referir-se a cada poema que se constrói em linguagem, já que ela, além de revelar o ser, constitui uma forma singular de permanência que, inclusive, ultrapassa a existência física do filho. Assim, essa e outras possibilidades de se ler esse poema revelam o quão hábil é o discurso que compõe esse poema, pois essa linguagem aparentemente desprovida de singularidades encobre possíveis leituras que exigem um olhar de leitor perspicaz, próximo aquele ideal de que falam os crítico da recepção. A consciência do poetar, de estar escrevendo filhos e filhos, confirma-se no poema seguinte, Faço o possível, em que o ser lírico apresenta a sua receita, a sua metalinguagem e confirma o lado quieto, adoço, e inquieto, salgo, do fazer, do poier o verso, quando afirma peremptoriamente: Faço o
possível/adoço, salgo./Faço líquido o fio do tempo. Fio que se escorre, realmente, no tempo e pelo tempo, em eterno fazer-se e refazer-se, porquanto assume a feição de flor, que marca o eterno fluir e refluir do verbo no verso e no reverso poético, que deita pétalas ao menor sopro. O ser lírico sabe-se escondendo nos signos invisíveis e convertendo-se em palavra e em linguagem, rosa única. Mais. Sabe que por trás de um discurso poético aparentemente simples, aparentemente de fácil compreensão, deposita aquele engano típico da polissemia poética, que possibilita, simultaneamente, uma leitura de superfície, feita por um leitor desavisado, e uma leitura profunda, executada por um leitor que ouve e lê nas entrelinhas, no silêncio eloqüente, possível unicamente no intervalo invisível existente entre a letra e a palavra e, notadamente, entre o signo que se esconde para revelar-se ou que se revela para esconder-se. O fazer poético, conforme lemos no poema seguinte, De manhã, opera-se mediante ininterrupto começo, como se o ser lírico estivesse sustentado e inspirado por uma Deusa; certamente, a musa Érato, que, consoante com a perspectiva linguístico-filosófica inerente aos poemas, personifica o ser e o existir em humanidade. Exatamente por isso, o ser lírico revela- se em imagens que mostram, a partir da deusa, o eterno fluir das coisas, numa espécie de, panta rei, de Heráclito, como lemos nas estrofes seguintes, em que observamos certa relação com a Teogonia, de Hesíodo. Só que, em vez do nascimento dos deuses, temos o nascimento do poético. Verificamos, à medida que avançamos na leitura, que a inquietude, inicialmente de ordem existencial, converte-se em,
também, em inquietação metalinguística, porquanto o ser lírico passa, além de refletir sobre o existir e, sobretudo, sobre o ser, a pensar o discurso poético. Evidentemente que, considerando a linguagem como uma extensão do homem, à proporção que ela desvela a sua essência, trata-se de uma decorrência lógica, pois, se o tamanho do homem é o tamanho de sua linguagem, do mesmo modo, o tamanho de sua poesia é o tamanho de sua consciência de estar, também, construindo uma existência de palavras. A evidência dessa inquietação e, mormente, da consciência do fazer, pode ser observada na sequência dos poemas, O inverno espera, em que observamos a confirmação do panta rei, posto que o inverno, consoante com as imagens que dele se desprendem, decorrente de sua isotopia semântica, leva-nos a perceber o poema como uma ação de Perséfone, e o inverno, como o momento de hibernação da idéia que aguarda a sua primavera, o instante da verbalização. A semelhança entre o poema e Perséfone se evidencia, ao observarmos que também o ser lírico se confunde com a poesia, pois os dois são modelados por um Deus, em uma referência clara aos mitos de origem, uma vez que Ele pode ser, Nun, Râ, Hermes ou Iavé. Verdade é que em nosso entendimento deve tender mais para Nun, porquanto o ser lírico, que é o próprio poema, faz referência clara ao ato de modelar, aliado à semente e à flor, princípios vitais que exigem a existência do úmido. O poema, entendido a partir dos mitos de origem, está em contínuo vir a ser, mediante a mão de um Deus, que pode, também, ser o próprio poeta, consoante com aquela perspectiva já apontada por Heidegger, em A origem da poesia.
