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Capítulo 4 - Inverno

HORA DE PREPARAR O FUTURO

Tendo visto a movimentação da comunidade para fazer acontecer semanalmente a feira grande e farta em Iraquara, não poderia levantar qualquer hipótese de que ela deixe de existir num futuro próximo. Mas tendo visto e escutado relatos e queixas, afirmo com certeza que esta feira está passando por mudanças abruptas importantes, por mais que ainda não se tenha consciência das consequências do processo. Se na mocidade de Nenzinha e Dige as mudanças na feira eram sobre a saída de um feirante ou a chegada de outro, ou as mudanças sazonais de ofertas de vegetais - a colheita do tomate é no verão, a da tangerina é no inverno, etc -; o curso do trabalho de Edson e de Dimas já se relaciona assiduamente com os atravessadores que apareceram como uma forma mais segura para escoar a produção, mesmo que a preços baixos, e a partir daí os produtos viajam quilômetros até chegar em outras feiras ou mercados de cidades por vezes desconhecidas por quem produziu. Ou como no caso da mamona que Dimas explica com orgulho do seu produto ir longe, mas também com o distanciamento de quem não sabe realmente os processos pelos quais aqueles frutos manualmente colhidos passam.

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- Eles [atravessadores] saem aí nas roças apanhando em tudo quanto é casa. E aí leva. E de lá não sei te dizer. Antigamente era pra Salvador, mas agora acredito que fica tudo dentro de Iraquara mesmo por causa da Biodiesel[1], né? Porque tem a Biodiesel aí que fabrica óleo e tudo, né? Então fica tudo aí em Iraquara mesmo.

Os primos que vieram de uma família que comprava na feira apenas o que por ventura não conseguia cultivar na própria roça, passam então a produzir o que tem melhor chance no mercado, reconhecendo que ao longo do tempo a necessidade de pagar por itens básicos ficou maior. De forma indissociável vieram as mudanças técnicas nas lavouras e os agrotóxicos: o produtor passou a pensar seu trabalho como um meio para o consumo, e agora que escoa a produção pelos atravessadores, está

1 A Biodiesel a que Dimas se refere é a Usina Oleoplan BA, uma das maiores na América a produzir diesel livre de origens fósseis, cerca de 468 mil m³ por ano.

mais prático se especializar em uma ou poucas culturas; junto a isso, está a chegada da agroindústria e suas monoculturas de larga extensão na região; e o apoio de meios de comunicação de massa e de publicidades2. Sobre o assunto, Fernando Viana responsabiliza o Estado:

- Isso é um papel que o Estado está omisso de forma criminosa. Acho que a nível de Brasil. Hoje, Jessica, existe até agrotóxicos que o cara usa hoje e o período de carência[3] é de quinze dias. Ele usa e o preço tá alto do tomate, do pimentão, ele usa agora, de tarde tá no caminhão, no outro dia tá na nossa mesa. Nós estamos comendo, estamos com nossa camada adiposa reservando substâncias cancerígenas, e digo mais: a nossa terra de Iraquara, a nossa querida terra já está chamando atenção também pelo alto índice de câncer.

A terceira geração, a dos filhos e filhas de Edson e Dimas, representa a pequena possibilidade de escolha que chegou nas roças da região. Para estas pessoas a lavoura não foi passada por herança. Por mais que tenham algum conhecimento sobre o funcionamento da plantação, puderam acessar melhor os espaços que antes eram de intensa disputa, sendo relegados ao segundo plano, como o da escolarização. As filhas de Dimas que seguiram como agricultoras acreditam que o trabalho como colhedoras em médias e grandes lavouras lhes proporciona maior segurança do que a alternativa de fazer roça junto ao pai, por exemplo. Os que partiram para a vida urbana, às vezes saindo da terra natal, investiram na mesma busca por segurança. Um ponto em comum no relato das pessoas que trabalham como agricultoras é a imprevisibilidade da safra, especialmente nas lavouras de sequeiro. Se valer da ascensão dos pais e da sociedade em que estão inseridas, aproveitando oportunidades de estudo e de emprego formal, é uma estratégia de força na busca por condições de vida mais estáveis e aparentemente confortáveis.

