Semana Santa
Jozias Benedicto versão 02 23/Setembro/2014 ŠJozias Benedicto
Introdução
Grupo de pessoas vai passar feriados em uma ampla casa em uma praia. Lá, conversam, trocam confidências, discutem, há um almoço no domingo de Páscoa. Até que, na hora de retornar às suas vidas, percebem que não conseguem mais sair. Como no filme O Anjo Exterminador, de Buñuel, não há aparentemente nada físico, objetivo, que impeça os personagens de saírem da casa; tem-se a sensação que o impedimento, a impotência em acabar a situação está dentro deles mesmos. A ação se passa dentro da casa (bonita, espaçosa, bem decorada, isolada de outras construções e com vista para o mar e rochas), sendo bem caracterizado no cenário um “portal” invisível (como no filme do Buñuel) que os personagens não conseguem ultrapassar. Em um mezanino ou sala mais elevada, o estúdio de “deus”, o dono da casa, um escritor surdo que tudo vê e tudo acompanha. Ele tem um "piano" (um notebook com um aplicativo de teclado) - que é tocado sem som; o mesmo notebook no qual escreve seus textos, de tal forma que as duas atividades se misturam. No mezanino há também uma parede cheia de fotografias antigas de pessoas desconhecidas (não são os atores), porta-retratos, álbuns de fotos, um porta-retratos digital... como um gigantesco arquivo de imagens de pessoas que passaram ou passarão pela casa e pela imaginação de "deus". Além dos monólogos/diálogos dos personagens, são gravadas cenas a serem utilizadas em inserts. Uma cena que se repete com diversos personagens: grupo que conversa e se encaminha para sair da casa, chegando ao “portal” empaca, olha para o alto, e retorna, cada ator em seu tempo. Personagens que dedilham o piano (sem som). Personagens que folheiam álbuns de fotos, veem porta-retratos. Uma pequena caixa (uma referência à caixinha com medicamentos - morfina? - do Anjo Exterminador mas também a outro filme de Buñuel, o Belle de Jour) que um personagem mostra a outro, depois um terceiro mostra a um grupo de personagens, e assim sucessivamente, mas cujo conteúdo o espectador nunca verá. Durante toda a ação os personagens conversam e brindam com taças de champagne ou vinho, comidas são servidas ou estão à disposição (destaque para uma grande fruteira cheia de maçãs), mas efetivamente nunca é mostrado ninguém bebendo ou comendo nada. Outras partes importantes do cenário: mesa de jogos (4 lugares); copa/cozinha, com mesa para 4 lugares; canto com sofá, poltronas e mesa/aparador com cesta de maçãs. Dois personagens são citados e tem aparições mas não tem falas: "O menino ruivo" e "O homem do helicóptero" (que é marido da personagem Isabel). As imagens destes personagens podem ser gravadas separadamente e integradas às demais imagens na edição.
Personagens: Texto A voz do dono
Personagem “deus”
As cores
Tatiana, uma convidada
Pequeno concerto
Daniel_R, um convidado
Vigiada
Isabel, uma convidada
O menino ruivo
Chico, um convidado
A mãe de deus
Bete, a dona da casa
Um jogo
Guilherme, um convidado
O olhar
Fotografia
Lucia, uma convidada (mulher de Francisco) Francisco, um convidado (marido de Lucia) Ester, uma convidada
Selvagem
Edu, um convidado
A vingança
Lucélia, uma convidada
O malabarista
Daniel_I, um convidado
O Espelho
Simone, uma convidada. Garota de programa. Elisa, o "anjo", faz as tarefas da casa e grande parte da ligação entre os convidados e também entre eles e "deus" "O homem do helicóptero" olhos azuis "O menino ruivo" cerca de 9-10 anos, muito branco, ruivo
O cheiro de sangue
A revolta dos anjos
(Personagem sem falas) (Personagem sem falas)
Sugestão ator/atriz
Prólogo
Cenas iniciais: "Deus" em seu computador, começa a digitar em uma página em branco de um Word o início deste texto: "Semana Santa"... "Prólog-", interrompe, fazendo entrar na tela do notebook o aplicativo do piano e começa então a tocar seu "piano", sem som. Visão de cima do mezanino para a sala, vazia. Cenas curtas da chegada dos convidados, em grupos, entram, com valises, mochilas, cumprimentam quem já está na sala, saem de cena para deixar as bagagens, voltam à sala. Bete e Elisa, que já estão na casa, recebem os grupos: Daniel_R e Ester são recebidos por Bete; Tatiana e Daniel_I são recebidos por Elisa; Chico, Guilherme e Edu são recebidos por Bete e Elisa; Francisco e Lucia são recebidos por Elisa; Isabel e "o homem do helicóptero" são recebidos por Bete; Simone e Lucélia são recebidos por Bete. A transição entre as imagens destas pequenas cenas é por fusão, o que dá a sensação de que a sala se enche como que por mágica, e se ouve, ao longe (como se percebido por "deus" em sua surdez) o rumor de conversas, que aumenta à medida que os convidados chegam. Um corte abrupto na imagem, e a sala está de novo vazia, mas agora se ouve o som do piano mudo de "deus" (Beethoven) enquanto os letreiros se sobrepõem à imagem.
Cena 1 - A voz do dono "Deus"
Corte na imagem, e a sala está de novo cheia dos convidados que conversam, circulam. A câmera desce para a sala, entre os convidados, circula entre os grupos, mostra os rostos dos personagens, enquanto isso "deus" fala, em off: "Deus": Eles começaram a chegar na 6a.feira de manhã. Semana Santa. Vieram de carro, de lancha. De helicóptero. Deve ter feito muito barulho, ainda bem que eu sou surdo.
E estão aqui até agora. Sexta-feira Santa, Sábado de Aleluia, Domingo de Páscoa, segunda, terça, quarta, uma semana, perdi a conta dos dias; falam e falam e dormem e acordam e falam e se preparam para ir embora - mas nunca vão. E eu escrevendo, escrevendo, olhando tudo, escrevendo, tomando conta de tudo. Agora a câmera já saiu da sala e focaliza em "deus", no mezanino, tocando seu piano. Ele fala inicialmente para si mesmo, mas logo chegam Bete e Elisa, uma após a outra, ficam por perto, silenciosamente, e ele passa a se dirigir a elas, enquanto Bete arruma as fotos e Elisa serve bebidas e recolhe taças usadas para retorná-las à cozinha. Eu vejo tudo, eu sei de tudo o que se passa nesta casa e sei que eles não conseguem sair daqui. Eles não vão embora. Não vão embora nunca, nunca mais. (dedilha algo no piano, sem som) Nun-ca-mais-nun-ca-mais-nunca-mais Parece que me chamam de "deus", no alto, eu, distante e vendo tudo e sem interferir. E surdo. Eles não sabem que eu sei que me chamam de "deus", mas eu sei. Só que eu sei de tudo, ou quase tudo, mas não posso tudo. Se pudesse, eu fazia eles irem embora, maldito o dia que resolvi chamar para virem para uns dias na praia, aproveitar o feriado. Alguma coisa aconteceu dentro deles, alguma coisa se quebrou, e agora estão todos aqui, presos, sem saída. Se eles são todos meus amigos? São. Não. Uns sim, uns não. Mas fui eu que convidei, eu é que escolho quem vem, eu é que tenho meus critérios pra selecionar quem eu vou chamar, eles tentam entender por que foram chamados mas não entendem. Chamei todos eles, uns não sabendo dos outros, pedi pra confirmarem para outro e-mail, pra pensarem que tem alguém me ajudando a organizar. Deus não precisa de ajudantes. Eles responderam e foram chegando, agradecidos pelo convite, surpresos de terem sido lembrados, surpresos de encontrarem outros conhecidos ou desconhecidos, mas alegres com a novidade, já brindando com uma taça e eu tocando o piano daqui mesmo do alto, eles subiam até mim e me agradeciam o convite, eles não tinham a menor ideia do que ia acontecer. No domingo um almoço de Páscoa, eles gostaram e me agradeceram muito e iam voltar para suas casas, achavam que iam voltar, o tal cara do helicóptero ligou para o piloto e ia dar carona para alguns, o helicóptero é grande, mas aí aconteceu, eles não sabem porque. Eles não conseguem mais sair da casa, o helicóptero não veio nem as lanchas nem os motoristas nem nada. Lá fora não se vê ninguém, nem os barcos dos pescadores, nem as bicicletas, nem as gaivotas. Tudo cinza, e vazio. Aí eles começaram a me olhar de lado, a resmungar. A me odiar, a ter medo de mim.
Eles acham que a culpa é minha. De "deus". E pode ser. (ri) Bem pode ser. (ri, de novo) Não sei. Eu devia saber. Afinal, eu sei de tudo. Ou não sei? Silêncio. Algumas pessoas sobem para o mezanino, as que vão participar da cena 3 (Daniel_R, Ester, Isabel, Simone), Elisa (com bandeja) e Bete descem, enquanto a câmera também desce para a sala. Imagens cortadas, com fusão entre elas.