Não sem razão, o poema seguinte, A mão escreve, erige- se sobre imagens ctônicas e oníricas, em que as sombras permitem que as relações com Perséfone permaneçam, a fim de que a inquietação metalinguística se manifeste, já que o poético, ao nascer da mão, envolve o ser em toda a sua inteireza, porque, mesmo que no nível do sonho, torna-o maior que o dia. A imagem de Perséfone é clara, uma vez que a mão percorre uma trajetória que parte das sombras e se torna luz e casa, também representação da totalidade do ser, já que a poesia, além de o manifestar, ainda o converte em matéria, sobretudo se considerarmos que casa e linguagem se confundem na elaboração do poema e na conquista da essência do humano, inerente ao ser lírico. Tanto é verdade que o poético, além de estender-se à casa, imagem do ser total, expande-se por todo o universo. Entanto, poucos o percebem, porque sua essência é muda, esquecida, porque nas margens mágicas do silêncio, que a substância do poético. Esse caráter mágico e misterioso do fazer poético evidencia-se em O cantar distante, à medida que ele se assemelha ao canto mântrico dos monges, capaz de ascender o dia, porque, também, parte de um ritual capaz de afrontar o céu e transformá-lo em realidade. Ritual tão singular que compreende o branco da toalha, o pão e a rosa, posto que o ato de compor o poema assume tom de sacralidade, de transubstanciação, operada no momento em que se pronuncia o novo fiat, repetição daquela pronúncia primeira do Verbo, já que o poema é criação e recriação de palavra em linguagem transfigurada. Nesse ponto, o jogo de imagens utilizadas pela poetisa é perfeito, pois é capaz de transformar, o distante, o
surreal, o imaginário, em real/tão abril. Aqui surge uma pergunta interessante, talvez irrespondível pelo leitor comum: por que tão abril. Essa imagem cronótica é fabulosa, à medida que abril é o quarto mês do ano. Ora, nenhum número, a despeito de sua lógica matemática, se conjuga tanto à poesia, quanto o quatro, uma vez que ele constitui a própria matéria do poético, decorrência da ambiguidade que lhe é inerente, uma vez que é o único número que resulta tanto da soma quanto da multiplicação. 2 – IMAGEM - CIFRA DO POÉTICO
Se um bom poema, concebido segundo as normas clássicas, devia pautar pela obediência às normas da métrica, um poema moderno tem de construir-se mediante imagens esfuziantes que imprimam à linguagem uma esfera metafísica, porque elevada a uma dimensão semântica em que as essências de verbos distantes se aproximam e, muitas vezes, se fundem, a fim de criar o sublime estético. O poema Antes do pão da pressa constitui, sem dúvida, um exemplo singular de engenharia imagética que obriga as palavras dizerem coisas diversas de seu estado de dicionário, uma vez que a imagem bromatófica visa apenas a lançar as bases para se colocar em reflexão profunda sobre o constante alimentar-se no existir, em que a tábua grossa representa, ao mesmo tempo, a segurança e as dificuldades da existência. Chama a atenção, porém, o fato de as imagens, condensadas quase que apenas em palavras, construírem-se
mediante jogos de contrários ou de elementos suaves que desembocam na dureza da tábua, a fim de materializar um percurso existencial que parte do medo, passa pela lúcida chama, pois nada se conquista sem se ter consciência dos passos que se tem de empreender no transcurso da existência na condição de ser. Caminhar-se sem se saber caminhando é próprio dos entes, dos objetos, e não do ser que busca a sua essência, embora esse estado de consciência seja privilégio de uns poucos que ascendem ao humano. Não sem sentido, no poema subsequente, Alheia à morte, além de colocar-se o mistério da morte, de que se não pode fugir, porque intrínseco à condição humana, ainda se recorre ao mito de origem, para justificá-lo e estendê-lo à essência mesma do ser no mundo. O lance de dados desse poema situa-se na negação da inquietude, exatamente para mais evidenciá-la, como