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Capítulo 2 - Verão

DIAS LONGOS NO TRABALHO E AS CORES VIVAS DA FEIRA

Eu poderia começar dizendo que a rotina de Edson para levar seus produtos à feira do sábado começa cedo. Mas “cedo” assim, sem parâmetro, estaria reduzindo às horas de carregamento do carro - momento que arrisco classificar como o mais tranquilo - todo o planejamento e esforço de produção que envolve manejo da terra, contratação de serviços, vigília e outros processos que não cabem em lista.

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Se em meados da década de 1940, na geração de Nenzinha e Dige, mãe e tia de Edson, respectivamente, seguindo o trabalho de Julião após sua morte precoce, o trabalho da lavoura era pensado primordialmente para o consumo interno familiar, e apenas o excedente era vendido junto com os doces e biscoitos preparados pelas mulheres. O fluxo de trabalho da geração representada por Edson, nascido na segunda metade do século XX, é múltiplo.

Quando questionado sobre quais cultivares planta, Edson não faz distinção entre o que é produzido para a venda e o que é pensado para consumo próprio. Simplesmente conta uma lista variada, apesar de, mais tarde em outras conversas, ter revelado mais alimentos no terreno que não entraram na primeira lista, seja porque ainda está em período de teste e de crescimento da planta, como o caso da cajámanga1 chegada em uma única muda - que mesmo já tendo ganhado porte de árvore, ainda não tem constância na safra; ou porque a variedade tem ocupado o terreno quase voluntariamente, se valendo da adaptação ao clima ou do cuidado geral que a terra de Edson recebe - é o caso da goiaba e de ervas dispostas no quintal da casa. É possível inferir que esta última categoria de cultivar criada despretensiosamente não tenha sido incluída na lista de apresentação justamente por não requerer tanto esforço de trabalho para Edson assim como anteriormente eram os porcos e as galinhas no quintal de Nenzinha.

Ao olhar para a lavoura percebe-se - ainda que sem conhecimento prévio - que nada ali é em vão:

A batata doce casa no consórcio com o café para aproveitar o espaço necessário entre as carreiras do arbusto. A bordadura do lado mais alto desta área é de pés de abacaxi, bromélia que suporta o sol a pino e a drenagem do terreno levemente

1 Também chamada na região por “cajarana”, é uma fruta de tamanho médio (entre 6 cm e 10 cm, em média), suculenta de polpa amarela e sabor azedo.

ladeirado. Logo atrás, pés de cana dividem terreno com a plantação de banana da terra, chamada na região de “banana-de-café”, e, neste caso, é ainda de uma subvariedade apresentada como “maranhão”. A localização na área mais baixa e plana do terreno favorece o armazenamento de água nas raízes rizomatosas das bananeiras, além de criar uma pequena estufa sob sua fronde densa.

Por ordem de tamanho: pés de batata doce, planta rasteira; pés de café, planta arbustiva; e ao fundo, a plantação de bananeira. Todas três variedades bem recebidas na terra vermelha de Iraquara cultivada por Edson.

Edson explica enquanto demonstra a colheita, que cada bananeira frutifica apenas uma vez. Por isso, à medida em que colhe, derruba a planta que, findando a vida, gera novas mudas através da raiz.

Ao fundo está a plantação de mandioca que para olhos não-treinados se passa como a repetição de um único tipo de planta. Mas Edson explica que a área abriga quatro variedades da raiz, cada uma sendo preferida para um tipo de preparo ou cliente, além de, quando o rendimento é maior, vender montantes em caixas para atravessadores e outros comerciantes. O plantio de mandioca é comum na região, mesmo nos quintais das casas é possível mapear alguns pés misturados às ervas medicinais. A planta é simpática ao clima árido de Iraquara, vivendo bem com pouca irrigação e com a terra drenável. Edson, assim como Dimas em uma das nossas conversas sobre o trabalho na roça, explica que o plantio da raiz é simples: basta quebrar um pequeno graveto do tronco da planta e pôr de volta à terra saudável.

