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Capítulo 1 - Primavera
Onde tudo nasce, desde a primeira geração, raízes e florescência
- Escuta! Era irmão do Julião! Uma família foi embora… embora pro mundo! Naquele tempo era São Paulo que a turma mais ia! E aí deixou mesmo ali de junto a minha casa. Aí dizem que eles foram embora e deixou uma tarefa de terra mesmo ali onde tem aquele jardim… E aí que foram embora. Um certo tempo… a gente tava lá… ali tem um chafariz, não sei se você viu um chafariz. Daquele chafariz lá na gruta [Pratinha] onde sai a água dá 1500 metros. E aí a gente tava por ali e aí chegou um cara. Um cara de carro e pah pah… aí que disse assim: “vem cá, você sabe aonde que tem um pé de mulungu aqui?” Eu falei “sei. Tá ali”. Tá lá até hoje. Ele disse “foi naquele pé de mulungu eu matava sofrê1” naquele tempo que ele florava… porque todo ano o mulungu flora aqui no sertão. Aí levei ele lá. Aí disse “você sabe aonde que tem um pé de umburana de cheiro?” Eu falei “sei. Tá ali até hoje! Pra cá um pouco” disse “esse pé de umburana de cheiro foi minha mãe que plantou”.
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Relato de Renatinho, antigo morador da região da Lagoa Seca em Iraquara, quando questionado sobre o que conhecia a respeito de Julião Braga.
O irmão do personagem misterioso que voltou de passagem pela terra do mulungu, do sofrê e da umburana de cheiro é Julião Braga, um fazendeiro e líder comunitário que hoje dá nome a uma escola secundarista na região da Lagoa Seca em Iraquara2 .
Iraquara atualmente é famosa pela atratividade para o ecoturismo. Conhecida como cidade das grutas, está localizada numa área de preservação ambiental (APA Marimbus) do Parque Nacional da Chapada Diamantina. A cidade faz parte da região semi árida da Bahia e tem registros fósseis de povos pré-históricos que viveram na região há 12 mil anos. Mas numa história mais recente, no século XIX, sua composição
1 Pássaro alaranjado de canto melodioso. Também conhecido como Corrupião. 2 Município a 471 km de distância da capital Salvador.
natural e social passaram pelas ações do minério dos colonizadores afanados por ouro e diamantes. Dois dos resultados desta exploração foi a pulverização da população por povoados de mineiros e a criação da Estrada Real, que dividia a Chapada Diamantina em bandas para ligar o norte ao sul da região e escoar os minérios. A partir daí a história da cidade carrega os efeitos da exploração em cada acontecimento.
No início do século XX Iraquara já era famosa pela fertilidade da terra e consequente produção de alimentos. O estado passava por um período tranquilo, segundo Américo Chagas em “O Chefe Horácio de Matos” (2012):
- O século XX entrou calmo e sereno para a Bahia. Houve um decênio de paz e de prosperidade na Capital e no Interior. A Severino Vieira sucederam no Governo do Estado, José Marcelino de Souza (1904 - 1908) e João Ferreira de Araújo Pinho (1908 - 1912). O sertão, porém, continuava isolado da Capital pela distância. As estradas de ferro num período de 15 anos não avançaram um só quilômetro na sua direção. (CHAGAS, 2012, p. 22).
O conceito de calma e serenidade empregados acima pode fazer referência aos conflitos de movimentações institucionais, mas certamente não abarcava a lida diária já que no mesmo capítulo, agora falando sobre as organizações entre chefes e jagunços na região, Chagas diz:
- Embora já se notasse nessa época uma sensível melhora no domínio da instrução pública, o ambiente era ainda turbulento, de violências e de lutas corporais pelos motivos mais insignificantes. Nas feiras semanais, quando os garimpeiros se aglomeravam nas cidades e nas vilas para a compra de gêneros alimentícios, os negociantes faziam o comércio perigosamente, arriscando às vezes a própria vida, com frequentes arruaças dos valentões alcoolizados. Em Xique-Xique[3] os comerciantes chegavam a empilhar debaixo dos balcões sacos de farinha e de outros cereais para lhes servir de trincheira em caso de briga. Os barulhos entre os garimpeiros, nessas feiras, eram de uma precisão matemática e rara era a semana em que não ficava um deles estirado na rua, apunhalado ou traspassado a bala. (CHAGAS, 2012, p. 27).
