Casa do Tempo

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Casa do Tempo



S么nia Maria Santos

Casa do Tempo

Goi芒nia - GO Kelps, 2011



Para Ana Rosa e Perciliano, meus pais (in memoriam)



SUMÁRIO POESIA VALENDO POR SI.................................................................9 O SOPRO..............................................................................................11 MATINAL.............................................................................................13 TUDO ANDA NA DOR.....................................................................15 ABRIL....................................................................................................19 CARTA...................................................................................................21 APRENDIZAGEM...............................................................................23 PARÊNTESIS........................................................................................25 ESPERA.................................................................................................27 O QUE HÁ DE NOVO........................................................................31 A POESIA..............................................................................................33 EU E MEUS IRMÃOS.........................................................................35 OS CAMINHOS VÃO INDO.............................................................37 PSICOLOGICA....................................................................................39 PINCELADAS......................................................................................41 MOMENTO..........................................................................................43 VIDA FRANCISCANA.......................................................................47 A RUA VAI COM SUAS CASAS........................................................49 NATURALMENTE..............................................................................51 O POEMA.............................................................................................53 SEQUÊNCIA.........................................................................................55 PEQUENA ELEGIA.............................................................................57 ANUNCIAÇÃO....................................................................................61 ENCANTADA......................................................................................63 AQUI SE QUARA TUDO...................................................................65 COMPENSAÇÃO................................................................................67 OLHO OS LÍRIOS DOS CAMPOS...................................................69 CÓSMICA.............................................................................................71


EXÍLIO...................................................................................................73 AGOSTO...............................................................................................75 FRAGMENTO......................................................................................79 PASTORIL.............................................................................................81 ERVA-DOCE........................................................................................83 MEDITAÇÃO.......................................................................................85 PURIFICAÇÃO....................................................................................87 ETERNIDADE......................................................................................89 FLAGRANTE........................................................................................91 REVISÃO..............................................................................................93 ENSAIO.................................................................................................95 NUNCA E SEMPRE............................................................................99 COMO NOSSOS PAIS..................................................................... 101 CANTILENA..................................................................................... 103 HUMANOS....................................................................................... 105 OUTONO........................................................................................... 107 O TEMPO.......................................................................................... 109 ENQUANTO SOPRAR.................................................................... 111


POESIA VALENDO POR SI

Desde que a poesia se libertou das regras compulsórias de rimes e métricas, de silabas e medidas, o gênero se abre a manifestações num espaço infini­to, onde são as palavras exatas e sonoras que deci­dem da importância da mensagem. Daí se admiti­ rem ate os artifícios de trapézios ou trocadilhos, mais como proves criativa do que de substância. Devido à mesma razão, o subjetivo consegue seu lugar sem, contudo, dificultar o entendimento do leitor. E, pois, a poesia valendo por si, por quem a fez sem alegar nada de restrição. Sônia Maria Santos confirma a virtude dos ver­sos espontâneos. Inclusive, sob qualquer impulso técnico ou de estilo, seu poema dispenses guardas e sal­vaguardas normativas. Tem conteúdo de alma - a alma da autora na busca do paz com as almas alhei­as. Conta da linguagem às vezes metafórica, mas pura, direta da produtora aos consumidores. O notável nesta Casa do Tempo é o salto sen­tido numa safra que se aperfeiçoa quanto as anteri­ores, embora a estas o espírito poética também de­fende vez e hora. Em matéria literária, a libertação conquistador ou ate exposta como uma mudança natural, gera­da pela essência do ramo, é que responsabiliza cada poeta e cada composição. Despida dos adereços rítmicos e parnasianos - sempre em seus módulos indescartáveis -, a 9


poesia moderna cabe identificar se por desempenho autônomo, seja de que tama­nho for. No particular, Casa do Tempo nos mostra a vocação assumida por Sônia Maria Santos, em pleno use de idioma extensível das frases, físicas pela escri­ta, aos muitos mundos do meditação, receptivos pela ternura expressa José Asmar (Da Academia Goiana de Letras)

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O SOPRO No principio e o sopro, (antes do dia com suas casas) o ar lavado que a tudo cuida conduzindo a fala: flauta de mil sons entre o cĂŠu e a terra e a paciĂŞncia de Deus.

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MATINAL O sol com sua juba pula cá dentro E a casa fica acesa. Daqui a pouco há os que partem há os que chegam;

e não pode ter limite a nossa ciência.

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TUDO ANDA NA DOR Tudo anda na dor. Sabia de véspera quando as mulheres cantavam com tal esperança e voz tão erguida; ou se conduziam quase em silêncio, esse eterno jeito de conter a alma.

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ABRIL O tempo roda e me deixa ainda no abrigo das estações. Rente aos acontecimentos corriqueiros, com a diferença que agora vejo: abril polindo, asas, imagens e céu de vidro.

