Comentário: 3º Domingo da Quaresma - Ano B

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UMA RELIGIÃO VOLTADA PARA A VIDA E A LIBERDADE BORTOLINE, José - Roteiros Homiléticos Anos A, B, C Festas e Solenidades - Paulos, 2007 * LIÇÃO DA SÉRIE: LECIONÁRIO DOMINICAL * ANO: B – TEMPO LITÚRGICO: 3º DOMINGO DA QUARESMA – COR: ROXO

9. O quinto mandamento (v. 13) é o eixo do Decálogo. Ele se opõe ao sistema social que vigorava no Egito, o lugar da escravi1. Reunir-se para celebrar é expressar comunitariamente a dão. Aí fora decretada a extinção do povo de Deus. Israel, para própria fé e religião. Todavia, a religião, do modo como nos é ser fiel ao Deus que preserva e promove a vida, deverá pôr a vida apresentada nas leituras deste domingo, só pode ser verdadeira se como valor absoluto. estiver voltada para a vida e a liberdade de cada uma e de todas as pessoas. 10. O sexto mandamento (v. 14) focaliza a preservação e promoção da vida na família: “Não cometerás adultério”. O adultério 2. As leituras de hoje nos dizem que a solidariedade para com destrói a relação familiar. os excluídos passa por leis justas que preservem e promovam a vida, sobretudo a dos que estão sendo privados da dignidade, e 11. O sétimo mandamento (v. 15) ordena: “Não roubarás”. passa também através de uma religião que abandone, de uma vez Vários estudiosos afirmam que o verbo “roubar”, neste caso, está por todas, a exploração das pessoas, mesmo que os exploradores relacionado com escravização e privação da liberdade de alguém. Neste caso, não se trata simplesmente de tirar algum objeto que da religião estejam invocando em sua defesa o próprio Deus. pertence a outra pessoa. A questão é mais profunda. Trata-se de II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS não escravizar as pessoas, pois esse era o sistema social que vigorava no Egito, onde a vida não era preservada nem promovida. 1ª leitura (Ex 20,1-17): A vida acima de tudo Isso nos faz pensar no mundo dos encarcerados, onde muita gente 3. O Decálogo privilegia a vida, propondo-a como valor ímpar. vive em situação de verdadeira escravidão. De fato, alguns estudos recentes afirmam que o eixo das Dez Palavras é o v. 13: “Não matarás”. A vida, portanto, é o núcleo da 12. O oitavo mandamento (v. 16) diz respeito à vida a ser preconstituição do povo de Deus. Ao preservar ou promover a vida, servada e promovida através de julgamentos e sentenças justas: Israel está sendo fiel ao Deus da Aliança que o libertou da escra- “Não levantarás falso testemunho contra o próximo”. Se os pobres e os fracos não encontram quem lhes faça justiça, a sociedavidão do Egito. de se torna um novo Egito, cheio de clamores e opressões, pois a 4. O v. 2 funciona como introdução. Ele recorda quem é Deus. impunidade da injustiça é a pior escola numa sociedade corrupta. É aquele que ouve os clamores do povo e o liberta. É o Deus do povo que clama. O Egito é símbolo de todas as opressões infligi- 13. Os dois últimos mandamentos (v. 17) proíbem a cobiça das às pessoas. Sendo aquele que preserva e promove a vida, Javé (casa, mulher, escravo/a, boi, jumento), fonte e origem de toda se alia aos que sofrem, libertando-os de todos os “lugares de injustiça social, pois o desejo do acúmulo é o pai de todos os escravidão”. Esse versículo, porta de entrada do Decálogo, serve males. Isso acontecia no Egito, onde o Faraó concentrava tudo em de ponto de referência, ou seja, Israel irá, através de uma legisla- suas mãos: terras, poder, bens, riquezas. Para construir uma socição justa, construir uma sociedade totalmente diferente do Egito, edade alternativa, Israel precisa aprender a justiça e a partilha. onde a vida nada valia e as pessoas eram