Não à toa o alimento é tradicional e se mantém presente diariamente à mesa das famílias da região em pelo menos uma refeição: brasileira nativa, cultivada e beneficiada desde os povos originários, as lições sobre seu manejo são passadas hereditariamente e nos cruzamentos entre famílias e outros grupos (clientela, amizades, suporte comunitário) de maneira quase despercebida. Na convivência para a pesquisa pude notar que todos ali, inclusive eu mesma, frequentadora da região desde a infância, tratam o alimento com intimidade: sabendo reconhecer a planta, respeitando sua toxicidade se ingerida

crua, conhecendo diversas formas de beneficiamento (farinha, puba, goma, beijus, bolos, etc.) e tendo pelo menos uma forma favorita de se alimentar da mandioca, que aliás, é chamada por dois nomes: “mandioca” para as variedades que requerem beneficiamento para o consumo (secagem e fermentação, feitos tradicionalmente nas casas de farinha); e “aipim” para os tipos de mesa, servidas cozidas, fritas ou assadas.

A plantação de mandioca forma sob sua fronde baixa uma área de sombra com o chão coberto de folhas secas. Por isso, Edson alerta que é comum haver cobras escondidas nesta área.

A mandioca é matéria-prima para o trabalho de Amanda, jovem que, junto com a família, produz e vende biscoitos feitos a partir da tapioca e da goma, sendo o avoador o principal deles, que me levou até a casa da família na região da Carne Assada em Iraquara para conhecer a produção.

Avoador é um biscoito tradicional na região feito com tapioca (polvilho doce) escaldada com água fervente, sal, óleo e estruturada com ovos. Formando uma massa lisa e cremosa que é, com o auxílio de sacos de confeitaria, manualmente disposta nas torradeiras2 em biscoitos com formato de palitos, roscas ou gotas grandes ou pequenas, assados em forno alto, a lenha ou elétrico. Depois os biscoitos são ensacados para serem vendidos na feira ou distribuídos em mercados até chegar à mesa de diversas famílias, sendo amplamente consumido pela comunidade há pelo menos três gerações, como conta Amanda:

2 Assadeiras; tabuleiros.

- Há muito tempo atrás era a minha avó e o pessoal da minha avó que fazia muito, só que em época de final de ano. Aí minha avó, como naquela época era muito difícil renda… Minha avó começou com o avoador, aí começou aos poucos. Começou a pegar feira. Antigamente era muito difícil o transporte. Ali não tinha ponto onde vocês passaram. Aí ia atravessar a rua de madrugada, ver se achava ponto pra poder ir pra a feira em Lençóis, em Parnaíba, em Souto Soares, esses lugares assim. Aí depois minha mãe conheceu meu pai e começou a fazer mais. Começou assim… Bolachinha, biscoitinho… Aí tinha só o forno de lá, que era o forno a lenha. Antigamente só tinha forno a lenha. Aí tinha que acordar cedo, duas horas da manhã pra começar a fazer avoador.

A avó de Amanda começou a vender o biscoito que até então fazia apenas para consumo da família quando, por conta de um acidente, o marido precisou deixar a profissão de agricultor, que era a fonte de renda da casa. À princípio a família plantava a mandioca e produzia a tapioca para o avoador, mas com o tempo as vendas aumentaram, requerendo mais gente na cozinha e uma quantidade maior de tapioca, que passou a ser comprada. Na época da minha visita à produção de Amanda, o ingrediente era comprado de produtores do Paraná, já que, segundo ela, os preços na própria região eram altos demais. Sendo assim, a pequena plantação de mandioca que a família ainda mantém é para consumo próprio.

