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De Jackie Brown a Django livre: influência, apropriação e black music

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Cronologia

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De Jackie Brown a Django Livre: influência, apropriação e black music

Marcos Kurtinaitis

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Por quem, quando e como são selecionados os acompanhamentos musicais para cada sequência de um filme em que a trilha sonora é requisitada são questões de respostas bem mais complexas do que podem aparentar. Uma canção específica é incorporada a uma determinada cena de um filme pelas mais diversas razões, das mais diversas formas – da escolha deliberada ao mero acaso – nas mais diversas etapas da produção e até mesmo pelas mais diversas pessoas, envolvidas ou não com a concepção da obra. Na indústria cinematográfica norte-americana existem até mesmo inúmeras formas de se creditar as funções desempenhadas nesse processo, mesmo quando não se trata de música composta, gravada ou remixada para aquele trabalho: do discreto “agradecimento especial” ao colega do diretor que sugeriu aquele bolero que ele vinha tentando encaixar em sua cena, passando por todos os tipos de music supervisor, music director, music advisor etc. que se possa agregar aos procedimentos de selecionar, encontrar, negociar e incluir uma música já existente em um novo filme. Trabalhar em audiovisual simplesmente escolhendo e procurando músicas para serem incorporadas a filmes, exercendo uma espécie de consultoria curatorial musical, tornou-se mesmo um plano de carreira possível, como atesta a notoriedade recentemente conquistada por nomes como Scott Vener e Alexandra Patsavas, profissionais reconhecidos e requisitados exclusivamente como consultores musicais e supervisores musicais. 1

No caso dos filmes de Quentin Tarantino, porém, é difícil imaginar que alguma música tenha entrado em algum filme seu que não por escolha própria. Talvez até não haja sequer uma sequência cuja música já não estivesse em sua cabeça no momento em que ele a escrevia. Mas a famosíssima cena

1. Ele, graças ao exercício dessas funções em séries de televisão como Entourage (2004-2011), Como vencer na América (How to Make It in America, 2010-) e 90210 (2008-); ela, em filmes como os da saga Crepúsculo (The Twilight Saga, 2008-2012), As vantagens de ser invisível (The Perks of Being a Wallflower, 2012) e Meu namorado é um zumbi (Warm Bodies, 2013) e em séries como Gossip Girl (2007-), Grey’s Anatomy (2005-), Mad Men (2007-), Supernatural (2005) e O.C. – Um estranho no paraíso (The O.C., 2003-2007), dentre muitas outras.

da dança de Vincent Vega e Mia Wallace em Pulp Fiction não foi gravada ao som de outra trilha ressoando pelo estúdio? E o rapper e produtor RZA, do grupo Wu-Tang Clan, não fez a direção musical de Kill Bill? Não importa. Tarantino certamente perde um bom tempo vasculhando seu acervo mental de referências da música pop para escolher a trilha sonora certa para cada uma das cenas de seus filmes. Ele é o responsável por consolidar a ideia de que a seleção de músicas para uma trilha sonora é também um trabalho criativo e autoral. Se hoje determinados conselhos sobre a música de um filme podem valorizar um profissional que desempenhe essa função, como Vener e Patsavas, certamente muito disso se deve ao fato de Tarantino ter sido capaz de tornar sua curadoria musical um aspecto importante de sua marca e uma marca em si – tanto assim que os discos com as trilhas sonoras de seus filmes sempre alcançam vendagem relevante e até mesmo motivaram o mercado fonográfico a lançar coletâneas2 de canções que ganharam vida nova ao serem escolhidas por Tarantino para seus filmes.

Acima de tudo, Tarantino é bastante assertivo quando se trata de “como aproveitar” uma música em uma determinada cena. Em depoimento sobre a trilha sonora do filme Shaft e como ela poderia ter sido “melhor utilizada” pelo diretor Gordon Parks, Tarantino afirma: “Se eu tivesse o Theme of Shaft para abrir o meu filme, eu realmente ABRIRIA meu maldito filme! Filmes de Kung Fu usaram a trilha de Shaft melhor do que Shaft o fez.”3 Composta por Isaac Hayes para o filme de 1971 (uma das maiores bilheterias daquela década e um dos discos de trilha sonora mais vendidos de todos os tempos), Shaft é, de fato, uma obra-prima da música negra urbana norte-americana: marcou época, influenciou inúmeros compositores e produtores musicais e foi utilizada à exaustão como trilha sonora para os mais diversos fins. Ainda que, como aponta enfaticamente Tarantino, sua inclusão no filme para a qual foi composta, não seja particularmente inspirada, dialogando pouco com as imagens na tela e pouco contribuindo para o desenvolvimento da trama.

Essa visão particular de Tarantino a respeito de “como” uma

2. Como o disco The Tarantino Connection, da gravadora MCA, que chegou ao mercado em 1996. 3. Depoimento de Tarantino no documentário Baadasssss Cinema, v. Referências Fimográficas.

música deve entrar em um filme pode ser tornar ainda mais evidente à luz desta anedota: em recente palestra no Museu da Imagem e do Som de São Paulo, o roteirista e cineasta Paul Schrader foi questionado por um membro da plateia sobre o que pensava do uso em Bastardos inglórios de uma canção composta por um grande astro pop para um filme seu – uma música, portanto, que já tinha sido pega, paga e aproveitada em outro filme. Trata-se de Cat People (Putting Out Fire), composta por David Bowie para ser a música-tema do filme A marca da pantera, de Schrader, que Tarantino resolveu incluir durante a climática cena do incêndio no cinema. Como resposta, Schrader relatou seu encontro com Tarantino, no qual o questionou sobre essa “apropriação”. Tarantino, segundo Schrader, teria se justificado dizendo que a canção fora mal aproveitada em A marca da pantera, no qual aparece apenas nos créditos finais. Para Tarantino, uma canção tão marcante mereceria destino melhor ao ser aproveitada como trilha sonora, coisa que ele acredita ter conseguido fazer. E o próprio Schrader, na mesma palestra, reconheceu seu erro: lembrou que a canção de Bowie não foi um grande sucesso de vendas, justamente porque o filme falhou em divulgá-la, apresentando-a ao público apenas após o final do filme, quando muitos espectadores já estão se levantando de suas poltronas para deixar a sala de cinema (ou desligando a televisão, ou mudando de canal). Para redimirse, Schrader lembra que seu filme anterior, Gigolô americano, também tivera uma música-tema composta especialmente para ele por um grande nome da música pop, mas que naquele caso ele fora mais feliz ao utilizá-la: incluindo durante a abertura do filme a canção Call Me, do grupo nova-iorquino Blondie, Schrader acredita ter colaborado para que ela se tornasse um grande sucesso de vendas e um dos clássicos desse conjunto, o que comprovaria a tese defendida por Tarantino de que deixar uma canção original para os créditos finais de um filme é uma péssima escolha artística e comercial.

