AFETAÇÃO MARCIAL UMA REPORTAGEM EM SÉRIE POR SÉRGIO FRANCISCO
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e início, é preciso esclarecer o que me motivou a pesquisar, realizar entrevistas com indivíduos cruciais para a matéria e, a partir daí, redigir a reportagem serializada que o leitor tem em mãos. Pode-se dizer que as razões móres para a realização deste trabalho se deve tanto a minha participação em corporações marciais, no colegial, quanto a uma análise pessoal e sociológica do meio. Isso porque algo me chamava muito a atenção: a paixão impressa àquele fazer artístico por parte de quem constantemente costuma ser segregado pela arte musical e marcial. Algo não muito raro para um fazer artístico principiado e retroalimentado pelo militarismo e pela idealização dos papéis de gênero bem delimitados. A ideia, portanto, era entrar em contato com pessoas que, quer fossem homens ou mulheres, atuassem em locais que se convencionou a atribuir ao sexo oposto. Em outras palavras, a intenção primeira era contatar, por exemplo, mulheres que atuassem como maestrinas, mores ou comandantes, lugares estes delegados majoritariamente à figura masculina, ou mesmo entrevistar garotos que atuassem como balizadores, um papel naturalmente relegado à imagem feminina – à figura da baliza. Assim, então, se fez. Comecei a buscar tanto quanto possível pessoas que atuassem como fontes pessoais, de modo a ilustrar a reportagem; quer fossem elas conhecidas minhas ou amigas de amigos. Admito que não foi uma tarefa fácil. Isso porque, a depender da função que a pessoa exerça, o número de integrantes marciais que desempenham aquele papel pode, ainda hoje, ser muito pequeno, dificultando, assim, o acesso com dadas fontes. Foi o caso, por exemplo, do contato com Carla Mônik e Yracema Bion, respectivamente mór e maestrina. Ambas, muito atarefadas, só puderam ser entrevistadas via mensagens pelo WhatsApp. Além do fator agenda cheia, com Mônik, em virtude da sua vergonhice exacerbada, o contato foi ainda mais dificultoso. Após longas investidas da minha parte, a comandante, agora ciente de que a sua participação era fundamental para a execução do trabalho, topou ser entrevistada. Ainda que por vezes fornecendo respostas monossilábicas, foi possível extrair da mor boas informações e depoimentos que figuram ao longo das próximas páginas. Em contrapartida, o contato com Aramis Ribeiro, o balizador que soma enormemente à reportagem em questão, não poderia ter sido melhor. O motivo você, leitor, está prestes a descobrir.
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O balizaDOR Já era manhã de uma típica sexta-feira primaveril quando Aramis das Neves Ribeiro, à época uma criança magricela, de olhos claros e pele morena, acordara e abruptamente lembrara: “É 7 de Setembro!”. A data simbolizava um dia anormalmente prazeroso para o garoto que, assim como toda e qualquer criança, maravilhava-se frente aos espetáculos marciais que comemoravam o Dia da Independência Brasileira e tomavam as ruas históricas do centro da cidade. O garoto, hoje um jovem adulto de 28 anos, afirma que sua família nem sempre compreendeu muito bem a sua paixão pelas bandas e fanfarras marciais. No entanto, quando criança, nessa época do ano, Aramis “fazia das tripas coração” para não perder um desfile musical sequer. – O que te levou a gostar desse universo? – pergunto ao rapaz. Aramis não se demora a responder. – A grandiosidade das apresentações. Eu achava tudo muito lindo e, por isso, não perdia um ano. Como a