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CARTA Aqui vai Ludo igual. Graças a Deus. Viver-sofrer é um sentimento bom. A ópera continua. O rei está nu. Dou de comer aos meus. Até vejo o prato fundo, de beirada azul, cheio de comida, em seu colo, pai.

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APRENDIZAGEM Ainda que a vida seja só a velha casa, o jardim a rua, o destino espera (pois anda comigo). É que vamos indo repetindo ritos para entender o mundo.

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PARÊNTESIS Quem me dera ser igual à minha avó e achar uma maneira de dizer que de manhã (entre água e sabonete) tenho prazer na vida. Alguma tristeza é coisa mais intima.

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ESPERA As manh達 est達o acesas perenes e azuis. Comemos bebemos e pomo-nos a espera como quem espera cosendo outra costura. Secreto e o cora巽達o dos homens e mulheres e seu madurar.

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O QUE HÁ DE NOVO O que há de novo, por mais intenso, não é major que o tempo e nem esta completo. Por isso levo sonhos e pequenas vidas de um novelo que nato finda: isto é eterno.

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A POESIA Quando fico triste dessa tristeza quase grata de saber-me breve: a poesia, a mais longĂ­nqua, me socorre. E o dia e a noite e a ciĂŞncia toda atravessam meu corpo feito alma.

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EU E MEUS IRMÃOS De vez em quando desço aos labirintos; vou e me encontro, mas, com tanto horror que fico horas no mesmo crivo. Com meus irmãos acontece o mesmo senão, como explicar o zelo com que chegam aos mistérios infindos?

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OS CAMINHOS Vテグ INDO Os caminhos vテ」o indo por lugares nunca vistos. Nテウs, no entanto, mal vemos as coisas juntas na casa do tempo: o rio, o sol, a pテ。tria, a dor do mundo. E o dia sem susto nascendo.

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PSICOLOGICA Tomo comprimido e pronto. Sofrer, só amanhã, e depois do café, que é tão bom ver farinha de pão sobre a mesa. Com paciência endócrina nasci. Custei a saber. Em conseqüência: não encabeço listas, não suporto a palavra áspera, e quero exageradamente o ventre que me gerou.

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PINCELADAS O homem que me quer chega de frente. Depois vem a casa e os filhos. Depois vem o sol e fico contando o tempo ou comprando o tempo nesse desenho que ĂŠ meu sitio.

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MOMENTO Existo num dia de copas estremecidas e chuvas em meu pais. Contemplo o possĂ­vel o fruto cai a pedra se gasta. O rio polido passa independente de mim.

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VIDA FRANCISCANA E uma vida simples esta; (pelo tempo que passou pelas tendas de Abraão) e os pecados perdoáveis desde que o mundo é mundo; e a esperança necessária como as favas no fim do dia.

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A RUA VAI COM SUAS CASAS A rua vai com suas casas até dar no outro mundo. Então aprazível susto pode explodir no meio dos beirais pequenos que nos abrigam; no frescor das louças na mesa posta na flor polida num dia sem fim.

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NATURALMENTE Tudo nos invade por toda a vida, como uma hĂŠlice invisĂ­vel no rompido corpo. E todo o perfil nos toca de dor, e todo o sonho; doendo naturalmente doendo aos poucos; na voz de dentro por onde nos abismamos todos.

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O POEMA O poema já me escapa e vai acabar num barquinho de papel em cima da mão. Não quer ser nuvem pássaro vento ou casa fincada no fim do mundo.

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SEQUÊNCIA De tarde o vento toca canções antigas: definitivo consolo quando o beiral da casa deita uma sombra. Quando os doces se apuram as nuvens (des) inventam bichos e um prato fundo de histórias eu guardo de meu pai.

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PEQUENA ELEGIA Devagarinho, de madrugada, ia na estrada das dálias e dos girassóis. O céu estava perto. A lua era jovem. Tudo decididamente em ordem. Faltava o tempo não galopar.

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ANUNCIAÇÃO As mulheres diziam juntas: (incensando a sala) eis o final dos tempos. Até um anjo caia do seu concílio, Agora um poema pequeno como este é é uma anunciação: urn desejo de beleza,

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ENCANTADA Vivo encantada, (Embora a alma sentenciada perceba pouco do mundo que gira) Na haste do poema. Na eternidade. Mesmo sem saber que outro ar ha de levar a fala secar a roupa e tremer as รกguas.

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AQUI SE QUARA TUDO Aqui se quara tudo, delta o tempo e sua chuva de profetas. No entanto nosso poder e pouco, menor que o sonho. Sò vamos indo por causa dos rios dos dias que são correntes dos desejos.

