Momentos de Uma Vida
Oilba de Carvalho Andrade 2014
Dedico este livro ao Senhor meu Deus, grande autor desses e de todos os momentos da minha vida. Para meu marido Osmar, o grande e Ăşnico amor da minha vida. Para meus queridos filhos AndrĂŠ (esposa Joslaina, netos Lucas e Debora) e Lana (esposo Alex, netos Ana Lara e Daniel).
Agradecimentos Ao meu médico Ortomolecular Dr. Dilaor Vinhal, que com sua medicina me deu uma excelente qualidade de vida e sua esposa a Psicóloga Darciene, que ao lerem meu humilde esboço, foram os primeiros a me incentivarem, com muito, muito empenho pra transformar aquilo em um livro. Obrigada! Ao Rev. Samuel Vieira, Pastor da Igreja Presbiteriana de Anápolis meu pastor, empolgado incentivador, e o primeiro a dar ideias para escrever minhas experiências. Obrigada! Ao Reverendo Eslí, que com seu jeito tranquilo me escreveu palavras de aprovação que calaram fundo em meu coração. Obrigada! À minha secretária Elisangela, na ajuda com a digitação do meu esboço e pelo seu grande incentivo para transformação dele em um livro. Obrigada! Ao Marcos Araújo pela aprovação e incentivo. Obrigada! Aos meus irmãos: Armando, Oclébio (In Memorian), Zico, Linda, Leza, Neumân, Zé, Fátima, Aluísio, Marta, Ellyezer e seus familiares.
Prefácio É fácil apresentar uma obra e uma escritora que teve uma inspiração, o coração, o desprendimento baseado em Deus, Senti envaidecido e orgulhoso ao ser escolhido para prefaciar este livro. É a prova de um bom relacionamento médico/paciente. Todo cliente nos procura a princípio por uma queixa somática, ou queixando de sintomas, porém ela é oriunda de uma questão emocional, que chamamos de psicossomática, que vai mais além, explicado pela antroposofia, como também fatores espirituais. Oilba se encaixa nessa trilogia, o somático desaparece quando equilibra o emocional, através da melhora do espiritual, aumentando a fé. Ao fazer o paciente raciocinar, ele nos deslumbra com esta excelente obra que servirá como agente multiplicador para vários leitores, mostrando que o impossível não existe e o sacrifício é compensador, principalmente quando nos colocamos a disposição e servindo de instrumento pelo Criador. Do Médico e amigo, Dilaor Vinhal
Apresentação 18 de maio “Toda coisa que pode suportar o fogo, fareis passar pelo fogo, para que fique limpa”. Números 31:23
Nem todo os objetos podem passar pelo fogo, mas somente alguns metais; no contexto são mencionados o ouro, a prata, o cobre, o ferro, o estanho e o chumbo. Essa lei de Deus prefigura uma das leis do Espírito de vida que está em Jesus Cristo. Aqueles que a compreendem e que a ela se submetem com espírito filial, conhecem sua benção e eficácia. Há vidas que podem passar pelo fogo e há outras que não podem e não querem. Estas últimas gozam, talvez, de uma certa porção de benção, mas não conhecem o fruto e a alegria de uma submissão completa à disciplina do Pai celeste. As primeiras atraem menos a atenção e aprovação da maioria; mas passam pelo fogo, e o próprio Deus as purifica. Estão expostas à crítica, mas Deus as honra e são preciosas ao Seu coração. Fomos abençoados por Deus, Sua Palavra abre-se a nosso coração como uma via láctea nas trevas da meia-noite. Não consideremos, pois, como coisa estranha a fornalha onde nos encontramos, mas, ao contrário, alegremo-nos! Deus faz passar pelo fogo aquilo que pode passar pelo fogo. Foi depois que respondemos ao chamado de Deus, depois que nos entregamos inteiramente a Ele, que sofremos em nossa vida, de diferentes maneiras. Reconheçamos nisso a operação dessa lei do Espírito de vida em Jesus Cristo. E saibamos que bastará recuarmos do caminho estreito, para que o fogo se extinga; e recairemos no serviço “confortável”, na irrealidade e no formalismo. Se em nossa vida esse fogo arde lentamente, mas com tenacidade, reconheçamos a mão de Deus, discirnamos Seu amor, e estejamos certos do Seu maravilhoso desígno a nosso respeito. Quer-nos inteiramente para Si. Que bênção compreender o segredo do Senhor, e assim entrar hoje no pensamento do Seu coração! O fogo da aprovação é o sinal do Seu amor e do Seu olhar favorável para com Seus filhos. Trecho extraído do devocionário Orvalho da Manhã, de H.E.Alexander, Ação Bíblica do Brasil