Estando junto de Lençóis e de Seabra como centro de referência na região, Iraquara foi palco para acontecimentos notórios como a jornada da Coluna Prestes que em 30 de março de 1926 ocupou o povoado de Água de Rega sob confronto armado com o grupo de José Bento Teixeira, cabo-de-guerra do coronel Horácio de Matos.
Paralelamente aos embates políticos que reclamavam a revogação da lei de
3 Município da Chapada Diamantina localizado a aproximadamente 220 km de Iraquara.
imprensa, a adoção do voto secreto, a anistia e a suspensão do estado de sítio, Julião vivia de maneira segura e confortável: muitos filhos, trabalhadores e negócios que ninguém sabe detalhar, além de ser garimpeiro.
- Ele era um antigo morador de lá, de Lagoa Seca, e foi ele quem doou o terreno pra fazer a escola. E esse terreno até hoje tem um prédio escolar velho, em que foi a primeira escola, que chamava Julião, justamente por ele ter doado o terreno. Ele sabia ler. E ele escrevia cartas pra as pessoas. As pessoas pediam pra ele escrever. Ele era, na verdade, um líder de comunidade. Já era um líder naquela época.
A época referida pela professora Teresinha - responsável pelo texto memorial da escola que leva o nome do fazendeiro Julião de Souza Braga - é meados de 1930, em que o cenário agrícola da região era familiar. No entanto, Julião tinha posses suficientes para ter funcionários na lavoura arada à mão, na enxada.
- Não arava. Era tudo na enxada. Roçava e deixava os tocos altos. Aí botava fogo e depois que tava queimado tudo. Aí que a chuva vinha, ia plantar lá na beira daqueles tocos. E aquelas coisas cresciam e enrolavam nos tocos e a gente via de longe os tocos enrolados de feijão.
O agricultor retratado como herói pelos mais antigos da comunidade teve uma morte precoce, aos 47 anos, de febre amarela. E o segundo dos seus onze filhos, Tiolino, tomou a posição para suceder a administração da roça, e mesmo da família. Dando continuidade à plantação de feijão, milho, mandioca, melancia, abóbora, criando gado e cuidando das irmãs em parceria com a mãe, Domitila.
- Ele não era bravo, não. Mas ele era ciumento, que nem Mãe. Ave Maria se a gente olhasse pra um homem… Se olhasse pra um homem mãe dizia que tava com sentido naquele. Dioclécio [irmão] fazia umas farrinhas lá com uns amigos dele, e eu não podia sair na porta da varanda. Se eu saísse na porta e ficasse ali assistindo, tinha que ser na carreira, porque tinha que entrar pra dentro era logo! Qualquer coisinha que eu fazia dizia que era porque eu tava com sentido nos macho: “É por isso… Olha! Já tá com sentido nos homem!” E brigava comigo… Brigava era muito. Ele não era muito de falar, mas Mãe falava. E eu fui besta porque eu batia no duro assim: “Eu não namoro nunca! Pra eu nunca levar uma surra!” Porque mãe batia! Se visse uma filha namorando com um, batia mesmo! Gente ciumenta é um caso sério…
O relato é da irmã de Tiolino, Nenzinha, ex-agricultora, hoje com 92 anos,
ao contar sobre a família numa tarde tranquila na Iraquara atual. Ela fala que desde pequena ia para a roça acompanhando o pai, apesar da atividade agrícola, naquela proporção de privilégios ser dada como masculina, fazendo a menina quando moça se voltar à cozinha como as demais mulheres da família. No entanto, a realidade mudava quando a mulher se casava e a nova família não tinha mais tantos trabalhadores. O casal se dedicava à roça. E Nenzinha junto com o esposo Nunuca plantava e capinava as roças de milho, feijão e outras coisas para a própria alimentação. Durante este período, ela se dedicava à dupla jornada de trabalho: sendo dona de casa e agricultora, já que as necessidades domésticas continuavam a ser suas obrigações.