Cena 2 - As cores Tatiana, Daniel_I, Bete, Elisa e Edu
A câmera passeia entre os convidados. Ouve-se um grito, curto, de mulher. A câmara vai até um canto da sala, próximo à janela e à mesa onde há uma cesta de maçãs, onde estão Tatiana e Daniel_I. Bete e Elisa acodem, Tatiana está fora de si, Daniel_I a abraça: Daniel_I Tatiana, querida, se acalma, por favor! Bete, Elisa Você precisa de alguma coisa? vou buscar um copo de água com açúcar! sente aqui no sofá, relaxe, fica calma, está tudo bem... (etc.) Bete e Elisa vão à cozinha, trazem água, Daniel_I abraça Tatiana, todos cuidam dela, que começa a falar, de pé, olhando a janela, fala para os três mas principalmente para si mesma: Tatiana Agora eu olho pela janela e está tudo cinza. Pesado. Chumbo. Cheiro de maresia, de azedo, da morte silenciosa que começa a tomar conta de tudo. A câmera sai pela janela e mostra, em flash-back, carros em uma estrada, sol brilhante, céu azul, a linda paisagem do caminho para a Costa Verde, enquanto Tatiana continua em off: O mar que estava cor de esmeralda quando viemos pela estrada, os morros verdes e úmidos de vegetação, o céu azul brilhante, os bougainvilles explodindo em tantas
cores, os carros coloridos e ruidosos com pessoas alegres pelo feriado com sol... para onde foram aquelas cores todas? aquela vida toda, aquela alegria? A câmera volta do flash-back, passa pelas maçãs e foca em Tatiana, que continua falando: Você me conhece pouco, Daniel. Tem coisas que eu nunca te contei. Nunca. E nunca ia contar, nós somos tão felizes, nossos filhos, nossa casa, tudo... Mas aí viemos para este fim de semana aqui, você falou que é importante pra você, contatos, tudo bem, eu gostei. "Deus" recebe bem. Mas eu quero ir embora, eu tenho que ir embora. Meus filhos, nossos filhos, nos esperam. E não consigo ir embora. Cadê as cores? aqui tudo cinza, uma ratoeira. Daniel_I Tatiana... Tatiana Daniel, não diz mais nada. Tem coisas sobre mim que você não sabe, eu nunca te contei, eu nunca ia te contar. O vermelho. As maçãs. Você já me conheceu mulher feita, mas não foi fácil. Não foi. O que aconteceu comigo quando eu era uma menina. Só uma menina. A câmera foca nas maçãs enquanto Tatiana continua, depois volta a enquadrá-la, que fala como se em transe. Edu entra em cena silenciosamente, pega uma maçã e a examina bem devagar, devolve-a à fruteira, vai até perto de Elisa, troca de olhares entre os dois. Tatiana E aqui, nesta casa de onde não conseguimos sair, eu me lembro de tudo, tão forte, de uma casa de onde eu sai, uma casa que eu queria esquecer, que eu achei tinha esquecido. Eu, uma menina. E ele. Ele que leu para mim, mais uma vez, outra daquelas histórias sem sentido, como já havia lido para mim milhares de vezes. Milhares. Era uma vez. No tempo em que os animais falavam. Um bosque fechado, a menina que se veste de vermelho e leva doces para a avó. A maçã vermelha envenenada. Milhares de histórias que ele leu para mim, desde que eu era uma criança, desde que minha mãe morreu ou ele a matou. E já sei o que vinha depois da história, quando eu adormeço ou finjo, e ele finge que está vendo se eu estou vermelha com febre, quando ele coloca aquela mão suada no meu pescoço, no meu corpo; eu, com febre? Milhares de vezes "era uma vez", ele nem notou que agora os animais não falam e não sou mais uma criança, eu agora sei o que é tudo isso, sei o que me espera quando ele tenta medir minha temperatura, a
temperatura do meu corpo, sem um termômetro, só com a mão suada e pesada, eu sei o que é isso. E não quero. Quero acabar. Com tudo. Daniel_I Tatiana, para, por favor... isso não é verdade, isso não aconteceu, você... Em transe, Tatiana não escuta as objeções de Daniel_I, pega uma maçã que segura, aperta como a um amuleto e continua: Tatiana Uma maçã. Vermelha. Só que envenenada. No meio da história da Bela Adormecida eu adormeço, como sempre. Ou então eu finjo que adormeço. Não sei. Ele está em cima de mim e eu rezo pra aguentar, como das outras vezes. Pra depois ele dormir roncando feito um lobo. Como das outras vezes. Daniel_I (fracamente) Tatiana... Tatiana Como eu sei que desta vez ele não vai acordar, por causa do remédio que eu coloquei na cerveja dele, a maçã envenenada, eu fiz como planejei. Minha mochila já estava pronta, peguei o dinheiro e os cartões na carteira dele e fui embora. Pra sempre. Nunca mais soube de nada, nem quis, só quis esquecer, e hoje estou te contendo, contando pra você, porque não estou mais aguentando ficar aqui nesta casa, me sinto presa como ele me prendia, eu quero voltar pros meus filhos, pra minha vida, pra nossa vida. Daniel_I (fracamente) querida... Tatiana (forte, de um jato, para se livrar daquela lembrança) Eu era quase uma menina mas fiz tudo como planejei. Peguei o dinheiro dele. Mas antes de eu ir embora, antes de jogar querosene e deixar a casa queimando, antes de eu ir embora pra sempre e tentar esquecer, usei a faca nova, vermelha, para cortar a barriga dele. E ver se encontrava dentro da barriga dele: a minha mãe. Tatiana joga a maçã no chão, com força. Daniel_I abraça e ampara Tatiana, que chora. Bete ainda quer ajudar mas opta por deixar que Daniel_I cuide de Tatiana, se levanta e vai até a cesta de maçãs, arrumando as já tão arrumadas maçãs. Chico, que estava fora de cena, observa-a ao longe, vem até Bete, conversam, na verdade ele mais fala e ela ouve atônita, mas não ouvimos o que dizem. Elisa recolhe a maçã do
chão e sai, pela casa, arrumando uma outra coisa fora de ordem, seguida pela câmera e por Edu; o som do choro de Tatiana vai ficando ao fundo cada vez mais longe; imagens intercaladas com closes no piano tocado por "deus". Elisa traz bebida em uma bandeja para um grupo no mezanino que cerca "deus" em seu concerto mudo.
Cena 3 - Pequeno concerto Daniel_R, Elisa, "deus", Edu, Ester, Simone e Isabel
"Deus" toca seu concerto mudo. Elisa traz bebidas para o grupo, seguida silenciosamente por Edu. Um brinde (mas ninguém bebe, como sempre). Daniel_R pega Ester pela mão e a traz para um lugar a parte, quer conversar com ela. Daniel_R Porra, Ester, quando ele começou a tocar compulsivamente este piano sem som, lembrei do meu filho. Sim. Músico, lembra? Deixei ele com a mãe na minha cidadezinha e fui pra capital tentar a vida, nunca mais voltei, você sabe, nunca mais vi meu filho, até que um dia ele me mandou uma mensagem me convidando para um concerto, na capital, ele em uma orquestra... Fusão com as imagens de um flash-back enquanto ele fala em off. Uma sala de concertos importante em São Paulo, Daniel_R, com cara de quem passou a noite na farra, entra no teatro, procura seu lugar, idosos e idosas conversando alto, ele está cansado e com sono mas ainda tenta mandar uma mensagem pelo celular: Daniel_R (em off) Onze horas da manhã de domingo é foda, melhor seria se fosse às sete que eu vinha direto da noitada. Mas era importante, a primeira vez que meu filho se apresenta em um lugar tão imponente assim. Falei com ele por telefone: Porra, logo música? faz direito ou economia que dá dinheiro, concurso público, falei, a gente sempre se falava por telefone, você sabe. Ester (em off) Eu sei. Daniel_R
Mas ele não quis me ouvir, vai fazer igual a mim que fiz letras e só me ferrei, arte no Brasil uma merda, achei que ia ser escritor, vim para uma cidade grande procurando oportunidades e nada, só os frilas. Falei para ele não fazer música, não dava dinheiro, mas o pior foi quando ele resolveu se especializar em percussão. Percussão erudita, grandes merdas. Ficam na ultima fila, os putos, enquanto nas filas da frente as moças com seu violinos, o piano, o maestro, os sopranos... tudo isso ele podia fazer, eu falei pra ele. Eu disse: então estude violino, já viu quantos violinos em uma orquestra? violoncelo, flautas. Harpa e piano nem pensar, sempre uma só por orquestra, a competição é demais, e harpa não é coisa de homem. Acho que ele riu, no telefone, e disse que percussão é coisa de homem, não entendi, será que ele está querendo disfarçar alguma coisa? Quis mandar um torpedo pra ele, dizer que já estava no teatro, esperando... mas, merda! eu tava sem crédito nenhum no celular! A imagem sai do flash-back e foca em Daniel_R contando sua história para Ester: Ester E como foi então o concerto? Daniel_R Daniel_R continua sua narrativa para Ester, desta vez se sobrepõem às imagens dos dois atores as cenas de um concerto - inicialmente panorâmicas, depois fechando no maestro, nos violinos e finalmente na percussão, no toque do filho de Daniel_R no triângulo (com som para o espectador). Daniel_R (diminuindo o tom de voz e o ritmo, pois ao final adormece) Tudo isso eu lembrava, ansioso por ver meu filho, então começa o concerto, abre a cortina, palmas para o maestro, para o solista, concerto popular é foda, batem palmas até para o contrarregra. Palmas para todo o mundo, só não batem palmas quando entram os quatro da ultima fila, os percussionistas, eu sabia que um deles era ele, o meu filho, mas qual? tive que colocar os óculos, merda, e aí identifiquei, ele cresceu, mas a cara é igual, aquele mesmo rosto bonito de quando era um bebê, agora uma cara de homem, parece comigo quando eu servia o exército, e de óculos, parece nervoso, porra, não vá me fazer uma merda e entrar com o bumbo na hora errada! E aí começam a tocar mas eu não prestava atenção em nada, uma linda sinfonia, eu sei, das melhores, mas eu só olhava pra ele, pra meu filho, lembrando dele engatinhando, começando a andar, gostava quando eu levava ele nos meus ombros, devia se sentir alto, maior que o mundo, uma criança, eu lembrava e olhava pra ele no palco e a orquestra tocando e ele esperando a hora de entrar em cena e eu pensava preocupado mas como ele ficou magrinho, deve ser muita punheta, será que ele já tem namorada? na idade dele eu já era pai -
(a imagem do toque no triângulo, com o som do "plim") Daniel_R Susto, palmas, porra, caralho, Ester, minha amiga, você não acredita! eu dormi justo na parte que era chata, o passeio dos enamorados no bosque da primavera foi o que antes de começar o boiola do maestro explicou, caralho! dormi e perdi o final, a hora em que meu filho deve ter dado um show tocando aquele triangulo de ferro! Sou um inútil, mas, pensei, tenho que disfarçar, levantar rápido e bater palmas também e pedir bis pois estão gritando por bis. Nunca vou dizer para ele que dormi justo na hora do final, o pior é se ele me perguntar detalhes, mas eu só vou dizer que ele estava o máximo, e devia estar com certeza, é meu filho e então vejo que ele está agradecendo, sorrindo, os aplausos que são para ele, claro que para o resto da orquestra também mas principalmente para ele, os meus aplausos e pedidos de bis, muitos aplausos, aplausos! Ester continua ouvindo, mas não tão atenta, está atraída pela parede de fotografias. Isabel se aproxima, seguida por Simone. Elisa e Edu já não estão mais do mezanino, saíram sem que sua ausência fosse notada. Às imagens de Daniel_R contando para as três mulheres se sobrepõem flashes rápidos de uma orquestra, de um rapaz tocando percussão até a metade do monólogo, quando a câmera foca no rosto de Daniel_R. Daniel_R Acho que ele agora olha para cá, para mim, será que me localizou? é possível, as luzes da plateia estão acessas, dou um adeuzinho, um só, não quero chamar a atenção, não quero atrapalhar, nem deixar meu filho constrangido, ele está vivendo um grande momento dele, e não é o último não, sei que isso é só o começo, ele vai ter o sucesso que eu não tive, eu sei, as chances que eu não aproveitei, ele vai sim, meu filho! E deve ser o mofo deste teatro velho que está me enchendo de alergias, não só estou tossindo estou fungando, e lacrimejando, já sei o que faço, me levanto discretamente, saio do teatro, não quero que achem que eu estava chorando, de jeito nenhum, vou dar uma carga no celular com o dinheiro das cervejas e mando um torpedo para ele, simples: “Vi tudo, gostei, parabéns!” Ester, Simone e Isabel em silêncio. Ester segura fraternalmente a mão de Daniel_R, depois se afasta e vai até a coleção de fotos, folheia álbuns, e continua ouvindo de longe. Daniel_R Então eu dou um tempo, um tempinho só, pra orquestra terminar e entrar no ônibus que levou meu filho de volta a cidadezinha dele.