Prezada irmã Oilba: O que gostaria de te dizer após a leitura do seus “Momentos de uma vida”, está dito nesse devocionário do ilustre homem de Deus, Alexander. O que posso acrescentar são dois textos bíblicos: “Resistilhe firmes na fé, certos de que sofrimentos iguais aos vossos (aos nossos!) estão se cumprindo na vossa irmandade espalhada pelo mundo” IPe 5:9; e: “Não vos sobreveio tentações que não fosse humana; mas Deus é fiel e não permitirá que sejais tentados além das vossas forças; pelo contrário, juntamente com a tentação, vos proverá livramento, de sorte que a possais suportar”. ICo. 10:13 Fiquei pensado em José: se ele começasse a reclamar da vida e das injustiças de ser vendido pelos irmãos, lançado em poço, revendido aos egípcios, preso injustamente, certamente teria estragado todo o propósito de Deus de colocá-lo numa posição de destaque e da salvação de todo o seu povo. Segue em frente e conta com a minha retaguarda em oração. Fraternalmente, Rev. Esli Pereira Faustino
Um dedo de prosa... Conheci Oilba há pouco tempo atrás. Sua história me comoveu tanto, que eu comecei a instigá-la para que colocasse no papel sua trajetória. Os fatos se sucedem numa velocidade tal e com tal impacto que é impossível ler seus relatos sem ser profundamente tocado. Minha esperança é que sua narrativa literária consiga traduzir toda riqueza de sua experiência de menina pobre e crente, num lar distanciado de Deus, e que tais relatos despertem a vida de amigos e transeuntes na correria da vida a perceberem a realidade de um Deus que escolheu caminhar nos meandros de nossa história e no meio da nossa dor, afinal, não é isto que nos ensina a Palavra de Deus: “Deus caminha no meio da tempestade e da tormenta”? Oilba conhece a Jesus, não por insistência religiosa de uma educação formal de uma família de tradição arraigada, antes conheceu o Senhor no silêncio e na solidão de alguém que aprende a discernir Deus ainda muito jovem, e a reconhecer a voz do pastor amado, chamando-a para segui-lo. Oilba ouviu a voz deste pastor, e sua vida passa a ser norteada por este diapasão. Isto a inspira. Ela não reconheceu Deus como um sujeito/objeto a ser discutido, nem por conhecimento acadêmico. Deus é um amigo caminhando na sua atribulada história, escrevendo o roteiro improvável de gente que é fruto da graça soberana de Deus. Deus tem o poder de mudar a história e surpreender até mesmo o mais pessimista dos prognósticos e o mais cético coração. Oilba encontrou-se e se casou com Osmar, os dois decidiram andar com o Senhor. Seus filhos são assim também. André e Lana são, ao lado dos seus cônjuges, Joslaine e Alex Lemos, gente desejosa de andar e servir a Deus. Certo colega meu, sabendo que Oilba se tornara membro da comunidade onde pastoreio me disse: “Oilba gosta de fazer todas as coisas com excelência”. É por ai mesmo. A graça de Deus nos transforma e nos surpreende. Oilba poderia ser mais uma daquelas histórias anônimas de gente desencontrada e confusa na vida, mas Deus a fez uma coluna e referência. Esperamos que a leitura deste texto consiga traduzir toda a vitalidade da trajetória desta pessoa querida, e que você seja muito edificado com sua narrativa. Rev. Samuel Vieira
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Índice
1 Infância
16
