Júlia Flores
O direito de ir e vir acaba no asfalto Sem condições de se locomover pelo bairro, cadeirante não pode sair de casa Uma casinha simples, de madeira, com saibro no quintal. Na lateral da casa, uma rampa de cimento construída pelo padrasto de Jozele, é um dos poucos trajetos feito pela jovem moça de 35 anos, que só sai de casa para ir ao médico. Com seus 1,75 de altura, cabelos longos e sorriso largo, ela acena aos que chegam, com os poucos movimentos que ainda têm. Queria ela poder passear pelo bairro onde mora. Mas a rua sem asfalto, desnivelada e sem nenhuma estrutura para uma cadeirante, impossibilitam que Jozele Dejanira Lopes da Silva passeie pelas ruas da vila Santa Marta. Há dois anos usando cadeira de rodas, devido a uma doença degenerativa que herdou do pai - já falecido - depende dos esforços da mãe e do padrasto. Antes casada, ela vivia com o então marido e o filho de 18 anos. Com o passar do tempo, foi tendo dificuldades para se locomover, andar e falar, precisando de auxílio para as tarefas diárias. Após a separação, se encontrou sozinha, já que marido e filho seguiram um rumo diferente do seu. Como precisava de apoio, decidiu pedir à mãe que viesse ajudar e morar com ela. Valéria Tenroller, a mãe, morava em Porto Alegre. Aposentada e sabendo das necessidades da filha, se mudou para o bairro de São Leopoldo. Legalmente, o ex marido de Jozele é o seu curador, seu tutor. “Curatela” é um termo atribuído pela Justiça a um adulto mentalmente e fisicamente capaz, sendo ele o protetor, cuidador e responsável por essa outra pessoa, que judicialmente foi declarada como incapaz. No papel, o ex marido é o responsável pelos cuidados. Na prática, dona Valéria e seu Valdeci, o padrasto, se reviram da maneira que podem para dar melhores condições à cadeirante. Aposentada, Valéria dedica boa parte do seu tempo a filha. Quando necessitam ir ao médico, no bairro vizinho, precisam se programar com antecedência. Os ônibus bem que passam no bairro, mas os especiais, para cadeirantes, são poucos. As vezes é preciso sair duas, três horas antes do horário agendado, para conseguir pegar um ônibus adequado. “Já ficamos mais de duas horas na parada esperando o ônibus. Consultamos o horário do transporte para cadeirante. Quando chegou, não tinha condições da minha filha usar, porque o carro que mandaram não era especial”, relata Valéria. Não fosse o carro de seu Valdeci, Jozele enfrentaria ainda mais dificuldades. “A rua, quando não chove, até que não é tão ruim. A gente se vira. Chama um vizinho para empurrar. Mas quando chove, não tem como sair. É barro pra todo lado”. Os vizinhos se unem, vez que outra, e colocam grama, terra, caliça, o que tiver, por cima do barro. Tentam, dentro das condições existentes, melhorar os caminhos que percorrem diariamente. “Se para uma pessoa em bom estado de saúde já é ruim sair na chuva, imagina pra gente. Vamos indo do jeito que dá. Às vezes com um guarda-chuva. Às vezes ligando para o vizinho da Kombi”. Sem conseguir passear pelo bairro, encontrou na internet uma válvula de escape. Do jeito que pode, usa o celular e as redes sociais. Um de seus passatempos preferidos é estar online. Vaidosa, pega o batom e passa nos lábios, enquanto a mãe tira uma foto para que ela consiga postar na internet.
Ônibus é para poucos Os ônibus que passam pela vila Santa Marta não atendem a todos os moradores, apenas aos que conseguem chegar aonde o asfalto foi colocado. A maioria precisa se deslocar e caminhar até a faixa para conseguir pegar a lotação. Um trajeto de pouco mais de dois quilômetros é o feito pelo ônibus, já que o restante do bairro não é asfaltado, impactando negativamente no dia a dia da comunidade. Por desconhecimento, a família de Jozele nunca entrou com pedido de requerimento junto à Câmara de Vereadores de São Leopoldo, para solicitar ensaibramento ou asfaltamento da rua. Questionada de porque nunca fez tal pedido, olhando para o chão disse “ninguém olha por nós, não adianta tentar.” A Lei Federal n. 10.098/2000, assegura que os direitos de mobilidade de todo cidadão portador de deficiência devem ser preservados. Conforme esta Lei, Jozele não tem um de seus direitos básicos preservados. E essa falha reflete diretamente na vida dela e de seus familiares. Sem ter condições para adquir uma cadeira de rodas elétrica, precisa contar com a boa vontade de todos e assim ter uma vida mais normal possível. “E se um dia eu vir a faltar? Eu já tenho 65 anos. Um dia vou partir. E quem vai fazer tudo isso por ela? E se meu companheiro não ajudasse com o carro, iríamos sempre depender de carona dos vizinhos? Precisamos de ajuda dos poderes da prefeitura, mas de lá não vem nada”, relata dona Valéria. O direito de ir e vir de Jozele se perdeu entre os buracos da rua sem nome, na ausência do asfalto. Com o passar dos dias, já não bastassem às limitações, vai se vendo cada vez mais presa dentro da própria casa. E mesmo assim segue sorrindo, esperando pelo melhor. E ela ainda acredita que bons tempos estão por vir.