Enquanto a preparação de Edson para o dia da feira envolve ciclos diretamente ligados às estações do ano e seus climas, numa doação paulatina de dedicação e cuidado. A de Amanda toma forma em poucos dias com ciclos curtos e repetitivos: tendo os ingredientes em casa - chegados de diferentes fornecedores que, provavelmente, realizam trabalhos parecidos com o de Edson -, a família produz avoador todos os dias, com a venda na barraca da feira aos sábados e entregas em mercados de Iraquara e de Seabra às quintas-feiras. A distribuição acontece para doze mercados, mais uma atravessadora que leva os biscoitos para revender em São Paulo.

- A primeira vez que eu fui em Iraquara… Eu não tenho habilitação e fui em Iraquara. Eu nunca tinha pegado carro na pista, nunca na minha vida. Peguei e fui. Meu pai ficava conversando com minha mãe: “Tem que pagar isso. Tem que pagar tapioca e não tá tendo condições”. Eu pensei: “Meu Deus do céu! Será que se eu for, eu vou conseguir?” Peguei esse carrinho sem falar com ninguém. Peguei até vinte reais escondido de minha mãe. Peguei o carro, enchi de avoador, peguei os vinte reais e botei gasolina. Saí. Fui tremendo daqui até lá. Aí cheguei no mercado e meu pai me ligou: “Amanda tu tá aonde? Cadê o carro?” “Pai tô em Iraquara”. “Tu é doida! Tu vai morrer!” Falei: “Não vou, não, painho! Daqui a pouco eu chego aí.” Como aqui na região tem muita pessoa que faz avoador, foi muito difícil. Cheguei a chorar. Em vários mercados cheguei a chorar. Não vou mentir, não. Eu chegava assim: “Não quero ser melhor que ninguém, nem quero ser pior que ninguém também, mas experimenta meu avoador por favor?” E o pessoal foi comparar de um para o outro: “Tá bom,

Na família de Amanda a produção dos biscoitos é quase completamente manual. Com exceção apenas da massa preparada em uma batedeira industrial, os biscoitos são feitos um por um.

depois eu pego”. “Olha senhora, pra não ficar ruim nem pra mim, nem pra você, eu deixo dez pacotes aqui, semana que vem eu volto. Se acaso vender, você pega mais. Se acaso não vender eu pego e levo pra casa”. Vim embora, levei um xingo de meu pai tão grande: “E cadê os avoador?” Falei: “Oh pai, os avoador eu vendi tudo”. “E cadê o dinheiro?” Tu acredita que eu não voltei com um real? E a gasolina do carro ainda acabou no meio do caminho e eu tive que vir empurrando. Eu chorei. Falei: “Gente, que sacrifício para nada… Que ódio! Meu pai ficou com raiva de mim”. Aí fiquei quieta e painho só provocando com isso a semana todinha. Na quinta-feira, um dos maiores mercados que tem em Iraquara, que é o Sacolão do Povo, ligou: “Eu quero encomenda pra hoje à tarde. Cem pacotes. Tem como me entregar? Uma menina passou aqui, num carro preto e falou que o avoador era de vocês e me deu esse número”. Painho ficou com uma alegria tão grande!

Tanto para Amanda quanto para Edson, a feira é o marcador-norte do trabalho. Para ela, que também vende em sistema de distribuição, o sábado marca a ida à cidade, o reinício do ciclo de trabalho, a presença no primeiro lugar que recebeu seu produto e a socialização com os clientes; para Edson, a feira é onde seu trabalho culmina, ganha campo e traz respostas que vão marcar quais práticas terá na lavoura.

Aos sábados na praça Manoel Teixeira Leite de Iraquara os trabalhos de Edson e de Amanda - que previamente já são interligados por mecanismos simbólicos e territoriais como os próprios hábitos alimentares e as respectivas preparações para atuarem como comerciantes naquele evento semanal - se encontram. Juntamente com dezenas de outras barracas artesanalmente construídas e manualmente montadas, umas ao lado das outras formando um labirinto em que várias vezes é difícil apontar o início de uma e o começo da outra. Por isso que as pessoas frequentadoras deste tipo de comércio normalmente não referem sua compra a um estabelecimento específico, como os que têm nome e placa. Se diz: “fui à feira”. Quem vai à feira sabe por nome e parentesco quem produziu sua comida. Reconhece quem produz seus itens favoritos sem desvalorizar o trabalho da outra. Notei o quão forte é esta rede de reconhecimentos quando, andando pelos corredores da feira de Iraquara, fui reconhecida algumas vezes:

- Você não é da família de Tiolino?