Todo esse relato serve apenas para deixar claro desde o princípio o quanto Tarantino preza pela escolha de uma canção específica para uma cena específica de seus filmes.4 Neste

4. “Tarantino sempre se absteve de pedir para um compositor original criar música para seus filmes e frequentemente inclui seleções de sua própria coleção pessoal de discos. (...) Em suas próprias palavras, o diretor afirmou: ‘Eu só não gosto da ideia de dar tanto poder assim para ninguém em um de meus filmes. Eu preferiria muito mais trabalhar com um editor musical do que com um compositor musical.’ Depois de encontrar uma canção em sua coleção de discos que o inspire de alguma forma, ele cria um lugar para ela em seus

ensaio, pretendemos evidenciar o fato de que a música-tema escolhida para Tarantino para dois de seus protagonistas (Jackie e Django) é reveladora de uma visão específica do realizador sobre essas figuras e, por extensão e analogia, sobre a comunidade negra dos Estados Unidos. Para isso, portanto, é necessário voltarmos aos filmes, antes de prosseguirmos em direção à análise das trilhas sonoras. As ocorrências citadas até aqui são exemplificativas da naturalidade com que Tarantino recorre a estratégias de apropriação em seu processo criativo, absorvendo influências e reutilizando elementos – enquadramentos, situações, personagens, canções – que ele julga merecedores de “uma nova chance”. Reapresentar certo repertório de referências culturais – do cinema em particular, evidentemente, mas também da música pop, da televisão, dos quadrinhos e da literatura – parece ser um dos objetivos buscados por Tarantino com seu trabalho, vide seu empenho em distribuir nos Estados Unidos filmes de autores, gêneros e países geralmente menosprezados pelo mercado cinematográfico local. Ao apropriar-se desse tipo de referência para compor suas obras, apresentando-as sob uma nova roupagem, acumulando signos de décadas, contextos e status diferentes em um único produto de apelo atual, Tarantino produz com seus filmes a estupefação pela saturação. O fascínio do estilo. O antigo, o underground, o restrito, o “de culto”, feito atual, impactante, de massa. O uncool, o passé, o kitsch, o tosco, o old school, tornado cool por sua ação.

É parte inerente da estética tarantinesca essa renovação de suas influências, esse “verniz cool ” aplicado a referências do passado. Nesse sentido, o casting e a seleção musical dos seus filmes são realizados sob um mesmo parâmetro: o da “redescoberta”. Assim, em paralelo à sua obsessão por resgatar pérolas musicais de outras épocas em suas trilhas sonoras, percebe-se a recorrência em sua obra de situações em que atores do passado, caídos no ostracismo ou a caminho dele, são também eles “resgatados” ao serem convocados para novos papeis. Para papeis, inclusive, criados por Tarantino especialmente para esses atores, para aproveitar-se de sua persona e de sua “aura”, da figura que consolidaram

roteiros. ‘Eu estou procurando por aquela coisa que você não ouviu um trilhão de vezes antes. É também um tipo de mix tape pessoal que eu estou fazendo para você.’” (www.whatculture.com/film/quentin-tarantino-definitive-guide. php/179)

no imaginário cinematográfico mundial. É assim que John Travolta, mesmo envelhecido e muitos quilos acima do peso ideal de outrora, ganha uma nova chance de exibir em Pulp Fiction suas habilidades como dançarino, reveladas décadas antes em filmes como Os embalos de sábado à noite e Grease. O mesmo ocorre com o “resgate” de David Carradine (Kung Fu), Sonny Chiba (The Street Fighter) e Gordon Liu (A câmara 36 de Shaolin), astros do cinema e da televisão do passado por conta de sua maestria nas artes marciais, para papeis em que esses atributos sejam reaproveitados subtextualmente em Kill Bill. E também com Kurt Russell, escalado para viver em À prova de morte um tipo “durão” e de poucas palavras tal qual aqueles que o notabilizaram em filmes de John Carpenter como Fuga de Nova York e O enigma do outro mundo. E o mesmo ocorre novamente agora, com a participação especial do ator italiano Franco Nero em Django livre, incluída apenas como homenagem ao astro que encarnou um personagem também chamado Django nos westerns spaghetti que Tarantino usou como inspiração para seu longa-metragem mais recente. Para Tarantino, esse reaproveitamento, essa “nova chance” que ele oferece indistintamente a canções e a astros guardados em sua memória afetiva faz parte de um processo natural de construção de novas obras a partir de elementos antigos, desgastados, em desuso.

Essa estratégia do “dar uma nova chance”, ofertando novamente ao consumo determinado produto cultural considerado “ultrapassado”, se faz presente na obra de Tarantino em sua forma mais sincera e profunda em Jackie Brown, o terceiro longa-metragem que dirigiu. Um tributo do cineasta à influência sofrida por ele da cultura dos anos 1970 em geral, e do cinema negro e da música negra dessa época em particular, Jackie Brown apresenta esse resgate de referências do passado não apenas como um elemento de sua construção cênica e narrativa, mas também como subtexto de sua trama e motivação de suas opções estéticas. Adaptado de um romance policial de Elmore Leonard, o filme transforma a protagonista branca do livro em uma mulher negra, oferecendo a Tarantino motivo para convocar como protagonista Pam Grier, atriz que estava completamente esquecida à época da realização de Jackie Brown, mas que fora a maior estrela do cinema de blaxploitation dos anos 1970, sempre em papéis de mulheres fortes, ativas, determinadas, agressivas – características incorporadas à personagem como referência a esse passado de sua intérprete, em chave mais realista e melancólica. Como par romântico de

Grier, Jackie Brown reapresenta a plateias dos anos 1990 outro astro esquecido dos 70: Robert Forster, galã de filmes de ação e policiais cujo papel de agente de fianças em Jackie Brown reflete também um envelhecimento dos tipos embrutecidos que o popularizaram.

