O REI E SEUS IRMÃOS MENORES BORTOLINE, José, Roteiros Homiléticos Anos A, B, C Festas e Solenidades, Paulos, 2007 * LIÇÃO DA SÉRIE: LECIONÁRIO DOMINICAL * ANO: A – TEMPO LITÚRGICO: 34° DOMINGO COMUM – COR: BRANCO
I. INTRODUÇÃO GERAL 1. Chegamos ao final do Ano Litúrgico. Nas celebrações deste domingo, as comunidades são convidadas a comemorar a vitória da justiça que aconteceu na ressurreição de Jesus. Os textos bíblicos deste domingo reforçam nosso compromisso com a justiça do Reino, tema que acompanhou as reflexões sobre o evangelho de Mateus. No dia em que celebramos a festa da sua realeza, Jesus nos convida a olhar para seus "irmãos menores", impedidos de viver por causa das injustiças e opressões que tornam nossa sociedade cada vez mais desigual. A realeza de Cristo não estará completa enquanto seus "irmãos menores" não tiverem liberdade e vida. A mudança dessa realidade depende da sensibilidade, solidariedade e serviço dos que decidiram seguir o Mestre da Justiça.
1ª leitura (Ez 34,11-12.15-17): Javé quer uma sociedade fundada na justiça e no direito 2. Ezequiel é o profeta que acompanhou de perto a desgraça do povo de Deus na época do exílio na Babilônia. Em 34,1-10 ele ajuda a descobrir os motivos que levaram o país inteiro ao desastre e à submissão aos babilônios: os principais culpados são as lideranças que, em vez de zelar pelo bem-estar do povo, acabaram desunindo-o e devorando-o, permitindo que se tornasse presa fácil da ganância internacional. Agora o povo está no exílio, mas isso não é o fim. O próprio Javé irá cuidar das ovelhas que são o seu povo. É disso que tratam os versículos 11-22, entre os quais estão os que a liturgia escolheu para este domingo.
O povo que vive longe de sua pátria sofre muito por causa do abandono em que se encontra. O v. 16 fala de ovelhas perdidas, extraviadas, fraturadas e doentes, ao lado de ovelhas gordas e fortes. É o modo que Ezequiel encontrou para falar do sofrimento do povo exilado, desunido e oprimido. Temos a impressão de que o povo chegou ao fundo do poço. Além disso, não há lideranças. Sem líderes comprometidos com a libertação das pessoas, o povo se torna cada vez mais massa de manobra e joguete dos interesses dos poderosos. Sem liberdade e união não há povo. 3.
É dentro dessa situação que Ezequiel age como profeta da esperança e porta-voz do Deus libertador. Ele fala em nome do Deus que, no passado, libertou seu povo do Egito. De fato, ao apresentar Deus sob a imagem do pastor, Ezequiel anima o povo a crer no Deus que liberta e salva as vítimas da ganância dos poderosos. O Deus do êxodo é o mesmo Deus dos exilados na Babilônia, o libertador. Isso se torna mais claro se prestarmos atenção às ações que Javé-pastor promete realizar em favor dos exilados: ele vai procurar as ovelhas e tomar conta delas (v. 11), cuidar delas e resgatá-las (v. 12), apascentá-las e fazê-las repousar (v. 13), procurar a perdida, reconduzir a extraviada, enfaixar a fraturada e for4.