- Aí no tempo que eu plantava, aí que eu não trabalhava direito porque enchi de filho demais. Aí agora eu ia cuidar de filho. E Nunuca trabalhava na roça com muito trabalhador. Tinha vez que tinha vinte trabalhadores e eu dava conta desses trabalhadores tudo, e ainda de menino. Porque eu não queria ninguém mais eu. Nunca quis uma empregada. E aí eu cuidava de menino. Eu cuidava de comida pra trabalhador... Nunuca que gostava das comidas dos trabalhador uma coisa só. Só que eu não era assim. Porque no tempo de Pai não era assim, no tempo de Tiolino não era assim. E eu botei ele no costume. Trabalhador trabalha, tem que comer bem! Ele comprava mantas de carne grande. Botava aí dentro de casa e eu mandava ele comprar verdura e coisa pra fazer cortado[4] quando não tinha na roça. Até cortado de banana[5] eu fazia pra dar a trabalhador.
- Então cortado de banana era uma comida bem boa!
- Não era, não. Era quando eu não achava outra comida. Eu gostava de fazer era cortado de abóbora, de chuchu, de maxixe. E carne de porco cozida ou frita. E carne de gado. Carne de gado Nunuca comprava aquelas pernas de boi, botava no feijão. E fazia feijoada sempre para os trabalhadores. Mas eu dava comida aos trabalhadores sempre comida pesada! Porque quem trabalha precisa comer! E Nunuca não era assim. Se fizesse um arroz, bastava um ovo ali que tava bom. Mas aí foi indo e ele aprendeu, que ele mesmo já comprava as coisas e trazia.
Uma mudança ocorreu com a chegada dos filhos: ela ficava reclusa ao ambiente do lar dividida entre o cuidado das crianças e a manutenção da casa. Apesar da responsabilidade do preparo da comida à mesa ser dela, a mulher da casa, a feira era uma atividade masculina. Na família de Nenzinha casada, tal como foi na casa dos pais e das irmãs e irmãos, os homens se posicionavam como os provedores que cuidavam dos negócios da família e da compra de mantimentos. Estes vindos primordialmente da feira para completar a produção da roça.
4 Preparo de vegetais cozidos cortados em cubos pequenos ou médios, acompanhados ou não de carne; similar ao picadinho. 5 Prato tradicional na região da Chapada Diamantina feito com banana d’água verde cortada em cubos e cozida, comumente com carne seca. Também conhecido como Godó.
Desde a mocidade de Nenzinha a feira é o evento semanal que movimenta o centro de Iraquara. Naquele contexto, um ambiente de duplas negociações: complemento do que não se produzia na roça e escoamento dos excedentes. O jogo era levantar o lucro que manteria a família de sábado a sábado. Mas, antes de chegar o momento da feira, a meta era produzir no próprio terreno tudo o que fosse possível para a subsistência. Era comum que as famílias, além da plantação, tivessem também casa de farinha onde produziam a partir da mandioca a farinha seca usada à mesa, a tapioca e o beiju; engenho para transformar cana-de-açúcar em garapa, depois em melaço, visgo e, por fim, rapadura; e gado para extração de leite, consumir a carne ou comércio. Também era comum a criação de porcos e galinhas para transformação em carnes e extração de ovos. Para Nenzinha e Nunuca, o gado era negócio. Tiravase o leite para consumo em mesa e em preparos, quando possível, fazia requeijão e doce. Apesar do pequeno rebanho, a carne era comprada. Não era vantajoso o abate para consumo familiar. Os porcos e as galinhas eram presentes no quintal, mas não foram apresentados como produção, e sim, como trivialidade - elementos que eram parte da estrutura da casa.
- Naquela época não tinha geladeira. E como vocês faziam para conservar a carne?
- Botava num prego assim... Deixava pendurado. Botava um pano por riba pra mode mosca [não pousar]. Mas não tinha jeito, as moscas deitava[6]. Aí quando a gente ia pegar aquela carne pra fazer comida, tinha que limpar aqueles bichos...
Em complemento à renda - e artifício de emancipação financeira da mulher -, a família tinha uma mercearia com uma pequena oferta da produção da roça e os produtos símbolo da família de Nenzinha até hoje: os doces. Conhecidos não só entre a parentela, mas também como parte da cultura local. Passando pela região, além das feiras, não é preciso esforços para encontrar casas em que vendem doces feitos artesanalmente há três ou quatro gerações. “Doce” no entanto, é um conceito amplo dos modos de falar na região, já que abrange outros preparos até salgados:
- Eu fazia brevidade7, avoador8, doce de leite e doce de coco. Não deixava ficar a venda9 sem nada... Doce de abóbora… E eu fazia, quando o doce acabava assim de tarde, de noite eu já fazia brevidade pra no outro dia já ter pra vender. Mas criei meus filhos, tinha trabalhador demais e não parava de fazer meus doces porque eu não queria ficar sem dinheiro. E quando Nunuca acabou com a venda... Nesse tempo as meninas já tavam
6 Pousava. 7 Bolo feito de fécula de mandioca, ovos e rapadura. 8 Biscoito de polvilho. 9 Uma configuração informal para mercearia.