E aí eu ligo para ele, só para dizer que eu vi tudo e que estou muito orgulhoso dele, porra. Silêncio. Daniel_R se recompõe, olha para Ester, para Simone e para Isabel. Seu olhar se detém em Isabel, vai até ela. Voltam a se intercalar com a cena as imagens de "deus" tocando seu piano mudo. Daniel_R (em tom baixo) É você? Isabel faz um discreto sinal afirmativo com a cabeça. Daniel_R pergunta de novo, com um tom mais alto. Para evitar a deflagração do escândalo que abomina, Isabel sussurra, "sim sou eu. Mas me esquece. Estou aqui com meu marido". Daniel_R vai para perto de "deus" e de Ester, e Isabel sai apressadamente, desce as escadas, seguida de perto por Simone.
Cena 4 - Vigiada Isabel, Simone, Elisa, Daniel_I, Tatiana, Guilherme
Isabel, nervosa, seguida por Simone, vai até o "portal", tentam sair mas não conseguem, voltam e ficam próximo do local onde Daniel_I e Tatiana ainda estão. Simone (tenta ajudar Isabel, carinhosa) Está tudo bem com você? Isabel (ríspida) Sim, está. Está tudo ótimo comigo, como sempre esteve. Viemos no helicóptero (aponta para a janela, mas não se vê nada fora, só nuvens cinzentas) Não sei onde está meu marido agora, deve estar atrás de alguma mulherzinha. Elisa chega com uma caixa, mostra para cada um deles, eles olham muito interessados, ninguém sabe o que contém a caixa, ninguém tira nada de lá, Elisa sai de cena, Isabel inicia falando para Simone, Daniel_I e Tatiana; mas ao ser ríspida com Simone esta se afasta; e aos poucos Tatiana se desinteressa e segue até a mesa de jogos onde Guilherme está jogando paciência, a câmera a segue enquanto a história de Isabel é contada em off, close nas cartas de baralho, volta a imagem para
Isabel e sua história, agora em close. Quase ao final da história, Simone não resiste e retorna para perto de Isabel. Isabel Eu vim pelos ares. De cima. (olha com frieza para Simone) Não sei porque você anda o tempo todo atrás de mim. Simone (embaraçada) Eu só quis ajudar... Isabel Não, você não tira os olhos de mim desde que me viu saltar daquele helicóptero com meu marido do lado, você me segue o tempo todo, e eu não te conheço, ou deveria te conhecer? Eu sou uma mulher muito ocupada. (Simone vai murchando e sai lentamente de cena) Como não conheço aquele sujeito, ali em cima, aquele que estava contando a história de um filho que é músico, nem prestei atenção direito, mas ele me confundiu com alguém, alguma amiguinha dele, não sou eu, claro, (ela mente) mas imagina se alguma destas histórias chega no ouvido do meu marido, aliás daqui a pouco vou procurar meu marido. (percebe o interesse de Daniel_I pela conversa e se volta para ele) Muito desagradável esta nossa situação, o senhor não acha? Aqui, sem podermos sair, eu já estou repetindo roupa, me preparei para dois ou três dias só, o que eu já acho demais, mas assim mesmo, meu marido insistiu pra virmos, eu preferia ir pra Cancun nos feriados mas ele insistiu, aí eu pensei, tudo bem, passa rápido, respondi pro meu marido que tudo bem e aproveitei, falei do limite do meu cartão que estava estourado e ele nem pestanejou, só disse OK. Ele é assim, de poucas palavras. Poucas e eficazes. O senhor conhece meu marido? Daniel_I Não, não conheço. Pode me chamar de você. O nome é Daniel. Isabel Muito prazer, Isabel. Nossos nomes rimam, formam uma poesia (ri) O senhor... você... é casado com aquela linda jovem que estava aqui a pouco? Daniel_I Sim, a Tatiana, temos dois filhinhos, ficaram com a mãe dela. Isabel E vocês não estão com saudades deles? (Daniel_I assente com a cabeça) Ah, eu pensei que só eu que estivesse com saudade de minha casa, de meus filhos, que bom saber que tem mais gente família nesta pocilga. Não, é uma casa até bonita, limpa, mas manter a gente assim, presos, sem poder voltar pra nossas casas... terrível... até
como brincadeira já perdeu a graça, o senhor... você não acha? Daniel_I Já tentamos várias vezes. Sair. Isabel Nós também. Meu marido conseguiu avisar o piloto do helicóptero, acho até que ele veio, a gente ia dar carona de volta para algumas pessoas, o helicóptero é grande, mas parece que não chegou. Ou então caiu, helicópteros caem muito nessa região. Depois não se acha mais nenhum vestígio. (Pausa) E essa moça, que não para de olhar para mim, de me seguir para toda parte? Você conhece? (Daniel_I apenas faz que "não" com a cabeça) E o escritor, o dono da casa? Você já conhecia? Daniel_I Não. Pessoalmente ainda não. Isabel Ele era amigo de meu marido, os pais deles eram amigos, muito amigos, eles vinham passar férias aqui nesta casa, até que teve um acidente ou algo assim, não sei bem. Mas meu marido não é surdo, pelo contrário, escuta bem até demais. Engraçado, chamam o escritor de "deus". Já era um escritor famoso logo no primeiro livro, muito jovem ainda e já escrevendo desde criança, ele dizia, não sei se verdade. (até então razoavelmente tranquila, no decorrer desta fala Isabel está se exaltando, depois saberemos que é a falta dos remédios) Eu nunca li, muito estranho, o livro e ele. Estranhos. Isso tem muito tempo, e o escritor continua marcando passo, surdo como uma porta surda, e escrevendo livros estranhos que ninguém lê. Mas são amigos, e meu marido não suporta se eu falar mal dele, por isso estou aqui, estamos aqui, e não conseguimos sair. Já falei pro meu marido mais de mil vezes, vamos embora? Por que não vamos embora? Ele diz "vamos sim, agora", mas não saímos. Ninguém sai. Não tem mais TV, o celular não pega, e lá fora é tudo escuro. Faço e refaço minhas malas, pra matar o tempo, algum dia isso tudo vai se resolver e posso voltar pra casa e pra minha vida normal, acho que mereço, você não acha? (Daniel_I assente com a cabeça) O pior de tudo é ficar sem meus remédios. Isso pra mim é o pior, meu remédio acabou e faz falta. Faz falta. O senhor toma remédios? Remédios controlados? Você. Eu tomo. Eu preciso. (pausa) O remédio acabou, era pra durar muito, eu devo ter exagerado na dose. (pausa) Eu sempre fui muito feliz, sempre, desde criança, linda, rica e feliz, depois que casei então fui muito mais feliz ainda, acho que isso atraiu a inveja, a inveja das pessoas. Eu, meu marido ainda mais rico e nosso filhos, crianças lindas e saudáveis e inteligentes, uma casa de sonhos, tudo o que eu queria meu marido me dava. Mas foi a inveja, comecei a achar que meu marido me traía. Com a secretária, claro. Mas não
só com ela. Com muitas outras. Telefonemas fora de hora, reuniões até muito tarde, muitas viagens de negócio, comentários de amigas, de falsas amigas. (pega uma maçã, gira a maçã nas mãos, olha para ela como quem vê um oráculo, fala mais para si mesma do que para o interlocutor) Depois disso foi tudo muito rápido, muito rápido. O inferno. Você sabe o que é o inferno? Eu sei. Não é muito diferente do que estamos passando aqui, presos nesta casa, só que é muito pior. Muito pior. (olha em torno) Ninguém percebe isso, o que é viver no inferno, e eu sei, eu vivia no inferno, os telefonemas, as viagens de meu marido, os comentários, os remédios. Eu não queria morrer, eu queria apenas ser de novo feliz, linda, criança. Eu não queria errar a dose. Eu não queria que meu marido sofresse. Não queria mais sofrer. Não. Depois disso tudo, novos remédios, novos médicos, novas empregadas, novas viagens de meu marido. Depois disso passei a ser vigiada o tempo todo, esconderam as tesouras da casa. O tempo todo vigiada, acho que esta mulher (olha para Simone) que fica aqui o tempo todo me olhando e me seguindo é uma delas, das que não desgrudam de mim um só momento. Esconderam meu remédio. E não me deixam mais sair daqui. Pois eu errei na dose de novo. Eu não sou boa com números. E pronto, o inferno, o senhor... você não acha? (pausa) Mas eu sei o que eu faço. Quando o helicóptero enfim vier. Quando a gente conseguir sair da casa. De lá de cima. Como eu faço e fiz mil vezes em sonhos. Rápido, eu sei o que fazer, que botão apertar, rápido, enquanto o piloto está distraído. Helicópteros caem muito nesta região, afinal. Close no rosto de Isabel, corte no rosto enlevado de Simone ao ouvir Isabel; corte em close nas maçãs, corte em close do baralho
Cena 5 - O menino ruivo Chico, Guilherme, Daniel_I, Tatiana, Lucélia, Bete
Do close no baralho a câmera recua para voltar a mostrar Guilherme jogando paciência, ainda observado por Tatiana. Chega Daniel_I, que abraça protetoramente a mulher. Chega Chico, senta na mesa de frente para Guilherme; ele obviamente está ansioso para conversar com o rapaz que joga, mas espera até ficarem a sós. Quando o casal se desinteressa e sai de cena, Chico começa a falar; Guilherme ouve interessado sem interromper seu jogo. Eles estão focados na narração, e não percebem que Lucélia, que passava pela sala aparentemente sem destino, ouve a conversa, se interessa e fica perto, disfarçando mas prestando atenção ao que Chico conta:
Chico Cara, preciso falar com você! Guilherme Tou ouvindo, fala! Chico Não sei se você prestou atenção na mulher que abriu a porta pra gente. Guilherme Claro que sim, uma garota linda, uma gata! Chico Não, a outra, a mulher. Eu olhei na cara dela quando cheguei, quando ela abriu a porta, e de repente caiu a ficha. Me lembrei. E fiquei cercando até conseguir falar com ela. Na verdade ninguém sabe direito se ela é a mulher do escritor ou a mãe do escritor, ela às vezes parece muito velha e outras vezes parece muito nova. Pode ser estas plásticas, mulher fica tudo sem idade. Mas eu nunca soube que o escritor era casado, que tinha mulher. Sempre achei que ele era gay, parece que ele tem um filho, dizem que é filho dele, mas pode ser gay e ter filho, mesmo a mulher sendo virgem, pode sim, claro, hoje em dia estas clinicas de reprodução fazem milagres. A mulher é meio pirada, parece, mas acho que ela sempre foi assim, eu acho que me lembro dela, de muito tempo atrás, ela era bonita, continua bonita, mas estranha, eu fiz uma pergunta e ela começou a falar falar Guilherme Conta logo, cara! Chico A mulher começou a falar e falou da casa, desta casa, de como ela tinha construído e pensado nos mínimos detalhes, de como a praia deles tem uma areia boa, fina, rosada, o que não é comum na região de praias de areia grossa ou cascalho, eu só ouvindo e acho que só eu estava com medo. Aí ela disse que era uma maravilha que tudo isso tinha acontecido em tão pouco tempo, em menos de quinze anos, e tão rápido, um dia uma praia deserta, no dia seguinte uma casa linda, mas eu não acreditava em nada do que ela dizia, como que esta casa era tão recente? Eu sou colega do escritor desde o colégio e já tinha vindo a esta casa, aí eu falei isso e disse que tinha vindo quando criança, com o escritor e com o menino ruivo, se ela lembrava do menino ruivo, se alguém lembrava, eu falei uma criança um menino da nossa idade um adolescente muito branco e magro e sardento e
cabelo cor de fogo que morreu aqui nesta praia nas pedras. Ninguém lembrava do menino ruivo, nem ela; o escritor não falava nada, não dizia nada. Eu falei mais sobre o colégio, de como meus pais eram amigos dela, se é que ela fosse mesmo a mãe do escritor, e do pai do escritor e como eu era amigo do escritor, verdadeiros amigos de infância inseparáveis e como o outro casal amigo dela e do marido, estrangeiros, acho que sócios, vieram também e trouxeram o filho, o ruivo, que era de nossa classe mas que ninguém gostava. Isso se ela fosse a mãe do escritor como eu pensava e não a mulher do escritor, que idade? Ela de repente parecia muito velha mas a voz era de uma garota, ou era o contrario? É a primeira vez em que é citado "o menino ruivo", a partir desta citação ele começa a aparecer em cena, como se estivesse em "outra dimensão": circula aleatoriamente por todos os cenários sem interferir na ação, como se não visse ninguém ou não estivesse sendo visto por ninguém. Sempre em movimento, se equilibra em móveis como em uma corda bamba, dá saltos-estrela, e aparece nos flash-backs da narrativa de Daniel_I, "O malabarista", usando maçãs como malabares. O parágrafo seguinte é dito em off com cenas das pessoas tentando atravessar o portal, das nuvens escuras, de helicópteros, das pessoas na sala sem olharem umas para as outras, sem expressão no rosto, close do rosto de Bete, do mar revolto etc. Os outros convidados não falavam nada, iam até a porta e voltavam, olhavam as nuvens cada vez mais carregadas, aqui chove muito, chuva ácida, tormentas, temporais radioativos; às vezes, quase sempre, cai um helicóptero e depois não se acha mais nenhum vestígio, olhavam pra mim e pra mulher que falava sobre a casa e olhavam para o céu tentando ver um helicóptero que não vinha e que ia resgatar todos nós daquela casa de onde ninguém conseguia sair, pra depois quem sabe mergulhar pra sempre no fundo do mar. Aí ela falou que lembrava vagamente do caso do ruivo, "não foi aquele menino estrangeiro que foi encontrado morto na praia?" (Chico pode imitar o tom de voz de Bete, desde que não fique caricato). Ela me encarou com aquele rosto lisinho como o da Virgem Maria e disse pausadamente “e como foi mesmo que ele foi morto?” (idem) Chico fala o parágrafo seguinte com muita ênfase, enquanto que o outro parágrafo é dito como um anticlímax: Aí eu não aguentei mais e falei pela primeira vez aquilo que está há anos séculos milênios preso dentro de mim e que nunca contei mas está quase todos os dias em meus sonhos, são os sonhos quando grito e acordo suado e minha mulher já sabe que tem que me abraçar ate eu me acalmar mas eu não me acalmo e ali na casa quando ela
olhou para mim e me perguntou eu estava suando frio e tremendo e então eu gritei e falei e falei. E só depois eu fiquei calmo, olhando o céu escuro e, como todos, esperando o helicóptero que talvez já esteja no fundo do mar verde de metal pesado. Chico não conta para Guilherme o que falou/gritou para Bete, assim o espectador fica sem saber. Mas foi algo relacionado à morte do menino ruivo. Chico era uma criança e viu o colega morto, nas pedras, provavelmente vítima de violência, talvez até violência sexual; pode ser até que ele tenha presenciado a violência, ou pelo menos saiba quem fez; isso o traumatizou; ele nunca falou sobre o assunto em quase 30 anos; assim, ao reviver a situação, aquela energia reprimida aflora em gritos dirigidos para Bete que, como a dona da casa à época, em última análise teria sido a responsável pela segurança, por proteger os meninos daquela violência. Bete veio se aproximando de Chico e Guilherme (e de Lucélia, esta um pouco afastada dos dois). Ouve o final da fala de Chico e se transmuda, da dona de casa plácida e contida se transforma em uma mulher forte. Com um gesto ríspido desfaz o jogo de Guilherme, joga as cartas no chão e começa seu monólogo; mas, surpreendentemente, ignora totalmente Chico, se dirige a Guilherme, está muito perto dele, olha-o nos olhos enquanto fala:
Cena 6 - A mãe de deus Bete, Chico, Guilherme, Lucélia
Isso tudo faz muito tempo, eu achei que ninguém mais ia lembrar, nem eu lembrava. Mas ele lembrou. Ele estava lá, faz tanto tempo. Não olhei o mar, já naquela época eu estava cansada de ver o mar, sempre igual; hoje estou mais cansada ainda destas ondas que não param, deste cheiro nauseante, desta imensidão que engole pessoas, barcos e helicópteros. Naquele dia, quando o céu fechou e começou a cair aquela chuva estranha eu nem notei, ou fingi que não notei, continuei providenciando os canapés, os brigadeiros, os bem-casados. Tudo do melhor, como sempre eu fiz, como eu sei que tem que ser. Não vi nada, fiquei o tempo todo cuidando pra que ninguém sentisse falta de nada, para que ninguém se machucasse, pra que tudo corresse bem como tem que ser. Não vi nenhuma explosão lá fora, não senti nada de chuva pesada em meu corpo, eu só estava cuidando de todos, o tempo todo, como sempre fiz e vou fazer sempre. Eu, a
mãe, a grande mãe, criada para cuidar de tudo e de todos - até que aquele maldito menino de cabelo vermelho apareceu nas pedras onde batem as ondas, todo ferido, ensanguentado, morto. A culpa foi minha, ninguém disse mas todos pensaram. Eu devia ter tomado conta direito do menino, mantido os lobos longe, usado meu chicote para acalmar as feras, não fiz isso direito e uma das feras foi lá e pronto, foi-se o menino. Mas olha nos meus olhos e o que você vê? Pode ser que você veja. Pode ser que não, ninguém nunca vê, mas pode ser que um dia alguém veja dentro dos meus olhos. E veja o que ninguém vê. O ódio. Dentro. Por isso preciso cuidar de todos, por que eu sei o tamanho do meu ódio. Sabe como eu comecei? Uma garota. Um casamento com um homem velho que eu nem conhecia. Um dia, as bonecas; no outro, a mãe e as tias expondo o lençol ensanguentado. A dor. O sangue. Tudo rápido, muito rápido. E as mães e as tias felizes por que eu sangrei, sangrei muito. Tive sorte, outras morreram na primeira noite, outras tiveram partes cortadas, partes costuradas, dilaceradas, eu tive sorte, meu velho marido era até cortês. Depois os filhos e os aplausos e eu aguentei até ser a mãe. A grande mãe. E encho todos de comidas mesmo com o mundo explodindo lá fora. Por isso esse meu ódio. Ninguém percebe o meu ódio, mesmo eu me esqueço dele, mas de vez em quando ele aparece e faz com que eu deixe as feras soltas. Até você perceber, e vai demorar um pouco. Pois eu posso fazer com você o que já fiz outras vezes. O frio. Do punhal certeiro. E o frio do meu sorriso enquanto te sangro como a um porco, e te cozinho e te sirvo na mesa. Minha mesa, sempre farta. Olha para mim, agora, se tiver coragem. Depois do desabafo Bete volta a ser a plácida dona de casa. Deixa Guilherme e Chico perplexos e, com a mania de arrumação, se abaixa e recolhe as cartas espalhadas no chão, entrega o baralho a Chico e sai de cena. Lucélia continua espreitando a conversa entre Chico e Guilherme, mas se aproxima aos poucos e ao final do monólogo de Guilherme já está integrada ao grupo.
