A VIDA QUE DEUS DÁ É DESAFIO, DOM E CONQUISTA BORTOLINE, José - Roteiros Homiléticos Anos A, B, C Festas e Solenidades - Paulos, 2007 * LIÇÃO DA SÉRIE: LECIONÁRIO DOMINICAL * ANO: B – TEMPO LITÚRGICO: 18° DOM. COMUM - COR: VERDE
I. INTRODUÇÃO GERAL A vida com seus bens (saúde, moradia, terra, emprego, salário justo, educação, direitos humanos, participação do povo nas decisões nacionais etc.) é dom de Deus. Em Jesus, Deus é pão para todos, ou seja, vida e amor para o mundo inteiro (cf. Evangelho: Jo 6,24-35). Porém, Deus não concede seus dons quando as pessoas esperam passivamente; pelo contrário, ele os concede à medida que as pessoas caminham da escravidão para a liberdade e a vida, superando os desafios da caminhada (cf. 1ª leitura: Ex 16,2-4.12-15). Pelo Batismo fomos feitos Homem Novo capaz de viver na unidade. Ser Homem Novo é romper os esquemas que geram morte, trabalhando pela justiça e vivendo na santidade verdadeira, que é compromisso na construção do Reino de Deus (cf. 2ª leitura: Ef 4,17.20-24). 1.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
Isso serve de prova e preparação para o povo que precisa caminhar para possuir a terra e a liberdade (v. 4b). O bando de codornizes e o maná são provas dessa provisoriedade (v. 13). Não são fins em si mesmos, mas provas de que Deus é o libertador que conduz seu povo para fora dos regimes totalitários, dando-lhe terra, liberdade e vida, coisas que os ídolos do Faraó não proporcionavam: "Assim saberão que eu sou o Senhor, o Deus de vocês" (v. 12). A tradição posterior (cf. Salmo Sl 105,40) transformou o maná em alimento cotidiano, reforçando mais a idéia da providência divina que a da provisoriedade do maná enquanto comida de quem não se acomoda num meio-termo entre a escravidão e a liberdade. Esse modo de ver as coisas predominou até o tempo de Jesus (cf. o contraste que o evangelho de hoje faz entre o alimento que perece e o que permanece).
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Evangelho (Jo 6,24-35): "Eu sou o pão da vida"
A incompreensão do sinal realizado (cf. evangelho do domingo passado) serve de ocasião para que Jesus desenvolva 2. O trecho relata uma das dificuldades enfrentadas pelo o discurso do pão da vida. O sinal apontava para uma realidapovo de Deus a caminho da terra prometida. Mostra também a de maior, a partilha dos bens da criação. É a condição básica presença do Senhor que apóia e sustenta a marcha, pois ele para o novo êxodo. O mundo novo nasce da consciência e dos quer seu povo livre e usufruindo os bens da vida. esforços para tornar concreta a partilha. 3. O povo de Deus está a caminho, saindo do passado de 9. A multidão, porém, ficou só no sinal, pois crê que o novo escravidão e morte para o futuro de liberdade e vida. O deserto êxodo dependa exclusivamente dos esforços e ações de um (cf. 16,1) não é meta, e sim etapa de passagem, lugar de orgalíder. A plenitude do ser humano não vem de cima, mas nasce nização do povo para conquistar a terra que Deus prometeu. de dentro, pois requer colaboração pessoal; requer amor que se Na precariedade do deserto, o povo reclama contra os líderes traduz em partilha. Moisés e Aarão (v. 2). A murmuração da comunidade é grave porque perverte o ideal de libertação do êxodo: "Quem dera a. Como trabalhar pelo alimento que dura (vv. 25-29) tivéssemos morrido pela mão do Senhor no Egito, quando nos 10. A multidão está à procura de Jesus como líder capaz de sentávamos junto às panelas de carne e comíamos pão com fazer tudo sozinho, sem a colaboração das pessoas (vv. 24-25). fartura! Vocês nos trouxeram a este deserto só para fazer morA pergunta que ela lhe faz ("Rabi, quando chegaste aqui?") rer de fome esta gente!" (v. 3). serve para que Jesus fale do compromisso com ele na realiza4. Como a comunidade perverte o caminho da libertação? ção do novo êxodo. Jesus não responde à pergunta da multiEm primeiro lugar distorcendo grosseiramente o ser de Deus, dão; ao contrário, toca logo no cerne da questão, nas motivaque ouviu o clamor do povo e desceu para libertá-lo (3,7-8). ções da multidão: "Vocês estão me procurando não porque Javé é o Deus que liberta. Agora, porém, o povo prefere sentir viram os sinais, mas porque comeram dos pães e ficaram o peso da mão de um deus que mata na terra da escravidão! satisfeitos" (v. 26). Aí está o engano da multidão: antes tinha Javé foi equiparado