Estranhamentos
Curadoria de Isabel Sanson Portella
Estranhamentos O estranho seria tudo o que deveria permanecer secreto, oculto, mas apareceu. Sigmund Freud, Das Unheimliche (citando uma definição de Friedrich Schelling)
Em um texto de 1919, Freud denominou como “marginal” um campo particular da estética: o domínio do “unheimliche”, traduzido em português por estranho e inquietante, mas também sinistro, lúgubre e ominoso. “O inquietante”. O efeito de estranheza inquietante se dá em relação ao que é, ao mesmo tempo, familiar e estranho. Unheimliche é como que um “in-familiar”, algo muito conhecido que apresenta uma qualidade estranha, algo muito estranho que provoca uma impressão de familiar. Ao propor uma exposição a partir desta frase, a curadoria quis provocar nos artistas — Artur Arnold, Jozias Benedicto e Ursula Tautz — um estímulo para a produção de novas/outras obras. O estranhamento de algo familiar pode estar em qualquer um e/ou em qualquer lugar; seria como se estivéssemos em um pêndulo que não nos permite discernir bem o que está acontecendo; marcados por esse tipo de experiência em que o familiar se torna estranho e o estranho é familiar os artistas realizaram suas obras. Os três artistas partiram do mesmo ponto: a frase de Freud e conversas com a curadora e cada artista desenvolveu o seu trabalho especialmente para esta exposição: Arthur Arnold com pintura, Jozias Benedicto com vídeo, videoinstalação e fotos e Ursula Tautz com fotos e videoinstalação. Isabel Sanson Portella
Arthur Arnold Ao deixar as passageiras no jardim zoológico, o taxista deu meia-volta e retomou a pista pela qual viera. Logo esqueceu a estranheza da encapuçada e voltou a pensar em seus cães. Joca Reiners Terron, em A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves
Quando imagens familiares causam desconforto, uma sensação de estranhamento, de deslocamento em relação ao previsto, é porque algo secreto, inerente a elas, foi suscitado. O estranho é secretamente familiar. É inquietante na medida em que foi submetido à repressão, mas voltou à tona. Arthur Arnold trabalha a partir de cenas vividas e observadas no cotidiano da cidade que o cerca: pessoas que estão saindo para o trabalho, que fazem uma refeição em família, que estão à beira da piscina são alguns dos elementos que constituem seu arsenal de imagens e que, como colagens de fragmentos, formam um mundo que se situa no limiar entre o imaginário e o real.
Com uma dose de humor, sarcasmo e até perversidade, essas observações e preocupações são transformadas em narrativas. Porém, ao contrário das narrativas sequenciais, o tempo não se faz presente. Com o uso de metáforas visuais o artista aborda temas de forma indireta, possibilitando muitas vezes mais de uma interpretação para o quadro. A precisão do tratamento pictórico e a figuração quase realista se contrapõem a narrativas dúbias e instigantes que desafiam e enfeitiçam, a cada momento, o espectador. A pintura é seu suporte e questões são resolvidas através de telas e tintas com precisão e criatividade. No momento atual o artista procura resolver cada tema em um único trabalho, que juntos formam um conjunto de obras e não uma série. Na obra de Arnold o estranho surge justamente da superposição de imagens familiares com outras absolutamente fora do contexto. O tubarão saindo de uma piscina plástica é inquietante, assim como os absurdos de uma cidade onde um pequeno regador é utilizado para apagar um incêndio. O estranho, o sinistro é algo novo que não se sabe como abordar. Mas é dessa forma que o artista se coloca. Enfrenta o desafio de desconstruir em seus quadros a representação dos elementos básicos de tempo, espaço e lugar. Encara situações desconfortáveis do cotidiano com olhar crítico e as expõe ao espectador ameaçando sua tranquilidade. Da inquietação surge o questionamento e esse parece ser o objetivo de Arnold.
