Sérgio Francisco/UFPE
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‘BINHONCÈ’ A DIVA DOS SEMÁFOROS RECIFENSES POR SÉRGIO FRANCISCO
nome Gregório Bezerra, ao ser evocado, carrega naturalmente consigo o que se pode conceber enquanto resiliência, luta e reivindicação existencial perene. Sua história tornou-se de domínio público ao ser relatada em sua Memórias (1979), obra bibliográfica desenvolvida em pouco mais de 600 páginas dividida em duas partes. Nascido em 1900 – logo após a guerra de Canudos, o fim oficial da escravidão no Brasil e o início das grandes lutas operárias e camponesas no país e no mundo –, Gregório, além de viver todos esses momentos intensamente, acabou por registrá-los visando a constituir o que futuramente seria a primeira parte de seu livro. Natural do agreste pernambucano, Bezerra viveu 83 anos de combates, desde a infância, pela sobrevivência, até a juventude e a vida adulta, por justiça social, igualdade e socialismo. Pode-se passar por despercebido, contudo, que os seus relatos de vida, muito embora simbolizem as dificuldades sociais, políticas e econômicas da época, ainda hoje, direta ou indiretamente, façam parte das vivências de inúmeros brasileiros, sobretudo pernambucanos. Isso porque essas pessoas, em momentos críticos, se desdobram e fazem ―das tripas coração‖ para conseguir desde ―o pão de cada dia‖ de forma honesta, até o direito de existir de maneira minimamente humana. É o caso, por exemplo, do flanelinha George Ferreira da Silva, 22 anos. Natural de Manassu, interior de Jaboatão dos Guararapes (PE), Binho – segundo ele, diminutivo de Beyoncé – como gosta de ser chamado, em virtude de ser muito fã da cantora negra norte americana, assim como Gregório Bezerra, já passou por ―tudo nessa vida‖. Irmão de outros
quatro filhos, um dos quais fora assassinado na adolescência por ―ser traficante, bandido, aí morreu!‖, George afirma que nunca foi bem quisto pela família, sobretudo pela mãe, extremamente religiosa, Solange Ferreira. O jovem relata que, em função da falta de condições financeiras de modo a sustentar ―mais uma boca‖, sua progenitora acabou por deixá-lo na maternidade, pouco depois de tê-lo dado à luz. A criança, contudo, fora adotada por um casal de sexagenários que a educou, sustentou e amou até os sete anos de idade, quando o seu pai adotivo faleceu e sua então mãe resolveu devolvê-lo à sua família biológica. De semblante decididamente cético, Binho, ao ser questionado sobre esse ponto, é categórico e fala com extrema convicção: ―Ela já não tinha aquele amor, aí eu voltei pra casa – afeminado – e ela se revoltou‖.
“Quando eu morava na casa da minha mãe, eu tinha um padrasto que era muito preconceituoso – sempre foi. Ele nunca me suportou por causa desse meu jeito”. — Binho sobre a sua relação com o padrasto Devido à sua condição sexual – George é gay e sempre lidou, diferentemente dos seus parentes mais próximos, muitíssimo bem com isso –, o rapaz assegura que, enquanto criança, fora perseguido, marginalizado e discriminado fortemente – especialmente dentre de casa. ―Ela dizia [Solange] que eu não devia dormir com os meus irmãos, porque eu era afeminado. Aí eu
dormia num cantinho, num colchão, separado, entendesse? Já começou o preconceito da minha casa‖. Além disso, o rapaz relata que a exploração já na sua infância era uma realidade. ―Na casa da minha mãe de verdade, eu era muito explorado. Tinha que ir pra mata carregar madeira, carregar tonel de água‖, diz o garoto visivelmente afetado. Frente a tanto rechaço e desprezo familiar, Binho, ao notar, aos 7 anos, que a situação só pioraria dali em diante, acaba por fugir constantemente da casa de sua família de sangue almejando voltar ao seu lar adotivo. Até os 13 anos de idade, o garoto trava uma incessante guerra fria para com Solange e o seu odiado padrasto – o qual não perdia a oportunidade de inflamar ainda mais as cicatrizes, quer na criança, quer na própria mãe, sempre que podia – e passa a viver como um verdadeiro cigano mirim. (Entrementes, o garoto chega a ser detido pela antiga FEBEM (Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor), de onde, assim como da casa da sua mãe biológica, foge, é apreendido novamente e, mais uma vez, consegue fugir...). Excessivamente exausto com os tipos de relações abusivas que permeavam sua existência em meio familiar biológico, George, aos 13 anos, revolve sair definitivamente de casa. Passa, portanto, a pré-adolescência longe do convívio de Solange, do padrasto e dos quatro irmãos. Já em Recife, ele começa, então, a trabalhar como coletador de recicláveis – ―PET, papelão, plástico, PP‖. Por volta dos 16 anos, com o dinheiro que angariava da coleta dos materiais supracitados, Binhoncé acredita poder alugar um espaço só seu, no qual poderia se sentir verdadeiramente à vontade e livre das dependências de terceiros. Encontra, então, um ―coviquinho‖, de ―um vão e um banheiro‖, na invasão Cabeça da Vaca, localizada na zona periférica de San Martin. No