aos ídolos egípcios, geradores da morte! visto os sinais (6,2), mas agora volta ao sistema antigo, no qual um só é que deveria providenciar alimento ao povo. De 5. Em segundo lugar, a comunidade passa a chamar de vida libertador que é, Jesus foi transformado em alguém que "mata àquela situação de morte experimentada no Egito, minimizana fome" (cf.1ª leitura). do a gravidade da opressão em troca de carne e pão. Eles achavam suficiente ter comida, mesmo que para isso devessem 11. A proposta de Jesus é profunda e nova: "Não trabalhem continuar escravos. E até pintavam a escravidão com cores pelo alimento que perece; trabalhem pelo alimento que dura positivas. Na verdade, dificilmente os escravos tinham carne para a vida eterna, que o Filho do Homem dará a vocês" (v. para comer. Na reclamação contra Moisés e Aarão afirmavam 27a). Jesus supera a visão tradicionalista do maná no deserto que "sentavam junto às panelas de carne". A murmuração do (cf. 1ª leitura), estabelecendo um divisor de águas: não espepovo, portanto, é mentirosa e carregada de má fé, porque não rar, mas trabalhar; não buscar o provisório, mas o definitivo. E aceita a precariedade do deserto, desestimula o projeto de qual é o alimento que não se acaba? Lido à luz de todo o capíliberdade e considera normal a escravidão do Egito só porque tulo 6, o alimento que não se acaba é a partilha, pois partihavia relativa fartura de comida. "Escravos, sim, mas de barri- lhando, sobraram doze cestos cheios (6,13), isto é, o suficiente ga cheia: "Deus dando saúde, o resto a gente se vira!", pensam para todos, sem distinção. A proposta de Jesus, pois, é que se muitos hoje em dia. entenda o conteúdo do sinal, e não a casca. Quem dá essa nova visão do mundo e da sociedade é o próprio Jesus, sobre o qual 6. Esses raciocínios não sintonizam com o projeto do Deus repousa o Espírito Santo (cf. 1,33). Ele é o selo de garantia, a libertador. Ele não admite que seu povo volte ao Egito; ao marca registrada do projeto de Deus (v. 27b). contrário, vai ao encontro da comunidade, providenciando-lhe alimento na provisoriedade: "O povo sairá diariamente a fim 12. Mais uma vez a multidão entende só parcialmente a prode recolher o necessário para o dia" (v. 4a). A marcha pelo posta de Jesus. A pergunta "Que devemos fazer para realizar deserto se caracteriza não pelo definitivo, mas pelo provisório. (literalmente: "trabalhar") as obras de Deus?" (v. 28) revela 1ª leitura (Ex 16,2-4.12-15): Desafios da caminhada
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que o povo ainda pensa o projeto de Deus em termos de comércio, como se os dons de Deus fossem objeto de troca ou compra e venda. A pergunta vem carregada de concepções errôneas sobre o projeto de Deus. Ele não oferece pão em troca de observâncias, preceitos ou ritos. O projeto de Deus não tem preço. É impagável. E por isso é dom. Se há um "trabalho" a ser feito, ele consiste em acreditar naquele que Deus enviou (cf. v. 29). Acreditar sempre e em todas as circunstâncias, aderindo a Jesus enquanto dom do Pai para o mundo novo. Isso requer ruptura com os esquemas antigos (cf. 2ª leitura), superando a errônea concepção de que entre Deus e as pessoas vigorem as leis do comércio e da troca de benefícios. Aderir a Jesus é trabalhar pelo alimento que dura. b. Jesus é o pão da vida (vv. 30-35)
2ª leitura (Ef 4,17.20-24): Os desafios do Homem Novo A 2ª leitura desses últimos domingos nos tem oferecido os trechos mais significativos de Efésios. Como o do domingo passado, o texto de hoje pertence às exortações do autor dessa "carta": Não são simples conselhos a serem aceitos ou rejeitados; ao contrário, são o modo como o cristão se compromete com o mundo novo inaugurado com a morte e ressurreição de Jesus.
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A "carta" é endereçada a cristãos que vieram do paganismo. Eles foram instruídos conforme a verdade que está em Jesus (v. 21), ou seja, tornaram-se, pela preparação e recepção do Batismo, novas criaturas, Homem Novo. Ora, essa passagem pressupõe mudança radical que tem repercussões na comunidade cristã e na vida da sociedade. As repercussões na comunidade já foram apresentadas (cf. 2ª leitura do domingo passado). Agora o autor fala dos desafios enfrentados pelo Homem Novo na sociedade. Para conferir importância ao que vai dizer, apela para o testemunho do Senhor (v. 17).