se vê pela utilização da imagem litófica em contraposição com a duração dos dias, sem se falar na imagem bíblica, em que se refere ao Mar Vermelho, que é, ao mesmo tempo, libertação e prisão, já materializada pelo corredor de espelhos e, sobretudo, pelo labirinto, representações do certo e do incerto, da facilidade e da dificuldade. Sob a perspectiva do difícil, até mesmo a atividade de escrever não se revela como passa-tempo, mas como compromisso, como vemos no poema Escrevo, em que as imagens revelam o ofício de escrever como uma espécie de ritual religioso, praticado de forma consciente, a ponto contrapor-se à fuga muito bem representada pelo ato de lavar as mãos perpetrado por Pilatos. O compromisso, assim enten-
dido, torna o escrever uma ação sempre nova, como se os passos fossem e, consequentemente, os sapatos estivessem sempre pisando em solo pela primeira vez, sem se desgastar, sem se livrar dos percalços do existir. Exatamente por isso sua poesia é uma poesia de imagens, porque inteiramente cifra da condição humana, ao ponto de, mesmo em um poema que tudo pareceria denotativo, a imagem aparecer, inesperada, e instalar a ambiguidade do poético, como o vemos no poema No último desejo, em que o último verso revela o jogo de verdadeira mestre da poesia, à medida que a imagem especular, impressa ao vocábulo iluminado, lembra o estilo maneirista, típico do século XVI, como se vê em Shakespeare e, notadamente, em Camões. Para mais confirmar a estética do século XVI, notadamente, a maneirista, a imagem altamente ambígua centrada no vocábulo renascentista, que remete para a angústia e o sofrimento materializado na Pietá, de Michelangelo. Nestas circunstâncias, porém, o sacrificado, ou divinizado, será o próprio ser lírico, convertido em imagem e estátua de palavra poética. Surpreende-nos, a cada poema que lemos ou que analisamos, a capacidade de a poetisa, em imagens tão contidas, compostas em linguagem altamente codificada, encerrar mensagens múltiplas, que singularizam o seu fazer poético, uma vez que poucos poetas conseguem tamanha contenção linguística. É verdade que nossa análise abrange apenas uma mínima parte dos poemas, mas pela nossa leitura total, podemos afirmar, sem sombra de dúvida, que todos os poemas se formam mediante imagens que tornam seus poemas e sua
poesia um fato inusitado na literatura goiana e brasileira. Cabe ao leitor averiguar nossa afirmação, pois cada olho enxerga consoante a sua profundidade do fenômeno estético, e queremos que ele também complemente a nossa leitura, pois apenas anunciamos uma grande nova: esse livro singular, de poemas singulares, dessa excelente poetisa, que é Sônia Maria Santos. Refúgio do Poeta, 4 de setembro de 2014.
LĂşcida Chama
A VOZ INQUIETA LATEJA, pretende luz clara, água rasa, a manhã acesa — o arbusto venerável atrás da casa, tudo o que vive e semeia. No andor de um tempo antigo ainda a nossa existência, estandartes, cruzes, ciladas, adagas, um olho cego. Pouco ou nada, o que perece ou fica a alma lava. Faz séculos.
25
A VOZ AMADURECE, insisto, entre tambores, arpejos. O silêncio, asas abertas, vem de longe, do início; na arquitetura dos dias, no chão escuro do tempo. Hóstia dos meus desejos: a fruta doce ou azeda, na mesa que compartilho.
27
NO CONSCENSO DO CAMINHO irei suavemente. “Se colhida, de repente, terei plantado um amor tranquilo”. E terei, em escala mínima, a soma do mundo por dentro. Por enquanto a noite ascende estrelas os dias se fazem nítidos. Um mistério jaz em cada filho.
29
FAÇO O POSSÍVEL adoço, salgo. Faço líquido o fio do tempo. Inclino-me, feito flor aceita, que deita pétalas ao menor sopro. E para dizer o indizível, colho, como se fosse uma rosa única todo o silêncio.
31
DE MANHÃ, de novo, ergo a cabeça, o ombro, que Deusa me levanta ainda? Filha dos dias, dos sonhos — das cores, do amortecimento; o que vejo, em rasante luz, vem de longe, emerge de algum degredo, vales turvos, reinos de água e sono, silêncios.