entanto, Binho declara que não pretende se demorar por ali. ―Na primeira oportunidade que eu tiver de me mudar, eu vou me mudar. Não é pelo lugar, é porque eu quero uma casa maior‖, afirma. Após trabalhar durante um tempo como reciclador, Bey diz ter tido a oportunidade, por parte de uma conhecida, de exercer a função de auxiliar de serviços gerais em um restaurante. Contudo, o jovem declara que é como comerciante que se sente realizado e à vontade em fazer o que faz, muito embora, nem sempre, o ambiente esteja propício, os outros vendedores pacíficos e o público consumidor respeitador. Na movimentada Avenida Recife, toda vez que o semáforo fechava, George Ferreira da Silva costumava se infiltrar rapidamente entre os carros parados no sinal que dá acesso à entrada do bairro de Jardim São Paulo para vender água mineral e pipocas ―sal e doce‖. O rapaz relata que começou a comercializar, naquele mesmo sinal, garrafas d’água mineral emprestadas por uma amiga que, confiando na sua proatividade e capacidade de venda, o instigou a conseguir uma ―grana‖ – além da normalmente conseguida com a revenda de recicláveis na época. ―Eu passei uma semana trabalhando e deu certo. Aí eu fui e comprei pipoca. Fiquei vendendo água e pipoca. Deu certo e eu fiquei vendendo até hoje‖, diz o comerciante ambulante que, muito embora consiga tirar do semáforo uma renda razoavelmente satisfatória, sonha, cotidianamente, em sair do sinal. ―Eu quero muito sair do sinal, não vou mentir. Eu quero muito; todo dia eu planejo essa minha saída daqui‖. Além do fato de que ―nem sempre o mar tá pra peixe‖, um outro fator que, sem dúvida, atua no desejo incessante de sair do sinal é a ambição por parte de outros vendedores ambulantes. Binho conta que inúmeras vezes fora
agredido no semáforo e o tentaram ―tomar‖ seu ponto de venda. Contudo, ainda que ele tenha começado, como todos os outros, de forma pacata e singela, visava, diferente dos demais, naquele semáforo, incrementar a oferta de seus produtos: não tão somente comercializar água mineral, mas também refrigerantes e outros refrescos industrializados. Tal ideia, no entanto, não foi possível ter sido colocada em prática, ao menos não na Avenida Recife. Isso porque semanas depois da entrevista, Binho acabara por ser coagido por um outro comerciante que do seu local de trabalho se apossou. Questionado via WhasApp, após sua mudança, sobre o que verdadeiramente o levou a abandonar seu ponto, o rapaz , notoriamente, não se sente à vontade – ou confiante – o bastante para falar. ―Isso é um assunto que eu não posso tocar não, inho. Porque é muito delicado e vai assanhar muita coisa. Deixa pra lá!‖, diz. ―Eu já entreguei na mão de Deus. Deus sabe de tudo!‖, continua.
“A personalidade dele, o jeito através do qual desenvolve a venda, me chama a atenção pra comprar suas mercadorias”. — Lucyanna Melo, 20, estudante e consumidora dos produtos de George Atualmente, Bey comercializa suas mercadorias, de segunda à sexta, das 9h às 17h, e, das 9h às 13h, aos sábados, no semáforo que, virando à esquerda, dá acesso à Estação Afogados e afirma ainda contar com o apoio de alguns de
seus compradores do antigo ponto. ―Muitos clientes eu já perdi, mas tem cliente que vem bater aqui atrás de mim‖, declara Binho.
“Muitas pessoas os veem de maneira errônea, mas eles são apenas sobreviventes de uma economia que só piora para os mais necessitados. Acho apenas que o „ser ambulante‟ é meio desorganizado – exemplo disso, o caos instaurado nos metrôs.” — Melo sobre os ambulantes no caótico trânsito e transportes públicos de Recife No que tange à rotina de trabalho que leva no sinal, George deixa claro que é árdua, desafiadora, por vezes arriscada, e que não vê a hora de não mais precisar vivenciá-la. ―[...] eu não quero mais ficar aqui. Eu penso em ser alguém e ter um meio de vida, porque eu vejo no olhar das pessoas como elas me olham, bem por baixo mesmo, e eu não quero mais isso‖, afirma. O ambulante, em contrapartida, tem ciência de que a sua diária, naquele sinal, é, de longe, bem maior que a de um trabalhador de renda mínima, formalmente empregado e atuando em horário comercial. ―Às vezes eu penso em sair daqui, mas só sairia se conseguisse um trabalho que eu ganhasse num dia mais do que eu ganho aqui.‖, declara o vendedor. Com a comercialização de pipocas e garrafas d‟água, Binho arrecada, em um
dia de trabalho, no sinal, um montante, em média, de R$200,00 (duzentos reais) a R$300,00 (trezentos reais), do qual retira cerca de R$90,00 (noventa reais) para pagar a quantia referente às mercadorias ao fornecedor e R$10,00 (dez reais) para quitar a dívida gerada pelo almoço fornecido por uma amiga. Entre os desejos ainda não realizados está o de concluir os estudos, visto que havia estudado apenas até o sexto ano do ensino fundamental. Ademais, Binhoncé, apesar da atual superdesvalorização do salário mínimo, sonha com um emprego regularizado. Quer abrir seu negócio, ter sua casa, não morar de aluguel. ―Ter meu carrinho popular e chegar na minha loja organizado, aquela coisa bem patroa, entendesse?!‖, brinca. ―Eu ainda vou sofrer muito, vou batalhar muito, isso aqui não acaba agora não‖, continua o vendedor que, pode-se dizer, se outrora Gregório simbolizou o arquétipo do retirante e camponês guerreiro típico brasileiro do século XX, hoje representa imensa maioria dos brasileiros negros, LGBTQs e periféricos submetidos historicamente às margens da sociedade tupiniquim.
“Creio que deveria existir algum tipo de cadastramento ou regulamentação, para que todos os ambulantes pudessem, de forma legal e organizada, se „ajeitar‟. O problema é que nesse país tudo que é regularizado é pago; então, talvez não seja vantajoso para aqueles que já estão em desvantagem”. — Lucyanna quanto ao que acredita que deveria ser feito de modo a controlar o comércio informal na capital pernambucana