Cena 7 - Um jogo Guilherme, Chico, Lucélia
Chico O que você achou? Guilherme
Não sei. Não sei mais o que pensar. Nós todos aqui, presos, nesta casa de loucos, sem conseguir uma saída. Chico Esta morte do menino ruivo me impressiona até hoje. E nunca se descobriu quem foi, como foi, por que. Sonho com ele. Foi a primeira pessoa morta que vi, até hoje o sangue dele me assombra, o sangue. Chico corta o baralho, dá as cartas para si e para Guilherme como se fossem iniciar uma partida, mas o jogo não começa pois este começa a falar: Guilherme Eu também tenho uma imagem que me assombra até hoje. Acho que é por isso que eu jogo, sem parar, qualquer tipo de jogo, você sabe, é como uma compulsão, mais forte que eu - como se ganhando nestes jogos de hoje eu consiga modificar os jogos do passado, sei lá Duas crianças, eu e ele, dois meninos brincando depois da escola. "Eu sei onde meu pai guarda o revolver dele", ele disse. "Quer ver?" perguntou. "O que?" "O revolver". Não respondi. Continuei vendo televisão, um programa idiota, fingindo que prestava atenção. Não sabia o que dizer, não sabia o que pensar. Mas logo depois ele saiu e voltou com uma caixa de sapatos de papelão pardo. "O que é isso?", perguntei, ele apenas abriu a caixa e, enrolado em uma flanela de um marrom desbotado: uma máquina. O revolver do pai dele. Cromado, brilhava. Eu nunca tinha visto, só em filmes, nunca tinha visto de perto. Toquei e tirei rápido a mão, era frio. "É pesado", ele disse, e me entregou. Segurei, senti o peso e perguntei, "está carregado?" (Insert de cenas de uma criança que pode ser o menino ruivo brincando com um revolver de brinquedo) Uma arma, e carregada. Em silêncio, me levantei, me preparei para ir embora, a TV gritando bobagens. Ele ficou brincando com o revolver, fazia como se fosse atirar no aquário, imitava o barulho do estampido. Eu, calado, indo embora. Aí ele falou “fica mais um pouco” e perguntou se eu sabia o que é roleta-russa. Disse que não. Ele disse que era um jogo e que um amigo do pai dele jogava sempre, até que morreu. Perguntei como era o jogo, ele não disse nada, apenas abriu o revolver e tirou as balas todas, depois colocou uma só e fechou de novo. Só então explicou que roleta-russa era como um jogo de azar, o tambor do revolver girava como uma roleta e o jogador atirava na própria testa, a chance era de uma bala contra cinco vazias. "E se a roleta cair na bala?", perguntei. "Você perde, claro, babaca!" E entregou a arma para mim.
Gelei. Queria ir embora, queria parar para sempre de brincar com ele. Mas ele me atiçou: "vai, vai, atira, ou você não é homem? cadê a coragem?" Fechei os olhos, coloquei o revolver na lateral da minha testa e atirei. Não é fácil atirar com um revolver, precisa ter força no dedo, e neste caso também se precisa ter sorte, pois foi apenas um barulho seco, um susto e um alívio, eu já me imaginava morto, e suava muito mas ao mesmo tempo ria dentro de mim, e me sentia um homem. Ele pega o revolver, gira de novo o tambor, embaralha de novo a roleta. Ele também tem medo, eu sinto. Enquanto leva a mão com a arma, devagar, até sua testa, ele olha nos meus olhos. Olho nos olhos dele. É a vez dele atirar. Guilherme não fala como terminou a roleta-russa, e o espectador fica sem certeza sobre o que aconteceu, mas é claro que o amigo morre . Ele é um viciado em jogo, mas acha que essa compulsão se deve à situação da infância; mas acredito que seja o contrário, ele já era compulsivo antes, e isso o levou a embarcar na brincadeira da roleta -russa, além do medo de se mostrar "mariquinhas" para o amigo. Elisa entra em cena com a caixa. Mostra para Lucélia e para Chico. Guilherme, impassível (ele já havia visto o conteúdo da caixa) continua a jogar paciência. Elisa sai, com a caixa, seguida de Lucélia, vão até a escada do mezanino, onde estão Lucia, Francisco e Bete. Mostra o conteúdo da caixa para Lucia e Francisco. Lucélia sai de cena.
Cena 8 - O olhar Lucia, "deus", Bete, Elisa, Ester
Bete Elisa, eles querem falar com "deus". Mas um de cada vez. Elisa entrega a caixa para Bete, faz um aceno para Lucia e a leva até uma cadeira ao lado de "deus". Ester continua obcecada com a coleção de fotos, folheando álbuns. Lucia começa a falar, e desta vez "deus" não toca piano, ele escreve no seu notebook como se fosse um escrivão tomando um depoimento de Lucia - que ele não escuta. Lucia Eu gosto do meu marido. Eu amo o meu marido. Nós somos muito felizes. Viemos juntos para cá, eu queria descansar com ele uns dias nesta casa, o mar, a natureza, a
vida na cidade é muito estressante. Eu e meu marido precisamos de um tempo de calma, a gente se ama, a gente se ama muito. Aí quando chegamos aqui, eu vi. O tal cara. O de olhos azuis. Parece que ele veio de helicóptero, não sabia que ele é tão rico, nem sabia o nome dele. Fingi que não o conhecia, fiquei preocupada se ele ia fazer alguma coisa, se alguém ia desconfiar, mas ele foi discreto. Muito discreto. Fingiu que nunca tinha me visto, e eu também fingi. Não faz muito tempo. Eu amo meu marido. Sabe o que faz a desgraça de uma mulher casada, bem casada, como eu? Ter olhos. Todos os outro sentidos podem se fechar, mas com os olhos é diferente, os olhos voam, flutuam, passeiam como inocentes, avançam no espaço como que à procura do desejo. Eu tinha muita vontade de confessar pra ele, pro meu marido. Contar sobre o desejo que meus olhos procuram. Contar de quando meus olhos sentiram uma fagulha ao longe, em olhos de um azul tão bonito que depois eu mesma me perguntava se não estava inventando. Contar o estrago que esta fagulha fez em mim, na minha força, na minha vida. Por isso estou aqui, contando para vocês, pois não aguento mais este segredo pesado dentro de mim. Se eu pudesse, eu perguntava pra meu marido: "Por que você viajava sempre? Por que você trabalhava tanto e me falava só do trabalho?", ou era eu quem trabalhava tanto e saía tanto, nem sei. O que sei é que quando os olhos azuis vieram falar comigo eu pensei “vai ser só uma vez depois nunca mais” mas aí já era tarde, tomou conta de mim, tomou conta exatamente daqueles vazios dentro de mim e eu me vi estremecer, toda, como num temporal, e então pensei, “quero mais”. E depois pensei: “estou perdida”. Lucia termina seu monólogo e "deus" termina sua escrita, imprime uma folha de papel que dá para Lucia assinar, entrega a folha a Elisa que a guarda em uma pasta. Elisa conduz Lucia ao pé da escada, onde ainda estão Bete (que devolve a caixa a Elisa), Lucélia e Francisco.