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COMPENSAÇÃO A vida passa tão a seu modo que me deixa exata. Uma única palavra e sei o seu rumor na água na folha no vento nos dias antigos.

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OLHO OS LÍRIOS DOS CAMPOS Olho os lírios dos campos e descanso o corpo que vai parar um dia. Depois busco a fadiga que a semente espera ainda; o homem espera e tudo espera por sua vez.

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CÓSMICA Uma voz me dizia: Deus vê todas as coisas. E Deus me via em secretíssimos temores. Ate hoje me vê e me cobre de conforto. À minha mãe deu sabedoria, rimas perfeitíssimas para rimar com a dor. Ela que já se foi sabia, como um poeta, tinha que ser universal.

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EXÍLIO Voando para dentro em silêncio e névoa estamos nos vendo: enfim sozinhos, mais que antigos; a não ser o céu, o sol, a chuva, O tempo nos tira ainda das salas do exílio.

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AGOSTO Agosto é pesado e seco e pelo que vejo é resignado: se ocupa em desatar os ventos. Aí nenhuma lida é leve nem líquida; em areia grossa tudo se afia e sal doendo. Agosto é pesado e seco na face no dia.

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FRAGMENTO A soleira dos domingos ninguém transpõe tão docemente; sem um jeito imóvel de fruto caído e cântaros a espera das mulheres.

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PASTORIL A impressĂŁo que me dĂĄ um jirau florido e a mesma que me causa a latinha de poejo presa na parede. A casa branca e pequena vista de longe o dia limpo feito semente.

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ERVA-DOCE Surpreendo a noite cantando uma cantiga ou comprando vagens para o jantar. Vou e venho faço sopa e sirvo suporto esquecimento. Tem erva-doce onde envelheço e o “Reino de Deus” sobre mim.

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MEDITAÇÃO Em telha ardente somos postos perante o tempo. Levo uma crença e a mão que escreve: “Gloria a Deus nas alturas”. Então descubro corpo e alma numa respiração que mal conheço.

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PURIFICAÇÃO Os tecidos da alma branqueiam-se no tempo: pedra de quarar que um Deus nos concede. É como se tudo sobre o nosso corpo que chamam sagrado tivesse de doer; até merecer, como nossos pais, em seus lençóis, o branco derradeiro.

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ETERNIDADE Pouco se extingue no limite-morte a que vamos chegando. A memória teima na prateleira à flor de tudo e o que mais vingar depois do sono. Pouco se extingue posso sabê-lo a visa e mais de um novelo.

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FLAGRANTE Sofro de eternidade, De onde estou nĂŁo a vejo, Nem a vento e seus cavalos vindo por dentro. Nem fico suspensa ante a face de Deus e pronto. Se hei de ter repouso: vejo a ĂĄrvore, a pedra, a mar, um porto.

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REVISテグ Vejo o copo d窶凖。gua em sua coluna de pureza, o polvilho da lua e a linha que vai coser os ciclos futuros. Os meses correndo pelos muros e as dores: tenazes de cada dia.

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ENSAIO Este poema é resídua de folhas coisa viva e coisa morta na lívida face do tempo. Ensaia um círculo de luz e põe dentro: o próprio tempo e seu galope até que seja um caminho.

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NUNCA E SEMPRE Nunca e o mesmo vento que estremece um sino. Mas outro vento vindo. E não serei a mesma nunca entre o joio e o trigo: meu próprio suprimento. Sempre é um moinho moendo o mesmo assombro onde existo.

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COMO NOSSOS PAIS Procuramos sempre nesse mundo gasto o que o tempo fia. Nossos pĂŠs em tudo como nossos pais: tangidos do mesmo ar dobrados na mesma sina de levar o cesto de cada dia e nos salvar.

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CANTILENA No extremo do dia tudo se configura em sina: explicação para o cansaço e algum mal sem cura. E uma velha historia cheia de fardos filhos óleos incensos.

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HUMANOS O que somos é tão estranho que nos fazemos humanos; com mesas, cadeiras solos e quartos e o fio de esperança que nos move talvez por favor dos anjos. O que vai ficando é uma lição extrema. Ou só um suíço. Ou um jeito de aqui durar.

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OUTONO Com algum velho salmo entrego a descendência e amadureço feito maçãs e peras no timbre da estação. Certa alegria agora mais que tristeza fica nesse tempo em que deito alguma coragem.

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O TEMPO O que de mim se afasta não é a sombra ao pé da escada. Nem o alheio gesto, vestígio, fio do que sonho. Mas o tempo em si mesmo: um sopro.

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ENQUANTO SOPRAR Enquanto soprar sobre a casa o vento, e romper a manhã pondo sol em tudo, um sonho me conduzirá por lugares que nunca vi: nítidos e claros, úmidos de Deus. Bem longe desse nosso louco mundo.

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