Todas as Fábulas

Page 1

Todas as Fรกbulas



Sônia Maria Santos

Todas as Fábulas

Goiânia - GO Kelps, 2015


Copyright © 2006 by Sônia Maria Santos Editora Kelps Rua 19 nº 100 – St. Marechal Rondon CEP 74.560-460 – Goiânia – GO Fone: (62) 3211-1616 Fax: (62) 3211-1075 E-mail: kelps@kelps.com.br homepage: www.kelps.com.br Weslley Rodrigues Programação visual DEK Capa e ilustrações Cláudio Evaristo Arte final da capa Eliane A. da Silva Revisão da obra CIP. Brasil. Catalogação na Fonte BIBLIOTECA MUNICIPAL MARIETTA TELLES MACHADO S233t

Santos, Sônia Maria. Todas as Fábulas. / Sônia Maria Santos. - Goiânia: 2ª edição, Kelps, 2015. 114p.

ISBN: 1. Literatura brasileira - Poesia. I. Título 2006 - 060

CDU: 821.134.3(81)-1

1ª Edição 2006 2ª Edição 2015 DIREITOS RESERVADOS É proibida a reprodução total ou parcial da obra, de qualquer forma ou por qualquer meio, sem a autorização prévia e por escrita da autora. A violação dos Direitos Autorais (Lei nº 9610/98) é crime estabelecido pelo artigo 48 do Código Penal. Impresso no Brasil Printed in Brazil 2015


Para JosĂŠ Evaristo, filhos e netos. Para os familiares e amigos, ao longo do tempo. Para os Escritores que se aproximam com seus textos, com suas falas, tĂŁo determinantes para os meus livros.



TODAS AS FÁBULAS: SÔNIA MARIA SANTOS Faço tapete no deserto, (rezo) entre areia e vento, como quem se salva na fração do dia. Quero a poesia: a flor, a essência, ( a inevitável) a que cobre, vez ou outra, a multidão dos meus pecados. Este critério usado por Sônia Maria Santos é um critério de oração, que nos chega de mansinho, sutil, eivado de uma essência quase inocente, pura, mas é também um critério de economia de palavras, de condensação de linguagem, de espiritualização poética moderna, fruto de quem vive seu trabalho e deixa o seu legado nas lembranças mais simples “como se eu não tivesse outro papel no mundo/nessa manhã/nessa cidade na rua qualquer/quero as palavras, mais sentidas do que pensadas”. E se quiseram outra assertiva, digo que é uma poeta diante de si mesma em oração, a eliminar as pontezinhas que a separam de suas referências, dos elementos que entram na esfera poética de seus sentimentos. Tudo são versos, e simples, de uma simplicidade encantadora, atingida somente por aqueles que possuem o sentido mágico da criação e permanecem em estado de permanente permuta com a natureza. “Onda erguida de um mar só seu,” cujas imagens correm nas águas da infância. Tudo é medula e sangue. As palavras testemunham justamente o amálgama que é a força motora que conduz os atos do poeta. Sônia Maria Santos parece testemunhar a existência do mundo e do ser humano desde o


seu princípio, até agora, um necessário conhecimento de si mesma, pois que o viver está muito próximo do escrever. Tudo é medula, sangue: humana veste, (e tudo e alma) desde Adão e Eva e a serpente. A poeta aceita e trabalha em única direção, mas aponta os vários e variados caminhos, contidos neste livro, que centralizam a vida do ser humano: o instrumento sutil de uma realidade aparente: um salto de ansiedade sobre coisas de profunda reflexão, a audácia de percorrer veios de transposição da angústia do homem; a condição de questionar situações de humor, de misticismo, de ironia, que se apresentam como extensão referencial de toda a sua poesia. Os sentimentos sendo objetos dos sentimentos. Os fundamentos do conhecer filosófico de uma realidade cotidiana, por vezes hostil, de uma hostilidade apreendida entre os dedos. Uma ligeira consciência permanente contínua entre as linhas de fuga do coração. Assim, a poeta assume o que vê e encontra no seu lidar do dia a dia, e os aborda como substância ideal, sustentáculos para a articulação de seus versos. Mais do que meus olhos, durarão os dias’, os livros, as pétalas entre páginas; essa sala, esse casulo do qual me solto