expressão musical e artística através das bandas não era bem quista, sobretudo por sua mãe, Ribeiro diz que não raras vezes costumava ir aos eventos marciais sozinho. Mesmo sendo apenas uma criança, por frequentemente andar de ônibus com a mãe nas idas e vindas da igreja evangélica que frequentava nos bairros centrais, o menino passou a saber o itinerário dos coletivos que faziam o percurso da sua casa à Avenida Conde da Boa Vista. O garoto, então, pedia dinheiro à sua mãe – com o qual pagaria as passagens e, no máximo, compraria um lanche quando a fome o ocorresse – e saia. – Como não conseguia chegar cedo onde ficam montadas as arquibancadas, eu acabava tenho que assistir ao desfile embaixo delas – revela o garoto. Não é à toa que, frequentemente, Aramis era repreendido por parte das pessoas que, como haviam chegado antes de o desfile começar, ocupavam, justamente, os melhores lugares disponíveis. – SAI DAÍ, GAROTO!!! NÃO TÁ VENDO QUE VAI SE MACHUCAR?! – vocifera uma senhora. – Vou não, vó. – afirma o garoto. – Se avexe não! E ali, em meio às ferragens de aço, que, àquela hora, já deveria está tinindo de tão quentes, o menino passava o resto da manhã. Só retornaria para casa quando o último dos bombos tivesse desfilado por aquela longa avenida. Afora a contemplação dos desfiles cívicos anuais por aquele pequeno menino magricela, o contato direto de Ribeiro com o mundo marcial o parecia muito distante de se concretizar. Entretanto, ele conta que, certa vez, ao ter ido
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passar as férias de junho na casa de sua irmã, na Guabiraba, num dado domingo, assistindo à tv, ouviu, lá longe, sons de instrumentos de sopro agudos e bem afinados. Resolveu, então, perscrutar pelo bairro a fim de descobrir de onde partia aquela clara ode à boa música – “quase classicista”. Entra beco, sai beco, o garoto, não dificilmente, encontra a Escola Municipal São Cristóvão, na qual grupos de instrumentistas e integrantes de corpo coreográfico dividem a quadra da instituição num coletivo ensaio de ordem unida. – Cheguei lá, entrei e fui direto à quadra. – conta Aramis. – Quando vi, encantei-me com tudo ao alcance dos meus olhos: baliza, mor, corpo coreográfico e banda... – continua o rapaz seu relato, visivelmente maravilhado ao falar. Foi justamente quando tudo começou. Depois desse dia, visitar a irmã passou a ser uma atividade sabática realizada por Ribeiro. Na verdade, o então menino apenas fazia uso da situação como desculpa para ir religiosamente aos ensaios da corporação que marcaria a sua inserção no tão almejado ambiente cívico. Na Banda Marcial São Cristóvão, Aramis afirma ter experienciado “de tudo um pouco”. A corporação fora, na realidade, uma espécie de escola, na qual o garoto aprendera a portar a bandeira brasileira, no pelotão cívico, a tocar a tão almejada e querida lira e, também, ter contato com o atabaque. Um tempo depois – não se sabe exatamente quanto –, com a derrocada da São Cristóvão, o jovem revolve integrar a Banda Marcial Aníbal Falcão (BMAF), na qual integra, pela primeira vez, um corpo coreográfico (CC). Até então, não ocorria ao rapaz a possibilidade de se sentir ainda mais à vontade e apaixonado pelo que fazia ao integrar o CC da Aníbal Falcão e, por conseguinte, embelezar suas apresentações. Lá, Ribeiro afirma ter feito amizades com pessoas as quais leva consigo até hoje. Como é o caso da baliza Deyse Gomes e de seu marido, Elvis Ferreira, mor, coreógrafo e figurinista ao lado de sua esposa. À época, a corporação