Matéria da Alma

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SÔNIA MARIA SANTOS

MATÉRIA DA ALMA

Goiânia - Goiás

2011


Para José Evaristo, esposo e companheiro. Filhos e netos. Noras e genro. Para os irmãos ao longo do tempo: Divina e João Pedro. E Djalma (in memorian).


TEMPO E LUGAR PARA O SECRETO E O SAGRADO Heloisa Helena de Campos Borges*

Como não pensar em questões incomuns e filosóficas quando se tem em mãos um livro com o título Matéria da Alma e, ainda, o poema que lhe empresta o nome assim diz: Danço ainda com uma flor na boca a esperança toda numa valsa. Da alma, a matéria o tempo não gasta: prossegue, amante, peregrina; entre a alegria e o assombro das horas repetidas; entre a luz que chega e cega a da que suavemente pousa na retina.

Merece destaque o verso – a matéria o tempo não gasta –, pois escrito sem a facilitação da pontuação elucidativa, cria uma lacuna discursiva que possibilita a mudança da ordem das palavras, permitindo ao leitor ler este mesmo verso pelo menos de outras duas maneiras: a matéria não gasta o tempo ou o tempo não gasta a matéria. Nada inocente essa mobilidade é. Ainda mais que, ao propiciar maior liberdade de leitura, instiga outras possibilidades de interpretação, o que é também um recurso da escritura literária, em oposição a uma única e irrefutável decifração do texto. Além do mais, estes estranhamentos da linguagem instalam atmosferas guardadoras de traços singulares das composições artísticas, favorecendo novos olhares sobre a arte de criar, suscitando indagações, sejam teóricas, sejam temáticas ou mesmo metafísicas, como esta que me assoma no momento: alma tem matéria? Posso responder que sim. Tomando por base os fenômenos da natureza, é incontestável a valia do ajuste de elementos contraditórios. Basta observar: o calor do dia, o orvalho da noite, a chuva do plantio, o estio da colheita, o frio, a quentura, enchente e baixio das águas, mudanças estas que nutrem, revitalizam. Ora, paradoxos como estes que consumam a existibilidade do universo sempre são e serão bem acolhidos, pois todos sabem que a alternância dos ciclos é necessária, porque essencial para o equilíbrio e perpetuidade da vida. Igual acontece com os homens. Também é perceptível a alternância dos sentimentos: amor, ódio, bondade, agressividade, angústia, brandura, solidão, alegria, melancolia, esperança, enfim, ajustes internos característicos dos períodos claros e sombrios do viver. Isto está registrado no Eclesiastes (3:1–9), livro bíblico, que assim ensina sobre a instabilidade humana: Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu: (...) tempo para abraçar, tempo para se separar, tempo para calar e tempo para falar, tempo para amar e tempo para odiar, tempo para a guerra e tempo para a paz...