ARTHUR ARNOLD é bacharel em escultura pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, tendo feito um ano de intercâmbio na Bauhaus – Universität Weimar (Alemanha). Estudou pintura com João Magalhães, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage (Rio), e foi selecionado para participar da nona edição da residência artística Red Bull Station, em um prédio histórico no Centro de São Paulo (2014). Em 2013 teve uma pintura premiada no III Concurso de Arte Contemporânea do Itamaraty. Entre 2009 e 2014 fez 5 exposições individuais em Belo Horizonte e Rio de Janeiro, sendo as mais recentes (Estado de Sítio, em 2014 e A Fragilidade do Poder, em 2012) na Galeria Movimento Arte Contemporânea (Rio). Participou, com pintura, a partir de 2005, de diversos salões e exposições coletivas, destacando-se o III Concurso de Arte Contemporânea do Itamaraty, Brasília, onde teve uma pintura premiada (prêmio de aquisição). Em 2007 participou de duas coletivas em Weimar (Alemanha), Spuren suchen, no Neues Museum Weimar, e Art on the Edge, no Kunsthalle Weimar.
Jozias Benedicto Não que eu tivesse medo. Mas ele era excessivamente pálido. Caio Fernando Abreu, em O ovo apunhalado
Em 1919 Sigmund Freud faz uma análise etimológica da palavra Unheimlich que significa estranho, sinistro, inquietante e não familiar e demonstra que em seus sinônimos essa palavra apresenta paradoxos, sendo que em variadas matizes ela coincide com seu oposto imediato, Heimlich (familiar/conhecido). Assim, Freud conclui que sempre atrás de algo aparentemente incompreensível ou atemorizante se esconde algo familiar, muito conhecido. Para que algo seja inquietante, não basta que ele seja diferente do convencional, mas que tenha sido algo anteriormente familiar. Ou seja, Freud conclui que existe sempre uma sombra no aparentemente conhecido, um inominável que foi afastado, deslocado da consciência. Partindo dessa análise de estranhamento, Jozias Benedicto aceitou a proposta para a produção das obras aqui apresentadas. O estranhamento de algo familiar pode levar por diferentes caminhos e conceitos, e o artista, marcado por esse tipo de experiência em que o familiar se torna estranho e o estranho é familiar, desenvolveu seu trabalho com vídeos e fotos.
A intenção de Jozias Benedicto, escritor e artista plástico, é avançar no conceito de objeto de arte híbrido, tomando como base e matéria prima seu livro de contos Estranhas criaturas noturnas: o livro, objeto do circuito de literatura, é agora deslocado para o circuito de arte; as ilustrações do livro “saltam” e se tornam obras de arte autônomas; e o livro deixa de ser apenas um objeto-livro para ser um objeto de artes visuais que rompe com as barreiras dos gêneros na arte. A fusão de artes visuais com a literatura e o teatro se dá em seu vídeo “A Perseguição”, feito em parceria com a atriz e diretora de teatro Ana Kfouri e a artista e poeta visual Helena Trindade. Tudo o que deveria permanecer secreto, oculto, quando aparece, causa desconforto, estranhamento. Jozias apresenta ampliações das imagens da série de autorretratos usada na capa de seu livro Estranhas criaturas noturnas. Outras imagens da série “Linhas de Varredura” também aparecem ampliadas sobre metacrilato. Um rosto, olhos, nariz e braço vão sendo percebidos aos poucos. O que estava parcialmente oculto surge diante de nosso olhar e certamente surpreende. A dificuldade em visualizar uma imagem familiar perturba e gera uma certa insegurança. O que realmente está por trás das inúmeras linhas verticais e horizontais? O que se esconde na luminosidade intensa das fotografias? Jozias Benedicto, com muita criatividade, procurou o estranhamento que as imagens captadas produzem quando não se sabe como abordá-las. As criaturas da noite são perturbadoras porque guardam segredos, escondem formas e criam ilusões. São estranhas, contam estranhas histórias, fazem refletir sobre o que é marginal.
JOZIAS BENEDICTO é artista visual e escritor. Desenvolve videoinstalações que unem literatura (ficção) e artes visuais (vídeo), trabalho já mostrado em diversas exposições coletivas no Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Teresina e Lisboa. Fez 3 exposições individuais, sendo a mais recente ficções:, com videoinstalações e fotos, na Galeria do Lago do Museu da República (Rio), em 2013. Participou da XVI Bienal de São Paulo (1981), dos II e III Salões Nacional de Artes Plásticas (1979, 1980) e do Small Press Festival (Antuérpia, Bélgica, 1975). Recebeu menção especial no 3º Salão Carioca de Artes (1979), prêmio de aquisição no II Salão de Itajubá (1980) e participou, como artista convidado, da 3a. Mostra de Desenho do Paraná (1981). Estudou, entre outros, com Ivan Serpa, Anna Bella Geiger, Rubens Gerchman, Chico Cunha, José Maria Dias da Cruz, Katie van Scherpenberg, João Magalhães e Suzana Queiroga. Atualmente cursa a pós-graduação “Literatura, Arte e Pensamento Contemporâneo”, na PUC RJ. Seu livro de contos Estranhas criaturas noturnas foi finalista do Concurso SESC de Literatura 2012/2013.