ostentava o título de primeira banda marcial a ter não um, mas dois corpos coreográficos: um constituído por doze meninas e, outro, por doze meninos – os escudos, como eram chamados – que se apresentavam paralelamente. Ainda nesse período de meados de 2010, a dança é algo “restrito” a mulheres, meninas e balizas. Aos homens são destinados os postos de liderança – regentes, mores, comandantes de percussão – e instrumentos de grande porte, como tubas, trombones e bombos. Com a mudança no perfil do CC da Aníbal Falcão, o conjunto passa a abraçar integrantes garotos enquanto dançarinos. Estes são, em sua maioria, gays e, talvez por isso mesmo, passam a ser, de início, repreendidos por outras
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corporações. Contudo, a Marcial Aníbal Falcão acaba por servir como exemplo que deu certo para outras bandas e fanfarras da capital. Com a derrocada da BMAF, Elvis Ferreira é convidado para coreografar as garotas que compõem o corpo artístico da banda marcial da Escola Municipal Dom Bosco. Prontamente, o figurinista aceita o convite e leva consigo Aramis, o qual integraria os escudos que Ferreira arquitetava formar lá. Todavia, seus planos caem por terra. Ao chegar na Banda Marcial Dom Bosco, o coreógrafo, que também atuaria como mor do conjunto musical naquele ano, depara-se com Edvaldo Melquiades, então regente da corporação, e suas ideias retrógradas de que “dança é coisa de mulher”. Com isso, Aramis começa a “desacreditar que as coisas ali fluiriam”. Leva-se aproximadamente um ano para que Edvaldo, ainda que a contragosto, “autorize” a participação de garotos no corpo coreográfico daquela banda marcial. Isso graças a Carmem Dolores, então diretora da escola, que não via problema algum em garotos e garotas dançarem e, portanto, interveio no sentido de apoiá-los. Melquiades, então, dá a permissão, mas com uma condição: “eles tem que dançar com as meninas, e não formar um grupo à parte.”. E assim se fez. Aramis, que, em 2011, já somava a seu histórico, pelo menos, três anos na dança, queria desbravar novos mares. Dada a sua flexibilidade e molejo, sob influência de Elvis, resolve se lançar enquanto balizador – atuação antagônica à da baliza, muito pouco frequente na época, possivelmente por uma questão de machismo no âmbito marcial pernambucano. Edvaldo, no entanto, não permitiria tão facilmente. Ainda que soubesse que, assim como uma baliza, o balizador, via de regra, apresenta-se solo, o regente induz Ribeiro a formar uma dupla com Bibi Santos, então baliza da Marcial Dom Bosco. À contragosto, Ribeiro topa. Mas não se demora a perceber que está sendo injustiçado. À época, o regulamento da ABANFARE-PE (Associação de Bandas, Fanfarras e Regentes de Pernambuco), no tocante às balizas, conscientemente ou não, invisibilizava a atuação de balizadores no estado. O oposto se sucedia em outros estados do norte-nordeste, como Paraíba e Ceará, que, com base no regulamento da Confederação Nacional de Bandas e Fanfarras (CNBF), à época, já pontuava questões a ser avaliadas tanto em balizas quanto em balizadores. Aramis revela ter se atinado para o desrespeito para com o trabalho realizado pelos balizadores do estado quando, em um dos primeiros campeonatos que participara enquanto balizador, não fora avaliado – fizera apenas a apresentação –, enquanto que Bibi era julgada não por um, mas por dois jurados de pista. – A situação me chateava muito! – afirma. – Pois, se ambos dançavam, o justo seria julgar os dois... – completa Ribeiro.