Porém, ainda que em todos os filmes da Tarantino esse resgate de figuras do cinema do passado se faça presente, sempre em diálogo metalinguístico com a iconografia projetada por elas, apenas em Jackie Brown esse resgate pode ser tido como o filme em si. Só em Jackie Brown esse personagens, calcados em personagens anteriores da carreira de seus intérpretes, questionam-se sobre o fato de estarem ali, vivendo as mesmas histórias em outro contexto. Jackie Brown é o filme em que essas figuras pop arquetípicas de Tarantino se tornam tridimensionais, questionam-se, de fato, sobre o seu papel no mundo, sobre seu tempo. Refletem sobre o seu passado e projetam seu futuro. Só em Jackie Brown a nostalgia de certo período cultural anterior vem ao primeiro plano como motivo central do filme. Se Tarantino entrega-se, no auge de sua carreira, à realização de uma obra como Jackie Brown, é justamente porque ele acredita que Pam Grier e Robert Forster – e não apenas os atores, mas também os personagens que interpretam, empenhados em não sucumbir ao comodismo, à solidão, à velhice – merecem “outra chance”. Com Jackie Brown, mais do que dar outra chance a esses astros, ao cinema da blaxploitation e à música negra dos anos 1970, Tarantino parece mesmo ter tentado voltar àquela época, central para suas referências.

O estilo tarantinesco, sua influência e sua permanência

Em muitos aspectos – quase todos, na verdade –, Jackie Brown é o filme mais atípico da carreira de Quentin Tarantino. Trata-se do único título de sua filmografia em que o cineasta assina um roteiro adaptado, e não uma história de sua própria pena. Trata-se também de seu filme de ritmo mais cadenciado, com poucas cenas de ação e nenhuma delas particularmente espetaculares, surpreendentes ou violentas. Há ainda nesse filme uma profusão de personagens e subtramas paralelas, mas esse entrelaçamento de múltiplas narrativas e pontos de vistas ocorre de forma bem mais suave e natural do que em seus trabalhos anteriores – há aqui uma protagonista e uma trama “principal” claramente demarcados, coisa que não ocorria em Cães de aluguel ou Pulp Fiction. Acima de tudo, a distingui-lo de todos os filmes anteriores e posteriores do diretor, há em Jackie

Brown certo comedimento (para os padrões do autor) no uso de citações, alusões e referências a outros filmes. Por fim, atestado último de sua atipicidade, Jackie Brown virou o favorito dos críticos dentre os filmes de Tarantino e, ao mesmo tempo, o mais desprezado pelos fãs, que parecem não encontrar ali os mesmos excessos que os conquistaram em seus outros trabalhos.

Com Jackie Brown, Tarantino parece ter tentado se livrar de seu histrionismo, do exagero de referências, dos seus diálogos verborrágicos e literários, como se buscasse outra maneira de casar seu gosto e seu estilo a um cinema um pouco mais verdadeiro, humano, realista até. Trata-se, provavelmente, do filme de personagens mais complexos, de trama mais plausível, de eventos mais prosaicos em que Tarantino já esteve envolvido. Trata-se do filme com o qual Tarantino prometia, talvez, desviarse de sua trajetória em direção a uma nova persona, reinventarse como um diretor firme de filmes duros, mais próximo de Martin Scorsese, Abel Ferrara, Kinji Fukasaku, Walter Hill, ou qualquer outro dos nomes, geralmente dos anos 1970, aos quais ele foi comparado ao ganhar notoriedade, do que os seus filmes seguintes permitiriam supor. Simplificando, parece que Tarantino realizou Jackie Brown buscando afastar-se um pouco daquilo que fora definido como tarantinesco. Para investigar as razões que o levaram a tal postura, é preciso retroceder ao contexto cultural em que esse seu terceiro longa foi dirigido.

É provável que esse esforço em não oferecer apenas mais do mesmo ao seu público, naquele ponto de sua carreira, esteja de alguma forma relacionado à proliferação de filmes a la Tarantino que se seguiu ao lançamento de Cães de aluguel e, principalmente, ao sucesso de Pulp Fiction. De projetos que efetivamente contaram com o aval e eventual colaboração de Tarantino (Parceiros do crime, Eles matam e nós limpamos), a meras tentativas de capitalizar em cima de determinadas tendências lançadas por ele (vistas em Os suspeitos e Ciladas da sorte, por exemplo), a sombra de Tarantino pairou indiscutivelmente sobre o cinema norte-americano imediatamente posterior ao seu boom, entre 1993 e 1997. Exemplo perfeito e contundente do peso do estilo de Tarantino sobre seus colegas contemporâneos é Coisas para se fazer em Denver quando você está morto, a mais descarada e desesperada tentativa de um cineasta naquele contexto de se fazer passar por Tarantino. Realizado em 1995 por Gary Fleder, o filme tem como maior defeito justamente seu caráter derivativo, evidenciado pela mera enumeração dos acentos tarantinescos que repete: uso esperto da trilha sonora pop,

narrativa intrincada, diálogos longos e cheios de referências pop e cult, violência extrema e inesperada, revisionismo dos clichês do filme de gângster pela via da humanização e banalização do criminoso... tudo aquilo que se afirmou como marca do cinema de Quentin Tarantino em seus primeiros anos está presente no filme de Fleder, assim como, em menor grau, em muitos filmes do período. O fenômeno é natural: trata-se do eterno jogo de repetição de tendências bem sucedidas com pequenas variações que movimenta e sustenta a indústria cultural. Mas o resultado desse processo é justamente uma situação cíclica de cópia e reaproveitamento que levou à criação de obras mais tarantinescas que as do próprio Tarantino, esvaziando o sentido do termo.

Hoje já podemos falar até mesmo em cineastas tarantinescos, cuja filmografia parece ser toda ela pautada pela apropriação de elementos da fórmula de sucesso dos primeiros filmes do diretor, particularmente o revisionismo do filme de gângster. O caso mais exemplar é provavelmente o do cineasta inglês Guy Ritchie que insistiu durante anos em filmes de crime de acento pop (Jogos, trapaças e dois canos fumegantes, Snatch – Porcos e diamantes, Rock ‘n’ rolla), até finalmente aceitar sua vocação para o artesanato comandando uma franquia de apropriação/ remake de fórmulas ainda mais antigas (Sherlock Holmes). E é outro cineasta inglês quem pode ser citado como exemplo mais recente desse mesmo fenômeno: Martin McDonagh, cujos dois únicos longas de ficção realizados até agora (Na mira do chefe e Sete psicopatas e um shih tzu) são também filmes de gângster atípicos, nitidamente calcados na primeira fase da carreira de Tarantino.

