A VERDADEIRA RELIGIÃO BORTOLINE, José - Roteiros Homiléticos Anos A, B, C Festas e Solenidades - Paulus, 2007 * LIÇÃO DA SÉRIE: LECIONÁRIO DOMINICAL * ANO: B – TEMPO LITÚRGICO: 22° DOM. COMUM - COR: VERDE
I. INTRODUÇÃO GERAL O povo de Deus exilado na Babilônia ouvia com freqüência a pergunta irônica: “Onde está o Deus de vocês?” (Sl 115,2). A partir daí cresce a consciência de que Deus se revela e se mostra próximo mediante uma legislação justa. Praticando-a, o povo se torna grande nação, com leis sábias e inteligentes (1ª leitura Dt 4,1-2.6-8). 1.
Jesus é o que anula as tradições humanas que distorcem a vontade divina. Anulando os preceitos humanos, aponta para um novo tipo de moralidade na qual a impureza que afasta de Deus não depende de condições externas, mas das opções de vida das pessoas. Relacionar-se com Deus não é fazer uma série de ritos de purificação, e sim fazer opção profunda pelo seu projeto (Evangelho Mc 7,1-8.14-15.21-23). 2.
O povo de Deus no exílio ouvia freqüentemente a pergunta irônica: “Onde está o Deus de vocês?” (cf. Sl 115,2). A resposta que o texto de hoje fornece é esta: nosso Deus está presente no seu povo que conserva a aliança e que é portador de uma legislação justa, capaz de angariar fama internacional. Esse povo é grande nação, e sua lei é sábia e inteligente. Assim o povo cultua Deus, e este se mostra próximo e presente. 8.
Esse texto nos inquieta profundamente. Não é tempo de sentirmos a proximidade e presença de Deus numa legislação nacional justa, que promova a vida e a posse da terra para todos? Não é tempo de sentirmos Deus próximo e presente numa legislação internacional justa, que promova a vida de todos os povos? Até quando continuaremos a ouvir a pergunta irônica: “Onde está o Deus de vocês?” 9.
Evangelho (Mc 7,1-8.14-15.21-23): A nova moralidade trazida As comunidades cristãs no final do I século sentiam a tentapor Jesus ção de fazer da religião um relacionamento com Deus separado dos compromissos de solidariedade e justiça. A carta de Tiago 10. O Evangelho de Marcos tem como objetivo principal formar vem iluminar essa questão (2ª leitura Tg 1,17-18.21b-22.27). as pessoas em vista da opção vital em favor de Jesus. Esse evangelho tem como fio condutor a pergunta Quem é Jesus? Em suII. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS cessivas etapas, e a partir de situações concretas, Marcos respon1ª leitura (Dt 4,1-2.6-8): Uma legislação justa que contagie o de a essa pergunta, mostrando, ao mesmo tempo, o que é ser discípulo. mundo todo 4. O capítulo 4 do Deuteronômio é um acréscimo ao livro (na a. Jesus é o que suprime as falsas tradições (vv. 1-8) 3.
forma atual, pertence ao primeiro discurso de Moisés – 1-4), que 11. O texto inicia-se situando Jesus em meio aos conflitos que serve de introdução ao Decálogo. Com grande probabilidade, esse sua prática provoca. Há uma espécie de comissão oficial de incapítulo surgiu durante o exílio na Babilônia como subsídio para quérito vinda de Jerusalém, sede do poder central, para investigar reerguer o povo e devolver-lhe esperança. a prática de Jesus. As intenções dessa comissão, composta de 5. O tema central desse capítulo pode ser sintetizado no primei- fariseus e doutores da Lei (v. l), não são boas, pois se suspeita que ro mandamento: cultuar Javé, excluindo conseqüentemente toda Jesus e seus discípulos estejam transgredindo a tradição (para forma de idolatria. Na teoria, isso podia parecer fácil; mas não o melhor entender esse aspecto seria interessante rever o que Marera para o povo exilado, longe da terra e do templo onde Javé cos fala dos confrontos anteriores de Jesus com esses dois grurecebia, no culto, o reconhecimento de ser o único Deus de Israel. pos). Por trás de fariseus e doutores da Lei esconde-se, evidenteO que fazer, então? Ciente dessas dificuldades, o autor desse mente, o Sinédrio, o tribunal que irá condenar Jesus à morte. Para capítulo procura um novo modo para o povo se relacionar com os inquisidores, a tradição consistia na Torá e também nas inúmeDeus, sentindo-o presente na vida e nas dificuldades. Como, pois, ras prescrições orais. É o que conhecemos como tradição oral dos sentir Javé próximo? Como relacionar-se com ele? Como cultuá- fariseus. Para aos fariseus, ambas têm o mesmo valor e provêm de Deus. Para eles, Jesus não tem direito de mexer no enorme aparalo? to legal, legalista e casuísta montado ao longo do tempo. Mudar a 6. A resposta a essas perguntas está nos versículos que lemos tradição seria opor-se ou igualar-se a Deus. hoje. A nova forma de experimentar Deus numa terra de exílio e sofrimento é manter-se fiel