33
O INVERNO ESPERA, serpenteia, escuta vigia a pele que do último verão ainda tenho úmida; enquanto um Deus qualquer me modela, a (re)começar pelas mãos as primeiras pétalas.
35
A Mテグ ESCREVE corre na sombra, sonha anunciar alguma coisa maior que o dia; na casa com porta e janela e uma meia テ。gua que me aguarda ainda; numa parte do mundo, numa parte muda, esquecida.
37
O CANTAR DISTANTE dos monges ascende o dia; a toalha branca o pão à mesa a rosa mínima: beleza concedida sem afrontar o céu, tão perto tão real tão abril.
39
ANTES DO PÃO DA PRESSA amassado cedo, e sentindo medo, um ramo verde cada um apanha: lúcida chama em que a vida escora, em que a vida teima chegar à mesa à tábua grossa.
41
ALHEIA À MORTE ao pecado original, ao que se gasta na duração dos dias, mais do que pedra, lava, inesperada luz rápida letra, cruzo serena um corredor de espelhos, labirintos passagens um Mar Vermelho.
43
ESCREVO, preparo a “rosa inútil”, sem fechar os olhos à pretexto de quem reza nem lavar as mãos à moda de Pilatos; Sem perder-me, com meus sapatos exaustos de antigos chãos.
45
BEBO A VIDA na curvatura do planeta. Desembrulho os lĂĄbios os dentes, o corpo se desdobra, atĂŠ que eu seja flor (des)assombradamente aberta. Na eternidade nas suas altas velas.
47
BEBO DOS QUE ME PRECEDERAM alguma coisa imposta. Talvez um rasgo, uma ferida, uma sentença, uma esperança morta. Teimosa, pego a flor do dia, fundo reinos; e numa poça só, à noite, um céu inteiro.
49
NA PALMA DO SILÊNCIO na sua asa frágil na água que bebo no pão que como no fio que solto cadente no vento, tenho o amor por aprender e o mundo, desde a primeira madrugada à luz mortiça das candeias no meu rosto.
51
AGORA LUA É LUA, maçã é fruta mesmo. Nenhum alumbramento, revelação, interferência. Palavras à deriva no ar da planura no ar sem queixas. Nem dádivas, dúvidas, amores, desejos, míticas Helenas.
55
NO PROVISÓRIO INSTANTE num abraço enquanto o dia lagarteia dispenso livros, palavras, a paisagem trêmula. Como se Dédalo, para o meu alento, viesse com novelos par de asas caprichos; valsa lenta no ar, no alto, no espaço branco, polido.
57
NO CAIR DA NOITE talvez uma Deusa pouse em verde átrio além de tudo além do tempo. — Vou de permeio, no cantar das frondes, aérea no vento.
59
POSSO ATÉ RIMAR com jardins suspensos da Babilônia, se um rei contrito me estender a mão, como quem chega de um tempo longínquo, e de nome comprido de não esquecer, e com florais cuidados, quanto mais alto os andaimes são.
61
FECHA O MURO a verde hera tecelã. A tarde, enfim, calça sandálias de ir embora. A luz acaba, foge, leva meus olhos presos no mundo. Arrasta-me o dia e toda a matéria na qual me curvo.
63
HABITÁVEL COMO AS CASAS nas suas horas vivas, acumulo sonhos, cores, alvuras; silhuetas apressadas, almas, mais ainda. Ressonâncias, arpejos, chegam em ondulações nas folhas do vento. Ir a Delfos, nem preciso.
65
MEU TAPETE ainda sai florido: são novelos solfejos suspiros pernas e braços em busca do imaginado, subindo, subindo; transpondo, derretendo cera em asas de Ícaro.
67
A FLOR DE LÓTUS, leve, clareia minhas mãos e braços na manhã em que canto alto minha vida frágil, feito espuma: água breve entre seixos e lenhas na superfície turva.