Também têm sido muito comuns, desde aquele momento dos anos 1990 em que Tarantino surgiu até hoje, os casos de cineastas que tentaram inserir a fórceps apenas um ou outro elemento supostamente tarantinesco em projetos que, ademais, não teriam qualquer afinidade com o trabalho do cineasta e mesmo com esses elementos: muitas vezes os diálogos longos e algo absurdos, deslocados, repletos de referências pop; tantas outras os roteiros circulares ou desprovidos de linearidade temporal, mas quase sempre apenas o sadismo explícito e a erupção inesperada de ultraviolência – marca de muitos dos filmes contemporâneos ao sucesso inicial de Tarantino, mas também dos recentes Mandando bala e O homem da máfia, que comprovam a persistência dessa abordagem. Curiosamente, casos exemplares de violência pornográfica acabaram hoje efetivamente e oficialmente vinculados ao nome de Tarantino,

como os filmes da série O albergue, firmando-o como arauto supremo da ultraviolência estetizada e essa característica como definidora de sua obra para o senso comum. Mas essa ultraviolência estetizada, vale ressaltar, não é particularmente tarantinesca – ou melhor, já em sua obra é referencial a fontes tão distintas quanto o faroeste à italiana e o de Peckinpah, ao filme de samurai e ao de kung fu, aos yakuza eiga dos 1970 de Kinji Fukasaku e dos 1990 de Takeshi Kitano e também aos policiais de Hong Kong de Ringo Lam e John Woo. Sobre Woo, aliás, vale lembrar que ele realmente deve muito de sua descoberta pelo ocidente (e por Hollywood, que tratou de rapidamente coopta-lo) a Tarantino, que promoveu seus filmes nos Estados Unidos. E, nesse sentido, Mandando bala – como paródia de John Woo que já é um revival de sua descoberta pelos americanos contemporânea a Cães de aluguel – ou Drive – como “homenagem” a Corrida contra o destino e A outra face da violência, referências de Tarantino reaproveitadas aqui sob outra roupagem – mostram o alcance atual da influência tarantinesca sobre o cinema hollywoodiano posterior. Uma influência tão presente e marcante que já permitiu o deslocamento da referência imediata ao seu cinema para a referência de segundo grau às fontes daquele cinema.

Portanto, quando são buscadas evidências da influência de Tarantino sobre todo o cinema norte-americano posterior, quando são apontadas as inúmeras características de seus filmes que foram apropriadas por outros cineastas, é fundamental sempre ter em mente que essas mesmas características, muito provavelmente, já foram anteriormente apropriadas pelo próprio Tarantino de outros cineastas. Essa recorrência é apenas sintoma do típico ciclo de apropriações que move a indústria cultural: todos “roubam” de Tarantino, que “rouba” de todos. O processo segue em curso a todo vapor e inúmeros filmes dos últimos 20 anos continuaram a combinar violência e humor, banalidade e espetáculo, referências pop e narrativas sinuosas, aproveitando-se do universo revelado por Tarantino: daqueles que podem ser considerados como estritamente pertencentes a esse universo (como Xeque-mate e A última cartada) àqueles que efetivamente buscaram ampliar e diversificar tematicamente esse universo, como Vamos nessa, que utiliza abordagem tarantinesca para retratar o submundo das festas de música eletrônica então em voga, ou Trabalho sujo, que tenta oferecer nova perspectiva ao personagem do “limpador de cenas de crime”, usado por Tarantino em Pulp Fiction e Eles matam e nós limpamos, basicamente reciclando a trama deste último em chave mais séria, como comédia dramática realista e não farsa.

Ao mesmo tempo em que a ultraviolência estetizada foi imediatamente associada à marca de Tarantino e continua a ser ofertada ao espectador médio a partir de uma via que ele “desbravou”, os diálogos e as estruturas narrativas daqueles seus primeiros filmes também se banalizaram, aparecendo em todo tipo de produto audiovisual, do curta ao longametragem, do cinema à televisão. O balconista, sucesso do cinema independente norte-americano contemporâneo ao de Tarantino e que também se aproveitou dos caminhos abertos por ele, é o primeiro exemplo do abuso de citações explícitas que se tornariam normais no audiovisual contemporâneo dali por diante. Graças a Tarantino, os diálogos repletos de referências pop passaram a ser aceitáveis inclusive por plateias que não as compartilham (vide o sucesso de séries de TV como Big bang: a teoria e as animações South Park e Uma família da pesada5 ), e estruturas narrativas complexas por sua multiplicidade de personagens e temporalidades se tornaram comuns, servindo de dramas (Crash – No limite, Magnólia e 360, por exemplo) a ambiciosos épicos (como Babel e A viagem).

Todavia, naqueles meados dos anos 1990, esses diálogos e essas estruturas apareceram até mesmo em obras completamente apartadas do universo tarantinesco, que não poderiam ou buscariam tê-lo como referência. Simples desejo, de Hal Hartley, com seus outsiders discutindo cultura pop e citações extraídas de Fritz Lang e Godard, é um bom exemplo da aparição simultânea no cinema americano de diálogos com características tidas como tarantinescas6 , assim como Antes da chuva, de Milcho Manchevski, o é em relação à descontinuidade narrativa. A estrita contemporaneidade do filme de Hartley com Cães de aluguel e do de Manchelsvki com Pulp Fiction pode ser mera coincidência, mas pode também insinuar que as duas grandes contribuições estilísticas de Tarantino ao cinema dos anos 1990 e posterior sejam apenas reflexo de tendências daquele momento especifico.