Ursula Tautz Porque, se fores embora, não vais encontrar outra cidade para viver. Mesmo se encontrares, a tua cidade vai atrás de ti. Milton Hatoum, em Órfãos do Eldorado
Ursula Tautz apresenta fotografias e uma videoinstalação. Pesquisando as relações que envolvem o habitar, o pertencer, a artista utiliza a (re) significação do espaço para o desenvolvimento de suas questões: a inquietação, um certo mal-estar permanente, condição pós-moderna de ser estrangeiro na própria terra. A série de fotografias foi desenvolvida na cidade de Ołdrzychowice Kłodzkie, Polônia, antiga Ullersdorf an der Biele, local de origem de sua família. São 5 fotografias manipuladas digitalmente, impressas em papel fotográfico sobre PS, além de uma projeção em looping na parede. Nestas apreensões, em posição fetal e de vermelho, a artista atua como personagem para se fundir à paisagem e à arquitetura. Após o registro, Ursula sobrepõe duas ou mais fotos, criando um duplo dela mesma, procurando outros significados para o espaço fotografado.
Ursula faz uma viagem de buscas. Intrigada com a trajetória familiar, vai ao encontro do passado que não conheceu, mas que está sempre presente, povoando de lembranças e memórias o seu cotidiano. Refazer o caminho percorrido por seus parentes é um impulso vital, necessário e urgente. Mais do que tudo a artista procura a sua história, seus locais de pertencimento, suas raízes. É importante que nada fique esquecido. Nem a guerra, nem a fome, nem a casa da Polônia e seus arredores. Refazer ciclos ajuda a aplacar angustias e sentimentos de falta, mas nunca o estranhamento do não pertencimento! A proposta da artista é bastante reveladora de suas inquietações. Em solo polonês, terra natal de seus ancestrais, Ursula busca renascer, encontrar seu lugar. Assume uma posição fetal e se deixa fotografar sobre a terra, sobre a vegetação que cresce independente, sem cuidados. Ali é seu lugar de gestação, lugar secreto, aconchegante e familiar, mas também, de certo modo, estranho. “O estranho é algo secretamente familiar que foi submetido à repressão e depois voltou”, segundo menção de Freud, sobre artigo de 1919. A identificação com o lugar é tanta que ela mesma vai aos poucos se misturando à vegetação. A luz e as cores completam o texto que surge por trás da imagem. Com extrema delicadeza, as imagens de Ursula falam de reencontro, mudanças, entrega e aceitação.
URSULA TAUTZ nasceu no Rio de Janeiro, onde vive utilizando-se de fotografia, vídeos e instalações.
e trabalha,
Participou de diversas exposições coletivas no Rio de Janeiro, entre 2006 e 2014 e apresentou Aquilo que nos cabe daquilo que nos resta, uma instalação site-specific na Escola Alemã Corcovado, em sua individual no Rio de Janeiro, em 2007. Foi selecionada pelo programa Olheiro da Arte pelo curador Fernando Cocchiarelli, em 2009, e, por Glória Ferreira e Luiz Ernesto, para o Programa Projeto de Pesquisa, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage (2013). Sua formação artística inclui, além de curso na School of Visual Arts de New York (1997-1999), vários cursos na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio, entre 2006 e 2014, com Ronaldo do Rego Macedo, David Cury, Paulo Sergio Duarte, Iole de Freitas, Reynaldo Roels Jr., Luiz Ernesto, Marcelo Campos, Glória Ferreira, Bob N e Marcio Botner, Pedro França e Guilherme Bueno, Anna Bella Geiger e Fernando Cocchiarelli.