à aliança, traduzida nas leis e decretos 12. O ponto de discussão com Jesus diz respeito à lavagem ritual que daí surgiram, sem nada tirar ou acrescentar (vv. 1-2). Essas (cf. Lv 15,11). Não lavar as mãos antes das refeições é desrespeitinham sido as condições do êxodo. Por elas o povo havia encon- tar as tradições farisaicas (v. 2). Os vv. 3-4 discorrem sobre esse costume. No tempo de Jesus, tudo o que se comprava no mercado trado vida e tomado posse da terra. devia ser purificado, em base à hipótese de estar contaminado por 7. Essas mesmas condições são repropostas agora ao povo contágio com alguma pessoa ritualmente impura, como o “povo exilado. Mantendo-se fiel a elas, o povo sentirá a proximidade de da terra” ou os pagãos (cf. Lv 15). Jesus, enquanto Mestre, é Deus (v. 7). Mais ainda: esse fato servirá de propaganda: a legis- responsável pelo comportamento de seus discípulos. Para os lação de Israel será reconhecida internacionalmente como legisla- inquisidores, ele não tem autoridade para promover normas relição justa. Aí está o privilégio ou responsabilidade do Israel exila- giosas (v. 5). do: ser portador de legislação sábia que contagie internacionalmente (vv. 6.8). Em outras palavras, o relacionamento povo-Deus 13. Os vv. 3-4 mostram, ainda, que o Evangelho de Marcos se não passa em primeiro lugar pelo culto (que não existia de forma dirigia a pagãos dispostos à adesão a Jesus. Por isso é que esses oficial e regular no exílio), mas por uma prática de justiça em versículos explicam a prática farisaica da purificação ritual. Na nível nacional com repercussões internacionais. É neste ponto que ótica do evangelista, e em base ao ensinamento de Jesus, a tradio povo de Deus se distinguirá das demais nações: por uma legis- ção farisaica criava tabus, preconceitos e barreiras em relação aos lação sábia e inteligente que promova a justiça. Conseqüentemen- pagãos, suspeitos de contínua impureza ritual. Além disso, Marte, esse código de leis será capaz de fazer ruir as demais legisla- cos, no cap. 7, situa boa parte da atividade de Jesus em território ções e os cultos alienantes que não promovem a justiça entre os pagão, mostrando que sua lei anula os tabus, suprime os preconpovos. É aí que o Deus verdadeiro se revela, é aí que se relaciona ceitos e derruba as barreiras que privilegiam grupos em detrimenpessoalmente com seu povo (cf. v. 7). É aí que Israel se torna to e marginalização de pessoas. grande nação, reconhecida no mundo todo como nação sábia e 14. A resposta de Jesus (vv. 6-8) é a abolição da diferença entre inteligente: mediante suas leis justas. puro e impuro enquanto barreira entre judeus e pagãos. Jesus cita
Is 29,13 e chama os inquisidores de hipócritas. Hipócrita é o injusto que, com seu agir, se afasta de Deus: crê-se temente a Deus mas, sob essa aparência, pratica a injustiça. Hipócrita era o ator antigo de teatro. Como os atores de hoje, representam sem estar vivendo. Jesus chama os doutores da Lei e fariseus de hipócritas porque transformam as aparências no elemento mais importante da religião. É oportuno perguntar, numa situação dessas, quem são as maiores vítimas. A citação de Is 29,13 contrapõe lábios a coração, exterior e interior, aparências e coerência. O culto prestado a Deus não é questão de palavras, mas uma prática que revele o ser de Deus. Tradição dos homens, preceitos humanos, ritos, leis, burocracias sufocam a vontade de Deus. 15.
b. Jesus ensina a nova moralidade (vv. 14-15.21-23)
optassem pela justiça? Continuariam existindo privilegiados e marginalizados, opressores e oprimidos? 2ª leitura (Tg 1,17-18.21b-22.27): A verdadeira religião A partir de hoje até o 26º domingo, a segunda leitura oferece as passagens mais significativas da carta de Tiago. Trata-se de “escrito de caráter sapiencial, isto é, mostra a sabedoria do discernimento cristão diante das situações. Dirige-se a todas as comunidades cristãs, simbolizadas pelas ‘doze tribos' do novo povo de Deus. Esta carta reduz toda a Lei judaica ao mandamento do amor ao próximo (1,25; 2,8.12). Pode-se dizer que é a explicação das exigências desse mandamento em diversas circunstâncias: igualdade cristã (2,1-4), preferência pelos pobres (2,5-7), amor ativo (2,14-17). Esse amor exclui a exploração, e nesta carta encontramos a mais violenta passagem do Novo Testamento contra os ricos (5,1-6). A fé aqui é vista como dinamismo que produz ação e que só é madura quando se expressa em atos concretos (2,2026); é fé que rejeita qualquer espiritualidade ou religiosidade individualista e intimista (1,13-16)” (Bíblia Sagrada – Edição Pastoral, Paulus, p. 1561). 20.