2 Menina Monstro
18
3 A Menina que não Sabia Ler
21
4 Nova Capital
22
5 Primeira Aula
24
6 Mudamos
25
7 A Bíblia
27
8 A Árvore
29
9 Minha Amiga
30
10 Humilhação
31
11 Meu Consolo
32
12 A Conversão
34
13 O Sustento
35
14 Mexerica
37
15 A Aventura
45
16 Palavra de Jesus
48
17 A Demissão
50
18 Meu pai
52
19 Casa Americana
56
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20 Encontrei Meu Amor
59
21 Anos Setenta
65
22 Meu Casamento
70
23 A Representada
75
24 Meu Menino
76
25 Minha Menininha
81
26 Chácara Girassol
86
27 Mirage
91
28 Pindorama
98
29 No Mundo das Exposições
100
30 Feitos de Jesus
104
31 Nossos Tesouros
111
32 A Casinha Branca
115
33 As Visitas
116
34 Consagrada no Altar do Diabo
118
35 O Casamento
124
36 O Adolescente
125
37 O Velório
126
38 Uma Experiência desta Semana...
127
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1 Infância Nasci em 13 de maio de 1952, numa fazenda perto do Pau Terra, hoje Interlândia-GO. Saí de lá muito bebê, mas retornávamos sempre, pois todos os fazendeiros da região eram tios e primos, e tinha também minha madrinha Iraídes, também desta região, era talvez a pessoa mais doce que já conheci. Um fato que me lembro quando bebê foi a ida para São Paulo, para a festa do 4ª centenário da cidade. Fomos de trem, eu me lembro dos fogos de artifícios, me lembro de um parque infantil. Lembro-me também de meu pai me passar pra minha mãe, pela janela do trem, tão grande era a multidão na festa. Bons e curtos tempos. Os desencantos de minha mãe foram aumentando, com meu pai gastando sua herança em festas, carros e mulheres; tínhamos um automóvel preto e brilhante que era muito chique. Desencanto passou rapidamente para decepção e daí para raiva, que era descontada em nós sistematicamente, todos os dias e noites também. A boa vida acabou muito depressa para eles, pois o dinheiro era gasto sem reposição. Antes de acabar totalmente, meu pai comprou um caminhão. Naquele tempo morávamos na Av. Tiradentes em Anápolis.
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2 Menina Monstro Houve uma campanha de vacinação contra varicela, eu tinha 4 quase 5 anos e apanhava muito, principalmente a noite, pois fazia xixi na cama. Minha irmã dormia comigo e falava dormindo, dava gritos e acordávamos apanhando, ela por gritar e eu por fazer xixi. Minha mãe me punha de castigo em pé na sala, eu dormia e fazia xixi de novo, acordava apanhando por sujar a sala. Foram tantas vezes que passei a me vigiar. Não dormir...Quando a campanha chegou, mamãe nos mandou a todos no posto de vacinação, mas avisou: cuidado heim! Se já tiver com varicela não pode vacinar, se vacinar apanha. Ninguém sabia o que era a tal varicela1. Todos nós vacinamos e voltamos para casa. No caminho de volta eu com meus quase 5 anos, senti um desconforto, dor e coceira, do lado de dentro dos braços. Quando olhei vi que estavam muito vermelhos e com calombos arroxeados. Fiquei quieta e pensei que ia apanhar se mostrasse aquilo, dei um jeito de me esconder. Vivi grande parte de minha infância escondida das vistas de minha mãe, de medo que ela me olhasse e me batesse, o que sempre acontecia. Ela descontava a raiva em qualquer um que estivesse por perto. Mas a surra diária não faltava. Eu me escondia atrás de porta, de guarda-roupa, debaixo da cama, atrás da casa, onde tivesse um buraco lá estava eu com medo. Naquele dia eu me escondi até a hora do jantar. Quando ela chamou e eu cheguei no claro, estava toda como os meus braços! Olhos vermelhos e esbugalhados, boca inchada e queimando de febre. Foi 1Varíola – Foi uma doença infecto-contagiosa, causa de epidemias mortíferas, considerada extinta desde 1978. Foi a primeira doença erradicada pelo homem, graças à intensa campanha de vacinação em todo o mundo.
