Sei Dançar: O que você conhece e desconhece sobre o Clube das Pás Lucyanna Melo e Sérgio Francisco
Universidade Federal de Pernambuco – UFPE Centro de Artes e Comunicação – CAC Departamento de Comunicação Social – DCOM Comunicação Social / Jornalismo Jornalismo Literário
Amanda Tavares Thiago Soares Lucyanna Melo Sérgio Francisco
Lucyanna Melo e Sérgio Francisco
Sei Dançar: O que você conhece e desconhece sobre o Clube das Pás
O clube: “Nós somos madeira de lei que cupim não rói”
O sr. Álvaro Guedes se orgulha de dizer que administra a mais perfeita, antiga e renomada gafieira recifense, da Rua Odorico Mendes, Campo Grande, nº 263, muito bem, obrigado. É, ao lado de outras seis pessoas, atualmente, um dos responsáveis por gerir, e o faz com maestria, o famigerado Clube das Pás. Quem poderia imaginar que um grupo de trabalhadores poderia criar uma agremiação carnavalesca? Provavelmente ninguém. Porém, as ideias mais mirabolantes vêm de mentes necessitadas, e mentes necessitadas de diversão conseguem pensar ainda melhor. Era março do ano de 1988, um dos meses em que o carnaval aparece, e o Recife estava agitado com a folia. Os trabalhadores
estavam de greve. Um navio, que à época era abastecido com carvão, atracou no porto da cidade de Recife para descarregar encomendas e necessitava ser reabastecido para seguir sua viagem. Reivindicando em prol da valorização da classe e por melhores condições de trabalho, os homens não estavam em serviço. Mas tudo tem seu preço. Um grupo de carvoeiros, precisando daquela graninha extra para pular o carnaval, aceitou pegar suas pás e ir buscar carvão para carregar o navio. Encabeçando o grupo, estava o comerciante português Antônio Rodrigues, que reuniu alguns homens dispostos a deixar de lado o balanço do samba e do frevo para trabalhar ganhando o dobro do que geralmente era oferecido. Dinheiro no bolso, mentes enevoadas pela embriaguez carnavalesca; por que não criar o que poderia os divertir? Com o serviço
feito e os bolsos pesados de moedas, que tilintavam, o grupo de foliões, que havia trabalhado no carnaval, foi comemorar o período festivo, e o trabalho concluído, no Clube dos Caiadores. Conversa vai, conversa vem, alguns blocos depois, o grupo, formado por Francisco Ricardo, João da Cruz, Manoel Ricardo e João dos Santos resolveu fundar um clube carnavalesco. Quanta responsabilidade, não? A ideia surgiu, e os nomes foram pensados: tinha que ser um batismo correspondente com todo o trabalho que eles tiveram, com tudo o que eles eram e faziam. Tentaram Clube das Pás de Carvão, Clube das Douradinhas e até Anjos da Boa Vista, primeiro bairro onde a agremiação veio a funcionar, nos primeiros anos de atividade. Por fim, o nome escolhido foi Bloco das Pás de Carvão. Pás, com a letra “s” mesmo, e não a “z”, fazendo referência ao instrumento de trabalho dos carvoeiros.