Para Amanda, que faz parte desta mesma geração, a melhor alternativa foi integrar ao trabalho tradicional as inovações que seu tempo pode proporcionar. Ela é o elo entre o artesanal e o moderno, sem deixar de ser tradicional. Amanda trabalha na feira, mas reveza o posto na barraca de biscoitos com interesses pessoais, vai ao salão de beleza e visita lojas; não tem um dia de folga, mas, por ser autônoma, decide quando precisa de uma pausa ou de remanejar o horário para cumprir outros compromissos; trabalha na feira, na cozinha, na distribuição e na sala de aula; é cozinheira, comerciante, professora, esposa, mãe, filha, neta, irmã, amiga e… Amanda. Por mais repetitivos que sejam os processos de agricultura e de produção artesanal de alimentos em torno da feira que se repete infindamente toda semana, é preciso ir além, reconhecer o fato de que nada é uma coisa só: os produtos

2 A Rede Globo foi citada como referência principal em diversos momentos das conversas desta pesquisa. Desde o Globo Rural que se propõe a ser o programa amigo do homem do campo, até as propagandas ostensivas do Agro é Pop. 3 Intervalo de tempo para a segurança entre a última aplicação de agrotóxico e o momento de colheita ou manipulação do vegetal.

não são os mesmos, os produtores também não. A oferta pode ter se mantido farta e variada ao longo das gerações, mas vegetais como o tomate, por exemplo, hoje não são compostos apenas por “tomate”, sua constituição apresenta agora agrotóxicos ministrados sem orientação dos órgãos públicos de vigilância sanitária, e várias vezes, sem qualquer tipo de orientação além de informações levianas passadas ao produtor, que fica diretamente - e duplamente - exposto a esse tipo de substância.

O então secretário diz com orgulho que se dispõe a acordar mais cedo nos dias de feira para aproveitar a pequena oferta de vegetais orgânicos. Falas desse caráter reacendem a relevância da advertência da socióloga Sabrina Fernandes de que não existem soluções individuais para problemas coletivos. O agrônomo Fernando Viana pode estar se afastando do desenvolvimento de um câncer, doença cientificamente associada à presença de agrotóxicos na alimentação, e em última instância, estar apoiando pequenos produtores que resistem à convencionalização dos venenos. Mas para garantir um real estado de segurança alimentar4 e de saúde nesse sentido, as mudanças precisam ser democráticas: é necessário, antes, que as pessoas agricultoras tenham condições seguras de trabalho em que possam, de fato, escolher a modalidade de plantio que melhor se adequa à sua prática ao mesmo tempo que está integrada ao meio biológico que a cerca. Dessa forma, plantações de mamona não fariam sentido para um produtor que tem apenas uma vaga ideia sobre seu uso: Dimas comenta que “acha” que viram combustível de avião, mas não sabe se tem outros usos e não sabe realmente a quê um avião é movido. Outro sintoma da insegurança desse trabalho, é a importação do polvilho que Amanda usa no avoador: numa consulta rápida descobri que entre o estado do Paraná, localizado na região sul do Brasil, e a cidade de Iraquara, no meio do estado da Bahia, há 2.473,2 quilômetros a serem percorridos por caminhões movidos a diesel, enquanto a própria combinação de clima e solo da região em que Amanda mora é propício para o cultivo da raiz, que já é realizado há pelo menos seis gerações.

- Como são vários padrões de consumo diferentes distribuídos de forma desigual ao redor do mundo, não adianta fazer uma abordagem simples focada no consumo. É necessário mexer na produção, em especial no sistema econômico que alimenta um ciclo de produção infinita, para consumo infinito, para acumulação infinita por parte dos donos dos meios de produção. Isso significa que, enquanto alterarmos formas de consumir, a produção segue em parte como antes e em parte se adapta a novas demandas de mercado. A produção como um todo não passa a ser sustentável com essa mudança na demanda, mas cria um nicho de produção “verde” desde que seja, na maioria, atrelada a lucro. A contradição do sistema é mantida e, se a contradição sistêmica persevera, não há como fugir, individualmente, da contradição formal e simbólica de ser contra a ordem vigente enquanto ela vigora. Por isso, creio ser fundamental falar das contradições da realidade e nunca as esconder. (FERNANDES, 2020, p. 25).

4 Segundo a Oxfam Brasil, a segurança trata de um estado de garantia de todos os aspectos que impedem a ocorrência da fome, como a disponibilidade e o acesso permanente a alimentos ricos em nutrientes e coerentes com o meio social de consumo e com aspectos de sustentabilidade.

Por mais que os agrotóxicos sejam anunciados com conotação positiva chamados de “defensivos agrícolas”, “remédio”, ou até pela fala de Dimas garantindo que, sem eles, as pragas abatem toda a lavoura, estas substâncias, regulamentadas em 1997 com o termo “agrotóxico”, são mais do que pesticidas, pois geram efeitos também na saúde humana e de outros animais. E não são inerentes à lavoura, como demonstra Edson ao explicar que a própria necessidade de uso destas substâncias é recente e se deu pelo surgimento de pragas antes desconhecidas.