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aquela bronca, porque eu já estava infectada e tomei a vacina. Já não conseguia comer, me lembro que a garganta estava inchada, pois a varicela já me tinha por completo, tanto por fora como por dentro. Aqueles vergões se tornaram bolhas e bolhas, e febre muito alta. Aquilo foi se agravando tanto que era como se fogo puro estivesse na minha pele. Nem fui levada ao médico, nem tomei remédios, pois a doença matava mesmo. Doía tanto que eu nem podia agachar para fazer xixi, pois meus joelhos não dobravam. Era tanta dor! Virei um monstro! Não tinha em meu corpo um lugar pra por um fundo de agulha: deu nos olhos, nariz, garganta e o resto do corpo até a sola dos pés e mãos. Não podia deitar em lençóis, pois grudavam e quando levantava ou eram retirados, a pele saía junto. Minha mãe mandou vir folhas de bananeira verde e fez uma cama pra mim, na sala, forrada com as folhas. Mas para me colocar ali e trocar as folhas todos os dias, era um horror, pois no lugar que pegava, a pele saía. Porque a cama na sala? Porque todos queriam ver a menina monstro que não ia escapar. A cama foi colocada no meio da sala e como eu não podia vestir roupa, pois grudava tudo, fizeram um estrado por cima da cama, onde foi colocado um lençol pra me proteger da nudez e dos mosquitos que eram muitos. Pensa o cheiro? Quase o dia inteiro, filas de pessoas passavam ao redor da cama do monstro e mostravam na cara o horror que estavam vendo. Fiquei ali, sem comer, com algumas gotinhas de água nos lábios e alguém abanando os mosquitos, por muitos e muitos dias. Mas Jesus, que, eu, nem desconfiava da existência, olhou e não viu o monstro, viu apenas uma menininha com muita dor e disse: você é minha! Viva! E eu fui devagarzinho. Muito devagarzinho vindo para a vida. Eu me lembro muito vívidamente deste tempo. A recuperação. Muito, muito dolorida. A pele saiu toda. Agora eu sei que foi Jesus mesmo, senão teria ficada cega. Pois a varicela deu nos olhos. Coçava muito também. Mas ainda não podia nem encostar. Ainda na folha, ainda sem roupas. Mas vivendo e vivendo. Sarei!
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3 A Menina que não Sabia Ler Já não dormia, comecei a importunar meus irmãos mais velhos, para saber o nome das letras e quando ajuntava uma com a outra, como era que ficava. Um dia nós estávamos no quintal, tinha um monte de cocô de gente bem fedido, os meninos puseram aquilo numa pá e me obrigaram a por na boca. Eu era menor que eles, obedeci. Com a recuperação voltaram também as surras. Papai com o caminhão, viajando. Eu nas noites ia para debaixo da mesa com uma lamparina para ligar as letras. Comecei a ler todo pedaço de papel que encontrava quando estava varrendo a casa, em qualquer coisa que visse uma palavra eu lia alto, os meninos me corrigiam quando lia errado - ô bobona não é assim! e assim fui aprendendo.