aos poucos no ar do mundo. Apenas um fluxo, o tempo, e o brilho de uma estrela. O tempo, as estrelas, as coisas que anunciam a solidão, as imagens que nutrem os fragmentos da realidade; a proximidade que se verifica entre a mulher, dona de casa, cuidadora de tudo, e o ser poético que cria, inventa, sofre as dores do mundo, numa dialética mágica, como num acordo entre duas vidas, ou entre dois planos. É a decifração do poeta, da visão de seus olhos, do encantamento de ser-se homem e Deus, numa espécie de constante ludismo. Ou no dizer de Júlio Cortázar “A essência do escuro vento”. Ou, ainda, para citar Jonh Keats: “Se um pardal vem à minha janela, participo da existência dele e bico os grãozinhos de areia...” Penso, então, que a nossa poeta participa de tudo que a envolve emocionalmente, claro, põe seus olhos em lugares comuns que as outras pessoas não conseguem enxergar, no procedimento, no domínio e magia do poema. José Gorostiza afirmou certa feita que: “Em minha própria casa como na alheia, acreditei sentir que a poesia, ao penetrar na palavra, a decompõe, abre-a como um capuz a todos os matizes de significação”. Além disso, Sônia Maria Santos acrescenta algumas abordagens especificas para o fazer poético, de maneira ampla, sem nenhum conflito, como se vivesse várias vidas. Assim são pontos marcantes de sua trajetória literária, movendo-se na linha do tempo: livros, sim, claro, de absoluto pressentir; o vaso chinês; a palpitação dos pássaros; o rumor do silêncio; o remanso dos rios, a agitação do mar que absorveu inúmeros segredos; e mais: todas as fábulas a ela pertencem, assim como os rumores, os pássaros, o silêncio, as rezas, as raízes, as iguarias, a toalha branca sobre a mesa, as


adivinhações da alma, o espelho embaçado da infância, os sonhos vindos do sol ou da lua, o quarto, as portas, as janelas, a angústia de ser-se centelha e cristal, a sensibilidade que busca a palavra exata no momento exato para se conseguir uma boa poesia. A ideia que faço do mundo, levo comigo com o vestido que uso assuntos que ouço dias que rimo. Ilusões, incertezas, sobre a mesa pousam. Nunca o mundo sonhado, que canto como posso, como um padre-nosso. Estou convencido de que quando a poesia a visita, e penso que é a todo momento, Sônia Maria Santos constrói o seu barco e embarca sozinha para esse encontro fortuito, dando de passagem os pontos de intersecção dos mistérios que se somam às forças dos primeiros versos desfraldados. Dizem que estes primeiros versos são sopros de Deus e que os demais serão conseguidos com o suor do poeta. Tudo se resume e se dissolve a todo momento: o próprio corpo, e dentro a dor que trago.


Indago, insisto: deslizo no poema, no seu sistema, como se fosse um oráculo. Sônia nos dá um mínimo de linguagem e muito de imagem, que estes, como o amor, se fiam com seu “próprio/uso”.Talvez agora se compreenda melhor a trilogia de livros publicados por Sônia Maria Santos, num crescendo, em nível do amor, dos corpos, da alma e com a soma de todos os sentidos: o primeiro deles, A Teia dos Dias, foi editado no ano de 1985, Goiânia, Universidade Católica de Goiás, com prefácio de Maria Helena Chein que, acertadamente afirma: “Sônia Maria Santos tem a poesia nas mãos, nos dedos e olhos. Sua cabeça é poesia, dessa que dinamiza o cérebro e nervos e rasga o profundo para sempre”. O segundo livro Casa do Tempo, editado no ano de 1995, Goiânia, Editora Kelps, saudado por José Asmar, que a certa altura do prefácio diz o seguinte: “Sônia Maria Santos confirma a virtude dos versos espontâneos. Inclusive, sob qualquer impulso técnico ou de estilo, seu poema dispensa guardas e salvaguardas normativas”. O terceiro, Mar Invisível, foi publicado no ano de 2000, Editora Kelps. Stella Carr fez uma sucinta e perfeita descrição do livro: “Encontro um lirismo de textura mansa, pequenas peças de tristeza, sem lanhos de amargura, apenas roçando leves nostalgias. Mais o amanhecer e o despertar, que o exprimido suco do desencanto”. Sigo, então, neste quarto e belo livro, as margens e diferenças que nos dão os poemas de Todas as Fábulas, trilhamos neles juntos, com somas e acréscimos de propriedades: Quase Reza, Oráculo, Sintonia, que formam no todo um livro do nosso tempo. Presença inequívoca de uma poesia que se faz necessária para a modernidade. Instrumento lírico verbal que nos concede pouco