69
AINDA QUE EU PERCEBA mĂnima estrela, e nela creia desveladamente, e nela sofra, por causa da beleza do desconhecido das suas lonjuras, multiplicam-se as Esfinges no meu caminho, uma a uma.
71
NA CARTILHA na lição do V a ave voa revoa peregrina. Dobrem os sinos lençóis noites e dias pálpebras sentidas; corpo e alma joelhos medos tudo. Álamos sinas.
73
AVES E FRUTOS fontes e pedras s達o sinais de porto. Sei aos poucos, n達o sabendo muito e sabendo torto. Ou n達o sabendo nunca. Um dia aprendo, dizem os ventos, cores, aromas em prolongado sonho no firmamento.
75
PONHO OS PÉS NO HORIZONTE cravo os olhos: os meninos brincam a noite. — Dedos azuis, douradas mantas carrosséis de prata luas redondas. — Medo nenhum. Brincam à noite, mais do que sonham.
77
A VIDA EM PÉTALAS seixos verde tempo vontade santa sinos arautos Noites perfumadas, exatas para adeuses e chegadas. Rosas, pássaros, em tecidos alvejados para o sono. Fronhas, lençóis sonhos inteiros, solfejos de mãe.
79
DEPOIS DO SONO, dos carneirinhos todos das retinas prontas, noviça penitente descalça, danço à luz incomparável de Monet. Tramas e cores nas cortinas e fronhas em diferente manhã. E esse (in)crédulo olhar que vê.
81
O Coração Aceso
A CONVITE DO CÉU noturnas almas em procissão. Canto, rezo, regozijo-me, embora outro o corpo, os nós dos dedos, as mãos, que um dia não souberam dos bíblicos talentos o que fazer; nem do coração aceso dos jasmins dos perfumados cântaros.
87
UM DESEJO APENAS, frágil e líquido, de romper o fio, e roubar da noite que me aguarda alguma jazida inexplorada. Balançar lençóis toalhas a branca vida. Até escorregar sem medo no círculo da lua, como fiz um dia, antes de madura, e tão definitiva.
89
O PENSAMENTO ENTORNA, mal adivinha, e nem precisa, da áspera cigarra o que o som quer dizer ainda, e dos trevos ainda o fôlego. Em segredo, nasço de novo. Já o epitáfio se desgasta. O favo é tenro, o filho, o fruto, sobretudo os olhos na campina vasta.
91
POUSO AS PÁLPEBRAS, uma a uma, sobre a casca úmida da madrugada. Só, no recôndito de alguma vértebra o corpo reza, decifra sua trajetória curva; entre achados e escritos, e ainda com suas trombetas o grande livro.
93
INTEIRA, FICO NO CÉU, um tempo doce, bendito. Perdida, depois, lembro Thomé: não creio, não vi, sinto frio. Ponho nisso mistérios. Pétalas, pegas ao vento, certeza única possível.
95
TEMO A SERPENTE, o joio que me habita. O selo do mistério e do susto, deflagrados no espaço-tempo em que a outra face negaria. — Grão de misericórdia, ao olho de Deus, “sou tal qual o fruto da terra no primeiro dia”.
97
A FACE DESARMADA, mármore polido, como se lavada no último suspiro. Alma e corpo e o mundo todo um peso leve. Mantras pela casa descem. Nativa alegria, na faixa exígua do (im)possível.
99
PAULO, olho fixo, arauto hálito santo canta em hinos o que me falta. Ronda-me com uma partitura que eu mesma cobro e que me trespassa. — o apóstolo, o amor, deflagrados, incensam minha vida.
101
NO ÚLTIMO DESEJO no cansaço, nas despedidas, entre mãos e rostos, como se já fantasma eu fosse, e me fosse ainda concedida a vida eterna, seria ventura uma Atlântida emergida ou uma estrela miúda; ou um colo de mãe, quem diria, iluminado, renascentista!!
105
LIMPO CADEIRAS E CANTOS gavetas, corredores. Trabalho, desentulho, enterro os mortos. O lírio no jarro seja branco, atrás de uma verdade que não me foi dada, ao mesmo tempo que aos meus pés escorre feito água.
