Concerto
Jozias Benedicto
Porra, onze horas da manhã de domingo é foda, melhor seria se fosse às sete que eu vinha direto da noitada. Mas é importante, a primeira vez que meu filho se apresenta em um lugar tão imponente assim. Verdade que não vejo meu filho há anos, quantos anos? Ele deve ter crescido, já um homem, fazendo faculdade e tocando na orquestra. Merda de orquestra, deve ser, da merda de cidadezinha de onde saí há muito tempo, na época lá, só a merda da banda da polícia militar, e hoje eles brincam de ter faculdade de música e orquestra também. Porra, eu falei com ele por telefone, vai fazer música?, faz direito ou economia, que dá dinheiro, concurso público, mas ele não quis me ouvir, falar com a mãe dele nem adianta, ele vai errar igual a mim que fiz letras e só me ferrei, arte no Brasil uma merda, achei que ia ser escritor, vim para uma cidade grande procurando oportunidades, cultura, e hoje estou assim ralando nos frilas, ainda bem que o concerto é a um real, patrocínio de uma dessas telefônicas ou estatais tudo a mesma merda. Pelo menos cheguei na hora, consegui um lugar bom no meio das velhas surdas, o que essas velhas surdas vêm fazer em um concerto, encher meu saco? Vou mandar uma mensagem para ele, para meu filho, ele me pediu no e-mail que eu mandasse um torpedo quando chegasse no teatro, merda, sem crédito nenhum no celular!
Será que ele vem? Eu gosto do meu pai, é verdade que não nos vemos há anos, mas sempre conversamos por telefone ou trocamos e-mails, ele escreve muito bem, minha mãe diz que é só isso que ele sabe fazer e que nem isso adiantou nada para ele. Quero que ele venha, ficou de me mandar um torpedo avisando onde está sentado, sei que do palco não se consegue ver nada na plateia que fica escura, mas posso imaginar ele sentado lá, e na hora dos aplausos as luzes da plateia acendem e eu consigo ver meu pai, claro que vamos ser aplaudidos, temos até um bis
ensaiado que vai fazer o povo se levantar da cadeira, até sendo um concerto popular. Acho que o maestro pegou pesado escolhendo esta sinfonia, mas dou graças a deus, pois não são muitas as sinfonias onde tenho boa participação, na maioria das peças nem entro ou fico só em alguns momentos que quase nem se ouvem, todos olham os violinos, os metais, o solo de harpa ou de violoncelo, já os momentos da percussão são vitais, porém poucos, e acontecem meio de susto, quando o público está olhando para os solistas, quase nunca percebe de onde aquele estrondo, será que ele vem?, será que ele vai se atrasar um pouco e assim quando mandar o torpedo eu nem vou ver pois já desliguei o celular, já entrei no palco e estou na última fila da orquestra me preparando e tentando olhar meu pai na plateia escura.
Primeiro eu falei para ele não fazer música, não dava dinheiro, mas o pior foi quando ele resolveu se especializar em percussão. Percussão erudita, grandes merdas. Percussão popular, de jazz, de rock, quem conhece um baterista?, ah, Ringo Starr... um lixo! quem já ouviu um disco inteiro de um baterista?, quem aguenta ouvir um disco inteiro do Django Reinhart? Na música clássica, pior ainda. Ficam na última fila, os putos, enquanto nas filas da frente as moças com seus violinos, o piano, o maestro, os sopranos... tudo isso ele podia fazer, eu falei pra ele. Disse: então estude violino, já viu quantos violinos em uma orquestra?, violoncelo, flautas. Trompas e tubas não, são fortes e imponentes, mas não se destacam em todas as peças. Harpa e piano nem pensar, sempre uma só por orquestra, a competição é demais, e harpa não é coisa de homem. Acho que ele riu no telefone e disse que percussão é coisa de homem, não entendi, será que ele está querendo disfarçar alguma coisa?, me dá preocupação, criado pela mãe, avó, sem a figura paterna, mas na minha família não tem disso, não é possível que ele seja o primeiro, se for, vai levar muita porrada, mesmo com a idade dele, já um homem. Palmas para o maestro, para o solista, concerto popular é foda, batem palmas até para o contrarregra, e as velhinhas não param de falar alto e tossir. Acho que deve ser o mofo do teatro que dá essa epidemia de tosse, ou então é de sacanagem.
Palmas para todo o mundo, só não batem palmas quando entram os quatro idiotas da última fila, os percussionistas, qual deles o meu filho?, tenho que colocar os óculos, merda, um é negro o outro japonês então não é nenhum desses dois, ah lá está, cresceu sim, será ele?, a cara é igual, parece comigo quando eu servia o exército, e de óculos, parece nervoso, porra, não vá me fazer uma merda e entrar com o bumbo na hora errada! mas como ficou magrinho, deve ser muita punheta, será que ele já tem namorada? Deve ter, hoje as meninas todas dão, no meu tempo é que era esta dificuldade e quando davam emprenhavam, como a puta da mãe dele... Ou será que é o outro, com um pandeiro, mais alto e mais fortinho, mas parece muito diferente... coloco os óculos, que merda, agora sim, vejo, ele é o magrinho de óculos, ainda bem, o outro percussionista é um gordinho meio desmunhecado, sei não...