moças, Nunuca acabou com a venda e eu disse “apois eu vou botar pra mim!” Aí agora ele acabou e eu comprei as coisas pra mim. Botei a venda pra mim! Agora as meninas já tava grande e tomava conta da cozinha. Nice e Naná tomava conta da cozinha e eu tava na venda. Tinha hora que quando eu vinha almoçar, eles tudo já tinha almoçado e eu lá na venda despachando gente.
Apesar de hoje ser questionável frente aos avanços das mulheres com a luta feminista, o modo de vida de Nenzinha era padrão à primeira metade do século XX no interior: o lar regido pelo homem provedor desde a infância e se repetindo quando casada - com seu marido arranjado; suas obrigações com os filhos e com os cuidados domésticos; e quando havia uma brecha de emancipação, ainda assim era ligada ao ambiente estruturalmente designado às mulheres que era a cozinha; a mão na terra da roça era só em tempos de grande necessidade e falta de mão de obra masculina.
Doce de banana feito e vendido na palha da bananeira.
Esse fluxo era perpetuado como lógica e rigorosamente repetido também pelos outros membros da família de Nenzinha sem grandes questionamentos. Exceto por uma das irmãs que desde criança já se apresentava como um desvio daquele padrão: seguia assiduamente o trabalho na roça e se abstinha das obrigações domésticas, e mais tarde, casada, reagiu diferente a uma das investidas da cadeia machista: a violência doméstica.
- Ele batia, mas não era de pegar e bater que nem bate em menino, não. Era
na traição[10]. Na traição ele me deu um murro uma vez no olho. Meu olho ficou inchado. Outra vez foi aqui na boca. Com isso Mãe disse: “apois vai morar lá encostada”. Então morou. E durante [o tempo que] ele esteve lá, não me fez mais nada.
- E depois que ele saiu, a senhora ficou como? - Eu fiquei largada aí. Fiquei mais Mãe. Aí mudei pra a casa de Mãe, não fiquei na casinha que eles fizeram, não. Mudei pra a casa de Mãe e por lá fiquei. Depois passado uns anos, veio a notícia que ele tinha morrido. Então agora eu sou viúva! [...] Ficou eu com três filhos. E aí que eu fui trabalhar mesmo. Eu ia pra a roça e os meninos enquanto tava pequeno eu deixava [em casa], depois quando cresceu mais, que já ia também. Eu levava tudo pra a roça. Só ficava Lurdes [filha], mais Jani [irmã] e Mãe. [...] Eu casei com ele, mas não foi muito do meu gosto, não. Foi porque eu tinha vontade de sair de dentro de casa. E arrumei esse e casei. Mas eu não gostava muito, não.
Dige conta que naquela época não haviam muitas mulheres que se separavam de seus maridos, fazendo com que esse fosse um cenário impensável para si e depois de abandonada, e sua condição chamasse atenção e fosse comentada pelas pessoas da comunidade. Ela escolheu não se casar novamente, continuando a viver na casa da mãe e posteriormente sozinha com os filhos liderando a própria família. Outro ponto em que a história de Dige diverge das demais é que apesar do privilégio de ter acesso ao ensino, pela autodeterminação pela vida na roça, ela dispensou ser alfabetizada junto com os irmãos, e hoje se arrepende.
- O professor ia na casa de vocês? - Ia lá! Foi duas vezes que Pai chamou. Mas eu fui tão rude… Bem que podia aprender, mas não… Não queria… Foi indo e eu disse mesmo que não queria aprender a ler, que queria ficar sem ler… Pois hoje eu me arrependo porque tudo quanto é coisa que eu vejo assim… Mas eu não sei ler…
Dige hoje é uma senhora de 99 anos que se mantém ágil e simpática. Aposentada, vive aos cuidados das filhas e se manteve fiel à autodeterminação de nunca mais se casar. Trabalhou na roça anos a fio até que o cansaço pela idade fosse limitante à atividade. Ela diz que há muito tempo parou de plantar até mesmo pequenas hortas por achar trabalhoso demais continuar fazendo o que pode ser comprado.