a pouco o sentido do viver e vivenciar a vida, que nos atinge e nos envolve com todas as suas nuances. Seus poemas nos chegam de mansinho, assim como sua autora, pequena e frágil, mas com pureza e força que arrastam correntezas, e nos deixam cientes que poesia “é o eco da melodia do universo no coração dos homens”. (Rabindranah Tagore). Todas As Fábulas Sobre a mesa, a toalha é clara, os dedos: Os nós do tempo, Comemos, bebemos, e todas as fábulas já são ouvidas além do reino. Alegria pura é possível ainda. Os poemas de Sônia Maria se sustentam na lúcida vigília de seus sentimentos, como no dizer de Cristian Science: “o nada da matéria e o lodo do espírito”. Goiânia, 13 de janeiro de 2006. Miguel Jorge


SUMÁRIO TODAS AS FÁBULAS Puxo o fio e teço................................................................................... 19 Essa coisa altiva..................................................................................... 21 Desde que o mundo é mundo............................................................. 23 Eu sempre quis...................................................................................... 25 Mística.................................................................................................... 27 Manhã clara, perfeita........................................................................... 27 Medito.................................................................................................... 29 A vida insiste......................................................................................... 31 O silêncio bate asas.............................................................................. 33 Nossos parentes.................................................................................... 35 Movimento............................................................................................ 37 Prazer secreto........................................................................................ 39 O mês de abril....................................................................................... 41 Heráclito................................................................................................ 43 Ainda com sono.................................................................................... 45 Apenas um fluxo................................................................................... 47 Com esses olhos.................................................................................... 49 Altar........................................................................................................ 51 Todas as fábulas.................................................................................... 53 QUASE REZA Quase reza............................................................................................. 59 Penitência.............................................................................................. 61 Procissão do encontro.......................................................................... 63 Confirmação......................................................................................... 65 Petição.................................................................................................... 69 Cheia de graça....................................................................................... 71 Mal sei.................................................................................................... 73


Revelação............................................................................................... 75 Prefiro Picasso....................................................................................... 77 Entre cinzas........................................................................................... 79 E ainda canto......................................................................................... 81 Invento ritos.......................................................................................... 83 Entre as árvores baixas......................................................................... 85 Flor miúda............................................................................................. 87 A caminho............................................................................................. 89 Na via sacra........................................................................................... 91 ORÁCULO Oráculo.................................................................................................. 97 Xadrez misterioso a poesia.................................................................. 99 O poema.............................................................................................. 101 Com o fio antigo................................................................................. 103 Feito pétalas......................................................................................... 105 Inevitável............................................................................................. 107 Impertinência...................................................................................... 109 As palavras........................................................................................... 111 SINTONIA Vertigens.............................................................................................. 117 Abstração............................................................................................. 119 Vitral.................................................................................................... 123 Ouço de Cecília.................................................................................. 125 Vigília................................................................................................... 127 Lâmpadas acesas................................................................................. 129 Outonal................................................................................................ 131 Levo comigo........................................................................................ 133 Estigmas............................................................................................... 135 Ângelus................................................................................................ 137 Sintonia................................................................................................ 139


TODAS AS Fテ。ULAS



Cena Octogonal (DEK)



PUXO O FIO E TEÇO Faço tapete no deserto, (rezo) entre areia e vento, como quem se salva na fração do dia.

Quero a poesia: a flor, a essência, (a inevitável) a que cobre, vez ou outra, a multidão dos meus pecados.

19



ESSA COISA ALTIVA De uma onda erguida, (aprendi na infância) que não sabe o sofrimento e o gozo da humana espécie, não vou separada. Nem das fases da lua dos números puros dos enigmas.