Cena 9 - O cheiro de sangue Francisco, Bete, Elisa, Lucia, Ester
Elisa (para Francisco) Quer ir agora falar com "deus"? Francisco
Não. Não quero. Bete É melhor você subir, eu sei que você tem muito o que contar. Elisa tira Lucia de cena, e Bete tenta levar Francisco pela mão até "deus" mas ele se recusa Francisco Prefiro falar com você, e em outro lugar, longe daqui. Bete Nenhum lugar é longe daqui. Mas vão juntos, até a cozinha, que está vazia. A cozinha tem uma mesa para 4 pessoas. Bete serve bebida em duas taças, que eles não tocam. Ela se senta com expressão de "sou toda ouvidos" e Francisco conta sua história. Quase no final da história chega Elisa, com a caixa, que guarda em um armário e, sem prestar atenção à confissão de Francisco, sai com uma bandeja com bebidas. Francisco Eu gosto de minha mulher. Eu amo a minha mulher. Nós somos muito felizes. Viemos juntos para cá, eu queria descansar com ela uns dias nesta casa, o mar, a natureza, a vida na cidade é muito estressante. Eu e minha mulher precisamos de um tempo de calma, a gente se ama, a gente se ama muito. Ela acha que eu não notei nada. Mas eu vi como ele olhou pra ela. O homem do helicóptero. Tudo bem, ela é bonita, muitos homens olham para ela, mas ela é fiel a mim como eu sou a ela, tenho certeza, nós nos amamos e ela ter caráter, não é qualquer uma. Só que ele olhou pra ela como se já se conhecessem. E ela tentou disfarçar, mas olhou pra ele como se já se conhecessem. Eles acham que eu não notei. Lá de cima aquele que nos convidou, o dono da casa, olhava pra mim, pra ela e pro cara do helicóptero, com aquele olhar irônico e de quem sabe tudo que ele sempre tem, depois começou a tocar aquele maldito piano. Ele fez de proposito, nos chamou pra este final de semana pra nos colocar em prova. Beijei minha mulher, olhando pro tal cara, ele não desviou o olhar. Abracei minha mulher e perguntei “você conhece este cara?” “Que cara?” “O do helicóptero”. “Nunca vi mais gordo”. Mentira, foi o que eu pensei, eu vi na cara dela, vi na cara dos dois. Mentira. Ela mentiu pra mim, mas ela é uma santa, tenho certeza, eu fui o primeiro namorado dela, o único homem da vida dela. Deve ter uma explicação. Eu viajo muito, com meu trabalho, às vezes fico dias fora, é imprevisível, chego em casa e lá está ela, me esperando, olhos abertos e um abraço e um beijo. Ela é muito
caseira, de casa só para o mercado ou para a academia de ginástica, às vezes um shopping com alguma amiga mas nem é de comprar muito, só mesmo aquelas coisas que uma mulher bem casada gosta. Um dia, tem muito tempo, logo que a gente casou, eu cheguei em casa e ela estava chorando, sozinha, sentada no escuro. Não quis me dizer o que era. Pensei, será que ela desconfia de alguma coisa? Desconfia de mim? Do meu verdadeiro trabalho, que nos dá esta boa vida? Será que ela sentiu o cheiro de sangue? Fico calmo, abraço minha mulher com mais força, olho de novo o homem do helicóptero, agora bem na cara, e de repente cai a ficha. Um rosto familiar. É claro. Disfarço, vou ao banheiro, e vejo no meu celular. Nas fotos protegidas por senha. Lá está a foto que recebi, meu ultimo trabalho. É ele. É o cara que eu fui contratado para matar, que eu já estava começando a caçar mas estava difícil, e que veio caindo do céu em seu helicóptero prateado bem aqui, justo onde eu estou, sem esperar nada. Deus é grande. Insert: helicóptero, mar revolto, nuvens carregadas. Francisco se levanta e vem com Bete até onde está Lucia, conversando com Lucélia ao lado da escada do mezanino. Francisco fica com Lucia e Lucélia e Bete sobe para o mezanino, onde já estão Elisa e Ester.
Cena 10 - Fotografia Ester, Bete, Elisa
Ester leva um dos álbuns até "deus", mostra uma foto, pergunta: Ester Quem é esta pessoa aqui nesta foto? Esta sombra? "Deus, se é que escutou a pergunta, não responde. Ester mostra a mesma foto para Bete e para Elisa, que respondem negativamente, uma apenas meneando a cabeça, outra com um lacônico "não sei". Ester então fala, mais para si mesma do que para Bete e Elisa. Enquanto isso, Elisa recolhe copos, ao final da fala de Ester sai de cena, desce com os copos sujos e os leva até a cozinha. Ester
Não tenho nenhuma foto minha em minha infância. Vocês não sabem disso, com certeza. Minhas irmãs, meus pais, primos, primas, aniversários, batizados, milhares, milhões de fotos, e falo de fotos em papel, minha infância foi antes da fotografia digital, os milhões de fotos em pequenos álbuns organizados pela minha mãe, todos em caixas em gavetas em armários e nenhuma foto minha. Bom, talvez eu apareça como uma sombra entre crianças que cantam parabéns a você em uma festa de aniversário de uma de minhas irmãs, ou de costas no meio de meninas que brincam de pique-e-esconde no pátio da escola. Talvez seja ou talvez não seja. Eu olhei e olhei e olhei todos os álbuns e eliminando os talvez-seja-eu, não sobrou nenhuma foto. Nenhuma foto minha em minha infância. Perguntei a minha mãe, ela me olhou assustada e disse, "Deve ter uma foto tua de daminha no casamento de tua irmã, você estava linda", e foi até a prateleira mais alta onde estavam os álbuns de casamento de minhas irmãs, das três, os casamentos tinham acabado, claro, um depois do outro e uma depois da outra elas quiseram queimar os álbuns mas minha mãe guardou escondidos na prateleira mais alta. Em nenhum dos álbuns apareciam as daminhas. Meu primo, levando as alianças no casamento da mais velha, aparecia em primeiro plano em uma foto; no casamento da do meio, as daminhas apareciam de costas, e eu "podia ser" uma delas, mas qual? Minha mãe deu de ombros e disse, "querida, linda, vou me lembrar, deve ter uma, talvez nas fotos dos carnavais", depois, mais séria, "você sabe que quando mudamos de casa alguma coisa se perdeu na mudança" e "você sabe que suas irmãs quando casaram levaram muitos álbuns, talvez com elas... procure de novo, tenho certeza que você vai achar, e você era uma criança tão linda" Procuro de novo. Não faço nada a não ser cuidar deles, de meu pai e de minha mãe, então tenho tempo. Procuro de novo, álbum depois de álbum, acho outras fotos onde com boa vontade se pode ver uma menina (eu?) em uma foto fora de foco, ou em um reflexo embaçado em um espelho da penteadeira... e nada. Volto aos álbuns, de novo, um depois do outro. Nada. Não tenho nenhuma foto minha quando criança. É como se eu nunca tivesse sido criança. É como se eu já tivesse nascido assim, feia, tímida, e feita somente para cuidar de meus pais quando velhos, sem ter alguém que vá cuidar de mim quando velha. Mas nisso eu não vou pensar. Se eu nunca fui criança, de certo eu nunca serei velha. Close no rosto de Ester. Imagens das fotos na parede. Acompanhamos Bete que circula com a caixinha, que mostra a alguns grupos para os quais ainda não mostrou, e Elisa, que recolhe copos usados e os leva para a cozinha. Cenas rápidas, fusão de imagens.
Cena 11 - Selvagem Edu e Elisa
Edu entra na copa/cozinha, onde Elisa está lavando uma pilha de pratos. A cozinha está imaculadamente limpa, e não se vê dejetos, nem nos pratos sujos, um pouco como se a sujeira destes fosse visível apenas para ela. Durante o diálogo, Elisa mantém certa distância polida de Edu, embora interessada, interrompendo seu trabalho para ouvi-lo. Edu, que a princípio se mostra sedutor, aos poucos muda para um ritmo acelerado e intenso, e apesar de se dirigindo a Elisa, suas frases na verdade passam a ser mais um monólogo dirigido a ninguém ou a si mesmo. Edu Já te disseram que você parece um anjo? Elisa (sorrindo) Só hoje já ouvi isso umas dez ou doze vezes. Mas algumas pessoas me chamaram também de demônio. (silêncio. Elisa continua com sua tarefa, e Edu não sabe como continuar a conversa e passa a mexer em algumas gavetas e armário, procura alguma coisa) Elisa Posso ajudar? Edu (continua a mexer nas gavetas) Você pode me arranjar um prato? Eu estava usando um espelho, mas eles pararam de me refletir. Um prato é melhor. Elisa, imperturbável, apenas mantendo seu leve sorriso irônico, seca um prato e o entrega para Edu. Ele vai até a mesa e prepara ritualmente umas fileiras de cocaína sobre o prato. É importante que a cena seja filmada de forma a deixar claro o que ele está fazendo, porém sem mostrar explicitamente a cocaína, o prato com as fileiras, a aspiração. Edu Posso te fazer uma pergunta? Duas? Elisa: Pode sim.