Portanto, vê-se que o tempo é um dos princípios essenciais e determinantes da existência. Santo Agostinho também se debruçou sobre o enigma do tempo. Para melhor demonstrá-lo, ele empregou o termo distentio animi – distensão da alma – e propôs o sentido de distensão como resultante de uma extensão. A alma dilatada pelo tempo favorece junções e acomoda a coexistência do que foi, do que é e do que poderá vir a ser vivido. E, a partir desta convivência de experiências passadas e presentes, a alma se alimenta com impressões assíduas, resistentes, pois o tempo tanto avança, quanto permanece, tanto pode ser medido, quanto impreciso, porém sentido, sempre. Matéria da Alma é um livro que demonstra ser o tempo o elemento que impulsiona e constitui a vida. Repartido em três momentos: 1– Matéria da alma; 2– Nada mais santo; 3– Tudo é poesia, tem por esteio o ir e vir do tempo. Em todos eles, o fazer poético enxuto e contundente de Sônia Maria Santos, comprovando o ensinamento do ensaísta Antonio Cícero que assim diz: Passar a limpo um texto é retirar-lhe tudo o que não lhe pertence por direito, modificar o que deve ser modificado, adicionar o que falta, reduzi-lo ao que deve ser e apenas ao que deve ser. No caso de um poema, faz-se isso até o impossível, isto é, até que ele resplandeça. O que resplandece é o que vale por si: o que merece existir. Transitando no tempo e aflorando sensações tão plenas de significação, os versos de Sônia Maria Santos apresentam-se especiais. Não apenas porque versos brotados da sua alma e substanciados pelo seu tempo, mas também porque estruturados no terreno da poesia, terreno este definido por Octávio Paz como um lugar de revelação. Revelação de um mundo que cria outros mundos, pois as palavras dos poetas só lhe são próprias até serem lidas. Compartilhadas, transbordam, tornam-se alheias, universais. Alguns poemas do livro Matéria da Alma são apreendidos com rapidez, devido ao comum pertencimento das lembranças, como este: Faço a lição Escrevo uva escrevo, enquanto a porta bate e o vento abre na lição do V. Soletro, uso a língua e ainda os dedos. E mais, soletro alto (...) O hoje traz o ontem para o agora. Isto acontece por meio da porta que bate e do vento que abre na lição do V, consoante sonora, por si mesma já sopra, e, neste poema, sopra profundamente, fazendo voltar o tempo das cartilhas, das lições de casa, momentos caros também para o leitor. É importante destacar os versos: e o vento abre/ na lição do V. Neles, o fato de o verbo abrir, verbo transitivo, não explicitar o seu complemento é proposital, porque o


vento não abre apenas a porta, ou a subentendida cartilha, mas principalmente a memória. Por meio dela, fatos e sentimentos retornam. Já outros versos exigem maior atenção em seus desdobramentos, visto que usam metáforas para simbolizar a passagem do tempo, como no poema: Não mais Folhas e folhas a mantilha é longa o outono me veste; fia e tece o que sou ainda louca e santa e de poesia ferida. Não mais na face oculta da lua: efígie pálida, medieval, sombria.

O emprego das palavras: folhas, mantilha, outono, é demonstrativo do tempo que fia e tece a sua passagem. Mas o emprego do advérbio de tempo ainda evidencia a permanência da essência do ser desta voz lírica que assim se explica: o que sou ainda/ louca e santa/ e de poesia ferida. O advérbio ainda traz em si o sentido de continuidade. Se no poema Faço a lição, o advérbio significa a permanência de um gesto: Soletro,/ uso a língua/ e ainda os dedos, no poema Não mais simboliza o perdurar de qualidades: o que sou ainda,/ louca e santa/ e de poesia ferida. Apesar das diferenças, nos dois exemplos acima é nítida a demonstração de que o tempo é passagem, mas nem sempre destruição. Vê-se, pois, que seja considerando-a a partir dos fenômenos físicos do planeta, ou dos motivos internos que regem o ser dos homens, é certo afirmar: a vida é consubstanciada pelo tempo. E a linguagem poética, com a densidade e a imagética que lhe são peculiares, registra de modo extraordinário estas junções mnemônicas comprovadoras da distensão da alma, como ensina Santo Agostinho. Tempo, memória, alma, vida. Nessa mistura, a justeza do nome Matéria da Alma. Daí, as lembranças sustentando os poemas. Mesmo quando as palavras transformamse em desenhos e remodelam imagens inesquecíveis. Deste entrelaçamento de linguagens artísticas, a pictórica e a poética, resulta o poema:

De Van Gogh O sol desce pelas cortinas, põe na cama seus arabescos, na tarde a alegria.


Aqueço-me. O inefável é isto. Desce ainda (como se pudesse) uma constelação de girassóis, amarelos elétricos de Van Gogh.