21



DESDE QUE O MUNDO É MUNDO Tudo é medula, sangue: humana veste, (e tudo é alma) desde Adão e Eva e a serpente; e a Esfinge, que de repente ainda me suplica: Decifra-me. Desde que o mundo é mundo e o mar é sem fim.

23



EU SEMPRE QUIS As mãos levantando mastros caminhos, eu sempre quis. Além de levar os cântaros, tecer o linho, fazer o pão, pulsar de pura e rara existência e me casar. E de fazer poemas, que é como costurar.

25



MÍSTICA Manhã clara, perfeita. (Não se atreve a desolação) Veia aberta, ferida, incendeia-me: mantém o fogo secular e a fé como se eu tivesse de Thereza de Ávila as asas e a paixão.

27



MEDITO Enquanto o Absoluto, o amor, fia com o seu próprio fuso a manhã mais bela, tiro da memória do exato centro — da sua flor — o que ri e chora; o que sangra ou vira festa.

29



AVIDA INSISTE A vida insiste em ser eterna desde o leque das costelas. (Nasci de uma). Desde a nuvenzinha pura a se desvirar no cĂŠu, e o jeito que no quintal vou buscar folhas de couve, feliz da vida.

31



O SILÊNCIO BATE ASAS O silêncio bate asas entre os que passam nessa manhã por mim, no labor existente na casa. Como se vivêssemos (e vivemos) imersos em zonas diferentes, com a própria alma.

33



NOSSOS PARENTES Desprendo-me, saio para a vida. Os mortos têm a sua. Esse silêncio que grita nos ouvidos está cheio deles, nossos parentes, com suas luvas brancas a nos acenar elegantemente.

35



MOVIMENTO Braços e pernas me levam, me levam sem pena. Asteróides passam num risco vindo do começo da vida. Nem ao menos sossega a mínima pétala (dis)posta a voar.

37



PRAZER SECRETO Vou ao miolo decompor até o fim a flor. aberta completa esguia no meu jardim. Seu fino sangue sumo entre os dedos é suprimento, prazer secreto que carrego sem estranheza. (Feito criança).

39



O MÊS DE ABRIL O mês de abril de manhã leva-me em sua lâmina. De noite, trêmula, na seda que me é casulo, neste louco mundo, (des)cubro-me entre milhões de estrelas.

41



HERÁCLITO — Essa sua certeza altamente grega, dela tenho ciência. Sei que o mesmo rio nunca duas vezes cruzarei. Sei que o tempo leva-me sem pena, entre sonhos, lapsos, letras de que sou feita.

43



AINDA COM SONO A escada de Jacó não subo nunca, se fico à mesa descomposta do café com pose de Madona; com restos de sono e lua a vazar dos olhos, ambíguos, por sinal, feito uma pintura.

45



APENAS UM FLUXO Mais do que meus olhos, durarão os dias; os livros as pétalas entre páginas; essa sala, esse casulo do qual me solto aos poucos no ar do mundo. Apenas um fluxo, o tempo, e o brilho de uma estrela.

47



COM ESSES OLHOS

Tomara eu me encante com histรณrias de Ulisses, nos mares ainda. Mares que eu nรฃo vejo com esses olhos abertos. Com esses olhos que morro. Com esses olhos, hรก muito.

49



ALTAR Sobre a mesa o vaso chinês de fundo claro, o mais comum, tem uma fonte de verde água que eu percebo verde por causa dos musgos. Flores miúdas ponho nele. Fico serena, suspensa: um minuto.

51



TODAS AS FÁBULAS Sobre a mesa a toalha é clara, os dedos: os nós do tempo. Comemos, bebemos, e todas as fábulas já são ouvidas além do reino. Alegria pura é possível ainda.

53



QUASE REZA



Cristo Pag達o (DEK)



QUASE REZA

Ainda longe da manhã e tenho a cruz o copo de cicuta e outras fúrias na memória. Embora eu guarde as pálpebras descidas, a boca e as mãos ainda serenas para o dia.

59



PENITÊNCIA

Cruzo o deserto. Não como nem bebo. Nem assim aprendo quem sou, (quem somos) tentando não morrer. Nem assim aprendo: com a maçã e a pera e a luz da manhã por entre os dedos.

61



PROCISSテグ DO ENCONTRO O vaso branco cheio de rosas sobre a janela e a toalha clara, caテュda em pontas テゥ para quando a procissテ」o passar. Entre rezas velas incensos o doloroso encontro, depois de dois mil anos, ainda vou chorar.