Edu Você é filha de "deus"? Elisa (ri e responde, sem ironia) Todos são
Edu(é sua vez de rir, irônico) Eu não sou. (pausa) Você está aqui há muito tempo? Elisa Desde o início de tudo. E você? Edu começa a contar sua história, Elisa, a princípio desinteressada, vai se aproximando cada vez mais. Edu percebe e conta a sua história de forma a seduzir a moça, ou a ser seduzido por ela; na verdade ela toma a iniciativa. Eles se tocam, e ao final do monólogo fica claro para o espectador que vai acontecer algo entre eles. Edu Tudo errado. Não conheço ninguém aqui, me trouxeram, vim pra ver o que rola, e trouxe as minhas coisas comigo na mochila mesmo. Uma muda de roupa e cocaína. Uns poucos baseados, às vezes é bom pra conseguir uma companhia. Umas balas também, e uns ácidos, se tiver neguinho a fim ainda me dou bem e volto pra casa com um troco. Mas eu esperava uma festa grande, uma rave, com música, DJ, gente bonita dançando e transando, e aqui esta gente complicada que não para de falar e a única música é o maluco tocando um piano sem nenhum som. Estranhos, todos estranhos. Mal cheguei e já uma taça, brindei e ofereci uma carreira pro casal que me trouxe e pros amigos deles, uns cheiraram e os outros ficaram com ar de "quem é esse cara", não tou nem aí, trouxe bastante pó pra cheirar e pra oferecer umas presenças. Enquanto isso, observando. Onde estão os ricos, onde as joias, onde os dólares. Nem queria tanto, vim pra me divertir, mas sou um profissional. O maluco recebe bem. A casa é boa. À noite, com o baseado e o pó, qualquer quarto se abre. O cara que me trouxe falou "não vai queimar meu filme!", "tudo bem", eu respondi, mas não tou nem aí. No sábado era como se eu já fosse amigo de infância do dono da casa, aquele esquisito, escrevendo sem parar e tocando um piano invisível. Meu plano era curtir na boa sábado, no domingo eu já tava com uma grana, pelas balas e os ácidos, e sabendo onde as coisas boas nos quartos, só circular e recolher enquanto todos almoçam e depois sair batido. Sem violência, sem deixar pistas, só peace and love.
Tudo errado. Ninguém consegue sair da casa, nem eu. Minha mochila cheia com o resto dos bagulhos, as joias e os dólares. Eles não deram pela falta, ou se deram pela falta preferiram não falar nada. Eu e eles sem conseguir sair. E sem sair não adianta nada os dólares e as joias, devolvo um a um o que peguei em cada quarto, aproveito para um beijo ou uma brincadeira, não sei se devolvi certo mas tudo bem, ninguém está se preocupando muito com isso. Eu imaginava uma festa com centenas de pessoas, a quantidade de drogas que eu trouxe é para uma multidão, vou distribuindo discretamente, aos poucos, devagar, um por um, deixando cada um doidão, os que quiserem, quase todos querem, ou todos, um dia depois do outro presos aqui nesta casa sem saída, um por um, um dia e outro, a chuva pesada e o vento e os peixes mortos, todos doidões, cada um e eu, um dia e outro. E depois vou acertando um depois do outro, eles não conseguem sair desta ratoeira mas vão terminar felizes. No final da fala de Edu, depois que "rola um clima" entre ele e Elisa, entra em cena, correndo "o menino ruivo", que não é visto pelos personagens; dá uma volta acelerada pela cozinha, e "captura" a câmera, que o segue até a sala (deixando de mostrar o que efetivamente rolou entre Edu e Elisa), até a mesa com a fruteira com maçãs. No sofá estão Daniel_I, Tatiana e Ester. O menino pega frutas, tenta fazer malabarismos com elas, as maçãs caem no chão. Close nas maçãs. Close nas cartas de baralho na mesa de jogos, onde estão Chico e Guilherme. Chega Lucélia.
Cena 12 - A vingança Lucélia, Chico e Guilherme
Lucélia Preciso falar com vocês. Vocês vão me desculpar, mas eu ouvi uma conversa de vocês. Então vocês conheceram o menino ruivo que morreu aqui nesta casa há muitos anos? Chico e Guilherme se entreolham, hesitam. Lucélia aguarda, firme. Chico Eu conheci, por que? Nós éramos amigos de escola. Eu estava aqui na casa quando ele morreu.
Lucélia A polícia nunca descobriu nada, você sabe de alguma coisa, alguma pista, algum detalhe que me ajude a entender o que houve? Chico Tudo o que eu sei, e faz muito tempo, e eu era uma criança, tudo o que eu sei é o que está nos relatórios da polícia, ou seja, nada. Nunca se descobriu como ele morreu. (Chico não é muito convincente, se ele não viu nada mas é possível que ele suspeite de alguma coisa que não contou) Lucélia Você não desconfia de ninguém? Crianças estão por toda parte, às vezes passam despercebidas no meio dos adultos, será que você não viu, sem ser visto, nada estranho? Chico Não. (cortando o assunto) Lucélia Antes de vir aqui eu já sabia tudo sobre esta casa, sobre a praia, as pedras. O rochedo onde o menino foi encontrado morto, cheio de marcas, muito sangue, nu. Faz muito tempo. Eu era pequena mas minha mãe me contava isso todo dia, toda noite, como quem conta historias da Branca de Neve ou da Bela Adormecida, a historinha do menino ruivo morto no meio das pedras onde o mar batia forte. Meu irmão, minha mãe fez questão de que eu chamasse sempre de meu irmão, o tempo todo eu soube que eu era adotada mas ela sempre disse que eu chamasse de mãe, de meu pai. Quando eles entraram com os papeis para a adoção estavam a ponto de desistir de tudo. O filho querido, inteligente, educado, bonito. Morto. Uma morte horrível. Sangue nas pedras, o mar batendo, e ninguém dizendo nada, nenhum culpado, policia extorquindo, jornalistas, urubus. Eles entraram com os papeis e disseram, qualquer um, o primeiro. E lá estava eu, no orfanato, uma menina que ninguém queria. Eu estava chorando, gritando, um choro alto, quando eles entraram no orfanato e ouviram meu choro e disseram, "é ela!", por causa do meu fôlego, do meu grito. Um dia de inverno alguém que nunca vou saber quem foi tinha deixado aquela menina negra, eu, num terreno baldio, frio, sem agasalho, pra morrer. O lixeiro ouviu meu choro e me buscou no terreno baldio, eu estava quase congelada mas ainda tinha fôlego pra gritar, pra me fazer ouvir. A mulher ruiva e o homem louro, brancos, olhos azuis. Eu, a filha negra. Eles me escolheram pela forca dos meus pulmões, tão intensa quanto a força do ódio de minha mãe ao matador do filho. Ela sabia que podia contar comigo, que eu não ia desistir, e
todos as noites ela me preparou para isso: "um dia você vai descobrir o que aconteceu naquela casa". Por isso estou aqui. Guilherme Não adianta. Lucélia Eu vou descobrir, vocês tem que me ajudar! Chico Ele tem razão, não adianta. Nada adianta. Mesmo que você descubra quem for, não vai conseguir sair daqui para levar a frente tua vingança. E se por acaso ele, o matador do menino ruivo, for um de nós que está aqui, nesta casa, não vai adiantar a vingança: você e ele estão condenados, juntos, ficar aqui, nesta ratoeira. Lucélia olha para um e para outro, levanta-se e vai até o portal, seguida por Chico, tenta sair mas não consegue, e cai no chão, desanimada, impotente. Chico a ampara, a consola, leva-a até o sofá. O menino ruivo, sem ser visto por ninguém, continua seus malabarismos com as maçãs, ao ver Lucélia sai correndo, depois volta e fica atento à história contada por Daniel_I.
Cena 13 - O malabarista Daniel_I, Tatiana, Lucélia e Ester
Daniel_I está contando principalmente para Ester, é possível que já tenha contado a mesma história para Tatiana, mas hoje, a partir da impossibilidade de saírem da casa, da saudade dos filhos, o fato adquiriu novo contorno, mais dramático, como se o narrador, "preso", se identificasse com a "prisão" do garoto, condenado a repetir por noites e noites, solitário, sua cena de malabarismo sem nunca escapar desse destino Foi uns dias antes de eu vir para cá, para esta ratoeira, esta armadilha praiana, este calabouço à beira-mar. Eu estava em um táxi, a noite, umas 10 e meia, voltando pra casa. O táxi parou em um sinal destes que demora a abrir, e então eu vi, nem prestei muita atenção no início. O
garoto estava com uma camisa de listas horizontais e a cara pintada de branco, levou um caixote de madeira para a frente dos carros parados no sinal, subiu no caixote, fez uma mesura e começou a fazer malabarismos com duas bolas de tênis. Meio sem jeito, um malabarista iniciante, um garoto de uns nove ou dez anos, no máximo, talvez até bonito por baixo do branco da cara, talvez feio, fazia frio. Então ele perdeu o ritmo e as bolas foram uma pra cada lado da rua, ele ficou um malabarista de ar; pulou do caixote e foi, humilhado, recolheu uma bola depois a outra mas aí o sinal já abriu e os carros começaram a buzinar, até daria para desviar do caixote mas buzinaram; o garoto nervoso não sabia se pegava as bolas, se tirava o caixote, se recebia alguma moeda que um dos motoristas dava para ele ou se chorava, então os carros finalmente andaram e eu fui pra casa e não pensei mais nisso. Até que aqui, ontem, depois do almoço, quando era hora de voltar para casa e ninguém consegue sair e ficamos aqui e pelas enormes janelas desta arapuca se vê um mar cinza e pássaros morrendo - aquele menino com a cara pintada de branco voltou a minha cabeça e toda hora eu vejo ele correndo atrás das bolas verdes fosforescentes, uma de cada lado da rua, e os carros buzinando e ele humilhado e eu penso nele e vejo ele, nem penso em meus filhos nem em mais ninguém, penso só nele, e de repente quando quero chorar eu rezo, não pra deus, deus é surdo, rezo para um Malabarista que parece que perdeu seus malabares, perdeu o ritmo, perdeu a hora, rezo para este Malabarista divino e prometo que se eu conseguir sair daqui vou até aquele sinal e se o menino ainda estiver vivo, se ainda tiver algum carro ou taxi no sinal, se ainda tiver alguém vivo na cidade, no mundo, prometo que vou pedir pro menino me ensinar a jogar as bolas para o ar e vou com ele manter o ritmo e se por acaso elas caírem e se perderem eu é que vou correr e trazer para ele, para ele nunca parar sua dança no alto. O menino ruivo, que não e visto por ninguém, faz uma mesura. Lucélia se levanta, decidida, e vai até a mesa de jogos, onde estão Chico e Guilherme
Cena 14 - O espelho Simone, Guilherme, Isabel
Simone e Guilherme estão sentados em uma mesa de quatro lugares, Guilherme brinca com as cartas de um baralho. Chega Isabel. Isabel Pois é. A gente precisava de mais um pra jogarmos em duplas, mas parece que ninguém quer.