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No entanto, hoje felizmente a realidade é outra. Tanto balizas, quanto balizadores podem e devem, muito apropriadamente, se apresentar e ser julgados de forma simultânea. Para uma bela apresentação, não raras vezes observa-se que ambos recorrem à ginástica artística, rítmica, dança, teatro e artes circenses envolvidos nas músicas tocadas por suas corporações. O número de balizadores, segundo Ribeiro reduzidos a três quando começara a se apresentar neste posto naquele ano de 2011, atualmente somam centenas. – Toda banda tem um balizador. – alega Aramis. – Quer seja na Copa ou nos desfiles de rua. Com a derrocada da Banda Marcial Dom Bosco, em 2012, Ribeiro ingressa na Banda Marcial Padre Lins, na qual é conhecido pelos integrantes como “balizador show”. E não é por menos. O jovem afirma que a cada três etapas da IV Copa Pernambucana de Bandas e Fanfarras vencia duas delas e era vice campeão na terceira com uma diferença de centésimos do seu adversário campeão. Aramis atribui a isso sua força de vontade, garra e determinação. Em viagem à cidade de Maruim, no Sergipe, para o concurso NorteNordeste de Bandas e Fanfarras daquele ano, o balizador diz ter vivenciado uma das suas experiências mais marcantes no meio marcial. Ao término da sua apresentação, Ribeiro voltara ao ginásio, no qual acontecia a competição, não mais para o centro da quadra, mas para as arquibancadas, assistir aos seus concorrentes. – O nível deles era muito alto! – admite o balizador. – Eu lembro de ter visto um deles e pensado: “Já era pra mim!”. Mas, nesse mesmo concurso, eu acabei ficando em 1º lugar... Tomado pela surpresa, ao descer aos pulos da arquibancada rumo ao pódio, no qual receberia seu troféu de campeão, avista, lá longe, próximo ao cronômetro de pista todo em led, no momento já desligado, o famigerado Edvaldo Melquiades. Este, à época, além de regente de alguma banda qualquer, desempenhara o papel de 2º tesoureiro da ABANFARE-PE e, portanto, vivia à frente da administração dos gastos de grandes eventos como o Norte-Nordeste de Bandas e Fanfarras. Aramis, ao dirigir-se até Waldenilson Cunha, então presidente da associação, das mãos do qual receberia seu título, repara no semblante de Edvaldo que, anormalmente emocionado e orgulhoso, olha para Ribeiro de longe e apenas mexendo os lábios, sem emitir som algum, tenta dizer algo como: – Meu balizador!!!
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A(mor) – E O SHOW NÃO PODE PARAR!!! – berra, a plenos pulmões, Waldenilson Cunha, então presidente da Associação de Bandas, Fanfarras e Regentes de Pernambuco (ABANFARE-PE). Metido a locutor dos eventos marciais, Cunha apresenta os grupos musicais nos desfiles e concursos de bandas e fanfarras do estado de Pernambuco desde a fundação da associação, em 1997. Neste momento, Carla Mônik Cavalcanti – garganta seca, mãos suadas, pernas incontrolavelmente bambas – não consegue querer outra coisa, senão – Poof! – sumir abruptamente daquela concentração. O compromisso firmado meses atrás com a Banda Marcial Mais Corujão, no entanto, sensatamente, não a permite largar mão de tudo e abandonar a corporação ali mesmo, como, por puro nervosismo, tanto almejara. Carla, quase que intuitivamente, adentra no ginásio, o qual, dali a alguns minutos, será palco para a avaliação da sua performance, com toda a corporação em seus calcanhares. O local está apinhado de gente. É generaliza a balbúrdia da plateia que lota as arquibancadas do Ginásio Poliesportivo Fernando Regis de Albuquerque, no qual está sendo realizada a quinta etapa da V Copa Pernambucana de Bandas e Fanfarras naquele ano de 2013, em São Vicente Férrer. Os músicos se posicionam, alinhados perfeita e meticulosamente, em cinco filas indianas, de dez componentes cada, como o habitual, nos fundos da quadra. A jovem comandante, muito embora, por dentro, estivesse quase tendo uma síncope, transparece determinação, sobriedade e garra ao conduzir os movimentos da corporação nos momentos prévios da avaliação. Mônik, então, dá o sinal de ok a José Rildo, jurado de pista incumbido de cronometrar o tempo da apresentação de cada grupo