63



CONFIRMAÇÃO Depois do sétimo dia, de saborear o fruto (já nascida de uma costela), eu teria dito ao Senhor: — Vou carregar pedras e tudo que o valha, para entender os desígnios e as coisas todas como as verei, e o seu avesso. Não por castigo.

65



S達o Francisco (DEK)



PETIÇÃO Santa Clara, São Francisco, peço o poema nos dedos os ossos do ofício; o fio da fábula desde o princípio. É que os dias sem luta não me servirão de nada. Nem para comer e beber à mesa.

69



CHEIA DE GRAÇA Minha mãe desdobra o morim “Ave Maria”, alvíssimo, com a face nova. Conforme penso nela, sugere-me feição de amor, transbordamento. Principalmente, longas singraduras pelo mar de dentro.

71



MAL SEI Mal sei aonde irão os passos a que praças, ensolaradas ruas, onde uma a uma — suponho — hão de tremer as copas todas as árvores. A que casa mais antiga iremos, homens e mulheres, cantar cantigas primordiais ou permanecer em silêncio? A que casa mais antiga à antiga face retornaremos?

73



REVELAÇÃO A Samaritana à beira do poço surpreendida, sou eu ainda com meus pecados. Sou eu com sede, desmedida sede. E com saudades do modo que meu coração um dia foi tocado.

75



PREFIRO PICASSO

Para chorar, prefiro Picasso com suas mulheres de decompostas faces. Porque suporto dores e tenho sete vidas; e ainda tenho atrav茅s do pr贸prio tempo, de penetrar escamas cotidianas infinitas.

77



ENTRE CINZAS De vez em quando uma verdade chega. Torço para que não se estabeleça, pois perco possibilidades insuspeitadas, infinitas. Por uma ou outra fresta, vejo talvez, porque me resta, o coração vivo de Joana D Arc, entre cinzas.

79



E AINDA CANTO Vivo o dia: o de hoje, o de sempre – admirada – de ter mudado tanto e de não ter mudado nada; de deixar fluir o canto como se numa carta; e a esperança, a quase impossível, como se fosse água.

81



INVENTO RITOS A beleza do rosto, se flutua calma, vai para a alma pelo padecimento. Não sei se creio. Mas invento ritos: desembaço vidros espelhos vejo-me na luz de cada dia e seu desenho.

83



ENTRE AS ÁRVORES BAIXAS Aproveito que o dia é calmo, aproveito que o dia é pleno como se fosse uma pausa, entre as árvores baixas nos dias antigos: a alma goza. A carne, a perecível, vem sob flechas — condenada — ante a aparição gloriosa de São Sebastião, no altar da memória.

85



FLOR MIÚDA Flor miúda, ser como ela, que se amolda à superfície por necessidade, a mais secreta; que não se ilude, apenas cumpre o círculo perfeito, por isso infinito, das pétalas. Quem me dera!

87



A CAMINHO Com as parábolas do maior de todos, batizado por João Batista, puxo véus. Ainda que outros desçam, como etapas, para tão longo curso.

89



NA VIA-SACRA Impossível eu não levar um gesto. Preferir o recolhimento. Não levar poesia: fagulhas, surpresas de estrela nova. E não levar a cruz a rosa com lágrima a face já inclinada.

91



ORテ,ULO



Transfiguração (DEK)



ORテ,ULO Tudo se resume e se dissolve a todo o momento: o prテウprio corpo, e dentro a dor que trago. Indago, insisto; deslizo no poema, no seu sistema, como se fosse um orテ。culo.



XADREZ MISTERIOSO A POESIA “As peças mudam como num sonho”, afirmava Borges, pondo o seu tabuleiro em frente. “Xadrez misterioso a poesia”. Danço com ela, movo-me para entender a vida, (nesse mover imóvel) a que vivo submetida.

99



O POEMA A invencĂ­vel rosa, a Ăşltima areia de um derradeiro rio, a indecifrĂĄvel estrela, o infinito. Sempre o poema, o mesmo, por entre os dedos, e seu tecido vivo.