No v. 14 Marcos apresenta Jesus convocando a multidão para perto de si, a fim de receber o novo que ele apresenta. O que segue, portanto, tem sabor de novidade. Contudo, a novidade de Jesus não é isenta de discernimento: “Escutem e compreendam!” Compreender requer discernimento e disponibilidade em aceitar a novidade de Jesus (cf. 4,11-13). Mais ainda: é preciso posicionar- 21. A carta de Tiago se opõe a um tipo de religião que foge dos se do lado dele e de seu projeto, passar de fora para dentro (cf. compromissos existenciais para se refugiar no ritualismo, justifi4,11) para deixar de ser hipócrita, ou seja, injusto. cando as injustiças ou fechando os olhos diante delas. Os poucos versículos pinçados do cap. 1 comprovam isso. Em primeiro 17. A novidade de Jesus contrapõe justamente fora e dentro. Para lugar, o texto demonstra que todos os dons vêm de Deus. Entre o casuísmo farisaico, a impureza estava fora, nos objetos, coisas esses dons está a vocação cristã. Ora, em Deus não há variação ou pessoas impuras. Para Jesus, a impureza é conseqüência das nem sombra de mudança (v. 17). Por isso, pertencer a Deus enopções de vida das pessoas; vinda de dentro, do coração – para os quanto criatura e, mais ainda, como cristão, comporta coerência e semitas é a sede das opções vitais e da consciência – torna impu- continuidade com o projeto divino, animado pelo Espírito (cf. Mt ras as pessoas (vv. 15.23). 7,11). 18. Os vv. 21-22 apresentam um catálogo de treze vícios: más 22. O anúncio do evangelho – Palavra da verdade – que provointenções, imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, ambições cou mudança na vida cristã a ponto de as pessoas terem abraçado desmedidas, maldades, fraudes, devassidão, inveja, calúnia, orgu- o Batismo, faz com que os cristãos sejam os primeiros frutos da lho, falta de juízo. Há, nesse elenco, uma espécie de síntese de nova sociedade que nasce da prática de Jesus e do compromisso tudo o que de ruim o ser humano é capaz de fazer contra si pró- dos que aderem a ele (v. 18). prio e contra os outros. Alguns vícios são muito evidentes; outros são mais sutis, como a inveja. Lida à luz de todo o contexto, a 23. Em base a isso, Tiago convida a acolher a Palavra e a pôr em inveja (literalmente “olho mau”, cf. Mt 20,15) é atitude de crítica prática o que ela determina (vv. 21b-22) para merecer o nome de e hostilidade em relação ao projeto de Deus, exatamente como cristão. Isso está em estreita relação com as exigências que Jesus faziam os fariseus e doutores da Lei que foram investigar a práti- fez a seus discípulos (cf. Mt 7,24-26). ca de Jesus. O mesmo se diga da falta de juízo, último vício da súmula catecumenal: é a estupidez de quem se preocupa com 24. No tempo em que essa carta foi escrita, as comunidades comportamentos externos. Finalmente, o orgulho. No Magnificat, cristãs arriscavam fechar-se em si mesmas, sem compromisso Maria proclama que Deus dispersou os corações orgulhosos (cf. com a transformação da sociedade. Tiago insiste que “a religião pura e sem mancha diante de Deus Pai é esta: assistir os órfãos e Lc 1,5l). as viúvas em suas tribulações e guardar-se livre da corrupção do 19. Esses vícios velados tornam-se evidentes no dia-a-dia das mundo” (v. 27). Em síntese, religião é solidariedade com os marpessoas pelo fato de orientarem a atividade do ser humano: das ginalizados (órfãos e viúvas) e ruptura com as estruturas de pecaintenções veladas passa-se à concretização: roubos, assassínios, do que geram marginalização (guardar-se da corrupção do munadultérios, fraudes etc. Jesus garante que a impureza não é forne- do). Mais uma vez, Deus nada pede para si. O autêntico relaciocida pela natureza; ao contrário, é questão de opção. Daí decorre a namento com ele passa pelo caminho necessário da fraternidade e seguinte pergunta: Como seriam as relações sociais se as pessoas da justiça. 16.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO As leituras deste domingo giram em torno do tema A verdadeira religião. Sentir Deus próximo e presente nas lutas do povo para conseguir vida, terra, moradia, leis justas que promovam a vida para todos. “Onde está o Deus de vocês?” (1ª leitura Dt 4,1-2.6-8). 25.
Jesus acaba com barreiras, preconceitos e tabus, mostrando como agradar a Deus (Evangelho Mc 7,1-8.14-15.21-23). Quais são as impurezas da nossa sociedade e das comunidades cristãs? Quais ritualismos e tradicionalismos impedem o cumprimento da vontade de Deus? 26.
A verdadeira religião é solidariedade com os marginalizados e ruptura com as estruturas de pecado. Como obter maior fraternidade e justiça em nossas comunidades? (2ª leitura Tg 1,17-18.21b-22.27). 27.