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Capítulo 3 - Outono
ONDE HÁ FOLHAS SECAS, HÁ TAMBÉM RENOVAÇÃO
Amanda faz parte da terceira geração da família que se sustenta principalmente com a venda de avoador. Criada na cozinha, passou a ajudar os pais ainda pequena. Hoje é casada e trabalha meio turno como professora de educação infantil. Tem uma filha de oito anos que já foi ensinada a ajudar a família na atividade.
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- Ah meu Deus do céu, ela bota touca, o avental e “bora mãe!”. Bota do jeitinho dela, né? Mas coloca. Mas quero que ela cresça do mesmo jeito que eu.
Designar toda a família numa mesma atividade é, segundo ela, financeiramente mais proveitoso do que contratar funcionários. Melhor do que ter um lucro mais alto e pagar salários, é trabalhar de forma colaborativa e toda a renda ser divida entre eles. Assim organizam o fluxo de trabalho de acordo com a disponibilidade de cada um, sem rigidez sobre quem cumpre qual tarefa. Cada pessoa trabalha o quanto pode sem ser penalizada por eventuais faltas. Naturalmente, há funções favoritas: Amanda gosta de fazer as entregas, além de ser a mais veloz em dispor os biscoitos nas torradeiras; o pai é quem escalda a tapioca com menor ocorrência de erro a ser consertado; e invariavelmente todos passam por pingar avoador.
Por mais que Amanda diga o quanto gosta de fazer avoador e ir à feira, o movimento do seu trabalho vai em direção à mecanização dos processos produtivos e à secundarização da feira como ponto de venda. Isso porque ela comenta o sonho da aquisição de uma pingadeira, máquina que substituiria a etapa que mais demanda tempo na produção de avoador, que é distribuir os pequenos biscoitos nas torradeiras. Atualmente a família dispõe de dois instrumentos industriais: o forno elétrico não substituiu o de lenha, mas é nele que assam quase a totalidade da produção, e apenas algumas fornadas sob encomenda passam pelo forno à lenha para a clientela preciosista; o segundo instrumento é a batedeira, substituta do esforço manual de manusear a tapioca escaldada ainda quente na incorporação dos ovos e do trabalho na textura da massa, que deve ser lisa e leve num ponto que permita ser manipulada com um saco de confeiteiro. Quanto à venda, a maior parte da produção é distribuída para mercados, a demanda da feira, como Amanda demonstra quando fala da sua motivação para pegar o carro dos pais e partir na tentativa de novas vendas, não é suficiente para manter a renda da família.
Aprender a profissão do pai também foi tarefa do filho homem de Edson. Mas ao contrário dele, começou a trabalhar na roça já adulto. A filha não seguiu a profissão dele nem da mãe, tendo melhores oportunidades, apostou na vida da cidade.
Mesmo o trabalho de Edson sofreu mudanças significativas ao longo do tempo, coincidindo com a movimentação dos filhos de passar menos tempo na roça e até se mudar para uma cidade grande. Edson passou a contratar trabalhadores permanentes, já que, sem os filhos como sucessores do trabalho como ele mesmo foi, e com a abertura do poço d’água, se tornou quase independente das temporadas de chuva e tem a segurança da própria irrigação. Também no período mais recente da lavoura começaram a surgir pragas resistentes, que não são erradicadas com controle do solo ou remédios naturais. Assim os agrotóxicos chegaram ao trabalho de Edson.
Os pés de mamão da roça de Edson foram atingidos pelo que ele identificou como um ácaro, deixando as frutas com manchas cinza nas cascas, o que diminui o valor de mercado, apesar da polpa não ser atingida. Hoje em dia Edson sequer vende mamão na feira, o que produz é consumido em casa.
Enquanto isso, uma das filhas de Dimas partiu para a vida em cidade grande. Já as outras, seguiram como lavradoras. Primeiro na roça do pai, como o irmão faz até hoje, depois como catadoras de tomate em plantações maiores. Todas são escolarizadas. Dimas segue trabalhando em lavoura de sequeiro, garantindo que a irrigação naquelas proximidades só se faz em roças de tomate e de pimentão. Hoje em dia a produção de mandioca,
mamona e as ovelhas que cria vão para sua principal clientela: os atravessadores, e planta pouco para consumo familiar. Mas também reclama da crescente de pragas:
- Antigamente não dava, não. Mas hoje em dia por causa dos tomates é uma praga doida. Até [na] roça sequeira se a gente quiser colher feijão, milho, é obrigado a jogar veneno. Hoje em dia tem que jogar. Se não jogar, a imundiça come tudo.