talecer a doente (v. 16a), além de vigiar a ovelha gorda e forte, apascentar conforme o direito e fazer justiça entre ovelha e ovelha, entre carneiros e bodes (vv. 16b-17). São treze ações de Javé-pastor, e todas elas podem ser resumidas com as palavras liberdade e vida: Deus vai tirar seu povo da escravidão, reconduzi-lo à terra de onde saiu, cuidando para que a justiça e o direito sejam a base da nova sociedade a ser construída. Evangelho (Mt 25,31-46): Onde encontrar Deus? 5. O trecho de hoje, conhecido como "juízo final", encerra o discurso escatológico do evangelho de Mateus, a preocupação com o final dos tempos (caps. 24-25). Jesus, chamado Filho do Homem, é apresentado como juiz de toda a humanidade (v. 32a: "Todos os povos da terra serão reunidos diante dele". Comparar a promessa feita a Abraão de ser "pai de nações" em Gn 17,6 com o título de "filho de Abraão", dado a Jesus em Mt 1,1). Ele senta no seu trono glorioso (v. 31b). Com isso o evangelista nos diz que Jesus é, ao mesmo tempo, rei e juiz universal, executando as ações próprias de Javé no Antigo Testamento (cf. Zc 14,5). Mateus emprega a imagem do pastor, já utilizada em Ezequiel 34,17 (cf. 1ª leitura), para mostrar o Mestre da Justiça julgando a humanidade e a história, tendo como critério de julgamento a prática da justiça. De fato, ao lermos esse trecho, recordamos o programa de Jesus no evangelho de Mateus: "Devemos cumprir toda a justiça" (3,15). O Mestre da Justiça diz "devemos", envolvendo nessa tarefa toda a humanidade, sem distinção. O julgamento do mundo terá, portanto, como tema central a justiça nas relações entre pessoas, grupos sociais e nações. 6. À primeira vista parece que o "juízo final" não fale de justiça. Mas a conclusão não deixa dúvidas: "Os justos irão para a vida eterna" (v. 46b). Há, portanto, uma nítida separação: de um lado quem agiu conforme a justiça do Reino (os abençoados pelo Pai), e do outro quem deixou sua vida percorrer as estradas da injustiça, e são chamados de "malditos". O julgamento é, pois, a revelação última do sentido de nossas ações a favor ou contra a justiça do Reino que devemos, com Jesus, construir em nossa sociedade e história. 7. Jesus, e só ele, irá separar uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos (v. 32). As ovelhas, isto é, os justos abençoados pelo Pai, ficarão à direita dele, lugar privilegiado e sinal de salvação, enquanto os cabritos, ou seja, os injustos, os malditos, ficarão à esquerda, sinal de condenação. 8. O prêmio concedido aos justos é o Reino definitivo (v. 34b), porque eles ocuparam sua vida na promoção e defesa dos direitos de quem passa fome e sede, repartindo com eles o alimento; repartiram sua casa com os estrangeiros que não têm onde morar, nem direitos e proteção (v. 35); partilharam a roupa com quem não tinha o que vestir, sendo compassivos com os que sofrem limi-
tações por causa da doença ou foram privados da liberdade (presos, v. 36). Em outras palavras, foram portadores concretos de felicidade aos "afligidos" (cf. 5,4). O interessante é que os justos ignoram ter ajudado o Filho do Homem na pessoa dos empobrecidos. Por isso é que perguntam, impressionados: "Senhor, quando foi que fizemos isso a você?" (cf. vv. 37-39). É que a justiça do Reino não pode ser calculada nem medida segundo nossos critérios. Nós esbarramos a todo momento com marginalizados e injustiçados e, às vezes, por motivos religiosos ou preconceitos, não descobrimos o Filho do Homem escondido nos seus "irmãos menores". Os fariseus e doutores da Lei é que calculavam e mediam sua justiça. E por causa disso se afastaram do Reino. De fato, eles odiavam o povo porque, segundo eles, era ignorante, impuro, pecador…
bundância e do prestígio. Não lutar pela justiça é servir a ele, ainda que tentemos esconder essa farsa com a aparência da piedade. 2ª leitura (1Cor 15,20-26.28): A ressurreição de Cristo nos cristãos 11. Um dos motivos que levaram Paulo a escrever aos coríntios foi a questão da ressurreição dos mortos. Para os de cultura grega era difícil aceitar que os mortos pudessem voltar à vida. Negando a ressurreição dos mortos, negavam também a ressurreição de Cristo.