musical que por ali passa. Uma pequena bandeirola verde é erguida por Rildo e, de repente, não mais que de repente... – BANDA MARCIAL MAIS CORUJÃO... EM JULGAMENTO! – anuncia Waldenilson. Mastro e mãos erguidos, a mor respira fundo e dá a voz de comando. – TODA A BANDA: SENTIDO! – vocifera. Em seguida, move o bastão num claro gesto de indução para que os músicos empunhem seus instrumentos e se preparem para fazer aquilo que se propuseram ao se inscreverem para tal competição: mostrar o melhor trabalho musical e performático possível. – Três, quatro! – comanda a jovem e, automaticamente, os componentes começam a executar o dobrado de entrada da banda no ginásio, paralelamente a uma marcha com muito garbo. Ao término da música, no ato do deslocamento em frente com a corporação, para onde, em meia lua, os integrantes da Mais Corujão terão o desempenho da sua musicalidade avaliado pelos jurados, num átimo de desatenção – CRACK! –, Carla dá um jeito no seu tornozelo esquerdo. Mais um,
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na verdade, uma vez que, na tarde do dia anterior, sábado, 27 de julho, ao ensaiar a ordem unida com o grupo, ela já havia se machucado. Oficialmente terminada a entrada do conjunto em quadra, os doze minutos que se seguem, para Mônik, parecem durar meio dia. A garota sequer se aguentava em pé quando deixou o ginásio por uma pequena saída à esquerda do palco principal, no qual jazia, sentados confortavelmente, os jurados de harmonia e sonoridade, além dos troféus e das medalhas de participação dispostas em uma espécie de altar central. – AAAAAARRREEE! ALGUÉM AJUDA AQUI!!!? – grita um dos holdings da banda que não se demora a perceber o quão debilitada a mór está. Dois agentes especializados em primeiros socorros correm, às pressas, até o encontro de Mônik, que, àquela hora, já se encontrava gemendo de dor. Ambos funcionários prontamente colocam-na sobre os seus ombros e a levam para o veículo da SAMU estacionado próximo à saída da quadra. Na ambulância, são feitos os socorros básicos. A jovem tem a musculatura lesionada cuidadosamente massageada por um dos agentes de saúde, enquanto o outro funcionário coleta os materiais e utensílios necessários para enfaixar a área. Leva aproximadamente 30 minutos para que Mônik se sinta mais aliviada e consiga, embora cambaleante, colocar-se de pé novamente. Passados os transtornos – e regozijos – proporcionados pelo evento, dá-se a hora de voltar para casa. É chegado, então, o momento de retornar ao bairro da UR7 Várzea, na zona oeste da cidade do Recife, onde a Escola Estadual Maria da Conceição do Rego Barros Lacerda está localizada e na qual a Banda Marcial Mais Corujão é sediada. Estima-se que o percurso realizado de São Vicente Férrer, município assentado na mesorregião do Agreste Pernambucano do Médio Capibaribe, até a capital pernambucana leve em torno de 1 hora e 40 minutos. Isso porque a distância da Terra da Banana à Veneza Brasileira é de aproximadamente 85 km. Portanto, como a maioria dos músicos da Mais Corujão é composta por estudantes do ensino fundamental e médio, o retorno teve de se dá antes mesmo de o resultado parcial naquela noite de domingo sair. Afinal, era preciso descansar bastante para enfrentar a rotina – estudantil para uns e trabalhista para outros – já na manhã da segunda-feira seguinte. Ainda durante a viagem de retorno, absolutamente nenhum componente da corporação fazia ideia do que os jurados tinham achado a respeito de sua apresentação. Tampouco Carla o fazia. A garota, que em ocasiões passadas a essa hora certamente estaria no fundão do coletivo curtindo com a galera, opta por sentar-se nas primeiras poltronas do ônibus. Opta também por não querer companhia alguma. Os minutos que se seguem da entrada no coletivo até a chegada ao seu destino são passados refletindo sobre a sua performance. Entrementes, ocorre à comandante que parte daquela balbúrdia histérica da audiência de poucas horas atrás em São Vicente Férrer tenha se dado não por comemoração, mas por gozação. Por uma gritaria em tom jocoso, uma vez que Carla Mônik, à época com aproximadamente 15 anos, ocupava um lugar que não era seu.