Sobre a curadora ISABEL SANSON PORTELLA é museóloga e crítica de arte, doutora e mestre em história e crítica da arte pela Escola de BelasArtes/UFRJ, especialista em história da arte e arquitetura do Brasil pela PUC-Rio, pesquisadora de acervo e coordenadora da Galeria do Lago Arte Contemporânea do Museu da República-Rio. Crítica e curadora independente desde 2005, com textos e entrevistas em várias publicações (catálogos, periódicos e livros), fez curadoria e elaborou textos de diversas exposições, entre elas:
2011 Patrícia Gouvêa, Exercícios de Arte Lúdica, Centro Cultural da Justiça Federal 2014 Renato Bezerra de Mello, Adriana Eu e Livia Moura, Um Chão para brincar um céu para voar, Galeria Inox, Rio Alberto Saraiva, In Natura , Galeria do Lago, Museu da República, Rio Adriana Fontes, Vestes, Vestígios, Rastro do Tempo, Galeria do Lago, Rio Revista DasArtes, texto sobre exposição do artista Manoel Novello 2013 Bruno Miguel e Alessandro Sartore, Ex-Culturas, Galeria do Lago, Museu da República Ivan Grilo, Quase/Acervo, Galeria do Lago, Museu da República Tina Velho, O tempo, Galeria Amarelonegro, Rio Rui Macedo, Mnemosyne, Galeria do Lago, Museu da República José Luis Pederneiras, Paisagem Cromática, Oi Futuro-Ipanema “Amor,” Museu Casa de Benjamin Constant, Rio (coletiva) Jozias Benedicto, ficções:, Galeria do Lago, Museu da República 2012 Patrícia Gouvêa e Isabel Lofgren, Banco de Tempo, Galeria do Lago, Museu da República TOZ, O vendedor de Alegria, Galeria Movimento, Rio Revista Santa Magazine número 8, Texto crítico, O vendedor de Alegria Alexandre Murucci, Todos os dias..., Galeria BNDES, Rio Aglaize Damansceno e Angelo Sousa, Squamata, Espaço Cultural do Banco Central do Rio de Janeiro
2010 SESC Arte 24 horas, coletiva com 40 artistas no Cais do Porto, Rio Vide-espontâneo, curadoria coletiva, Oi Futuro Cláudia Hersz, Toys é Nóis, Centro Cultural da Justiça Federal, Rio 2009 Maria Lynch, Corespaçoforma, performance, Oi Futuro, Rio 2008 § Parágrafo 0: Habitação, Museu da Maré, Rio 2007 Celina Portella e Elisa Pessoa, em círculo, Galeria do Lago - Museu da República 2006 Lucia Vignoli, Diários do Tempo, Caixa Econômica Federal, Rio Jardim das Delícias, Galeria do Lago - Museu da República, Rio (curadoria compartilhada com Alexandre Sá e Daniela Mattos) 2005 Denise Cathilina, Blue Print - Impressões Secretas, Galeria 90 Arte Contemporânea, Rio Chantal Du Pont, Du front tout le tour de la tête, Galeria 90 Arte Contemporânea (artista canadense)
Arthur Arnold Fuck you Damien, acrílica sobre tela, 200 x 250 cm, 2012.
O queijo dos Albuquerque de Almeida, acrílica sobre tela, 143 x 153 cm , 2013.
Jozias Benedicto
Bipolar 4, óleo sobre tela, 80 x 80 cm, 2013.
Eu primeiro, óleo sobre tela, 100 x 120 cm, 2014.
O que nos sufoca, óleo sobre tela, 164 x 145 cm, 2014.
A perseguição, Jozias Benedicto, Ana Kfouri e Helena Trindade, Vídeo (duração 5’13”), 2014.
Da série “Autorretratos” (XXV e XL), Impressão sobre metacrilato, 50 x 67 cm, 2013 - 2015.
Da série “Linhas de varredura” (VIII, XXXVI, LXXXV e LXXXVI) Impressão sobre metacrilato, 40 x 53,5 cm, 2013 - 2015
Aparecimento - 2; 3; 5; 7 (Da série “Estranhamentos”) Manipulação digital, pigmentos minerais sobre papel fotográfico, 90 x 140 cm, 2014.
Sem título, (Da série “Estranhamentos”), Projeção sobre tecidos (duração 1’09”, em loop), 2014.
Ursula Tautz
Dois stills da série “História”, Impressão sobre metacrilato, 50 x 67 cm, 2013-2015.
Estranhas criaturas Videoinstalação, (duração 1’58”, em loop), 2015.