O que se encontra hoje na feira de Iraquara vem principalmente da agricultura que envolve a família produtora e empregados, dada a maior proporção que a lavoura
10 De surpresa; ação traiçoeira.
irrigada pode atingir, diferente da primeira metade do século passado em que toda a cultura era de sequeiro: planta quando chove e torce para a chuva ser suficiente até a colheita.
- Nós plantava. Quando chovia, plantava. Outras vez plantava no pó, no tempo de sol que ia plantar… Tiolino mais os trabalhador abrindo cova e nós tapando… e era assim.
Enquanto conversávamos, os olhos pequenos daquela senhora varriam o ambiente na tentativa de que alguma daquelas coisas do presente a lembrasse de algum fato extraordinário do passado. Ela não concebia que aqui o precioso é justamente o que considera mais banal da própria história. Quando questionada acerca do que fazia quando algum filho adoecia, respondeu objetivamente que levava ao médico, sem entender a curiosidade pelo percurso até o consultório:
- E quando adoeciam [os filhos]? - Quando adoecia, ia pra o médico. Mas os meus, graças a Deus, foram tudo são[11].
- Vocês curavam com remédio?
- Era com remédio e chá.
- Remédio de farmácia?
- Remédio de farmácia e chá. Até que Deus ajudava, que sarava. Mas era assim, minha filha. Tudo era assim, do jeito que Deus mandava a gente fazer, a gente fazia.
- Me dá aí umas receitas? O que a gente toma quando está gripado?
- Quando tá gripado? É guaco... Cebola mesmo é bom pra fazer chá pra gripe... Hortelã miúdo... Poejo... Tudo é bom pra a gripe...
- E pra a dor de cabeça que a gente não quer tomar remédio?
- Pra dor de cabeça, minha fia, eu não sei. Porque nem dor de cabeça, graças a Deus, ninguém tinha.
- Era difícil chegar no médico? Tinha médico em todo lugar?
- Não. Tinha em Palmeiras...
11 Sadio.
- E como viajava até lá em Palmeiras?
- Uá! Era de carro! Mas carro, Deus me livre, era diferente. Porque hoje os carros andam e cruza um, e dois, e três... E de primeiro era mais difícil. Por isso que muitos nem iam em médico. Porque não achava carro[12] pra ir.
Dige teve três filhos, além de criar uma sobrinha, Nice, filha de Tiolino (o irmão que sucedeu o pai), faz questão de contar que criou todos na roça e lembra que um deles, Dimas, segue plantando, mesmo aposentado.
Dimas é um senhor de 74 anos com fala mansa e ressabiada. Vive reservado em sua casa, com uma lavoura sequeira ao fundo, numa região do Mulungu dos Pires, distante cerca de 6 quilômetros do centro de Iraquara, à beira da BR 122. Criou sozinho os quatro filhos depois do fim do casamento de nove anos que começou quando tinha 35.
- Eu toda vida tive roça. Primeiro a gente desmata e tira os paus, ara, gradeia. Aí a gente planta feijão, milho, mamona… Mamona é pra vender. Feijão e milho é pra casa.
Enquanto nos mostra sua propriedade, Dimas conta que assim como ele, as filhas também são agricultoras. No entanto, em roças de tomate, que para elas foi mais lucrativo.
12 Na região é comum se referir às lotações de transporte alternativo e até aos ônibus apenas como “carro”.
A lavoura hoje é um hábito, complemento de renda e do que se serve à mesa. Mas em 1956, aos 10 anos, era necessidade. Foi junto ao tio tomado como pai, que aprendeu a cultivar a terra até que aos “vinte e poucos anos” comprou a propriedade em que mora até hoje (em sucessão de um outro tio agricultor) e passou a trabalhar para si, inclusive criando e ensinando a atividade aos filhos, que três dos quatro seguem até hoje.
A urgência, inclusive pessoal, para o labor era tamanha que Dimas abandonou a escola antes mesmo que fosse alfabetizado:
- Assinar eu assino, mas eu não estudei nem um ano. Meu nome eu faço, mas não estudei nem um ano. [...] Na época eu não estudei porque eu trabalhava era de vaqueiro. Era correndo atrás de vaca. [...] Era tudo gado do meu tio. E eu era o vaqueiro do gado. Aí eu não estudei. Eles [mãe e tio] queriam me botar na escola, mas, eu ia escondido no meio do mato, chegava e não ia pra escola porque não tinha vontade mesmo de ir.