12. Em 1Cor 15 Paulo trata dessa questão. Inicia recordando o anúncio fundamental (querigma) do Evangelho: Cristo morreu e ressuscitou. É isto que ele e os demais apóstolos anunciam. E as provas de que Cristo vive são os próprios apóstolos e muitos cristãos, aos quais ele 9. O Mestre da Justiça iniciou sua atividade libertado- apareceu depois de ressuscitado. ra na Galiléia dos que não são judeus, no meio do povo 13. Baseado nisso, Paulo tenta levar à fé os que duvique vivia nas trevas e na região escura da morte (cf. dam (vv. 12-34), apresentando provas tiradas da Bíblia 4,15-16). No Sermão da Montanha ele proclamou felizes (vv. 27.32). Outros argumentos que confirmam a ressuros pobres em espírito, os perseguidos por causa da justi- reição dos mortos fazem parte do trecho que lemos na ça, os que têm fome e sede de justiça, os aflitos, os a- liturgia de hoje. O primeiro é o que mostra Cristo enmansados, porque a felicidade deles acontecerá quando quanto primícia dos que morreram (v. 20). Primícias são acontecer a sociedade justa e solidária que esperam e os primeiros frutos a amadurecer. Depois deles amadupela qual lutam. Os benditos do Pai são, portanto, os que recem os demais e vem a colheita. Portanto, os mortos lutam por um mundo justo e fraterno, sem discrimina- ressuscitarão também, como Cristo ressuscitou. Dentro ções nem desigualdades, começando pela "galiléia" dos de cada cristão há sementes de ressurreição semeadas empobrecidos e explorados pelo sistema injusto. por aquele que venceu a morte e confirmou a vitória da
Os que sustentam o sistema injusto também se assustam, porque devem ir para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos (v. 41), e perguntam: "Senhor, quando foi que te vimos com fome, ou com sede, como estrangeiro, ou sem roupa, doente ou preso, e não te servimos?" (v. 44). Isso aconteceu justamente quando deixaram de servir à causa da justiça, pois não servir é tão grave quanto ser criminoso. Não lutar pela justiça é ser cúmplice de todas as injustiças que se cometem contra os "irmãos menores" do Filho do Homem. Talvez esses "malditos" tivessem boas intenções. Pode ser até que fossem pessoas "piedosas". Mas o evangelho nos mostra que a piedade divina se traduz em misericórdia e solidariedade para com os marginalizados. O Filho do Homem não exigiu nada para si: nem culto, nem orações, nem oratória, mas solidariedade prática traduzida na partilha dos bens. O diabo, que tentou Jesus no deserto (cf. 4,1-11), é o espírito da não-partilha e da nãosolidariedade. Jesus venceu o diabo do acúmulo, da a10.
vida. Paulo contrapõe Adão a Cristo: o pecado do primeiro acarretou a morte para todos; a morte-ressurreição do segundo confere vida a todos. Se todos se solidarizaram em Adão em vista da fraqueza e do pecado, com sua morte e ressurreição Cristo nos associou a si e à sua vida em plenitude (vv. 21-22). Por causa dele fomos feitos cristãos, semelhantes a Cristo na vitória sobre a morte. 14. O segundo argumento é o da vitória de Cristo sobre todas as forças hostis às pessoas e ao projeto de Deus. Ele aniquilará todos os mecanismos de morte (soberania, poder e força), vencendo finalmente a morte, último inimigo, e entregando o Reino ao Pai (vv. 24-26), de modo que Deus seja tudo em todos (v. 28). A vitória de Cristo, portanto, não será completa enquanto não vencer também naqueles que trazem o seu nome. Isso quer dizer que a luta contra a morte é tarefa conjunta de Cristo e dos cristãos. Só quando estes participarem da vida plena em Deus é que Cristo dará por encerrada sua missão.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO 15. O Ano Litúrgico termina com a festa de Cristo-Rei. A 1ª leitura mostra em que consiste a realeza de Deus: ela é serviço à liberdade e à vida das pessoas, sobretudo das que são impedidas de viver. O evangelho aprofunda esse tema, comprometendo a todos com a prática da justiça, traduzida em solidariedade e partilha dos bens. Jesus continua desafiando nossa fé nos "irmãos menores" da nossa sociedade. Paulo comprova, com a ressurreição de Cristo, a vitória da justiça. Dentro de cada um de nós há sementes de ressurreição. Elas dão fruto quando as pessoas e as comunidades se comprometem com Cristo na luta contra todas as formas de morte, para que Deus seja tudo em todos.