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4 Nova Capital Quero retornar a 1958, eu já tinha 6 anos, nos mudamos para nova capital, que estava sendo construída. Meu pai tinha o caminhão e foi trabalhar na construção de Brasília, carregando areia para o Plano Piloto. Fomos morar na beira do córrego, no Sobradinho, num rancho de folhas de Bacuri. Somente folhas entrelaçadas nas paredes e teto. O fogão era em cima de um estrado de madeira, feito de barro e com uma chapa de ferro. Lá era muito frio e as cobras que eram muitas, eram atraídas pelo calor, era comum amanhecerem cobras enroladas no rabo do fogão. Elas transitavam livremente pelas paredes e teto do rancho. Minha mãe muitas vezes ficava de vigília com um pau na mão para nos defender das cobras. Agora, imagine o medo! Eu ia lavar as vasilhas no córrego pois não estudava ainda; no córrego, 6 anos lavando panelas de ferro e pratos esmaltados. Ficava tudo mal lavado, então quando subia a ladeira com a bacia de vasilhas pseudolimpas, levava aquela surra e voltava para o córrego para lavar direito. E a história se repetia todo dia. Não me lembro quanto tempo ficamos lá. Mas quando fiz 7 anos, eu já estava em Anápolis de novo, na Escola Santo Antonio, porque morávamos de novo na Av. Tiradentes.
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5 Primeira Aula Fui pra minha primeira escola com 7 anos, essa era a idade para alfabetização. Escola do Santo Antônio de Anápolis, algumas quadras abaixo da minha casa. No fim da primeira aula a professora disse: esta menina pode ir para o 1° ano, pois ela já sabe ler e escrever. Fui para o 1° ano, passei pelo A, B e C e no segundo semestre, fui para o 2° ano.
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6 Mudamos Nos mudamos para a Vila Jaiara, em Anápolis. Meu pai vendeu o caminhão, comprou uma casa e uma carroça leiteria, para entregar leite na freguesia no centro da cidade. Fui para o Grupo Escolar Gomes de Souza Ramos. Em frente à nossa casa funcionava a Igreja de Nossa Senhora de Fátima, num grande barracão. Enquanto isto, estavam construindo a Igreja, que ainda hoje está lá, bem pertinho do meu grupo escolar. Virei uma devoradora de livros e revistas em quadrinho, qualquer tipo que tivesse letras eu lia. Mas eles eram tão raros! E as surras? Não faltavam, eram diárias. Lia de noite com a lamparina debaixo da mesa para minha mãe não ver o clarão do quarto dela. Ia lavar o rosto de manhã, tava pura fumaça no nariz. E escovar os dentes? Com carvão! Eu ia ao fogão, antes de ser aceso o fogo, pegava um carvão macio, passava em todos os dentes e bochechava até sair os resíduos, e depois mastigava cravo ou canela. Ficava limpinha e cheirosa. Sabia disso pelos livros.
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7 A Bíblia Um dia fui escondidinha no quarto de minha mãe, para pegar um pouco de mel, pois eu sabia que ela escondia uma garrafa em cima do seu guarda-roupa. Este já era um tempo melhor. Mais fartura, a casa era grande e cada ano meu pai a reformava. Toda semana reuniam os músicos lá e tocavam do final da tarde até tarde da noite. Estas noites eram chamadas de saraus. No sábado tinha baile a noite e no domingo matinê. Minha mãe rodopiava pela sala com suas belas e ricas roupas que tinha trazido para o seu casamento. Ela tinha lá seu mel que era para o resguardo, fui lá então pegar um pouquinho pra mim. Mel! Que doçura! Em cima da cadeira resolvi explorar aquele lugar secreto. Surpresa! Um livro, e grosso! Capa preta, pesadão! Esqueci o mel, guardei a cadeira e fui me esconder pra ler. Abri no meio, só pra saber do que se tratava e li assim: “Como ídolos se tornam aqueles que os adoram, tem olho, mas não vêem, tem boca mas não falam, tem ouvido mas não escutam”. Abri em outro lugar e li: “tolo é o homem que planta uma árvore no campo e o Senhor dá o crescimento. Aí ele a corta, com um pedaço ele faz uma casa para si, com outro ele faz o fogo para fazer sua comida, com outro faz um ídolo e ajoelha e o adora”. Fiquei muito curiosa, pois aquilo me atraia muito, e fui lendo cada dia mais, até que minha mãe notou minhas ausências e me descobriu lendo o livro preto do diabo, que era proibido pela igreja. Apanhei muito. Mas já era tarde, aquele livro me conquistou irremediavelmente. Meus irmãos eram coroinhas, iam ser padres, pois minha avó italiana era muito tradicional. Nossa casa era frequentada por padres e freiras.