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Em março de 1890, o bloco mudou novamente de nome, sendo este novo o definitivo: Clube Carnavalesco Misto das Pás. Misto? Exatamente! Isso porque podiam brincar, participar e se divertir nessa agremiação, homens e mulheres, sem qualquer distinção ou preconceito. E essa premissa permanece até os dias atuais. Depois do bairro da Boa Vista, a agremiação se mudou para o bairro Alto José do Pinho, na rua das Hortas; porém, não ficou por muito tempo, até que se instalou em definitivo, no bairro de Campo Grande, na rua Odorico Mendes. Com a ajuda de uma sócia, que arcou com os custos da burocracia para legalizar o terreno junto à prefeitura, o Clube das Pás nasceu como uma simples palhoça, onde até hoje está firmado em um prédio, agora, de alvenaria. Com uma varanda em
detalhes de ferro, pintada de vermelho, o prédio se estende em um térreo e um primeiro andar, tomando um quarto do quarteirão. Os azulejos se completam em vermelho, laranja, amarelo e branco. A fachada, com essas cores vivas e fogosas, divide o espaço com banners das atrações do dia, da semana e do mês. Do lado de fora, carros param por um momento para as pessoas descerem e se encaminharem para dentro do espaço – logo, ambos seguindo seus rumos. Uns estacionam nas poucas vagas destinadas aos automóveis em frente ao prédio. Outros ainda guardam seus veículos nas ruas paralelas. Mas a verdade é que o lado de fora não importa muito. O que interessa é o que está lá dentro; no interior do Clube das Pás. Eram, aproximadamente, 18h27 de uma sexta-feira chuvosa e
naturalmente modorrenta quando do “Joana Bezerra – Odorico Mendes” desembarcamos há alguns metros de distância do local. Fomos recepcionados pelo próprio Álvaro, que à porta do saguão de entrada nos recebia com o flyer de divulgação da próxima grande atração – Orquestra das Pás, Fábio Beloth e Altemar Dutra Jr. –; adentramos no espaço destinado à revista obrigatória. O curioso desse momento é que, diferentemente do que se espera de toda e qualquer revista que se faça em entradas de eventos, nas quais, geralmente, homens e mulheres tendem a ser espalmados e até apalpados à procura de algum tipo de droga ilícita, nas Pás, as mulheres têm apenas suas bolsas abertas e analisadas– sem precisar passar pelo “apalpamento gratuito” –, enquanto que os homens têm ao redor de suas silhuetas o detector de metais passa-
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do à procura de objetos indesejados. Em outras palavras, há uma espécie de preocupação mais para com o coletivo, do que, necessariamente, para com o individual. Depois de passar pelo gradeado laranja, e pela bilheteria, o público é recepcionado pelos troféus, medalhas e quadros de honra que a gafieira carrega através dos anos, e exibe com orgulho, sendo o último uma vitória de 2017. Foram anos e anos sendo campeões das festividades carnavalescas da capital do frevo. Nas extremidades da grande exibição protegida pelo vidro, estão os dois estandartes utilizados nos desfiles da agremiação carnavalesca: o primeiro, considerado o mais antigo do Nordeste, data em meados de 1910 e foi produzido pelas monjas beneditinas do Convento do Monte de Olinda. Em cores vivas, dourado e vermelho, carrega uma suntuosa boneca vestida de anja, fabricada em
porcelana francesa, doada pelo alfaiate Manuel das Chagas, antigo porta-estandarte do desfile. A mistura certa de veludo, cetim e fios de ouro com franjas e pingentes dourados dão um toque nostálgico aos antigos carnavais dos blocos líricos. O círculo central da bandeira brasileira também vai ao centro do estandarte, na cor azul, o que muda é o lema: amor e ordem, o que o país anda precisando. Os mesmos apetrechos vão no estandarte mais recente, produzido por Maria do Monte, bordadeira do mesmo convento em Olinda, em 1980, sendo este, ainda utilizado nos desfiles. A boneca deste, também vestida de anja, foi trazida de Portugal. O dourado ainda toma conta da peça, porém deu um lugar maior à cor verde que se mistura ao vermelho. Os dizeres “Amor e Ordem” continuam na esfera azul, ao centro. Ambos estandartes pesam cerca de sessenta quilos, que são