Se tanto o aspecto mais superficial da contribuição de Tarantino a Hollywood (a mudança de paradigmas de violência e exagero aceitáveis) quanto suas características literárias e estruturais mais notáveis e influentes podem ser tidos como

5. Tributárias também, evidentemente, à mais longeva série de animação da televisão, Os Simpsons, correlata e precursora na televisão do tipo de diálogo autorreferente, intertextual e pop praticado por Tarantino. 6. Assim como Os Simpsons no contexto da televisão.

referências indiretas a fontes anteriores e contemporâneas a ele, seria justo creditar ao seu legado a presença ainda constante desses elementos no audiovisual mundial? Sim, porque foi a aplicação comercial e esteticamente bem-sucedida dessas tendências e referências por Tarantino que lhes garantiu a permanência no panorama do cinema norte-americano posterior. A “marca” Tarantino já se tornou forte o suficiente para continuar motivando lançamentos que buscam seu endosso como estratégia de marketing ou simplesmente retomam motivos ou maneirismos do diretor que já foram repetidos à exaustão. Tudo o que o cinema de Tarantino poderia um dia ter apresentado como novidade, portanto, hoje já se tornou lugar-comum.

Porém, precisamente porque outros modismos e tendências surgiram na indústria audiovisual de lá para cá, essas ocorrências atuais são bem mais discretas e menos numerosas do que no período de 1993 a 1997, em que nove entre cada dez filmes de ambições pop buscavam reproduzir pelo menos uma das características então identificadas com o “estilo tarantinesco”. Com tanta gente querendo se passar por Tarantino, naturalmente ele buscou afastar-se de certos cacoetes saturados pela repetição de seus colegas. Naquele momento, Tarantino parecia querer encontrar outro caminho para sua carreira e seu cinema – em busca, talvez, de um resultado um pouco menos tarantinesco.

De Jackie Brown a Django livre: os caminhos da carreira de Tarantino

Depois de ter se tornado famoso e requisitado com dois filmes que superaram em muito suas expectativas de bilheteria (Cães de aluguel e Pulp Fiction), Tarantino lançou-se a um projeto de aparente – e posteriormente confirmado – pouco apelo comercial, estrelado por um ator e uma atriz praticamente desconhecidos do público jovem dos anos 1990. Tratava-se, ainda, de um novo filme do gênero que o consagrara, com diversas das suas marcas de estilo já então estabelecidas. Porém, mesmo com todo o esforço para repetir a fórmula de seu sucesso (filme de gângster com referências pop) e ao mesmo tempo atenuar certos aspectos saturados pela repetição e pela cópia (a ultraviolência, o multiplot), ou talvez justamente por causa desse excesso de zelo e cálculo, o retorno de Jackie Brown ficou aquém do esperado. Se não pode ser considerado um fracasso de bilheteria, com sua arrecadação doméstica tendo mais do que triplicado seu custo de produção de 12 milhões de dólares, Jackie Brown tampouco teve repercussão comparável

a de Cães de aluguel ou arrecadação em bilheteria que fizesse sombra às centenas de milhões acumulados por Pulp Fiction.

Não à toa, Tarantino experimentou entre Jackie Brown e Kill Bill o maior intervalo de sua carreira entre dois longasmetragens. Certamente pesou sobre ele a sensação de que seu terceiro filme não correspondera às expectativas de ninguém, frustrando os fiéis fãs conquistados com seu bombardeio de referências, violência e piruetas narrativas, e, ao mesmo tempo, não conquistando nas bilheterias os possíveis neófitos de perfil conservador que um filme mais “adulto” pudesse atrair, tampouco nas críticas, festivais e premiações o respeito daqueles que “torciam o nariz” para seu estilo em estado mais bruto. O caminho percorrido por Tarantino durante os seis anos que ele levou para tentar sua primeira “volta por cima” foi justamente o oposto do trilhado rumo a Jackie Brown: presumindo ter falhado ao atenuar as características menos palatáveis ao “gosto médio” de sua marca, voltou-se a projetos que a exacerbassem e amplificassem, que a tornassem seu próprio estofo e razão, projetos de filmes feitos puramente de referências pop, de diálogos saturados de cinismo, ironia e verborragia, de ação e violência extremos.

Sua estratégia consistiu em reforçar as marcas taranstinescas em projetos monumentais, mas comercialmente inviáveis, como seriam comprovadas as propostas iniciais de lançamento de Kill Bill e Grindhouse, como filmes de mais de três horas de duração, com direito a cartelas e “falsos trailers” próprios, prólogo, epílogo e interlúdios – como novas propostas de experiência do cinema, enfim. Ou seja, há mesmo nessa segunda fase da carreira de Tarantino, de Kill Bill a Grindhouse, uma tentativa de não se curvar às convenções do mercado e do “grande público”, uma tendência a permanecer criando para uma audiência restrita, um determinado nicho que preza justamente por manterse alheio às formas mais massificadas – menos particulares e, portanto, menos cool – do consumismo cultural. Mas se o cinema de Tarantino apontou, principalmente em seu início de carreira, novos caminhos para a indústria cinematográfica, é provável que naquele período intermediário de sua carreira, em seus “fracassados” projetos de ressurreição épica de fórmulas marginalizadas dos anos 1970, Kill Bill e Grindhouse tal como concebidos, Tarantino tenha estado mais perto de apontar os caminhos de um cinema ainda por vir.

É possível conjecturar que, seguindo a indústria do cinema o caminho atualmente previsto, de multiplicação e expansão das

formas de tridimensionalidade e interatividade – de conversão com a indústria dos videogames, portanto –, os filmes de Tarantino venham a se constituir em matrizes apropriadas para experiências sensoriais e imersivas. É possível sugerir que algumas características dos filmes de Tarantino venham a servir muito bem a projetos dessa suposta forma majoritária de cinema do futuro, justamente os aspectos considerados mais “tarantinescos”, aqueles que efetivamente fazem a alegria dos fanáticos: a ultraviolência, a saturação de referências, a música pop, as bruscas viradas da narrativa, os múltiplos personagens e plots. Justamente os aspectos que foram atenuados em Jackie Brown antes de serem retomados, primeiro com força total em Kill Bill e Grindhouse, depois de forma mais palatável à indústria e ao público em Bastardos inglórios e Django livre. É fácil imaginar que espectadores-jogadores anseiem por assistirparticipar de versões interativas de Kill Bill e Grindhouse, de Bastardos inglórios e Django livre: esses filmes seriam adequados a um modelo de entretenimento que prometa ao espectador expurgar seus traumas sociais, experimentar catarses efetivas e sensações radicais. Vale ressaltar, porém, que Tarantino não estaria só nesse caminho rumo a um cinema ainda mais imersivo e catártico: também seriam apropriadas a esse fim obras como Batalha real – não por acaso recentemente convertida ao 3D, dez anos depois de seu lançamento – e O hospedeiro, bem como muitas das realizadas por Takashi Miike, John Woo ou Zhang Yimou, para ficar apenas em títulos e realizadores contemporâneos publicamente elogiados e até mesmo endossados por Tarantino.