Palavras sem tempo, palavras de sempre. Eis outro recurso poético visível nos poemas de Sônia Maria: a intertextualidade, que é a presença de rastros de criações de tempos anteriores a interagir com composições do tempo de agora. São textos que, implícita ou explicitamente, guardam em sua feitura inesquecíveis instantes líricos, míticos ou bíblicos, e revisitados, transformam-se em importantes instrumentos com jogo de dupla visibilidade da escritura, a de agora e a anterior, devido aos ‘aprontamentos’ feitos pelo escritor. De certo modo, pode-se dizer que esta superposição de escrituras, agora intencional, assemelha-se às superposições ocasionais dos seculares palimpsestos. Exemplo desta imbricação é o poema Silêncio. Silêncio Às três da tarde para o coração. A vida para às três da tarde. Para o ar o seu fluxo. Ajoelho-me. Às três da tarde na adoração do Senhor Morto. Às três em ponto. Na sua estrutura, como pano de fundo, marcas dos famosos versos do poeta espanhol Federico Garcia Lorca: A las cinco de la tarde, a las cinco in punto de la tarde. Outras interações textuais são perceptíveis também nos poemas Vou alto, Mais belos, Monólogo, Ardendo em cores, De relance, nos quais a autora recorre a personagens bíblicos: Adão e Eva, o apóstolo João, Moisés, ou a lugares míticos como o rio Letes, o rio do esquecimento, ou a momentos cruéis denunciados pela apropriação de decretos bíblicos como olho por olho, dente por dente; ou emprega palavras que nos impelem ao extraordinário, porque portadoras do elemento fabuloso, como o verso do poema: vou alto/ no meu velocino, termo que remete à história mitológica de Nefele, seus filhos Heles e Frixo e o Velocino de Ouro.


Vê-se que os versos de Matéria da Alma são tempo e lugar para o secreto, para o sagrado, para o imprevisível, para o sensitivo, porque devolvem o que aconteceu, o que foi esperado, o que permanece ‘bicando’ na memória, como assim canta a própria poetisa:

Entrelinhas Moro no poema, nas entrelinhas, no imprevisível. E aparece o riso: breve galope. E aparece “ O Corvo” quase em surdina. Em outras palavras: entro de novo no rio. Por minha conta desafio e risco.

Concluindo, a expressiva criação de Sônia Maria Santos é um abraçar que acolhe o simples e o reelabora, transforma o fácil em complexo, que flui no tempo como um rio imprevisível, instigante, desafiador, sempre a inundar de misteriosa beleza o universo da sua poesia.

Goiânia, 30 de outubro de 2010 Heloisa Helena de Campos Borges Mestre em Teoria da Literatura


SUMÁRIO


MatĂŠria da alma


Brancos em manhãs verdes

Lençóis abanam-se enormes à minha frente, brancos em manhãs verdes em que vivo e canto o que brota ascende ilumina e alguma coisa explica não sei desde quando.


Ardendo em cores

Luz em tudo pudor nenhum nenhum pecado; nenhuma pedra varando a carne, lâmina ou cravo. Janela ou muro desbotado. Há bandeiras de Volp e tulipas ardendo em cores por toda a parte. Até os Deuses, os mais severos, dançam na clara paisagem.


Não mais

Folhas e folhas a mantilha é longa o outono me veste; fia e tece o que sou ainda: louca e santa e de poesia ferida. Não mais na face oculta da lua: efígie pálida, medieval, sombria.


Só o verbo

Não mais sobre a pedra o cordeiro degolado, no manto claro azul do dia. Só o verbo com sua lâmina desce à cabeça, à linha estreita, à escrita; gota a gota, num cântico, com a face erguida.


Mais do que antes

Mais do que antes, ao pé do fogo, com as maçãs do rosto acesas, expectantes, recuso-me a viver entre paredes, aonde vive naturalmente o corpo. De resto, vou atrás dos ventos areias, pedras e fontes flores e frutos. E penso: canta um Deus desce a luz a manhã madura.