História de vida parecida é a de Edson, primo de Dimas e filho de Nenzinha. Lavrador no povoado principal do Mulungu dos Pires em Iraquara - distante cerca de 5 quilômetros do centro -, mora com a esposa, Renilda, hoje aposentada depois de trabalhar como professora de ensino fundamental e multisseriado. Juntos criaram um casal de filhos, e o rapaz hoje também segue a profissão do pai, mas diferente dele, de Dimas e de tantos outros, não teve a necessidade de trabalhar quando criança.
- Naquela época os pais não exigiam muito dos filhos estudarem. Levavam mais pra a roça pra aprender o que o pai fazia. Só que eu tive meu período de escola. Eu estudava pela manhã e pela tarde eu ia acompanhar meu pai na luta dele e ajudar. Mas eu já estudava, desde criança eu estudei. Eu comecei a querer alguma coisa pra mim, individual a partir dos dezessete anos. Aí eu comecei a pensar em fazer uma rocinha pra mim, além de ajudar meu pai.
Edson começou a acompanhar o pai na roça aos oito anos, primeiro por brincadeira, molecagem, depois com a noção do trabalho árduo que é. Conquistou o próprio terreno e hoje tem sua casa junto à lavoura, orgulhoso da fonte d’água que conseguiu minar para a irrigação13, abandonando a tração animal como transporte da água retirada de lagoas. A produção pode ser ampliada e, consequentemente, Edson passou a contratar trabalhadores permanentes, diferente de quando trabalhava no sistema de sequeiro em que eram por temporada, já que, segundo ele:
13 De acordo com a classificação apresentada por Mickaelon Belchior Vasconcelos (2014), o poço em questão é do tipo tubular (de revestimento tubular e pequeno diâmetro) artesiano (por captar a água de um aquífero confinado) não jorrante (porque requer uso de bomba para puxar a água até a superfície).
- Sequeiro só trabalha nas épocas de chuva . Aqui o inverno da gente é de novembro a janeiro. Então uma vez por ano que a gente trabalhava, só precisava de trabalhador nessa época até plantar e pronto. Agora, hoje não. Como tenho irrigação tenho que ter trabalhador permanente.
A principal busca de vida naquela época era pela própria independência. E cada um tinha seu meio para a jornada. O de Edson partiu do auxílio na roça do pai, escalando para o cultivo da própria plantação no terreno cedido, criação de gado, trabalho com sisal14 tanto no motor quanto na produção, trabalho em engenho, em casa de farinha e até uma partida para São Paulo aos 22 anos tentando a sorte fora de casa por dois anos. Época turbulenta em que estava com os dois filhos pequenos e perdeu o pai, a quem era bastante apegado e narra com carinho e voz terna sobre o apoio que ele e os nove irmãos recebiam como conselhos de vida para que não chegasse a acontecer de algum sair da região de origem, mas “quando ele sentia que era aquilo mesmo que a gente queria, ele apoiava”.
Ao falar do pai, Edson recorre à uma irmã para despertar as lembranças e endossar que a falta de acesso a serviços de saúde foi fator agravante no adoecimento de Nunuca.
Com orgulho Edson conta que conseguiu encontrar água no terreno a 70m de profundidade, o que, para a região, é raso, já que conhece caso de poços similares com até 200m de profundidade.
- Como é que eu começo a contar dele… Ele foi muito compreensivo. Ele nunca foi um pai ciumento de prender filho. Filho dele sempre foi liberado. Saía com os amigos nas festinhas. As festinhas aqui é comum. É festinha tradicional de comunidade mesmo. Nunca foi de sair pra fora, sempre perto dele. Mas ele nunca foi de tá pegando no pé, não. [...] Sempre estivemos juntos. Nunca afastemo. Nesse tempo até ele morrer. [...] Foi um bom pai. Na família não tem
14 Planta da família das Agaváceas de folhas longas, rígidas e organizadas em rosetas. Edson explica: “Ela tem a fibra e você tem o maquinário pra tirar essa fibra que faz a “cordinha”. Além da cordinha, faz muita coisa mais. Tapete, artesanato… Então essa cordinha que você tá falando aí é da fibra dessa planta. E é comum aqui trabalhar em sisal, tem bastante lavoura. [...] A máquina pra trabalhar é perigosa. Ele é perigoso porque tem um espinho que é muito agressivo e se você vacilar, ele fura mesmo!”
o que falar. Não tinha assim… Um desenvolvimento escolar… O conhecimento dele era pouco, a escolaridade era pouca. Mas não era ignorante. Era muito entendedor das situações.