Radicalizar essa proposta de cinema-montanha-russa, típica de Steven Spielberg, George Lucas, James Cameron, Ang Lee, parecia mesmo ser o objetivo de Tarantino após decepcionar-se com os caminhos mais amenos percorridos em Jackie Brown. Mas, tendo em vista que seus projetos mais radicais nessa seara também não vingaram da forma como foram concebidos, essa tentativa de proporcionar uma “nova velha forma” de apreciação cinematográfica, investindo em filmes fundamentalmente sensoriais, “de atração”, viria a se atenuar na etapa seguinte de sua carreira, a atual, em que ele aparenta ter alcançado o ponto culminante de sua aceitação, pelo público hipster e pelo “povão” e até mesmo pelos críticos mais sisudos e pelos famosos “velhinhos da Academia”. Com efeito, superados o início prodigioso, a pressão por superação, o fracasso de um novo caminho e a impossibilidade de levar a cabo em seus próprios termos a proposta de reviver antigos formatos da

porção mais descartável e menos respeitável da produção cultural de massa, tornando-os épicos, reluzentes, grandiosos, operísticos, o cineasta enfim encontrou seu cinema e sua maior e mais diversificada audiência com Bastardos inglórios e Django livre. Nesses dois últimos – até aqui – trabalhos que escreveu e dirigiu, Tarantino finalmente parece ter conseguido estabelecer transições mais suaves entre o melodrama sério e a comédia alucinada, entre a trama que é puro pretexto e frivolidade e a que se dirige aos “grandes temas”, entre o que agrada ao mainstream e o que apela ao underground. Mas é bem provável que Tarantino não tivesse conseguido atingir esse equilíbrio, que não tivesse conseguido calibrar sua metralhadora de referências, que não tivesse sido capaz de afinar seu discurso e de refrear as tendências mais exageradas de seus Kill Bill e Grindhouse, para chegar aos resultados de Bastardos inglórios e Django livre, se não tivesse antes passado pelo “desvio de percurso” em sua carreira que foi representado por Jackie Brown.

Jackie Brown, blaxploitation e black music

Na superfície, Jackie Brown parece ser o filme mais uncool de Tarantino. Mas o seu subtexto lida justamente com a possibilidade de manter-se cool, de envelhecer ainda “dando no couro”, para usar uma expressão rasteira, mas precisamente aplicável nesse caso. É como se, com esse filme, Tarantino endereçasse já uma questão ao Tarantino futuro, relativa ao seu próprio amadurecimento como artista: “serei eu cool até o fim? Saberei a hora de parar?” Se, em resposta, Tarantino parece ao menos por ora ter decidido “rejuvenescer” seu estilo e sua fórmula – e, consequentemente, seu público –, no momento em que concluía seu terceiro longa-metragem, o cineasta parecia ter amadurecido e domesticado seus ímpetos mais primais. Daí ter produzido precocemente esse filme de maturidade que é Jackie Brown, um filme que tematiza a própria questão do amadurecimento e da obsolescência. Que esses assuntos sejam abordados sob o formato de uma revisão da blaxploitation é indicativo de uma pergunta latente que Tarantino honestamente se faz, não apenas nesse filme mas em toda a sua abordagem de referências do passado: como é que uma tendência tão forte em determinado momento se torna velha e esquecida em uma dúzia de anos? Como é que talentos – e, no caso de Jackie Brown, sejam eles do cinema e da música, mas também do sexo e do crime – podem manter-se intactos e, ainda assim, não encontrarem mais do que desinteresse, desprezo, solidão? Mais do que uma resposta a essas questões, Tarantino parece buscar

com Jackie Brown promover um reencontro de seu público com a força da cultura negra dos anos 1970. O filme parece indicar e defender a permanência dessa cultura, por meio de sua capacidade de adaptação. Trata-se enfim, de um elogio à capacidade de superação e adaptação – sempre pela via da apropriação – da cultura negra norte-americana. Não é à toa que Jackie, negra, mostre-se muito mais apta a superar o passado e “dar a volta por cima” do que seu parceiro, um homem branco.

O sucesso do cinema de blaxploitation que Tarantino homenageia e resgata em Jackie Brown representa o primeiro momento histórico em que a cultura popular dos afrodescendentes norte-americanos efetivamente ameaçou sair do “gueto” e dominar o mainstream (quase uma década antes de esse fenômeno se consolidar com a cultura do hip-hop). Dirigidos e estrelados por artistas negros, esses filmes de baixo orçamento alcançaram margens de lucros astronômicas nas bilheterias, conquistando não apenas a comunidade afrodescendente em peso, mas também jovens brancos de classe média como o próprio Tarantino. O seu declínio inevitável é justamente o “erro histórico” que o cineasta parecia tentar corrigir com Jackie Brown.

Muito do sucesso, da perenidade no imaginário pop e mesmo da qualidade estética dos filmes do ciclo da blaxploitation se devem às suas trilhas sonoras. Não são poucos, inclusive, os casos como o de Issaac Hayes com Shaft, de James Brown com Black Caesar, de Marvin Gaye com Trouble Man (para ficar apenas em alguns poucos e mais notórios) de filmes da blaxploitation que não fazem jus às músicas compostas para eles, tornadas mais influentes, conhecidas e reverenciadas do que os próprios filmes. Nesse sentido, nenhum é mais infame do que Super Fly, um melodrama criminal absolutamente trivial dirigido por Gordon Parks Jr. que se faz acompanhar por uma trilha sonora até hoje comprada e apreciada como revolucionária e autêntica obra-prima da música popular do século XX. O caso de Super Fly é tão extremo que, ao invés de exaltar o estilo de vida dos personagens do filme ou glorificar o heroísmo e a emoção do banditismo, a música de Curtis Mayfield complementa e se contrapõe à narrativa do filme, acrescentando-lhe camadas de comentário social que de outra forma estariam ausentes e denunciando o comportamento do protagonista. É na música de Mayfield que o filme ganha estofo e as ações de seus personagens são justificadas e questionadas. É por meio da trilha, e não do filme, que o espectador é levado a compreender

as ações do protagonista como fruto de sua revolta contra o “sistema” (espertamente designado pela expressão “the man” nas letras de Mayfield, conforme gíria típica da época). É por meio da trilha sonora que Super Fly ganha densidade. E isso, aproveitar a música como complemento e comentário à ação, é algo que Tarantino sabe fazer como poucos.