Hoje os assuntos agrícolas de Iraquara não estão mais na mesma pasta que o turismo, mas configura a Secretaria Municipal de Agricultura, Pecuária e Abastecimento, sob liderança do biólogo Jorge Paulo de Miranda, conhecido como Jorginho. O site oficial da Prefeitura Municipal de Iraquara não apresenta os projetos em curso na pasta e é carente de notícias. Em 2017 o então secretário, Fernando Viana finalizou nossa entrevista com uma fala pessimista:

- Não tem um plano, uma previsão de fazer algum tipo de controle do uso desse material?

- Jessica, eu vou falar isso aí e você pode publicar: seria eu um sonhador. Isso aí não é feito em Iraquara, isso aí não é feito na Bahia, no Nordeste, não existe critério. E nós, os grandes centros talvez já tenham alguma coisa, alguma política para dizer que faz-de-conta que lá tem receituário agronômico. Mas se você for observar de perto, não existe. Existe um faz-de-conta. Chega lá um fiscal faz-de-conta: “Cadê o defensivo?” E o cara mostra, faz-de-conta que mostrou mas tá usando outros mais potentes e mostram o papel com o receituário agronômico. Mas aquilo não corresponde à realidade. A verdade é que no afã de ganhar dinheiro, nessas dificuldades que a nação atravessa, as pessoas esquecem os valores humanos, os valores ambientais, o respeito ao próximo e o dinheiro passa a ser mais forte que tudo.

Em 2020, integrantes da comunidade quilombola de Velame, na cidade de Morro do Chapéu, a cerca de 124 km de Iraquara, foram hospitalizados por diferentes graus de envenenamento. O ocorrido foi noticiado como um “surto” de contaminação por agrotóxicos. Mas, ao contrário do que possa parecer, especialmente após as falas de Fernando Viana que colocam todos os produtores de produtos não-orgânicos no mesmo grupo, esta contaminação não se deu por uso de agrotóxicos na própria comunidade quilombola, mas pela proximidade, entre 500m e um quilômetro de distância, com uma extensa plantação de cebola na Fazenda Nova Velame 3, onde está a Cebolas Romero.

As pessoas contaminadas durante este surto reclamaram, além do mau cheiro e de uma nuvem branca na direção da lavoura, de dor de cabeça e de barriga, falta de ar e tosse. Na época, o gerente da fazenda garantiu não haver abuso no uso dessas substâncias e o Ministério Público da Bahia, em investigação sobre uso indevido de agrotóxicos desde 2019, passou a apurar o caso.

De acordo com o documento Diretrizes para Vigilância em Saúde de Populações Expostas a Agrotóxicos publicado pelo Ministério da Saúde em 2010, o Brasil é um dos maiores consumidores de agrotóxicos no mundo. Sendo estas substâncias, reconhecidamente fatores de risco para a saúde da população em geral. Este documento apresenta dados de uso e de risco por agrotóxicos historicamente, analisando a cultura de aplicação e a substância aplicada. Chama atenção, por exemplo, a constatação de que houve irregularidade em cultivos de tomate: o estudo detectou a presença de um agrotóxico proibido no Brasil por alto teor de toxicidade e neurotoxicidade, e em seguida o documento reconhece a necessidade de um sistema de vigilância em saúde efetivo no país.

Talvez você pense ser impossível imaginar a população totalmente alimentada por alimentos seguros, livres de tóxicos. Sobre isso, é importante considerar dados como os da Organização das Nações Unidas (ONU) traduzidos pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) sobre a fome em 2020, que relatam 2,3 bilhões de pessoas, equivalente a 30% da população mundial sem acesso à alimentação adequada. Se focarmos no Brasil de 2020, o estudo “Olhe para a Fome” indica 116,8 milhões de pessoas em insegurança alimentar, sendo 19,1 milhões passando fome no mesmo país que exportou, em 2020, aproximadamente 45,22 bilhões de dólares apenas no setor de agropecuária, de acordo com o Comex Stat, ferramenta do Governo Federal para consultas sobre o comércio exterior brasileiro. Estes são dados atuais, frutos e inseridos na modalidade de produção de alimentos que, em maioria, utiliza agrotóxicos no plantio e induz pequenos produtores como Edson e Dimas a adaptarem suas produções a um padrão que parte das grandes lavouras, como as que envenenou a comunidade do Velame. O uso de agrotóxicos na produção de alimentos seguramente não está ligado ao propósito de erradicar a fome do mundo, mas se relaciona diretamente à acumulação de riquezas e a prova mais simples disso passa por olhar para os valores das cabeças do agronegócio brasileiro: o Portal do Agronegócio, numa publicação sobre as turbulências da pandemia do Covid-19 no setor, listou o rendimento das maiores empresas em 2020. Desta escala, para demonstrar a acumulação de riquezas, sequer é necessário olhar para os 100 nomes. Apresento três:

1º - JBS: grupo de Gilberto Tomazoni, maior empresa de proteína animal no Brasil e segunda maior de alimentos no mundo. Acumulou R$ 204,5 bilhões de receita em 2020;

2º - Raízen Energia: do executivo Ricardo Dell Aquila Mussa, principal fabricante de etanol de cana-de-açúcar no Brasil e a maior exportadora individual do produto no mercado internacional. Acumulou R$ 120,6 bilhões de receita em 2020;

3º - Consan: representada pelo executivo Luis Henrique Cals de Beauclair Guimarães, um dos principais nomes em bioenergia no país, atuando no fornecimento de gás encanado, na logística de açúcar e outros granéis sólidos para exportação, e exporta lubrificantes e especialidades para mais de 40 países. Acumulou R$ 73,0 bilhões de receita em 2020.

Os números são alarmantes e nos ajudam a visualizar como a nossa realidade social se forma num encadeamento tão conectado quanto as estações do ano. Pensar em adaptar hábitos de consumo aproveitando para si a pequena oferta de alimentos orgânicos não é o bastante, pois tudo que é exclusivo carrega junto um caráter excludente: na mesma medida em que é cruel induzir comunidades e populações inteiras a consumir alimentos envenenados, é criminoso, como Fernando Viana disse em entrevista - criticando autoridades superiores e eximindo a si da autoridade conferida na secretaria -, nossas lideranças estatais ficaram omissas quanto à falta de educação técnica e sanitária a que os agricultores são relegados, enquanto gigantes da agroindústria são eximidas de suas culpas e se tornam cada vez maiores.

Volto a levantar os argumentos de Sabrina Fernandes (2020) sobre não ser o bastante pensar apenas na ponta da cadeia comprando orgânicos. Precisamos reconhecer que o nosso sistema econômico é opressivo e excludente. As mudanças individuais dos que têm alguma possibilidade de escolha podem ajudar individualmente, mas somente a transformação sistêmica de tornar obsoleto o modelo vigente hoje garantirá que as próximas gerações vivam em estabilidade de direitos básicos, dentre eles, a segurança de trabalho. Por mais que as histórias de gente como Edson ou Amanda sejam bonitas e eles as narrem de forma serena entre sorrisos, eles, junto com todos os outros - Dige, Nenzinha e Dimas - sempre dizem: “não é fácil”.

- A reforma agrária, necessária para o combate ao agronegócio e à insegurança alimentar no meio rural e para promover autonomia sobre o que se planta. A reforma agrária de que precisamos consiste em mais que a redistribuição de terras improdutivas dos latifundiários para os pequenos produtores. Como trabalhada pelo MST[5], é necessário que seja agroecológica e popular; ou seja, com recursos para a infraestrutura dos produtores, com autonomia de movimentos e produtores associados, com incentivo para a economia solidária e maior proximidade entre produtor e consumidor e pauta em cima de princípios de produção orgânica, eficiente nos recursos naturais e integrada com os biomas.6 Com isso, torna-se possível trabalhar com soberania alimentar, passando por outro modelo de produção de alimentos, que integra o campo com as cidades, educa sobre alimentação, garante que todas as pessoas tenham comida - boa comida, que seja nutritiva e gostosa - na mesa. (FERNANDES, 2020, p. 130).

Acreditar na transformação é o primeiro passo para que ela aconteça. É preciso que haja algo melhor, uma realidade em que as agressões sofridas por Dige, as censuras a que Nenzinha foi submetida ou a romantização do trabalho sol a sol de Amanda não passem de registros e, principalmente, não sejam meramente substituídas, mas superadas. É do presente que nasce a esperança e esta, tal como

5 Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. 6 Lucas Henrique Pinto, “Procesos de Ambientalización y Transición Agroecológica En El MST: Reforma Agraria Popular, Soberanía alimentaria y ecología política”, Intexto, nº 34 (2015): 294.

Paulo Freire advertiu em “Pedagogia da Esperança” (1992), pouco tem a ver com o ato passivo de esperar; a esperança para os que lutam precisa da prática, da força da ação para se realizar.