- Sim. Ele era meu tio-avô. Sou neta de Jani.

- Isso mesmo! Dona Jani fazia um dos melhores avoadores da região! Também fazia uma brevidade muito boa! Eu não conhecia previamente aquelas pessoas, nunca morei naquele lugar,

mas fui reconhecida através da fisionomia e de quem ora me acompanhava na pesquisa (primas ou mãe). O reconhecimento era pelo trabalho que minha avó apresentava também na feira, décadas atrás, e lembrado até hoje nestas pequenas manifestações que dão prova do quão perenes são as relações estabelecidas naquele ambiente.

As redes interpessoais formadas na feira são tão complexas quanto os desenhos das suas barracas. O feirante nunca é um comerciante solitário: se algum falta, falta também uma parte da feira; se precisa se ausentar rapidamente para resolver assuntos paralelos, a pessoa da barraca vizinha dá cobertura. De maneira semelhante se organiza as relações da clientela: pela disponibilidade para fazer a feira de alguém que não pôde ir naquele dia, pelo compartilhamento de informações sobre preços e ofertas de produtos, pela confiança e solicitude presentes no costume das clientes em guardar seu bocapiu3 barraca de algum feirante enquanto termina as compras. Os encontros semanais na feira ultrapassam o caráter mercadológico. A feira é um evento social.

A feira de Iraquara não dispõe apenas de vegetais frescos e biscoitos. Há também barracas de café da manhã para os que chegam cedo, e outras de produtos tão variados quanto a mente imaginar: vasilhas, panelas, ferramentas, acessórios da cozinha, maquiagem, cosméticos, roupas, sapatos, etc. Existe uma área entre as barracas de vegetais frescos e as de variedades com produtos que marcam diretamente a cultura regional por trazer a imagem amplamente reforçada

Na barraca de Edson todos os atendimentos são feitos por ele, bem como as tarefas de organização e limpeza dos produtos.

3 Cesto ou sacola feito artesanalmente de palha de licuri. É comumente usado para carregar as compras na feira.

da estética sertaneja através de chapéus de couro, gibão de vaqueiro, chicotes, cestas, esteiras e bancos. Além de chamar atenção a barraca de ervas que parece resistir quase solitária na feira para manter viva o costume lembrado por Dige de tratar em casa, com chás, tinturas e unguentos naturais tudo o que o conhecimento popular der conta, reservando as idas aos consultórios médicos apenas casos específicos ou persistentes.

Mais à frente, passando por um trecho da Avenida 7 de Setembro em direção à Praça dos Eventos, é possível encontrar barracas de carnes frescas e secas, galinhas vendidas vivas ou em diferentes estágios de tratamento do abate. As carnes estão presentes na maior parte das refeições desta comunidade. E apesar da cidade também dispor de açougues, ainda há numerosas barracas vendendo estes produtos ao ar livre, sem refrigeração ou armazenamento reservado. Os pedaços de animais mortos são pendurados em ganchos ou dispostos em pilhas sobre um plástico na barraca. O chão desta área é salpicado pela suculência que escorre das peças e o odor forte pode causar ânsia e ardor nos olhos de quem não tem costume, mas não para os frequentadores, que parecem não se incomodar também com as moscas e com os cães que tentam aproveitar qualquer sobra.

Vencida a zona das carnes, há um pequeno mercado coberto em que vendem variedades de farinhas e grãos, mel e melaço, cachaça, queijos, mais biscoitos, bolos e pães.

Os vendedores comentam que acham curioso quando outras pessoas pedem para tirar foto dos seus produtos. Segundo um deles, vendedor de artigos em couro, “turista acha tudo bonito”.

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