revezados por três porta-estandartes durante o desfile, o qual toma conta das avenidas recifenses na segundafeira de carnaval. Tais objetos que eternizam as vitórias do Clube das Pás e que ativam a memória daqueles que participaram e participam ativamente do espaço, bifurcam o caminho que leva para onde o show acontece. Agora dentro, de fato, da gafieira, pode-se observar que, por ser um prédio histórico, o edifício é bastante conservado. O palco – engenhosamente ornado com faixas de oxford verticais, coloridas e franzidas do teto ao solo, sobrepostas por uma segunda, em horizontal, da extremidade superior às laterais, de organza voil branca divide espaço com o dancing de madeira; as paredes devidamente pintadas de verde esmeralda; os azulejos, que na cores do clube condecoram os muros internos, perfeitamente alinhados; o ambiente totalmente climatizado,
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sendo a única gafieira do Recife que dispõe desse serviço, somado a ventiladores apregoados entre um aparelho condicionador de ar e outro; o teto, revestido de pvc, milimetricamente colocado e o tablado central, de madeira de lei, demasiadamente encerado. Passava das 18:47 quando nos direcionamos para o primeiro andar do prédio, espécie de refúgio para aqueles que não conseguem encontrar mesas vazias no térreo do clube, próximas ao palco central ou ao redor do tablado de lenho. Tablado esse que, muito embora sua natureza escorregadia auxilie o deslizar dos pés no ato da dança, pode vir a facilitar a ocorrência de acidentes diversos. Pensando nisso, o Clube se precavê envolvendo-o com luzes fluorescentes que demarcam o espaço destinado à dança, além de deixar de prontidão todo um aparato de segurança, como, por exemplo, bombeiros, paramédicos e uma
ambulância. Se, anteriormente, a casa já estava com bastante gente, agora, às 19:38, as mesas e cadeiras acabam de ser preenchidas por completo e o tablado de madeira de lei, nesse momento, encontra-se apinhado de casais. Há, também, aqueles que estão sozinhos nas beiradas do espaço de dança, à procura de um par. Já não existem caminhos por entre as mesas e cadeiras dispostas, às 19:54, tudo está preenchido por pessoas, acomodadas ou em pé. É chegado o momento que alguém da organização faz um pedido ao público: “Vamos subir! Isso aqui embaixo vai tudo encher!”, apontando incisivamente para o epicentro do térreo, já lotado. Se é que há um problema, de longe, o maior deles é o espaço, ou melhor a falta dele, ainda que o clube tenha capacidade para 1,500 pessoas. É possível afirmar que a lotação se dê
em virtude da gratuidade de entrada no Clube, nesta sexta-feira especificamente, das 16:00 às 20:00, a qual, a partir dessa última hora, seria cobrado o valor de vinte reais.
“De fato este salão de sangues] [misturados parece o Brasil – Manuel Bandeira
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O serviço: “Te conheci bebendo na mesa de um bar”
Apesar da época de São João, outros ritmos de músicas, que não tão somente o forró pé-de-serra, são cantarolados e tocados e embalam os casais e as pessoas que estão solo. O brega pernambucano, tão conhecido e às vezes tão hostilizado e marginalizado, envolve as pessoas e faz as vozes alcançarem diversas oitavas. Os corpos, ainda que sentados, ou naturalmente em pé, se entregam ao ritmo, pertinho da mesa onde estão as bebidas e, também, claro, no tablado de madeira de lei, que, de acordo com os responsáveis pelo clube, é o maior do nordeste, com 160 metros quadrados - o que facilita os múltiplos arrastares dos pés. Para além da lendária
Orquestra das Pás, a qual está em atividade há mais de 80 anos, e toca religiosamente ritmos latinos em todos os eventos promovidos pela casa, outras atrações, sobretudo regionais, abrilhantam semanalmente o espaço de dança. A trilha sonora é majoritariamente composta por canções que datam da segunda metade do século XX, muito embora hits recentes figurem entre as músicas que constroem o repertório. Como, por exemplo, a canção “O mundo girou”, de Israel Novaes e também outras composições do ritmo sertanejo, em alto e bom som. Tamanho é o volume das canções que as pessoas, ao invés de falar, berram para poder se comunicar entre si. A casa também oferece um serviço de comes - pratos frios e quentes - e bebes - uísques, cervejas e energéticos - diversificado a um preço acessível, tendo em vista que o público, como já pontuado, também é variado.
Para os que curtem uma festa, não importando se já chegou o fim de semana, o Clube funciona todas as segundas, quartas e sextas-feiras, além dos sábados e domingos. Há também os bailes temáticos, que acontecem de acordo com o período, como nas festas de carnaval, São João entre outros.