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Se ainda hoje a atuação de mulheres em papéis de liderança é uma questão analisada pelas ciências sociais como visivelmente deficitária, há cinco anos, sobretudo na esfera marcial, não era diferente. Mônik, muito embora não tivesse a mais remota pretensão, acabara tornando-se, na presente década, uma das pioneiras na subversão da lógica participacional de homens e mulheres no mundo das bandas e fanfarras marciais na capital pernambucana. Enquanto mór, sabia que não viria a desempenhar uma tarefa fácil naquele papel. No entanto, não tinha a dimensão do quão enfadonho seria por vezes ter de lidar com os “olhares tortos, cuchichos” e “risadas...”. Não obstante à garota ter ciência de que “uma mulher é muito capaz de fazer o mesmo papel de um homem”, uma coisa a incomoda profundamente: o fato de que “ainda existe muito preconceito” nesse meio. Preconceito e, consequentemente, desrespeito, quer por parte de homens móres, quer a partir do próprio público consumidor dos espetáculos musicais. Às 10 hora e 30 da noite daquele domingo, aproximadamente, a condução chega no bairro da UR7 Várzea. Mônik, então, desce do coletivo munida de seu mastro e fardamento e pega seu caminho de volta para casa. Ao abrir a porta basculante que dá acesso à sua sala de estar, recebe uma ligação de Mauro Cavalcanti, maestro da Mais Corujão. – ALÔ?! MÔNIK?? – berra o regente. – Opa, Mauro. Tá tudo bem? – pergunta a jovem preocupada com tamanho alarde. – TÁ ÓTIMO! – brada o maestro. – SÓ LIGUEI MESMO PRA DIZER QUE TU VENCEU!!! TU É CAMPEÃ!!!! – continua aos gritos. – Como assim? – pergunta a garota atônita. – EU VENCI?!?! – completa Mônik incrédula, sentando-se no sofá-cama disposto no recinto. – NÃO SÓ VENCEU, COMO TIROU A NOTA MÁXIMA!!! – declara o maestro. – A GALERA E OS JURADOS TE ADORARAM!!! A jovem comandante simplesmente não conseguia acreditar na notícia que Mauro, por quem nutria grande respeito, acabara de lhe dá. Contudo, sabia que o maestro jamais lhe passaria um trote daqueles, muito menos àquela hora da noite. Leva-se alguns minutos até que a ficha, de fato, começa a cair. A garota, que, até horas atrás, estava desapontada consigo mesma pelo mal desempenho que achara que tinha tido, agora não cabe mais em si de tanta felicidade. A estreia fracassada, na qual tanto acreditava, não passara de uma clara autosabotagem, criada a partir do medo, da auto-cobrança e do retorno do público naquela ocasião. Público este que fizera Mônik, quando em quadra, acreditar sem sombra de dúvidas que ali estava para lhe zombar e não admirar. Mas que, agora, passados todos esses transtornos e obtido o então resultado final, fizeram-na se questionar: – Será mesmo que só tavam lá pra me zoar?
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A maestriNa – Estou no trabalho, mas posso lhe responder nos intervalos entre um paciente e outro! – responde a maestrina, aproximadamente meia hora depois de eu ter entrado em contato por um aplicativo gratuito de envio de mensagens instantâneas. Minha excitação foi tremenda. Afinal, tinha conseguido, após longas horas de pesquisas por mulheres regentes em tudo o que é site, redes sociais e canais ligados a bandas e fanfarras, não só o contato, mas o retorno de Yracema Bion: a primeira maestrina que o estado de Pernambuco já vira. “[...] posso lhe responder nos intervalos entre um paciente e outro” porque Yracema, além de maestrina e professora de música, é estagiária em fisioterapia e, à noite, estudante. Mesmo com uma agenda super atarefada, a musicista de 32 anos, pelo menos duas vezes por semana, dá aula de música no terraço de casa para os alunos da banda marcial da Escola Estadual Professor José Brasileiro. Yracema improvisa. As cadeiras servem de suporte para as partituras e os meninos se sentam no muro – à altura dos joelhos – do seu terraço. Um de seus alunos é o filho mais velho da maestrina, Fernando Bion. O garoto tem 12 anos e, aos 4, foi diagnosticado com atelectasia pulmonar. Durante um ano, precisou fazer fisioterapia respiratória porque um de seus pulmões não funcionava. O contato com a música e com um instrumento musical de sopro ajudou o menino a se recuperar. – Melhorou bastante a minha respiração e, hoje, eu me sinto bem. – afirma o garoto. – Com boa saúde! O trabalho da professora Yracema, no entanto, não pára por aí. Depois de meia hora pedalando, ela e os filhos chegam à Escola Estadual Professor José Brasileiro, localizada no Conjunto Beira Mar, no bairro do Janga, local da sua próxima jornada. O conjunto musical tem 35 alunos com idades entre oito e dezoito anos. Em dez anos de existência, a banda é o xodó dos estudantes. Há quem diga que isso se deve, e muito, a Yracema. – A gente sente o carinho dela, e é um carinho de mãe. – diz Jefferson Cícero, um de seus estudantes. – Isso acaba inspirando, porque a gente se sente amado e, dessa forma, a gente passa isso na música. – continua. Naquele ano de 2015, seus alunos se preparam para participar da VII Copa Pernambucana de Bandas em Fanfarras. À época, 270 bandas estão inscritas na competição. Três destas são regidas por mulheres, e uma dessas mulheres é Yracema Bion.