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O povo chegou a compreender que Jesus é messias à semelhança de Moisés. Por isso pede um sinal como garantia. Quer que Jesus renove os prodígios realizados no êxodo, dando-lhe pão (vv. 30-31) e pão diário. Mais uma vez percebe-se que, no fundo, há uma interpretação tradicionalista do episódio do maná enquanto pão do céu (cf. Ne 9,15; Sl 78,24). Eles 19. O autor critica impiedosamente a sociedade pagã arrastaquerem que Jesus lhes dê no presente o pão do passado, auto- da por "pensamentos vazios" (v. 17). Os anos que passou em maticamente. Éfeso foram suficientes para que Paulo sentisse o que é viver 14. A resposta de Jesus leva o povo à superação do passado, numa sociedade que tem como eixo a ganância da posse, praabrindo-se para o presente da ação de Deus na história, através zer e poder. Isso vai corroendo as bases sociais, pervertendo as de Jesus: "Não foi Moisés quem lhes deu o pão do céu. É meu relações entre as pessoas. A essa prática ele chama de "alienaPai quem dá a vocês o verdadeiro pão que desce do céu. Pois o ção do projeto de Deus" (cf. v. 18). pão de Deus é aquele que desce do céu e dá vida ao mundo" (vv. 32-33). Jesus é o pão para todos. Ele é o verdadeiro e 20. O desafio do Homem Novo é viver nessa sociedade sem entrar no esquema alienante. A "carta" apela para a preparação maior dom que Deus dá, não a um grupo privilegiado de pesque os cristãos receberam "conforme a verdade que está em soas, mas ao mundo inteiro. Dizer que Jesus é "o pão de Deus" Jesus" (v. 21). A solução que aí se vislumbra é a da atitude é afirmar que ele é a expressão cabal e definitiva de tudo o que profética de ruptura com esses esquemas sociais iníquos, o Pai poderia ter feito pela humanidade (nesse trecho, pão é abandonando a conduta passada, a do velho homem, corromsinônimo de dom, presente). pido por paixões enganadoras (v. 23). Esse é o aspecto negati15. Aos poucos as afirmações de Jesus vão tirando as pessoas vo, bem sintonizado com a denúncia dos profetas do Antigo da passividade em que se encontram. O pedido do povo ("Se- Testamento. nhor, dá-nos sempre desse pão!", v. 34) ainda revela esse estado de inércia de quem só quer receber: dá-nos! A declara- 21. O aspecto positivo consiste em assumir nova postura no ção de Jesus: "Eu sou o pão da vida" (v. 35a), colocando-se modo de ser e de pensar (v. 23). O texto emprega uma imaem pé de igualdade com Deus, provoca as pessoas à ação gem própria do rito do Batismo daquele tempo: a troca de roupa. Mas cuidado: não é simples troca de visual. A veste ("quem vem a mim") e à adesão a ele ("quem crê em mim"). nova recebida no Batismo significa a nova identidade do bati16. Temos aqui um dos pontos altos da revelação do Novo zado: ele agora é Homem Novo, criado à imagem de Deus. Testamento: Jesus e o Pai são um (cf. 10,30). Deus já deu o Quais são os objetivos a serem atingidos pelo Homem Novo? pão, o dom-presente. Deus é pão em Jesus. Não precisa mais O v. 24 os sintetiza em duas palavras: justiça e santidade verpedir. Indo a Jesus e crendo nele as pessoas participam dessa dadeira. A justiça refere-se às relações sociais novas que eunidade e comunhão, e fazem parte daquele projeto que Deus mergem do Homem Novo: é alguém que luta por uma sociegostaria ver realizado na humanidade, sem fome e sem sede. A dade justa e pela justiça entre as pessoas; a santidade verdatarefa é exigente: trata-se de assimilar Jesus e o projeto de deira é a que não faz a religião isentar-se do compromisso Deus da mesma forma como o organismo assimila o pão. Mas com o mundo novo, como se para ser santo fosse necessário assimilar Jesus é não mais sentir necessidade. Por quê? Porque "não sujar-se" com a realidade que nos cerca; ao contrário, é ele é "pão para a vida do mundo". Em outras palavras, ele é verdadeira santidade justamente porque não se isenta do comamor que se doa. E quem se achega a ele não o faz para pre- promisso com a transformação das realidades de morte em encher a si próprio, mas para aprender a doar-se e a amar. propostas de vida para todos. A relação com Deus, portanto, Quando aprendemos isso, não haverá mais carentes, pobres ou passa através de relações justas e fraternas na sociedade.. marginalizados, pois o projeto de Deus que encarnamos é liberdade e vida para todos. 13.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO A partir da 1ª e 2ª leituras, fazer um levantamento dos desafios, recuos e avanços da comunidade rumo ao mundo novo. O que nos faz avançar? O que impede a caminhada? Como ser Homem Novo na sociedade em que vivemos?
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23. Como os desafios, recuos e avanços são iluminados por Jesus, "pão para a vida do mundo"? Como nossas comunidades se posicionam: passivamente, esperando que Jesus resolva tudo, ou indo a ele e crendo nele, doando-nos no amor e por amor? Já assimilamos o projeto de Deus revelado em Jesus Cristo? Que sentido tem a Santa Ceia (Eucaristia) dentro dessa realidade?