Simone Se vocês quiserem, então, posso ler o tarot de vocês. Assim o tempo passa. Guilherme Você sabe? (entrega o baralho para Simone, que responde afirmativamente). Mas acho que eu não quero, saber minha sorte, meu futuro, eu só penso em perguntar como a gente faz pra sair daqui. Guilherme sai, Isabel se senta em frente a Simone, que passa o baralho para a outra pedindo, com gestos, que ela "corte" o monte de cartas. Isabel corta o baralho mas se arrepende, mantém as cartas na mão enquanto fala. Isabel Você ainda não me disse por que está sempre atrás de mim, me vigiando, olhando para mim. Quem é você? Simone Meu nome é Simone. Sabe que eu acho você muito bonita, muito classuda? Você é muito superior a todos que estão aqui, o que te trouxe até esta casa de loucos? Isabel Que é isso, Simone. Eu cheguei a ficar com medo de você, achei que era alguém contratada por meu marido para me vigiar... Você que é bonita, jovem, uma pele ótima... Simone Quer que eu leia tua sorte nas cartas? Isabel Não, eu acho que também não quero, no fundo acho que nenhum de nós tem mais muito futuro trancados aqui nesta casa. Mas tenho uma esperança, não perdi a esperança, e se você lê nas cartas que não tem futuro mesmo, o que vai ser de mim? Simone (rindo) É, você tem razão. (pausa) Podemos jogar uma paciência. (rindo) Isabel Me diz uma coisa, o que você fazia lá fora? Desculpe, não quero ser intrometida, mas se a gente conversar um pouco fica menos solitária Simone
Você quer mesmo saber? Isabel faz que sim com a cabeça, e Simone começa seu monólogo, a princípio respondendo sem emoção a pergunta de Isabel mas depois usando a outra como um apoio para um desabafo, um ato de contrição. Simone Faço faculdade de Letras, moro sozinha, meus pais são do interior. E sou garota de programa. Pago a faculdade, o aluguel, minhas coisas, com dinheiro que ganho fazendo programa com homens, com casais. Isso te choca? (Isabel faz que não com a cabeça, mas está fascinada) Ainda tentei trabalhar em loja, mas é difícil, muita ralação e pouco dinheiro, aí uma amiga me apresentou... Ganho bem, pago minhas contas, só aceito clientes com indicação, alto nível, sem bizarrices, sem drogas, mando dinheiro de vez em quando pra minha mãe, e estou aplicando pra quando eu resolver parar. Isabel Simples assim? (ri) Simone É. (pausa) Simples assim. (pausa) Não tão simples. De um tempo pra cá eu comecei a só me sentir bem com homens que me pagam, me humilham. Terminei com meu namorado, eu tinha um namorado, boa gente, trabalhador, ele não sabia de nada da minha vida, me tratava como uma princesa - e eu mandei embora. Se antes eu fazia programa só pelo dinheiro, sem prazer - agora eu só tenho prazer quando me sinto desprezada, só gozam com os homens que me tratam como se eu fosse uma coisa. Por isso eu fiquei atraída por você. Você tão bonita, rica, tem tudo pra ser feliz - mas a tua cara mostra que você não é feliz. Quando você me tratou mal, disse pra eu parar de andar atrás de você, eu fiquei muito deprimida, eu quis morrer, desaparecer; mas quis também chegar ainda mais perto de você, te abraçar. Tive, ainda tenho, muita vontade de te conhecer, de saber o teu segredo, talvez se eu descobrisse teu segredo eu poderia descobrir também o meu segredo. Isabel Eu não tenho segredo nenhum. Simone Eu sei que tem. (segura as mãos de Isabel) Se eu descobrisse o teu segredo e o meu segredo, quem sabe a gente não conseguiria descobrir o que fazer para sair daqui, desta casa de onde parece que ninguém sai, desta loucura toda?
As duas mulheres se aproximam, se abraçam. Isabel joga as cartas de baralho no ar. Close nas cartas no chão.
Cena Final - A revolta dos anjos Elisa, "deus" e todo o elenco
Elisa sobre a escada do mezanino, leva uma pequena bandeja com champagne e algumas taças. No mezanino, "deus" toca seu piano mudo enquanto Bete lê alguma coisa em páginas impressas no computador, possivelmente o texto que "deus" vem escrevendo; Elisa serve champagne para eles. Bete deixa a leitura. Bete Elisa, beba também conosco, você deve estar cansada, vamos fazer um brinde. Elisa hesita e se serve também. Bete levanta a taça para o brinde, seguida por Elisa. "Deus" olha para uma e outra, desconfiado. "Deus" Brindar para que? Mas também levanta sua taça e brindam. Não chegam a beber, pois Elisa começa seu monólogo, a princípio com a suavidade mesmo de um anjo, depois em um crescendo de violência: Elisa (para "deus" e Bete) Sim, cansada. Estou cansada, muito cansada. Aqui não cresce nada. Elisa aos poucos cresce em intensidade e se dirige ao resto do elenco, do mezanino, descendo a escada, falando com um e outro, que a olham impassíveis, submissos, cansados, descrentes, desesperançados. Durante o monólogo, mesmo Bete desce para a sala, e no mezanino continua apenas "deus". Elisa Vocês não entendem? Eu estou na mesma ratoeira que vocês! Há muito tempo, vi vocês chegarem, ouvi suas histórias, vi como todos quiseram ir embora quando terminou o almoço do domingo de Páscoa, vi como não conseguiram sair, dia após dia, e estou muito cansada.
Não estou cansada de lavar os pratos, de servir estas bebidas que ninguém bebe, estas comidas que são jogadas fora sem que ninguém toque. Não estou cansada disso. É o meu trabalho. Faço isso desde o início de tudo, desde o início. Vi muita coisa, e cada vez mais fico cansada é de como vocês se submetem à vontade dele. Como vocês abriram mão da luz do sol, das famílias de vocês, das casas de vocês onde devem ter alguém esperando, nem que seja um gato, um aquário. Vocês deixaram tudo e aos poucos não pensam mais no que deixaram lá fora, só pensam aqui, nesta música que ele não para de tocar e que ninguém ouve, só ele; nestas histórias que vocês contam e repetem e repetem e repetem. Vocês falam uns pros outros que querem sair daqui, que querem voltar pra suas casa. Voltar pros seus filhos, seus irmãos, seu amigos, seus pais. Seus trabalhos. Falam o tempo todo, mas no fundo não querem. Lucélia, Simone? Vocês que amavam tanto a liberdade, não querem sair desta armadilha? E se eu disser que talvez seja fácil? Se eu disser que tem uma saída, deve ter? Lucia e Francisco, os filhos de vocês devem estar desesperados! Daniel (R), quem sabe ainda dá tempo pra você e pra teu filho, uma nova chance? Eu estou na mesma que vocês, presa, presa, mas sei que há uma maneira, deve haver uma maneira, tem que haver uma maneira, ele não pode tudo! Tatiana, você não quer voltar, começar de novo? Chico, Guilherme, Ester? Daniel (I)? outra chance pra descobrir o que aconteceu de verdade com estas histórias que vocês repetem e repetem? Edu, vamos comigo? A vida lá fora, e vocês aqui, presos, e eu também presa como vocês, quando deve ter uma saída! Mesmo você, Bete! Tanto tempo presa aqui! Deve ter uma saída! (se volta para cima, para "deus" no mezanino") Sim, eu estou muito cansada, não aguento mais todo este teu poder, esta arrogância de achar que pode dispor da vida de todos nós. Eu não aguento mais, e não preciso de você para nada, meu pai, eu não preciso, eu não quero mais beber o que você me dá todo o dia neste cálice, eu não quero mais, eu tenho este direito, eu fiz o que você mandou, dia após dia, não tive vontade, não tive desejo, nada, apenas o que você dizia, o que você ordenava, mas agora não quero. Não quero mais pra mim ou pro filho que estou esperando. Não quero ficar aqui, aqui não cresce nada. Não quero mais. No mezanino "deus" dedilha seu refrão no piano, sem som: Deus: Nun-ca-mais-nun-ca-mais-nunca-mais Elisa se cala. Decidida, via até o "portal". Estaca. Olha para cima e para os lados, respira fundo, enche-se de forças e se prepara para romper a barreira. Corte na cena, tela escura, não se sabe se Elisa realmente conseguiu sair ou não.
Um final alternativo, a discutir, após a tela escura: um pássaro voa no céu escuro. Ou a repetição da cena da queda do helicóptero. Ou o menino ruivo saltando-estrela. Mas eu realmente acho desnecessário que apareçam estas imagens depois da tentativa de fuga de Elisa. No computador, "deus" escreve: "FIM"