107
A GOTA ÚLTIMA, A ROSA ABERTA, a dor entregue em pétalas. Aos mortos alvejadas túnicas em linho branco no corpo que (não) se revela. Adágios, dores: taça servida, a quem vai tocar ainda sua flauta doce. Por inventário fiquem as lâmpadas na casa que se levanta. Fiquem as cores.
109
PONHO FLORES EM JARRAS, exigĂŞncia mesma de viver e mais nada; em jarras iguais a verdes garrafas nas prateleiras antigas. No fundo, no verde exato, imagino bilhetes de nĂĄufragos, nos mares ainda: o tempo coagulado, palavras perdidas.
111
A CASA CONSENTE AMAR além das janelas e pedras, amar o pó trazido, mínimo, sob os pés. Chegadas e partidas com duração de cravos numa lapela antiga, de quem se foi tão jovem para uma luta erguida, para uma taça amarga e nenhuma gota de mirra.
113
TRISTE, é não inaugurar o dia, não levantar uma cidade sobre outra, destruída; na hora exata, numa nova história. É não puxar, feito Garcia Lorca “Um Cordão de Lua, lua”, uma dança pura um amor que volta.
115
Cintilações
O POEMA SOBRE A MESA é fruto fendido até o sumo e a seda. Ceia de insetos, festa de ácidos e aromas em lenta asfixia. Seja ele, enfim, mínimo solfejo, uma vela ao menos, luz calçando o dia.
121
O POEMA EM FLAUTA põe na alma inesperado adejo. Volto em segredo. Meio Penélope faço e refaço, retorno em pétalas minúcias fronteiras secretas. Insisto, diante de uma folha em branco, de uma “hora aberta”.
123
SEGUE O POEMA, solitário, rumo acima, se reconhece no correr do tempo no pousar da flor no cantar da pedra. — Como a de Sísifo, doída, longa a subida, e nenhuma trégua.
125
POEMA, HORTO, onde nasço e morro até brotarem os ramos sagrados. Apressado olho, apressada alma: quero os pássaros. Quem me dera os de São Francisco em círculos, em campos de paz.
129
O RITMO SAGRADO SONDA, testa, olhos, ouvidos, braços cansados, feridos estrelas do dia e da noite. (O rosto de Lázaro, ainda, para que eu creia de novo). E a ovelha caída mal o sol nascido, favo jovem para o sacrifício.
131
PALAVRAS, POUCAS E CUIDADAS, como os pertences de uma casa. Sei da impertinência de querê-las, todo o dia, cedo ainda, sob pena de morrer por nada; na duração exata de uma rosa alta de uma vela acesa. Ou do iminente nada.
133
AS PALAVRAS fiam-se a si mesmas. Fico de olho apenas no desenrolar da fábula. No fio invisível no seu silêncio na roda que trabalha o dia e engole a noite primordial. — Eternas, polidas, puro ritmo: espadas prontamente erguidas ou buquê de lírios.
135
A POESIA SIM é ciência, desenha casas, muros, paredes, trilhos para esticar os dias; e faculta-me, compadecida, olhos para segredos constelações cores canteiros cantigas nos ouvidos.
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UMA FACE PERMANECERÁ, das múltiplas e várias uma só é necessária. Além de tudo, a que eu tenho agora, deu uma baita volta: secreta flor, onde resisto e luto, poça de silêncio ou de palavras, soltas, buscando rumos. Ou de antiga rima, de régua e prumo.
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SER COMO A LUA SUA PRATA, como a noite toda penumbra. Ainda água luminosa verde escura entre florações miúdas. Invisível, dispersa, incontida, ser o vento. Ser um verso, e nele mesmo inteira e última.
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Capa: Cartão Supremo 250 g/m2. Miolo: Couchê Matte L2 115 g/m2, fonte Hiroshige Book.
Os textos conferem com os originais, sob responsabilidade da autora.
ESTA PUBLICAÇÃO FOI IMPRESSA NA GRÁFICA E EDITORA KELPS LTDA Rua 19, 22 - Setor Marechal Rondon, Goiânia - GO, 74560-460. Telefone: (62) 3211-1616