Faço a lição

Escrevo uva, escrevo, enquanto a porta bate e o vento abre na lição do V. Soletro, uso a língua e ainda os dedos. E mais, soletro alto até atingir o centro o vermelho licor da vida. A pátina do tempo.


Lótus sagrado

A flor de lótus na água de dentro brota sagrada, devagar, em pétalas, encantada. Há de trazer-me, quem sabe, a sabedoria, seu livro, seu louro, seu ramo verde, ao meu coração que tão mal aprende.


Levanto os pés

Levanto os pés e olho longe: lápis de cores sobre tudo. Só o sono das crianças e dos cordeiros em brancos lírios. E quando os vivos, querendo Deus, não mais voltarem para a casa, será ainda o mundo um horizonte de espumas e luas e sol cravado. (E quando ao Letes eu chegar em segredo, será como uma árvore no seu tempo).


Deslizo

Corpo e alma descem à árvore severa, à pedra dura do princípio, Na paisagem, no grito, como os ancestrais. Até deixar num muro, quem me dera! Quem diria! Depois de uma “Guernica” um lírio único da paz.


Segundo João

Fatal labirinto, rituais, silícios, distendem meus eixos. Por isso essa sede, inevitável sede, do riso, da valsa das entornadas talhas do mais puro vinho. — Do último servido, segundo João.


Ressonância

Aparo pétalas, miolos, folhas: invisíveis notas de um teclado matinal. Rosas diluídas, não menos rosas, na manhã que chega desfeita em água. Nessa hora fria, minhas mãos perdidas entre hastes longas são quase nada.


Vislumbres

Um átimo de tempo para tirar das pálpebras todos os sonhos; silêncios, vislumbres doces alentos; a infância a rosa nos dedos, dilacerada. Ainda a paciência, ciência em carne crua, matéria da alma.


Filhos do tempo

Os Deuses nos concedem paciência, não conformismo. E filhos. Filhos do tempo. (Um deles, deixado em cesto, em segurança, em longo rio do Egito). Sofrem são felizes quando podem e ao redor da mesa contam histórias. Filhos do tempo. Filhos da memória.


De relance

“Olho por olho, dente por dente” são coisas findas se não saio de relance atrás das que são lindas das que tem asas desatadas peregrinas.


.

Experiência

Um raio de sol acha meu braço, vem junto a morte cobrar espaço. Espreita-me, tem suas sedas, de vez em quando lambe minha carne e ossos. Em tudo pousa repousa martela. Mas sem fitar meus olhos que ainda não são dela.


Vou alto

No inverno em seu mármore contorno já a face que desenhou a minha em cifras múltiplas de tempo. Suspendo mãos e braços gestos brancos ao infinito. Vou alto no meu velocino.


A vida

A vida, apenas uma, define-se num círculo que demanda ao infinito ou à simples rua. Portanto, somos soldados, com ramalhete e rima para a música esquecida; para o silêncio para as nossas almas sossegar, sobre folhas, areias, poças de mar; e para a voz, se preciso ainda.


No mar do tempo

Desde o princípio escorro vísceras adentro. Canto, faço silêncio, viva me surpreendo. Vela estreita me abriga e pequena concha no mar do tempo. Corpo e alma (pesam ainda) nas asas do primeiro vento.


Matéria da alma

Danço ainda com uma flor na boca a esperança toda numa valsa. Da alma, a matéria o tempo não gasta: prossegue, amante, peregrina; entre a alegria e o assombro das horas repetidas; entre a luz que chega e cega e da que suavemente pousa na retina.


Beija e gosta

O dia ĂŠ cinza a dor ĂŠ nova: rumores, sinas, mil castanholas. A dor nĂŁo dome: tem pressa me aperta beija e gosta do corpo e da alma que tenho, meio guitarra de Lorca.


Os Parnasianos

Os Parnasianos surgem com seus livros seus cestos cheios de estrelas e luas de trigo; de flores miúdas initerruptas no final da infância. Tão cedo! E já entre meus dedos a poesia: úmida, (in)dócil, para toda a vida.