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Quando estavam conversando sobre religião eu me intrometia e discordava deles dizendo que a Bíblia falava diferente. Então, eles mandavam minha mãe me bater, pois eu estava fazendo leituras proibidas. Além de apanhar porque era criança e entrar na sala, apanhava por ler a Bíblia. O curioso é que minha mãe não deu sumiço na Bíblia e assim continuei, noites e noites lendo escondida. Além de ler livros, eu escrevia esquetes para escola. Eu escrevia, ensaiava as meninas e representava também, sempre que tinha um dia especial.
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8 A Árvore Numa ocasião apareceram, lá na Vila Jaiara, umas moças convidando crianças pra reunir debaixo de uma árvore, perto de minha casa, para contar histórias. No 1° domingo das histórias, minha avó estava lá em casa com minhas tias ricas. E agora? Como criança não entrava na sala, eu saí escondida, no meio daquele tanto de criança, pois os primos estavam lá também. Ninguém sentiu minha falta. Eu vivia escondida mesmo. Ouvi as histórias, com um sentimento estranho. Atraída, encantada, mas também comecei a desconfiar que aquelas fossem as tais pentecostes, que minha família falava com muito desprezo. Voltando agora para a árvore e ouvindo as histórias, mesmo me sentindo estranha, no domingo seguinte lá estava eu. Escapava e voltava sem me notarem. O tempo foi passando e chegou a época da preparação para o Dia das Mães. Escrevi alguns esquetes, ensaiamos para apresentar no grupo escolar. Nestas alturas as moças da árvore já sabiam que eu lia a Bíblia, que representava e declamava poesias, pois tinha grande facilidade para decorar.
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9 Minha Amiga Neste meio tempo, terminaram a construção da igreja católica, perto do grupo escolar. O barracão em frente da nossa casa foi dividido em vários apartamentos e transformados em residência. Chegou de Minas Gerais uma família, com vários filhos, para morar lá em um apartamento. Conheci uma menina, uns 3 anos mais velha que eu, mesmo não podendo conversar muito, pois com o dia tão dividido entre trabalho, surras e de esconder para ler, nasceu uma amizade que dura até hoje. Fomos separadas pela vida, mas nos reencontramos após uns 18 anos, como se não tivéssemos sido separadas. Minha amiga Maria é a pessoa que quando não sei o que fazer, é ela que me ouve me empresta seu coração. E eu sei que sou assim pra ela também. Nossos filhos são como se fossem das duas, mesmo que eles não se encontrem, nem tenham amizade, nós duas os consideramos assim.
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10 Humilhação Minha mãe quando ia começar com as surras e isto acontecia sempre diariamente, após o sono da tarde, começava com quem estivesse fazendo qualquer coisa que ela achasse ruim. Ela nos mandava buscar a vara, cada um buscava a sua. Ela dobrava a vara e se quebrasse tinha que buscar outra, e cada um levava de 50, 80 a 100 varadas. Ela fazia questão de contar, até a vara se gastar. Eu sempre apanhava ajoelhada e rezando. Minha mãe contava para os vizinhos que eu ficava rezando durante as surras e eles ficavam curiosos para verem isto. Ela dizia: é só ir olhar quando ouvirem que estão apanhando. Nos meus 8 anos, começaram o que hoje os médicos chamam enxaqueca: primeiro a visão, só via a metade de cada coisa; depois só o vulto, depois a dor e que dor! É uma dor diferente de qualquer dor. Dura muitos dias e fica uma ressaca de mais dias ainda. Carrego esta enxaqueca até nestes dias, se bem que as crises, após os 50 anos, ficaram mais leves. Bom, um dia já estava com mais ou menos 10 anos, começaram umas dores muito fortes na barriga e nas costas. Eu rolava de dor. Tomei purgante, mas não adiantou. Passei muitos dias com aquela dor, quando um dia percebi um sangramento que tratei logo de esconder, porque não tinha ideia do que era aquilo e fiquei com muito medo de apanhar. Os vizinhos queriam me ver apanhar rezando, só que neste tempo eu já tinha aprendido a falar com Deus, ao invés de rezar. Minha mãe avisou que ia começar a festa e, como sempre, eu era a última a apanhar, pois ficava sempre fora de suas vistas. Deu tempo de reunir bastante gente para me assistir. Quando começou, eu tentava orar e segurar o vestido, pois estava toda sangrando, pois não tinha um forro pra disfarçar aquele horror, dor e o sangramento. A saia levantada e vara no lombo, nas pernas, nos braços. E a multidão ao redor rindo! Achando graça da magrela sangrando, apanhando e rezando. Eu olhava o grupo rindo e sua imagem crescia, distorcia e diminuía.