- De quanto tempo pra cá mais ou menos que começou isso?
- De uns dez anos pra cá, mais ou menos.
- E compra esses venenos onde?
- Compra em Seabra, nos depósitos.
- Aí na loja tem o técnico que passa a informação?
- Tem o técnico… Cada tipo de bicho tem um tipo de veneno também, né?
- Aí chega lá na loja e explica pra o técnico o que está acontecendo e ele passa? Ele dá a receita ou só vende?
- Ele já vende. Ele pega o remédio e já vende.
- Nem pega a receita?
- Não. Ele pega o veneno e entrega pra a gente e a gente vai usar, né?
- A prefeitura passa aqui pra alguma coisa?
- Não.
- Tem que ter registro na prefeitura pra plantar?
- Não…
- Então a prefeitura não tem nada a ver?
- A prefeitura não tem nada a ver!
O relato de Dimas vai contra o de Fernando Viana, então secretário de Agricultura, Turismo e Meio-Ambiente do município de Iraquara1. Segundo o
1 Neste trabalho as entrevistas foram realizadas entre os anos 2017 e 2018.
secretário, não há mais prática de agricultura de sequeiro na cidade, e o uso de agrotóxicos nas lavouras dali é feito por um grupo específico de produtores. Mas concorda que este uso não é controlado em nenhuma instância:
- Você reconhece que mesmo a agricultura familiar aqui usa agrotóxico? - Não. Agricultura familiar não, os pequenos produtores irrigantes. Vamos diferenciar. Os pequenos produtores de produção restrita, geralmente orgânicos, esses não, mas os pequenos irrigantes usam, até mesmo porque produzem basicamente tomate, pimentão que são olerícolas que não produzem sem.
- Mas pra usar esse tipo de material precisa de um responsável técnico. A prefeitura tem assistência pra isso?
- Não. A prefeitura não tem, o Estado não tem, ninguém aqui nunca se ouviu falar em receituário agronômico, que é o instrumento que legaliza como se fosse um receituário médico para o paciente, é o receituário agronômico para uma planta. Então o que existe aqui no município hoje são revendas, lojas grandes de Irecê de agrotóxicos, de fertilizantes e eles tem um agrônomo que dá orientação técnica aos clientes de como usar, mas no intuito de vender. Mas pra ter o critério da natureza, o critério de proteção ao ser humano como prescreve as normas que direcionam a questão do receituário agronômico, isso não existe em lugar nenhum do estado da Bahia.
Contudo, de acordo com Fernando, o principal problema da pasta são os poços irregulares, por serem ameaças ao equilíbrio hídrico da região. Para isso, a prefeitura firmou parceria com o Governo do Estado num projeto de cadastramento de poços artesianos a fim de melhor controlar o uso da água no município, útil inclusive para as autorizações, ou não, de grandes empresas na região:
- Iraquara é rica em recursos hídricos subterrâneos. E você tem aí trezentos ou quatrocentos irrigantes pequenos, mas ilegais, sem outorga. Então não tá registrado, não existe no papel documentalmente e chega um grande lá no Inema, quando eles puxam no sistema o extrato do uso de água em Iraquara… Iraquara não tem ninguém usando água! Mentira. Os pequenos estão todos usando, mas tá tudo ilegal. Então o cara vai lá e dá uma outorga gigantesca pra um cara desse. Para um manancial hídrico que já está combalido. Agora eu devo registrar aqui que o Estado sim, é que é o grande lento porque o que teve de gente já dando o primeiro passo para tentar uma outorga e as coisas andam muito lentamente porque eles não têm material técnico, quadro técnico… Esse departamento de outorga, por exemplo, em governos anteriores eram - isso eu ouvi de um próprio técnico do Inema que não vou citar nome aqui, naturalmente - era um órgão grande pra cuidar de outorga no estado, hoje está se resumindo a um setorzinho lá qualquer e a necessidade de legalização
é gigantesca pra você ter um controle do uso das águas. O secretário assume a falta de programas municipais de incentivo aos pequenos agricultores iraquarenses, além do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e do Programa de Aquisição de Alimentos (PEAA), federais. O primeiro, liberou R$617.856,00 em 2017 para Iraquara; já a ferramenta de consulta do PEAA não traz registros de atuação do programa no município no ano referido2 .