Mais belo

“Da árvore milagrosa de dourados pomos” nenhum no cesto mais belo do que o brilho de uma estrela lá em cima minha equilibrista balançando as pálpebras.


Monólogo

— Manoel Bandeira, não há pena no seu murmurar. Há o tempo urdido em dores horas estreitas a flor, a estrela; a carne dura, a imaginação. E a chave que abre, uma a uma, suas caixas pretas, por antecipação. — Abraça e beija. Beija e abraça. Canta. Anda sobre as águas.


A velha lua chinesa

Ponho flores nas janelas e os olhos nos olhos de quem passa, igual a quem viaja. Vou entre ruas, árvores, praças veredas e à cabeceira de algum rio escutar ventos, estrelas; e de Li Po, poeta, a velha lua chinesa.


Com longas margens

De uma Deusa bebo na fonte nas suas hídrias bebo com fúria de recém-nascida entregue ao vento e às sílabas que vou juntando até que sejam poemas com longas margens para o silêncio.


Supostamente

Nada está pronto e celebrado na condição em que vivemos. A face, a fatia, o pedaço, em plenitude, só em Picasso. Não bastam martelo e cinzel, a pedra, a lágrima descendo. Sem Adão e Eva, em alta capela, felizes para sempre — eleitos.


Nada mais santo


Uma lâmpada

Rilke quando canta dá-me uma lâmpada leva-me por entre pétalas e folhas trêmulas; por estrelas silenciosas pequenas. Nada mais santo.

Trevos sem parar


Jardim não é lugar parado, mas revolucionário: trevos sem parar. Pétalas, cores, alvuras; borboletas sedas cigarras, uma partitura. Delírio enfim. De vez em quando finjo cuidar do meu jardim.

O lírio, o pêssego


Surpreendem-me pétalas e frutos no seu halo de beleza. O lírio, simples e puro; o pêssego, o contorno o aveludado coração ileso não trespassado de humana vida.

Secretamente


Árvores altas cobrem-me. O céu é um só ponto. Os galhos sobre os ombros úmidos, empurram-me para o campo aberto, aonde chegarei sem medo primeiro à luz dos sonhos.


Longe, no ar

Moitas de lírios brancas paredes falas antigas em movimento fontes e poços lagoas de Narcisos e o meu olhar (des)humano, peregrino. Na tarde lilås, puro capricho.


Frei Juan de La Cruz

Ao menor sinal de vento de água corrente de pedra e musgo, seu pé no chão e a bondade. Na barra da tarde, Frei Juan entende-se com seus irmãos de alma. De dores, principalmente. Faz poesia, derrama seu cálice.


Junto ao rio

Todos se reconheceriam junto ao rio, de mãos dadas, a romper jovens folhas e águas. Rio que anoitece nos meus olhos, absoluto, de tardezinha. Nas brumas últimas.

Deus


Na tarde nas sombras últimas, pai e mãe me olham com suas roupas de tempo. Estremeço, casas e ruas, juntas, postas em andaimes que não vejo. — Sustentam-me suas mãos enormes.

Ainda


No deserto no vento nos búzios e areias ainda me vejo. E ao pé da cruz, porque preciso. Porque não esqueço. Por isso mesmo — finjo a uma tristeza já não dar ouvidos.

De Van Gogh


O sol desce pelas cortinas, põe na cama seus arabescos, na tarde a alegria. Aqueço-me. O inefável é isto. Desce ainda (como se pudesse) uma constelação de girassóis, amarelos elétricos de Van Gogh.

Saboreio


Paz reinante, tudo igual, como se eu n達o soubesse que nada se sucede da mesma forma a cada instante. Saboreio como a um fruto o fluir da vida: doce, amargo ou meio amargo, inventado pelos Deuses ou por meus dedos inexatos.