Ó donos do agrobis, ó reis do agronegócio Ó produtores de alimentos com veneno Vocês que aumentam todo ano sua posse E que poluem cada palmo de terreno E que possuem cada qual um latifúndio E que destratam e destroem o ambiente De cada mente de vocês olhei no fundo E vi o quanto cada um, no fundo, mente E vocês desterram povaréus ao léu que erram E não empregam tanta gente como pregam Vocês não matam nem a fome que há na terra Nem alimentam tanto a gente como alegam É o pequeno produtor que nos provê E os seus deputados não protegem, como dizem Outra mentira de vocês, pinóquios véios E vocês já viram como tá o seu nariz, hem? Vocês me dizem que o Brasil não desenvolve Sem o agrebis feroz, desenvolvimentista Mas até hoje, na verdade, nunca houve Um desenvolvimento tão destrutivista É o que diz aquele que vocês não ouvem O cientista, essa voz, a da ciência Tampouco a voz da consciência os comove Vocês só ouvem algo por conveniência Para vocês, que emitem montes de dióxido Para vocês, que têm um gênio neurastênico Pobre tem mais é que comer com agrotóxico Povo tem mais é que comer, se tem transgênico É o que acha, é o que disse um certo dia Miss motosserrainha do desmatamento Já o que eu acho é que vocês é que deviam Diariamente só comer seu alimento Vocês se elegem e legislam, feito cínicos Em causa própria ou de empresa coligada O frigo, a multi de transgene e agentes químicos Que bancam cada deputado da bancada Até comunista cai no lobby antiecológico Do ruralista cujo clã é um grande clube Inclui até quem é racista e homofóbico Vocês abafam, mas tá tudo no YouTube

Vocês que enxotam o que luta por justiça Vocês que oprimem quem produz e que preserva Vocês que pilham, assediam e cobiçam A terra indígena, o quilombo e a reserva Vocês que podam e que fodem e que ferram Quem represente pela frente uma barreira Seja o posseiro, o seringueiro ou o sem-terra O extrativista, o ambientalista ou a freira Vocês que criam, matam cruelmente bois Cujas carcaças formam um enorme lixo Vocês que exterminam peixes, caracóis Sapos e pássaros e abelhas do seu nicho E que rebaixam planta, bicho e outros entes E acham pobre, preto e índio tudo chucro Por que dispensam tal desprezo a um vivente? Por que só prezam e só pensam no seu lucro? Eu vejo a liberdade dada aos que se põem Além da lei, na lista do trabalho escravo E a anistia concedida aos que destroem O verde, a vida, sem morrer com um centavo Com dor eu vejo cenas de horror tão fortes Tal como eu vejo com amor a fonte linda E além do monte um pôr do sol, porque Por sorte vocês não destruíram o horizonte ainda Seu avião derrama a chuva de veneno Na plantação e causa a náusea violenta E a intoxicação ne’ adultos e pequenos Na mãe que contamina o filho que amamenta Provoca aborto e suicídio o inseticida Mas na mansão o fato não sensibiliza Vocês já não tão nem aí com aquelas vidas Vejam como é que o ogrobis desumaniza Desmata Minas, a Amazônia, Mato Grosso Infecta solo, rio, ar, lençol freático Consome mais do que qualquer outro negócio Um quatrilhão de litros d’água, o que é dramático Por tanto mal, do qual vocês não se redimem Por tal excesso que só leva à escassez Por essa seca, essa crise, esse crime Não há maiores responsáveis que vocês Eu vejo o campo de vocês ficar infértil Num tempo um tanto longe ainda, mas não muito E eu vejo a terra de vocês restar estéril Num tempo cada vez mais perto, e lhes pergunto O que será que os seus filhos acharão De vocês diante de um legado tão nefasto? Vocês que fazem das fazendas hoje Um grande deserto verde só de soja, de cana ou de pasto?

Pelos milhares que ontem foram e amanhã serão Mortos pelo grão-negócio de vocês Pelos milhares dessas vítimas de câncer De fome e sede, e fogo e bala, e de AVCs Saibam vocês, que ganham com um negócio desse Muitos milhões, enquanto perdem sua alma Que eu me alegraria, se afinal, morresse Esse sistema que nos causa tanto trauma Eu me alegraria, se afinal, morresse Esse sistema que nos causa tanto trauma Eu me alegraria, oh Esse sistema que nos causa tanto trauma Ó donos do agrobis, ó reis do agronegócio Ó produtores de alimento com veneno

Reis do agronegócio Composição: Chico César e Carlos Renno

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