“Uns tomam éter,] [outros cocaína. Eu tomo alegria! Eis por que vim] [assistir a este baile de] [terça-feira gorda.” – Manuel Bandeira
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O público: “Lembro com muita saudade daquele bailinho onde a gente dançava bem agarradinho”
“- Não, foi a arrumadeira. E está dançando com o] [ex-prefeito municipal. Tão Brasil!” (...) “Também dança maxixe: Acugêlê Banzai! A filha do Usineiro de Campos Olha com repugnância Para a crioula imoral”. – Manuel Bandeira
maioria das pessoas que frequentam o clube são da terceira idade. Mas se pensas que aqui a terceira idade é sinônimo de invalidez ou lentidão - característica geral e erroneamente atribuída ao segmento social em questão -, precisas mudar teus conceitos. A animação desse pessoal é incrível. Não obstante, a juventude do clube, naturalmente, se faz presente, quer masculina ou feminina. Uns acreditam que a diferença entre as idades possa vir a causar certa “richa” entre mulheres biologicamente mais velhas para com as mais novas; outros, que a casa de eventos pode atuar como ethos da comunhão quer entre as diferentes
faixas etárias, quer entre as mais diversas classes sociais, sem distinção de qualquer natureza; tornando-se, assim, um espaço democrático. As mulheres, muitas das quais desacompanhadas, percebe-se, são maioria! Chegam - diferentemente dos homens, que são minoria e frequentam o ambiente, muitas vezes, sozinhos - em grupos, acomodam-se em mesinhas nas extremidades do clube e são convidadas para dançar por cavalheiros que também estão sós. Não tem isso de ficar parado, só se você quiser. O Clube esquenta, mas é em virtude do calor humano. E na tentativa de rebaixar de imediato a sensação térmica elevada, determinadas madames sacam seus leques de suas bocetas e se refrescam. Pode-se dizer que o traje influencia bastante no pedido para dançar, tanto advindo de um homem,
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quanto de uma mulher. O capricho nas vestimentas vem de ambos os lados. Ao passo que os brilhos e as estampas coloridas confeccionam imensa maioria dos figurinos femininos, as cores opacas e obscuras compõem as becas masculinas. É clarividente que não há regras, mas que a única exigência é se sentir à vontade e bem. E se tratando das mulheres o mais poderosa possível. Na contramão do que vem ocorrendo em eventos e shows direcionados à juventude como público-alvo cuja tamanha dependência sob a parafernália tecnológica a deixa à mercê de não aproveitar o momento, concentrandose mais em registrá-lo que a vivê-lo, contrariando a lógica do carpe diem observa-se que nas Pás o aparelho celular é abolido das mãos, que, ao invés de teclar botões, preocupa-se em apertar outras mãos com o intuito de, assim, bailar por todo o salão. Apesar das pequenas “richas”,
o sentimento dentro do Clube é de amizade. Ainda que os casais se esbarrem enquanto dançam, o que é natural, devido à superlotação, o espírito da cordialidade prevalece e o que poderia ser motivo para um possível desentendimento ampliado acaba sendo na hora, pelos próprios dançantes, apaziguado. Não há preocupações. De acordo com os frequentadores, nunca houve uma ocorrência de roubo ou furto nas dependência do clube. Os casais que se apropriam do espaço para dançar, não se preocupam em deixar seus pertences à mesa, pois sabem que, quando retornarem, eles estarão no mesmo lugar. O furto pode não ser relacionado aos bens materiais, mas não se pode dizer o mesmo sobre os bens imateriais. O Clube se orgulha por ter o papel de cupido; várias histórias de amor tiveram início em suas dependências, embaladas pelas calientes músicas latinas. Uma das
histórias é a de Álvaro Guedes, que conheceu sua atual esposa quando foi ao Clube, depois do rompimento de um relacionamento anterior. Do centro do dancing, avistou-a sentada em uma das mesas, foi até ela e a tirou para dançar. Conta que à época ela tinha 16 anos e que o casamento deles ocorreu no próprio Clube.
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O Clube... além do óbvio Clube das Pás chega a ir além do evidente: seu espaço de dança é compartilhado com uma escola de frevo comandada pela professora Laninha - intitulada a Primeira Dama do Frevo - voltada para as crianças e os jovens das comunidades do bairro de Campo Grande, Zona Norte do Recife. E se aproxima de se tornar realidade um projeto social grandioso: em cooperação com o consulado americano, o japonês e também o francês, todos alocados em Recife, o Clube das Pás planeja inaugurar, em espaços da casa transformados em salas de aula, cursos profissionalizantes para os jovens das comunidades do bairro. Com cursos voltados para a área de tecnologia e idiomas, o objetivo é atrair e preparar os jovens para o mercado de trabalho e para as
atividades culturais, afastando-os das ditas facilidades do crime. Para além dos projetos fixos que o Clube já realiza, e aqueles que estão a um passo de se tornar realidade, o espaço também realiza ações solidárias quando há necessidade; como quando as fortes chuvas atingiram a mata sul do estado de Pernambuco e as enchentes deixaram milhares de famílias sem seus lares. As Pás iniciou uma campanha arrecadando toneladas de alimentos não perecíveis, produtos de higiene pessoal e vestimentas, entregando-os, por fim à população desabrigada. O mesmo ocorreu com o abrigo para idosos Cristo Redentor, localizado em Cavaleiro.
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