Quase noite

No poente, na difusa luz, imagino livros, a Biblioteca de Alexandria e os parรกgrafos que eu nunca li. Imagino ainda e simples seria ler nas estrelas dos dias antigos: soltas e douradas telhas (velhos papiros) sobre mim.


Rito de chegada

Chego na estrela última aos tecidos claros. Estrela ainda das minhas súplicas das minhas flores mudas. Para cheirar-me nenhum cão ou gato. Há enternecida lã no halo maternal. E um primeiro adágio.


Olhando lírios

Sobre o meu ombro Deus põe sua mão sagrada, o que mais quero; quando na tarde no campo olhando lírios soluço e grito (de perfeição) a pretexto de quem reza.


Num céu de vésperas

Vasta campina vento que beija trevos e trevos avencas; e olhos que passeiam claros e virgens, em sua origem, num céu de vésperas. À porta baixa da casa antiga, casa da memória, perco-me em fios que não puxo mais.


Silêncio

Às três da tarde para o coração. A vida para às três da tarde. Para o ar o seu fluxo. Ajoelho-me. Às três da tarde na adoração do Senhor Morto. Às três em ponto.


Sob clara lua

Conversas passadas a limpo, balas passadas no açúcar, celebração reinante sob clara lua. Ainda, a túnica em linha crua tecida, para a descida da cruz de mais um dia.


Mãos inteiras

Mãos maduras refeitas na roda do dia libertas para as sombras, as cores, as volutas claras, deitam na bandeja maçãs e peras, tenras melancias; uma flor no talo um cálice uma geometria. (Já no céu, suspensa, sobrenatural, uma lua fina).


Outro novelo

Entre leitosas constelações, depois de confiar-me às galáxias inteiramente e digerir a exaustão o material de que sou feita, puxo a noite pelas pernas e adormeço. Nas nebulosas, suas espumas, até as pupilas de um novo dia, — outro novelo.


Tudo ĂŠ poesia


Tudo é poesia

Em torno, tudo é poesia, erguê-la altíssima custa-me o dobro de pedrinhas, cacos de louça vidros coloridos que trago ainda não sei de onde. E a nenhuma fonte tenho chegado. E nem saltei os muros de ontem.


Corta fina

A espada corta fina, a palavra mais ainda. Mata na hora ou aviva feito olho em avencas: folhas trĂŞmulas, meninas. A palavra, por destino, sonhada antes por dentro, como quem tece pĂŠtalas antes da primavera, no inverno.


Nas entrelinhas

Moro no poema, nas entrelinhas, no imprevisĂ­vel. E aparece o riso: breve galope. E aparece “O Corvoâ€? quase em surdina. Em outras palavras: entro de novo no rio. Por minha conta desafio e risco.


Fina gota

A poesia é fluido, aroma, fina gota do mais puro vinho a quem o vinagre já é servido. É sangue e horto espada de alguma luta o tempo que for o tempo que sonho. Flor, toca meu ombro.


E depois ainda

Na poesia, a tessitura, a flor imaginada. “A boa Parte” que não me será tirada. Até o dia, e depois ainda, quando não mais será a areia descendo na ampulheta, minha medida certeza (des)ventura.


Não sei se tarde

Sob as estrelas e o olhar da árvores cumpre-me saber, não sei se tarde, se trago ainda no poema o fecho (o estalo, o pólen) úmido de sentimento. Além dos medos, sustos e das alegrias retidas à custo no mundo que tenho.


Seja a poesia

Seja a poesia, nas dobras onde pousa, a mais funda explicação; e a mais simples, penso, se na mais antiga aldeia ainda me vejo: alma suspensa, apenas um fio, um corte, algo feliz, ardente, onde indiferente já não se morre.


Súplica

— Senhor, pela carne, pelas vértebras, pela alma, sobretudo; pela poesia: rosa sanguínea, dá-me novelos de lã no deserto ainda. Cântaros de água clara, sol, sobre os olhos e as glândulas, passando-me em revista. Versos, claves, estrofes. Músicas — as mais sentidas.



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