101



COM O FIO ANTIGO Com o fio antigo de fazer poesia, quem me dera da Acrópole de Atenas a perfeita linha. Das pequenas coisas, das pequeninas e quase inúteis coisas perdidas é que tenho a senha. A sina.

103



FEITO PÉTALAS Frases se moldam, feito pétalas. Acomodam-se. (Quem me dera), feito os relógios moles de Dali. No poema pronto, livram-se de mim; da minha pele e osso com que invento verso e sofro.

105



INEVITÁVEL Vai o poema entre uma nuvem e outra, como se fosse um barco. Vai alto, o que antes foi dor súbita, inevitável, nas (fr)ágeis camadas do corpo e da alma.

107



IMPERTINÊNCIA Como se eu não tivesse outro papel no mundo nessa manhã nessa cidade na rua qualquer, quero as palavras, mais sentidas do que pensadas. Daí, a impertinência de tê-las ao ouvido, querendo o impossível: de Fídias, a medida rara.

109



AS PALAVRAS Vivo no labirinto das coisas pressentidas e dizĂ­veis quando os deuses me concedem concretas e palpĂĄveis as palavras. Bastam-me poucas e recĂ´nditas para um varal inteiro no tempo dos tambores e martelos das dores e alegrias.

111



SINTONIA



Flores no jarro (DEK)



VERTIGENS Existo entre húmus, talos e pétalas, antes mesmo que as janelas se encham de azul. Com esforço, fúrias, vertigens, rente à força absoluta, bebo luz e vida feito os insetos, de flor em flor.



ABSTRAÇÃO Sigo andando até perder de vista a própria vida. (E a vida alheia). Sigo o tempo, rios, areias. Presente, a mística flor de cada dia. Intacta, a (in)visível, efêmera, fresca alegria.

119



Circo-solitรกrio (DEK)



VITRAL Além das copas das árvores o céu se abre o mais possível. Se abre em arco por onde passo estremecida, como quem aprende longamente com a vida.

123



OUÇO DE CECÍLIA Ouço de Cecília no seu infinito a verdade acabada: “A vida só é possível reinventada...” na exímia curva da palavra; no riso e no choro; no reino de verdes sentimentos; no sonho.

125



VIGÍLIA Sem sono nenhuma pálpebra abaixo. Batimento líquido de águas à luz de lâmpadas chegam-me através do vidro. Pulsam-me as veias no mesmo ritmo até que o dia se ponha alto.

127



LÂMPADAS ACESAS Os passos acostumados, de repente, me precedem pela casa. Liberto-me do peso que se chama tempo. Lembro-me de pai e mãe: lâmpadas acesas no porto imaginário.

129



OUTONAL O vento tira das folhagens uma sonata enquanto cada folha é uma lâmpada que acende no jardim. Saberei mais tarde o que será o outonal silêncio: (e o que será de mim) um réquiem, com certeza, porque o vento não brinca apenas.

131



LEVO COMIGO A ideia que faço do mundo levo comigo com o vestido que uso assuntos que ouço dias que rimo. Ilusões, incertezas, sobre a mesa pousam. Nunca o mundo sonhado, que canto como posso, como um padre-nosso.

133



ESTIGMAS No meu rosto, em ponto de cruz, fica a rosa da fronha. Fica a seda. E o tempo cortado ao meio de quem sonha. E o selo de uma tristeza: O Cristo morto da minha inf창ncia.

135



ÂNGELUS Imóvel, rente ao vidro, presa do instante em que escrevo, vejo lá fora as casas com suas cercas vivas; nítidas, concretas, em hora leve como essa.

137



SINTONIA As libélulas passam rasantes sobre poças: uma festa. “Deus é amor”, atesta João. Sequer os musgos silenciam, sequer os homens, (a dor interna cresce, a alegria, o estarrecimento, porque vivemos) frementes e ruidosos, peregrinos.

139


Em apoio à sustentabilidade, à preservação ambiental, Pronto Editora Gráfica/ Kelps, declara que este livro foi impresso com papel produzido de floresta cultivada em áreas não degradadas e que é inteiramente reciclável.

Este livro foi impresso na oficina da Pronto Editora Gráfica/ Kelps, no papel: Off Set 75 g, composto nas fontes Cambria corpo 16; março, 2015 A revisão final desta obra é de responsabilidade da autora


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.