tratadas como objetos. Evangelho (Jo 2,13-25): Religião não é comércio 5. O primeiro mandamento (vv. 3-6) proíbe a idolatria: “Não 14. Por ocasião da festa da Páscoa a cidade de Jerusalém se terás outros deuses além de mim. Não farás para ti ídolos… não te enchia de peregrinos. Páscoa era, para os judeus, a festa principal, prostrarás diante deles, nem os servirás, pois eu sou o Senhor teu pois nela o povo recordava a libertação da escravidão do Egito. Deus, um Deus ciumento”. Israel não pode fabricar representaNo tempo de Jesus, o povo ia a Jerusalém para essa celebração ções do Deus que preserva e promove a vida, pois uma vez que festiva. Contudo, a Páscoa deixara de ser uma festa popular por pudesse ser representado por imagem ou figura, já estaria sendo ter sido manipulada pelas lideranças religiosas e políticas daquele manipulado pelas pessoas. Ao Deus da vida as pessoas respondem tempo. O povo vai a Jerusalém para celebrar a libertação. Mas o com adesão única e incondicional (fé monoteísta). Se Israel quiser que aí encontra é a maior exploração. Pior ainda: parece que Deus se aproximar e ver o Deus que preserva e promove a vida, deve está de acordo com tudo isso. A Páscoa não é mais a festa do buscá-lo no irmão, feito “à imagem e semelhança de Deus” (cf. povo que celebra e revive a libertação, mas a festa das lideranças Gn 1,27), e não nos ídolos que não preservam nem promovem a exploradoras, que se aproveitam do momento para oprimir mais vida das pessoas. O verdadeiro culto que se presta ao Deus vivo e ainda o povo. verdadeiro é a defesa e promoção da vida. 15. Jesus não concorda com essa situação: “No templo, encon6. O segundo mandamento (v. 7) proíbe pronunciar o nome de trou os vendedores de bois, ovelhas e pombas, e os cambistas Deus em vão, “porque o Senhor não deixará de punir quem prosentados. Então fez um chicote de cordas e expulsou todos do nunciar seu nome em vão”. O Deus da vida e da liberdade não templo, junto com as ovelhas e os bois; espalhou as moedas e pode ser usado para acobertar a morte e a escravidão. derrubou as mesas dos cambistas” (vv. 14-15). 7. O terceiro mandamento (vv. 8-11) diz respeito ao sábado. 16. João nos mostra Jesus usando um chicote. Esse fato recorda No Egito não havia respeito pela pessoa, pois o que se fazia aí era o que fora anunciado por Zacarias: “Nesse dia não haverá mais trabalho escravo. A proibição do trabalho em dia de sábado é um comerciantes dentro do templo de Javé dos exércitos” (Zc 14,21). freio à ganância e exploração de uma pessoa sobre a outra. O Com esse gesto Jesus inaugura os tempos do Messias. Zacarias descanso no sábado permite que a pessoa se sinta viva e livre e previa um tempo em que o culto estaria plenamente isento da tome consciência de todos os aspectos que envolvem sua vida exploração do povo. Para João, esse dia chegou com Jesus. A (trabalho, lazer, fruição da vida). partir de agora ninguém mais poderá, mesmo que o fizesse em 8. O quarto mandamento (v. 12) manda honrar pai e mãe, a nome de Deus, defender um culto ou religião que sejam conivenfonte da vida. No Egito, onde o povo de Deus viveu escravo, a tes com a exploração do povo. honra e a vida eram atribuídas ao Faraó e suas divindades. Israel 17. Para aprofundar esse aspecto é preciso ter presente a situatem os pés no chão. O Deus que preserva e promove a vida manda ção econômica daquele tempo. Nessa época, as terras da Palestina honrar os pais, pois foi a partir deles que a vida de cada pessoa estavam nas mãos dos latifundiários. Esses pertenciam à elite começou a existir. religiosa (sumos sacerdotes e anciãos) e moravam em Jerusalém. O sumo sacerdote era o presidente do Sinédrio, o supremo tribu-