Então logo após falar dos programas de incentivo à produção, o secretário Fernando se contradiz em uma fala confusa:
- Agora se você recorre, por exemplo, ao Conselho Municipal de Desenvolvimento Regional Sustentável, que eu sou também um dos conselheiros, que congrega todas as associações dos produtores, lá já se fala nessa língua. O próprio sindicato tem um viés de apoio através de cursos. A prefeitura também procura buscar através de cursos de aperfeiçoamento. Mas assim, o que existe ainda é uma região carente de recursos hídricos. A pequena produção ainda aqui é ativa, mas de forma discreta. Ela não está sistematizada, ela não está organizada.
Captura de tela com o resultado da busca por Iraquara no mapa do PAA em 2017. Consulta em 2 de setembro de 2021.
Na feira, quando procuro por vegetais orgânicos, os próprios feirantes me encaminham para poucas barracas específicas. Com oferta limitada, já no início
2 Consulta feita em 2 de setembro de 2021.
da feira os produtos se esgotam. Fernando Viana conta que esta produção se dá a nível de quintal, e apesar de reservada a este espaço, ainda assim está ameaçada. No entanto, esta delimitação conflita com sua declaração sobre o uso de agrotóxicos no município ser de um grupo específico. A fala do secretário não preenche o espaço deixado entre o pequeno grupo de produtores orgânicos e o suposto grupo específico de produtores com agrotóxicos.
- Eu quando comecei a plantar no meu quintal, um sítio aqui perto há seis anos atrás, eu colhia pimentão orgânico, colhia tomate orgânico, hoje nada produz porque no entorno já criou-se a resistência nos vetores de tanto usar indiscriminadamente agrotóxicos.
Além da pequena oferta de vegetais orgânicos e da predominante oferta de vegetais “convencionais” [sic]3, Fernando Viana também cita por nomes, sem mais detalhes, três associações de produção de alimentos que fornecem para a merenda escolar (uma associação de mulheres produtoras de biscoito na região da Quixaba, a associação Cana Brasil e a associação da região da Boca da Mata) e faz um alerta para a presença da agricultura em larga escala de empresas externas à região, como a Igarashi.
A empresa está atualmente instalada em duas cidades baianas: Correntina (515,4 km distante de Iraquara) e Ibicoara (171,7 km distante de Iraquara), sendo esta, parte
Página inicial do site da Igarashi Brasil. Consulta em 2 de setembro de 2021.
3 Defendo que usar o termo “convencional” para designar vegetais cultivados sob tratamento com agrotóxicos é uma forma de normalizar uma prática que, na verdade, é de caráter de exceção. Agrotóxicos não são convencionais, mas convencionados a partir das monoculturas. Gradativamente se fez necessário e incentivado por governos em médias e pequenas lavouras ao ponto de que pensem ser impossível alimentar a população sem uso destes venenos.
do Parque Nacional da Chapada Diamantina. Em 2017 a atuação da agropecuarista foi objeto de denúncia por uso abusivo de recursos hídricos na fazenda Igarashi em Correntina, num ato que recebeu notoriedade ao ser comunicado em veículos regionais e atingiu alcance nacional ao ter matéria exibida no Jornal Nacional, principal veículo jornalístico televisivo no país. Todavia, entre as matérias localizadas e acompanhadas nesta pesquisa, o foco da notícia foi, em quase todas as publicações, o prejuízo da Igarashi ao ter equipamentos destruídos. Apenas uma publicação encontrada noticiou o ato e seus interesses:
A Rede Brasil Atual foi criada por sindicatos de trabalhadores e se propõe à prática da comunicação contra-hegemônica. (Captura de tela feita em 3 de setembro de 2021).
Em 1 de dezembro de 2017 foi realizada uma audiência pública para averiguar a redução de volume dos rios da Bacia do Rio Corrente e revisar a regularidade das outorgas de empreendimentos neste território4. Esta é uma bacia afluente da
4 Diário da Justiça Eletrônico Nº 2.090 de 28 de fevereiro de 2018.
Bacia do Rio São Francisco na Bahia, abrangendo diretamente 27 rios ao longo de 13 municípios, inclusive Correntina.