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11 Meu Consolo Neste tempo, Jesus já tinha meu coração por completo. Sua palavra passou a ser, para mim, refúgio e consolo. Todos os dias quando eu ia para qualquer um dos meus esconderijos, eu abria a Palavra em qualquer livro e sempre, sempre Ele me falava o que eu precisava. Passei a usar a Bíblia assim. Se eu não sabia achar o que eu precisava, a Bíblia sabia. Quando chegou a época do Dia das Mães, as moças que contavam histórias me pediram ajuda para ensaiar as crianças e declamar uma poesia, num barracão onde elas tinham alugado para fazer a festa do dia das mães. Fiquei pensando como eu faria com o tempo tão dividido, se conseguiria ir a duas festas no mesmo dia. No Grupo Escolar era cedo, no barracão era a noite. Continuei com os ensaios. Sempre escondida. Elas passaram em todas as casas, convidando as mães para festa no sábado à noite. Minha mãe foi no Grupo cedo e não sei como ela descobriu que eu ia me apresentar à noite para os crentes. Assim, quando chegamos da festa do Grupo, ela me deu uma surra daquelas, me trancou na despensa sem comer. Fiquei lá o resto do dia memorizando a poesia que era bem longa e seria o fechamento da festa. As meninas tinham arrumado o local com todo capricho, colocaram uma cortina que abria e fechava. Eu, fechada na dispensa, sem comer e com o uniforme do grupo, esperei escurecer; abri a janelinha da dispensa, pulei para fora e corri muito para chegar a tempo na festa. Entrei por trás da cortina e não sai de lá para nada. Parece que todas as mães e pais da Vila Jaiara estavam lá. Lá pelas tantas, olhando por uma fresta da cortina, vi minha mãe com uma vara entre as dobras da saia me procurando. Fiquei lá escondida e quando chegou minha hora, declamei minha poesia com
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toda emoção represada em meu coração. Fui muito aplaudida! Então, o reverendo Jessé Pereira de Alcântara, que era pastor da Igreja Cristã da Av. Miguel João (isso eu não sabia), pegou a palavra. Depois de palavras rápidas ele convidou a todos para voltarem para uma conferência que ele faria ali naquele lugar, durante três dias seguidos. Você pode imaginar! Vim de lá até em casa apanhando e fui dormir com fome! Dormir não, esperar todos dormirem para pegar meu consolo.
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12 A Conversão Acredite ou não, no dia marcado lá estavam minha mãe e meu pai, todos nós assistindo a um culto pela primeira vez. Que coisa maravilhosa pra mim, ouvir a um sermão sobre Jesus! O pastor fez o apelo e mamãe e papai foram à frente. Eu queria ir, mas ela não deixou dizendo que não era coisa para criança. Fiquei no banco. No segundo dia fomos todos novamente, minha irmã e meu irmão foram à frente, aceitando a Jesus também. No terceiro dia, no apelo eu nem olhei pra minha mãe e fui rapidamente à frente, fazendo minha pública confissão de fé. Quando fiz 11 anos, mamãe, papai, meu irmão, minha irmã e eu fomos batizados em nome de Jesus, descendo às águas na chácara do Dr. Adair.