I. INTRODUÇÃO GERAL


nal que condenará Jesus à morte. Três semanas antes da Páscoa os arredores do templo se tornavam um grande mercado. O sumo sacerdote enriquecia com o aluguel dos espaços para as barracas dos vendedores e cambistas. Os animais criados nos latifúndios eram conduzidos a Jerusalém e vendidos a preços que, nessas ocasiões, aumentavam assustadoramente. 18. Todo judeu maior de idade devia ir a essa festa e pagar os impostos previstos para o templo. O templo adotara a moeda tíria (cunhada em Tiro, cidade pagã) como moeda oficial, pois ela não desvalorizava com a inflação que, na época de Jesus, era muito alta. A ironia disso está no fato que a Lei proibia o ingresso no templo de moedas pagãs. Mas os gananciosos dirigentes religiosos burlavam a Lei em vista de seus privilégios. Os cambistas faziam a troca das moedas “impuras” (as moedas inflacionadas de quem morava na Palestina ou fora dela) pela moeda “pura” e, por seu trabalho, cobravam altas taxas (8%). 19. Jesus expulsou do templo bois, ovelhas, pombas, animais usados nos sacrifícios que o povo oferecia a Deus. Expulsando-os do templo, Jesus declara inválidos todos esses sacrifícios, bem como o culto que se sustenta graças à exploração. 20. Os vendedores de pombas são os mais visados por Jesus: “Tirem isso daqui. Não façam da casa de meu Pai um mercado” (v. 16). Os pobres, não tendo condições de oferecer a Deus ovelhas ou bois, sacrificavam pombas para os ritos de expiação e purificação, bem como para os holocaustos de propiciação (cf. Lv 5,7; 14,22.30s). Pobres desses pobres! Além de nada terem, até Deus parecia estar distante deles. A teologia veiculada pelo templo de Jerusalém é extremamente conservadora, isso porque os dirigentes do templo estão por trás de todo o comércio que nele se desenvolve. “O culto proporcionava enormes riquezas à cidade. Sustentava a nobreza sacerdotal, o clero e os empregados do templo. O gesto de Jesus toca, portanto, o ponto nevrálgico: o sistema econômico do templo, com seu enorme afluxo de dinheiro procedente do mundo todo conhecido… Era outra forma de exploração” (J. Mateos-J. Barreto, O Evangelho de São João, Paulus, 1989, p. 150). Nas grandes festas o preço das pombas (sacrifício dos pobres) ia às nuvens, fortalecendo a exploração dos ricos sobre os empobrecidos.

Deus, o aliado dos sofredores empobrecidos, sempre denunciou, através dos profetas, a exploração da religião. Ele é o Deus que ouve o clamor dos marginalizados. Mas a teologia veiculada pelo templo de Jerusalém afirma o contrário. Para ser ouvido, Deus precisa ser comprado através de sacrifícios. Mais ainda: Deus precisa ser comprado por “dinheiro limpo”. A ira de Jesus tem toda razão de ser.

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22. O gesto de expulsar os comerciantes do templo suscita duas reações. A primeira vem dos discípulos. Para eles, Jesus seria um reformador da instituição. E até citam a Bíblia: “O zelo por tua casa me consome” (v. 17; cf. Sl 69,9). Logo adiante (vv. 21-22) João afirma que os discípulos, após a ressurreição de Jesus, redimensionam seus conceitos a respeito de Jesus. Ele não é um reformador do templo, mas aquele que o substitui.