Os encaminhamentos decididos na sessão passam pela criação de uma lei mais restritiva ao agronegócio na região, a realização de estudos para a proteção do Aquífero Urucuia - que vem diminuindo 6,5mm/ano mesmo sendo de alta importância para a vazão, dentre outros leitos, do Rio São Francisco -, a não concessão de novas outorgas e a revisão das já concedidas na região.
Num momento de viagem para pesquisa, ao passar pela região de Cascavel, pertencente ao município de Ibicoara, as pessoas que me acompanhavam e eu, fomos surpreendidas por um mau cheiro intenso, que num primeiro momento pensamos se tratar de alguma carniça na pista. Entretanto, o fedor persistiu por um trecho significativo. Decidimos por tentar descobrir sua origem, e percebemos que ele estava presente ao longo da área correspondente a uma fazenda da Igarashi. Não conseguimos ir a fundo e saber a causa do mau cheiro, mas fomos marcados pela referência desagradável à marca. A preocupação de Fernando Viana ao alertar sobre a presença do agronegócio na região tange à poluição e à superexploração de recursos hídricos, apesar da geração de empregos. Ele fala sobre estas agroindústrias serem nômades: extraem os recursos da terra, depositam seus resíduos e se mudam para uma nova área. É visto que, sobre isso, ele não está sozinho. Esta é uma preocupação emergencial para as pessoas ligadas ao meio.
Ao sondar o cenário da agricultura em outras cidades da região, visitei o Assentamento Padre Cícero em Lençóis, onde a líder Núbia Rodrigues apresenta um panorama semelhante ao de Iraquara: produção dividida entre consumo interno, uma pequena venda em feiras (inclusive a de Iraquara) e principalmente para atravessadores. Ela explica que a comunidade tem duas queixas principais: a dificuldade e falta de apoio no escoamento da produção; e a diminuição do volume do rio usando na irrigação, o rio Utinga, componente da APA Marimbus/Iraquara na formação do pantanal de Marimbus.
- A gente mediu toda a área e dividimos pra as 25 famílias igualmente. O rio é aqui. A bomba fica lá embaixo e a gente faz irrigação em toda a área. E a bomba é uma só pra compartilhar com todo mundo.
- O que aconteceu com o rio, a responsabilidade é da prefeitura de Lençóis ou de Utinga?
- Na verdade a responsabilidade do rio era pra ser do Governo Federal. Porque é responsabilidade do Inema, é ela que tem que fiscalizar e corrigir. E em Utinga a quantidade de bombas pra captação de água é muito grande e o rio não suporta. [...] 2015 que foi a primeira vez que o rio secou. E a gente vem fazendo reuniões, fazendo protestos. Protestos em que já aconteceu do governo mandar tirar o pessoal da pista a troco de bomba e bala. E a gente vê
diante disso que eles não estão fazendo nada, que a produção de banana em Utinga está crescendo a cada dia e a quantidade de bomba é imensa. E o rio vai desaparecendo. [...] Quando a gente chegava pra o Inema e falava que tava acontecendo isso e aquilo, nada acontecia. O que nós mesmos fizemos foi ir lá registrar, tirar foto, fazer vídeo. Chegava em fazenda que a gente era ameaçado. Tinha um rapaz que tava com a gente que foi ameaçado de morte porque ia lá pra registrar os fazendeiros de Utinga que não aceitavam de maneira alguma! Nem na nascente, eles não queriam que a gente fosse lá olhar. E de lá pra cá a gente tem feito reunião, foi em Salvador pra ter reunião com o secretário de governo, mas a gente vê que não tem resultado de nada. Eles não tomam providência nenhuma. Porque na verdade são muitas bombas. E são bombas de porte grande, são de 1500.00 cavalos, que o rio não suporta. A gente esteve numa fazenda mesmo, que com a bomba ligada o rio não descia, a água voltava todinha pra a bomba e a parte de baixo seca. Engolia eu dentro da bomba! A água não descia.
- E a daqui é de quanto?
- A daqui é de 5 cavalos. São 5 pra 25 áreas. [...] Se a gente observar o que mais está destruindo os rios da Bahia é o agronegócio por conta disso.