Portanto, não é de se espantar que, ao realizar um filme de homenagem – e de resgate – daquele período, Tarantino tenha escolhido para a trilha sonora de seu filme praticamente apenas músicas negras dos anos 1970. Trata-se da seleção musical mais acentuadamente retro de um cineasta cujo gosto musical e estilo são marcados por esse caráter retro. Mas trata-se também da trilha sonora mais “comportada” de um filme de Tarantino, aquela mais claramente presa ao contexto da história e a um gênero determinado. Se Tarantino costuma misturar também as referências musicais em seus filmes, deslocando canções de seu contexto temporal e geográfico, combinando e alternando surf music, rockabilly, country, música orquestral, pop oriental e todo e qualquer gênero musical que seu acervo de referências permite, em Jackie Brown ele parece satisfeito em reunir “apenas” uma grande coleção de pérolas da black music, principalmente da época da blaxploitation. Com músicas criadas e lançadas naqueles tempos por nomes como The Meters, Bobby Womack, Shuggie Otis, Bloodstone, Roy Ayers, Jermaine Jackson, The Delfonics, Bill Withers, Minnie Riperton e Randy Crawford, a trilha sonora de Jackie Brown é um verdadeiro catálogo de algumas das canções menos conhecidas do período áureo da black music norte-americana. Há alguns desvios, evidentemente: o country de Johnny Cash, o blues rock de Elvin Bishop, o hardrock clássico do The Guess Who e o contemporâneo do Slash’s Snakepit, o bubblegum do The Grassroots, e até mesmo números orquestrais obscuros. Porém, a inclusão de músicas desses outros gêneros é sempre pontual e de pouco destaque, justamente para demarcar os espaços da trama não dominados pelo Black Power. Grosso modo, o álbum de Jackie Brown é realmente um disco de black music e não há trilha sonora de Tarantino mais homogênea e mais fiel a um só gênero, a uma geografia e a um momento histórico.

Usando em Jackie Brown quase exclusivamente a música negra pré-hip-hop do que muitos podem considerar como a época áurea de gêneros como funk, groove, disco, r&b e soul, Tarantino relembra que essa música, assim como o cinema negro, também saiu do gueto para conquistar o mainstream nos

idos dos anos 1970. A antológica cena final dá grande destaque à mesma canção de Bobby Womack já utilizada na abertura do filme, Across 110th Street, que fala justamente desse movimento de deixar o gueto e superar as dificuldades em busca de uma vida melhor – algo que Jackie está fazendo por si própria no momento em que a canção é tocada e uma característica da cultura popular urbana dos afrodescendentes norte-americanos que o diretor parece reiteradamente afirmar e celebrar com seu filme. Assim como Cat People e muitas das faixas instrumentais dos filmes de Tarantino, a canção de Womack já fazia parte de uma trilha sonora muito antes desse reaproveitamento. Na verdade, Across 110th Street foi composta como músicatema do filme homônimo, cujo título no Brasil é A máfia nunca perdoa, também do ciclo da blaxploitation. Novamente, portanto, preferindo a música já existente (e já utilizada no cinema) a uma composição original, Tarantino faz algo até então inédito em sua carreira, usando uma mesma canção para pontuar dois momentos distintos de um mesmo filme, atribuindo-lhe funções diferentes. Ao aproveitá-la na abertura, Tarantino usa Across 110th Street apenas como alusão, estabelecendo de início a ambientação em um espaço feito puramente de referências e homenagens, reafirmado imageticamente pela tipologia da cartela do título (que reproduz a de Foxy Brown) e pela presença de Pam Grier, outras referências ao cinema e música negros dos anos 1970, mas também pela própria composição do plano, um tracking shot horizontal que “homenageia” a sequência de abertura de A primeira noite de um homem. Ao retomá-la na sequência final, Tarantino chama a atenção para as palavras de sua letra, que saem da boca da protagonista, confudem-se com sua voz e passam a expressar literalmente seu estado de espírito. Tarantino apropria-se da canção, tanto quanto Jackie se apropria de seu sentido: ambos “roubaram” sua música-tema. Jackie sente aquilo que a canção descreve com mais intensidade do que Womack, que a escreveu; Tarantino a utiliza com mais propriedade do que o filme para o qual ela foi composta.

Django livre e a força da apropriação

O respeito – e mesmo devoção – de Tarantino pelo desenvolvimento da música negra norte-americana ganha uma evidência nova e ainda mais contundente com a chegada de Django livre. Do ponto de vista da trilha sonora, se a de Jackie Brown incluía apenas black music e referências pontuais a outros gêneros, a de Django Livre estabelece um movimento pendular, alternando entre música orquestral coerente com o imaginário

posto em cena e canções pop que, em diferentes graus, destoam do ambiente retratado. Embora a trilha sonora contenha todo o Luis Bacalov e o Ennio Morricone que se poderia esperar de um faroeste de Tarantino, os momentos mais marcadamente musicais seu Django – poucos, se comparados aos de seus outros filmes – transcorrem ao som de country music, folk e southern rock ou de retumbantes hinos hip-hop, alguns deles compostos originalmente para esse filme. Enquanto a trilha de Jackie Brown é coesa e coerente, a de Django promove – assim como a de Bastardos inglórios – uma série de deslocamentos e mudanças de contexto, inserindo canções notadamente contemporâneas em um cenário de época. Ainda há aqui o tradicional resgate de pérolas obscuras, agora concentradas nas orquestrações de Morricone, Bacalov e Riz Ortolani para spaghetti westerns, e também a inclusão de clássicos a serem redescobertos pelas novas gerações – no caso, o folk de Jim Croce e Richie Havens, cuja Freedom também pontua dois momentos da trama, em sua versão original e como cover produzida para o filme. Sua maior diferença em relação às demais trilhas sonoras de Tarantino, contudo, está justamente no uso reiterado do rap Ode to Django (The D Is Silent), que o mesmo RZA de Kill Bill compôs especialmente para Django livre. Como nunca antes em sua carreira, Tarantino confia a música-tema de seu filme a uma composição original. Assim como a assinatura musical da personagem de Jackie só poderia ser um hino subaproveitado da blaxploitation (tanto melhor que ele fale sobre superar dificuldades e sair do gueto), a de Django só poderia mesmo ser um rap contemporâneo, ainda mais literalmente apropriado ao personagem porque composto para ele.