- Ele faleceu quando?
- [Edson] Ele faleceu com… Oh Lúcia! Pai faleceu quando? Que ano?
- [Lúcia] Em 84.
- [Edson] Faleceu em 84. Ele faleceu com 67 anos. Ficou dois anos doente.
- Faleceu de quê? - [Edson] Derrame. Ele sofreu o primeiro derrame montado no cavalo cuidando das roças. Atacou um AVC. Ele desceu do animal e encostou assim… Ele sofreu sozinho...
Aqui as palavras de Edson vacilam. Sua fala é normalmente serena. Mas ao contar do adoecimento do pai, o homem alto e simpático sentado na cozinha de casa com uma xícara de café nas mãos, se retrai. Neste momento a irmã, Lúcia, se aproxima, puxa uma cadeira e compartilha a mesma vulnerabilidade do irmão. Sem, no entanto, nenhum dos dois hesitar em apresentar o próprio herói.
- [Edson] A sorte [foi] que alguém passou na hora, viu e socorreu. Isso foi a primeira vez. Aí ele ficou bom, com umas pequenas falhinhas, mas bom. Aí vem a segunda vez. Na segunda vez ele foi pra a cama e ficou dois anos na cama. Até falecer.
- [Lúcia] No terceiro ele faleceu. Porque assim, não tinha recurso naquele tempo, né? Não tinha médico… Hoje faz fisioterapia, né? Ele perdeu a voz e não voltou… Porque naquele tempo não tinha fonoaudiólogo, né? Aqui não tinha. Não tinha fisioterapeuta… Então ele paralisou mesmo. Se fosse hoje, tinha superado. - [Edson] Ele nesse tempo não falava. Só fazia um barulho, não falava nada. Quando ele queria alguma coisa, ele fazia um barulho que ninguém sabia o que ele queria. Então foi difícil esses anos pra Mãe cuidar dele… Na época eu tava em São Paulo quando ele ficou doente. Foi difícil. - [Lúcia] Hoje a gente tem aparelho em casa pra controlar, né? A pressão. Naquele tempo, tinha vez que ele agitava tanto à noite, que hoje a gente sabe que era porque a pressão tava tão alta que ele ficava agitado, né? E não tinha aparelho pra medir. Como é que sabia se era?
- [Edson] Isso era em 84. Em 84 era bem atrasado ainda. Já desenvolveu muito hoje.
- [Lúcia] O hospital mais próximo era em Wagner[15] mesmo.
A partir daí, já tendo voltado da temporada em São Paulo, Edson foi trabalhar sozinho, sem a companhia do pai, ainda na plantação sequeira, às vezes fazendo algum bico16, sem controle de pragas já que, sequer aconteciam ataques, “nessa época não era muito perseguido”, mas quando por algum infortúnio acontecia, todo o trabalho da estação era perdido e para ele, a única garantia de estabilidade financeira era o salário de professora da esposa.
Renilda representa uma virada na posição da mulher naquela região porque, se na geração anterior, com a sogra Nenzinha, trabalhar por remuneração17 era uma opção, uma auto afirmação de independência da renda do marido. Neste momento, ter um emprego não-doméstico significa construir ativamente, em par com o homem, a vida financeira da família.
Os frutos da roça ficavam na roça: fossem eles os alunos de Renilda que assim como a professora, eram filhos de agricultores e criados naquele mesmo ambiente; fosse a colheita da lavoura e a produção do engenho e casa de farinha, que servia para alimentar a própria família e abastecer a feira de sábado na própria cidade.
Renilda e Edson no quintal de casa.
15 Município localizado a aproximadamente 48.7km de distância de Iraquara. 16 Trabalho informal temporário como fonte de renda extra. 17 Por “trabalhar” leia-se as atividades que as mulheres realizam além da carga designada pelo patriarcado como função feminina, o trabalho reprodutivo (funções relacionadas ao cuidado das pessoas, do ambiente doméstico e à reprodução da força de trabalho). Ver Silvia Federici (2019).