É maravilhosa esta sinfonia, e para a percussão, para mim, é especial, tenho uma participação muito importante, mas, por isso, tenho que ficar muito atento, o tempo todo, será que ele veio? Meu pai, eu gosto dele, quando eu era pequeno ele me pegava no colo, me colocava sentado no ombro dele, como um macaco, eu me sentia alto, ele já é alto e eu me sentia mais alto então, como um cavaleiro em uma torre, meu pai para mim era uma torre, forte forte forte, até quando ele nos deixou, foi embora procurando uma vida melhor, depois ele ia chamar minha mãe e eu para morarmos com ele, quando estivesse bem de vida estabilizado com apartamento carro escrevendo em um jornal bom, mas isso nunca aconteceu, claro que não foi culpa dele, deve ter sido alguma perseguição, quem sabe por causa das posições políticas, então ele nunca nos chamou e minha mãe foi ficando cada vez mais ressentida, eu não, eu sei que foi só uma questão de tempo, de oportunidade, a vida dele é dura, ele nem pode escrever o romance que está todo na cabeça dele e que vai ser muito premiado, que sinfonia linda, eu sei, neste meio tempo resolvi ir para a música, decisão difícil mas é o que eu gosto e o que me fez entrar nesta faculdade e conseguir a bolsa tocando na orquestra, para minha mãe nenhum problema, desde que eu consiga me sustentar, mas meu pai teve reações estranhas, por telefone, nem entendi direito, acho que pensou que eu não ia
dar conta, bobagem, me dedico e consigo o que quero, talvez ele achasse que não sou tão bom assim e que seria melhor eu fazer uma coisa mais fácil, direito economia, sei lá, mas ele deve imaginar isso porque a gente conviveu muito pouco, ele na verdade me conhece muito pouco, é agora, ele me conhecia como uma criança que levava no ombro mas depois cresci e ele na verdade não me conhece como eu sou agora, é agora, entro silenciosamente no ritmo pois é o momento em que as notas escritas na pauta, como aranhas pulsantes ritmadas em suas teias, as notas convergem todas para o momento em que eu dou aquele toque no triângulo, aquele toque preciso que marca este momento da sinfonia, como um voo, como uma ascensão a um novo universo de prazeres, como um êxtase sem palavras, o ápice, um gozo divino, o toque preciso: tlim!
Susto, palmas, porra, caralho, devo ter dormido justo na parte que era meio chata, o passeio dos enamorados no bosque da primavera, disse o boiola do maestro, agora são as palmas, todos se levantam e pedem bis!, o maestro curvado, a orquestra também de pé, as luzes acesas, caralho! dormi e perdi o final justo a hora em que meu filho deve ter dado um show tocando aquele triângulo de ferro! tenho que disfarçar, levantar rápido e pedir bis também, nunca vou dizer para ninguém muito menos para ele que dormi justo na hora do final, o pior é se ele me perguntar detalhes, mas eu só vou dizer que ele estava o máximo, e devia estar, com certeza, é meu filho, e agradece, sorrindo, os aplausos que são para ele, claro que para o resto da orquestra também, mas principalmente para ele, os meus aplausos e pedidos de bis, é melhor gritar menos senão ele vai achar que o pai está pagando mico e vai se envergonhar de mim, mas o maestro volta e eles têm um bis ensaiado, danados! Silêncio, todos se sentam e o safado do maestro escolheu logo uma peça que parece uma rumba e que usa a orquestra inteira todos num tempo só, até as moças do contrabaixo tocam meio que dançando e ficam sensuais apesar de carregar o peso enorme do instrumento, e a percussão, então, essa toca muito, a base desta peça é o ritmo, latino, é um mambo uma rumba uma salsa, será um gershwin ou um mambo, tenho que perguntar a ele, ao meu filho que toca agora
no tambor e dança, animado, no ritmo, ele tem um ritmo danado o menino! muito melhor que eu, que nunca aprendi direito a dançar e não canto nem parabéns a você, ele toca o tambor e dança, e acho que olha para cá, para mim, será que me localizou? É possível, as luzes da plateia estão acesas, dou um adeusinho mas desisto pois posso atrapalhar o ritmo dele, deus me livre de atrapalhar, e deve ser o mofo deste teatro velho que está me enchendo de alergias, não só estou tossindo estou fungando, e lacrimejando, já sei o que faço, me levanto discretamente eles estão empolgados com o bis, é um mambo, fazem umas vocalizações e dançam enquanto tocam, a bichona do maestro fica louca parece um boneco de molas, me levanto discretamente, saio do teatro, não quero que achem que eu estava chorando, vou dar uma carga no celular com o dinheiro que ia tomar umas cervejas e mando um torpedo para ele, simples: “Vi tudo, gostei, parabéns!” e dou um tempo, um tempinho, para a orquestra terminar e entrar no ônibus que vai levar meu filho de volta à cidadezinha dele e ligo para ele, só para dizer que eu vi tudo e que estou muito orgulhoso dele, porra.
©Jozias Benedicto Publicado em Estranhas criaturas noturnas, Editora Apicuri (2013) www.apicuri.com.br