Os momentos de maior deslocamento de sentido e quebra de convenções de Django livre – que nesse quesito não chega a ser um A Girl Is a Gun –, aqueles de maior dissociação entre as referencias icônicas e musicais justapostas, são justamente aqueles em que as imagens arquetípicas de Leone ou Peckinpah se contrapõem a uma trilha sonora que apresenta referências culturais muito posteriores à época retratada em cena. E esse estranhamento não é em momento algum maior do que ao nos deparamos com uma cena de tiroteio de faroeste embalada por um hip-hop atualíssimo. De alguma forma Tarantino parece ter feito questão de apontar para uma referência atual a partir da trilha sonora, de estabelecer uma relação forte entre seu escravo pistoleiro do século XIX e a música negra do século XXI.

Certamente não escapa a Tarantino o fato de que foi um

processo de apropriação daquela mesma música da blaxploitation homenageada por ele em Jackie Brown que permitiu o surgimento do hip-hop, gênero cujas bases musicais foram inicialmente “roubadas” das linhas instrumentais de antigos funks e r&bs. E é preciso lembrar aqui que foi justamente o hip-hop o responsável por tornar mainstream um produto cultural tipicamente urbano, negro e pobre. O hip-hop consolidou, nos anos 1980, o projeto colocado em curso pela blaxploitation nos 70 de imposição da cultura negra subjugada aos consumidores brancos dominantes. A inclusão do hip-hop em Django livre, portanto, atesta mais do que respeito e admiração de Tarantino por esse gênero – pouco presente, aliás, em seus outros filmes. Tarantino recorre ao hip-hop como forma de se referir à cultura de gueto que quer emergir, algo que ele, analogamente, tenta fazer com o seu resgate de referências culturais de nichos. O que fica ainda mais claro nesse processo é a estratégia partilhada por Tarantino e pelos músicos de hip-hop como forma de libertar-se do gueto: a apropriação de fórmulas.

É interessante observar que em Jackie Brown e Django livre, dois longas-metragens voltados à questão do papel dos afrodescendentes na sociedade norte-americana, é a capacidade de adaptação aos novos tempos e de superação dos obstáculos impostos pelos opressores, pela via da apropriação, o que assegura aos heróis qualquer possibilidade de sucesso. Ainda que gerados em processos separados por uma distância abismal de contextos e de abordagens, Django e Jackie simbolizam, a partir de suas condutas, um elogio às mesmas qualidades de caráter do cidadão negro norte-americano enfatizadas por Tarantino: a adaptabilidade e a impassibilidade. É a capacidade de transitar entre os mais diversos estratos (escravos, feitores e milionários, no caso de Django; policiais, gângsteres e proletários, no caso de Jackie) e de se apropriar das estratégias e ferramentas de seus antagonistas o que garante a esses heróis negros de Tarantino sua chance de ventura. Nesse sentido, Jackie é o elogio de Tarantino à mulher negra da blaxploitation dos anos 1970 e Django ao músico negro de hip-hop dos anos 80. São figuras arquetípicas da população negra norte-americana que liderou os movimentos de “levante” do gueto e afronta a hegemonia do mainstream branco – ainda que apenas no cenário restrito da indústria cultural, nesse caso. Mas é o reconhecimento de Tarantino aos heróis culturais do gueto – incluídos aqui também o gueto da contracultura e todos os nichos da baixa cultura – que move toda sua obra e sua visão da cultura afro-americana em particular.

Django é venturoso por ser mestre na adaptação e na apropriação – como Tarantino? O herói sobrevive se apropriando das ferramentas das forças dominantes e opressoras: das maneiras, do vocabulário, das vestimentas e das armas de seus algozes. Ele literalmente se apropria de todos os signos e objetos de uso e manuseio restrito aos cidadãos brancos de seu contexto histórico: toma o chicote das mãos do feitor e a arma dos mortos que atravessam seu caminho; aprende o ofício da artilharia com seu mentor e benfeitor branco; veste-se com toda a extravagância do homem branco civilizado e abonado – e, em seguida, com invejável consciência de estilo. Chega a dar reprimendas de etiqueta a um agregado de seu poderoso antagonista e a perguntar “eu soo como um escravo para você?”, indicando que seu linguajar já se adaptou ao seu novo contexto e não é mais indicativo de seu estrato social.

Ao se apropriar da linguagem, das técnicas e instrumentos dos seus opressores, Django torna-se o representante da “nata do gueto”, o oprimido que se revolta e se liberta, o Unchained do título original. Torna-se uma força de destruição e mudança. Mas ele só vence porque sabe se apropriar, porque é aquele “1 em 10.000” desses oprimidos que sabe jogar no mesmo tabuleiro e com as mesas armas dos seus adversários. Os paralelos entre sua figura, a do escravo liberto vingativo, imbatível e impassível, e aquela tipicamente projetada por um músico de hip-hop de sucesso são mais do que evidentes. Embora seja um personagem “de época”, um escravo e um pistoleiro, Django tem a postura, o modo de vestir e falar e até mesmo a “músicatema” de um gangsta rapper. Tarantino reforça esse paralelo ao ostensivamente introduzir o hip-hop como “assinatura musical” do personagem, assim como reforçava em Jackie Brown o paralelo entre Pam Grier e as personagens que ela interpretava nos anos 1970 ao apresentá-la sempre ao som do melhor da música negra daquela época. Django está para o contexto do sul escravocrata dos Estados Unidos assim como as mulheres da blaxploitation (das quais Jackie Brown é figura arquetípica) para o contexto dos grandes centros urbanos dos anos 1970 e os rappers norte-americanos, com sua extravagância e ostentação, para o contexto cultural atual. Contexto no qual o próprio Tarantino, assim como seus personagens, também busca vencer mediante a uma postura pautada em apropriação, excentricidade e penache.

Publicado originalmente no catálogo da mostra Mondo Tarantino.

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