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Questionada quanto a como se sente, Bion é categórica e fala sem rodeios. – Privilegiada! [...]. No período em que eu ingressei, fui a primeira mulher. – revela a futura fisioterapeuta. – Hoje eu agradeço e fico lisonjeada pelo fato de ter mais duas junto comigo. – acrescenta. A maestrina é esperançosa é diz esperar que mais espaços se abram para que outras mulheres ingressem e igualmente façam parte do vasto corpo musical do estado de Pernambuco; ainda não tão vasto em se tratando da participação de mulheres nos postos de liderança, tal como o de regência. Além do amor pela arte musical e da satisfação pessoal que é ensinar, a regente tem conhecimento de que o trabalho que desempenha, há mais de 5 anos, tem uma missão para além da meramente instrucional: “resgatar jovens e crianças através da música”. – Resgatar crianças e adolescente de que situação? – a questiono. – Situações de risco como: drogas, violência doméstica, situação de extrema pobreza, entre outros... – responde Bion. – Mas de que forma a vivência em âmbito marcial consegue fazer com os integrantes nas situações apontadas não sofram mais com essas mazelas? – retruco. Yracema custa a responde. Penso que ela deve ter acabado de receber um novo paciente e, no momento, talvez não disponha de tempo suficiente para dá a resposta que almeja. No dia seguinte, por volta do meio dia, meu smartphone vibra. Vou checar a notificação e, quando a abro, noto que é da maestrina. Sua longa mensagem reponde ao meu questionamento com o seguinte texto: “Através de educação musical, acolhimento, preparação profissional, dando a oportunidade desses jovens ingressarem na sociedade de uma maneira diferente. [Isso tudo] tendo como base uma formação musical, participando com eles de eventos musicais, desfiles cívicos, apresentações musicais em áreas públicas e privadas... [Assim,] mostrando o quanto eles são importantes para a sociedade como um todo, sem fazer acepção [sic] de raça, orientação sexual, religião, condição financeira.” Entretanto, mesmo doando tudo de si para acolher o outro, não foi bem assim que, de início, seus colegas, também regentes, reagiram ao seu ingresso na ABANFARA-PE através da Secretaria de Educação. – A princípio foi um impacto por ter sido a primeira mulher a ingressar no ramo musical... – afirma Bion. Isso porque, em 17 anos de existência da Associação de Banda, Fanfarras e Regentes de Pernambuco, nunca antes uma mulher liderara diretamente uma banda marcial e/ou fanfarra no estado. Ao participar das primeiras reuniões
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como maestrina, Yracema revela que parte de seus companheiros maestros olhavam-na e questionavam a sua presença ali em tom visivelmente cético. – Mas, com o passar do tempo, o sexo oposto passou a me receber de igual para igual, e hoje eles já estão bem mais flexíveis em relação a minha pessoa. – reconhece a regente. – Eu acabei virando o xodó no grupo dos maestros... – completa.
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