23. A segunda reação vem dos dirigentes, exatamente os que se sentem lesados pelo gesto de Jesus acabar com o comércio no templo. Eles o querem intimidar: “Que sinal nos mostras para agir assim?” (v. 18). Jesus responde dizendo que sua morte e ressurreição serão o grande sinal: “Destruam este templo, e em três dias eu o levantarei” (v. 19). Temos aqui o centro do evangelho deste dia. Jesus não só aboliu os sacrifícios no templo de Jerusalém; ele decretou que o fim do templo já chegou. É através do seu corpo, morto e ressuscitado, que o povo se reencontra com Deus para celebrar a Páscoa da libertação. A essa altura o Evangelho de João já aponta para os responsáveis pela morte de Jesus.

Os vv. 23-25 iniciam novo assunto. Eles servem de introdução ao diálogo de Jesus com Nicodemos (cf. evangelho do próximo domingo). Parece estranho que Jesus não confie nas pessoas: “Jesus não confiava neles, pois conhecia a todos. Ele não precisava do testemunho de ninguém, porque conhecia o homem por dentro”. Ele não confiava porque as pessoas viam nele um reformador das velhas instituições, e não aquele que vem trazer o vinho novo (cf. 2,10). Além disso, no Evangelho de João as pessoas são convidadas, a partir dos sinais que Jesus realiza (v. 23), a descobrir a realidade para a qual apontam, mas que permanece oculta a quem não dá, pela fé, sua adesão incondicional a Jesus.

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2ªleitura (1Cor 1,22-25): Uma religião “escandalosa” e “louca” 25. A comunidade de Corinto era composta, em sua maioria, por pessoas pobres e escravas: “entre vocês não há muitos intelectuais, nem muitos poderosos, nem muitos de alta sociedade” (1,26). Sabe-se que essa gente trabalhava nos cais dos portos, transportando cargas pesadas, empurrando navios, levando uma vida de verdadeiros “crucificados” da sociedade. 26. Paulo chegou a Corinto e foi anunciar a esses crucificados a vitória de um crucificado como eles. Se dermos crédito ao que Lucas narra nos Atos dos Apóstolos, a opção preferencial de Paulo pelos pobres deu-se sobretudo depois do fracasso diante das elites de Atenas. 27. Não é possível falar de Deus aos crucificados de ontem e de hoje a não ser falando da cruz de Cristo, ou seja, falando de um Deus “escandaloso” e de uma religião “escandalosa” e “louca”, pois Deus assumiu em Jesus esse risco. De fato, para um judeu a cruz é o que existe de mais horrendo, pois a própria Lei considera maldito quem foi crucificado (cf. Gl 3,13). Os judeus exigem uma religião de sinais prodigiosos para acreditar. Em outras palavras, uma religião sem riscos, “arroz-com-feijão”. Os gregos procuram sabedoria (v. 22), ou seja, uma religião que não se encarna jamais, puramente racional e científica, uma religião de laboratório. 28. Jesus escolheu o caminho do escândalo e da loucura, pois a cruz é símbolo do fracasso, fraqueza, vergonha e maldição, mas ao mesmo tempo é símbolo da encarnação do Filho de Deus em nossa realidade mais concreta. Morrendo na cruz Jesus nos libertou. É aí que reside o poder de Deus e sua sabedoria, pois Jesus é a revelação máxima do projeto e do amor de Deus.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO A 1ª leitura (Ex 20,1-17) mostra que é possível construir uma sociedade justa e fraterna onde a vida de todos seja preservada e promovida. O que os mandamentos nos sugerem diante da situação dos excluídos?

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30. Jesus não veio pôr remendos em instituições que, além de não preservar e promover a vida, exploram o povo em nome de Deus. E hoje, quais as instituições que não preservam nem promovem a vida do povo?...

Paulo nos ajuda a descobrir a verdadeira religião (1Cor 1,22-25). Quem acha que religião se resume em espetáculos programados sem riscos (sinais prodigiosos) ou em raciocínios bem elaborados (os gregos... religião de laboratório), cedo ou tarde deverá ajustar contas com a necessidade de se encarnar nas realidades concretas do povo pobre e crucificado. Se não o fizer, não estará anunciando Cristo crucificado, mas a si mesmo.

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