FILMES QUE LIBERTAM A CABEÇA: R.W. FASSBINDER

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Quando o cineasta Rainer Werner Fassbinder apareceu no cenário internacional, no começo dos anos 1970, foi sob a perspectiva do choque. Seus filmes surgiram em meio a uma onda de renovação do cinema alemão iniciado em meados dos anos 1960, um movimento que contestava os padrões do cinema industrial e buscava um olhar independente e crítico em relação à sociedade alemã do período. A obra de Fassbinder é uma produção que espanta pelo número de filmes realizados num período relativamente curto de tempo – são 43 obras, entre curtas, longas-metragens e séries de televisão feitas em apenas 17 anos. Vários deles recebidos com grandes polêmicas por tratar de temas como racismo, submissão, relações de poder, a história alemã e preconceitos de uma forma geral. Mas se seus filmes espantam, é pela incrível sinceridade e pelo poder de análise com que revelam meandros do comportamento humano, por vezes indo aos limites do desespero, mas jamais abdicando de um intenso olhar afetivo por seus personagens. A mostra Filmes Libertam a Cabeça – Rainer Werner Fassbinder é a segunda homenagem do Banco do Brasil à obra deste brilhante

cineasta e exibe, desta vez, um painel diferenciado de uma cinematografia que marcou a história por propor visões originais e radiografar com olhar generoso a alma humana. Traz ao Brasil filmes raros e importantes de Fassbinder assim como outros que foram inspirados ou que se inspiraram na carreira do diretor; e proporciona ao público o contato com “Berlin Alexanderplatz”, série em 14 episódios feita para a TV alemã, na versão restaurada em 35mm. Os debates, com a presença do ator Ulli Lommel, grande colaborador de Fassbinder, também fazem da mostra uma boa oportunidade de acesso à polêmica obra do diretor. Ao realizar uma mostra de um cineasta como Rainer Werner Fassbinder, com ênfase em títulos de difícil acesso, com apoio do Instituto Goethe, o Centro Cultural Banco do Brasil consolida seu papel de agente da Cultura e oferece ao público a oportunidade de conhecer trabalhos pouco divulgados. É também um estimulo ao debate sobre como a arte pode interagir com a vida das pessoas e retratar a sociedade em que ela é feita.

Centro Culural Banco do Brasil


“Filmes libertam a cabeça”, que nomeia essa retrospectiva parcial da obra de Rainer Werner Fassbinder, foi a maneira utilizada pelo próprio cineasta – ao escrever um artigo, em 1971, intitulado “Imitação da Vida” – para explicitar o maravilhamento de ter encontrado nos filmes de Douglas Sirk obras que respondiam aos ideais do que ele gostaria de fazer com seu próprio cinema. No texto, ele diz que “os filmes de Douglas Sirk libertam a cabeça”, e é nítido observar como seus filmes trabalham com esse mesmo tipo de objetivo. São filmes em que personagens afáveis ou são envolvidos por maquinações cruéis da sociedade, ou ficam alienados por suas condições de vida, ou simplesmente não conseguem ver com clareza sua real situação. Os filmes deveriam elaborar um mecanismo precioso em que o espectador – ao observar o padecimento desses personagens por quem empatizamos ao vê-los sofrer por falta de consciência – pode ele mesmo exercitar em sua vida as condições e as circunstâncias de sociedade que determinam suas ações e seus desejos. Em muitos aspectos, Fassbinder criou seus filmes a partir dos filmes dos outros. Em 1966, um de seus curtas, O vagabundo, era estruturado a partir de uma situação de O signo do leão, primeiro

longa de Eric Rohmer. Os primeiros longas de Fassbinder, como O amor é mais frio que a morte e Deuses da peste, são muito influenciados pela maneira como os filmes de Jean-Luc Godard e Claude Chabrol parasitam a estrutura dos filmes policiais para tratar de outros temas. Em 1971, vendo os filmes de Sirk, ele descobre como o melodrama – aquele gênero que, de certa forma, mais pede adesão do espectador – pode também servir o propósito de tornar claras as mazelas da vida social que causam o sofrimento e a solidão das pessoas. Um misto de todas essas aprendizagens, associado a um amor por certos autores do cinema clássico – Raoul Walsh, Michael Curtiz – e uma sensibilidade definitivamente moderna (ou seja, desmistificadora, “diagramática”, como diria Foucault). Ao fazer sua eleição de filmes e diretores preferidos e ao incorporá-los sua estética, Fassbinder construiu, com retalho aqui, retalho acolá, um dos estilos mais singulares e exuberantes de toda a história do cinema. Berlin Alexanderplatz é o ápice dessa obra. Não é apenas o mais perfeito e ambicioso de seus filmes: é a culminação de um processo que durou diversos anos – filmes com personagens intitulados Biberkopf, com psicologia semelhante à do personagem ou


com situações dramáticas livremente adaptadas do livro de Döblin – até que Fassbinder teve a coragem e surgiram as circunstâncias de realizá-lo (afinal era um projeto caro, a série mais custosa da tv alemã até então). Hoje, Berlin Alexanderplatz volta em versão restaurada, em 35mm, graças aos esforços da Fundação Fassbinder, liderada por Juliane Lorenz, montadora e companheira de Fassbinder. Pela envergadura do projeto e pela raríssima oportunidade de ver a série exibida em película, Berlin Alexanderplatz é o grande destaque de nossa mostra. Outro grande destaque é a presença de Ulli Lommel para debater com o público sobre sua carreira como ator e diretor, e sobre sua longa amizade com Fassbinder. Temos também o prazer de publicar, em primeira mão neste catálogo, o capítulo da recém-publicada autobiografia de Ulli Lommel intitulado “Os Anos Fassbinder”, com memórias e reflexões sobre a convivência com Fassbinder; que não apenas revelam traços da personalidade do cineasta, mas também nos permitem aproximar de sua visão de mundo.

Nossa mostra será completada por uma seleção de filmes significativos, porém pouco conhecidos de Fassbinder. Pois se alguns de seus filmes já podem ser vistos em DVD, outros ainda permanecem de difícil acesso e constituem verdadeiros enigmas para os cinéfilos e admiradores que desejam conhecer tudo que puderem dos filmes do cineasta. Adicionamos também uma programação complementar com filmes que influenciaram o cineasta – entre os quais filmes de Douglas Sirk e Phil Jutzi – e filmes com participação direta ou indireta, como A ternura dos lobos, de Ulli Lommel, filmado com toda a trupe Fassbinder e com a produção do próprio, e Gotas d’água em pedras escaldantes, filme de François Ozon a partir de uma peça de teatro escrita por Fassbinder. Com isso, e com os textos que publicamos neste catálogo, pretendemos mostrar que a obra de Fassbinder pode começar com os filmes – e ter nos filmes seu elemento mais deslumbrante –, mas que também está em tudo aquilo que se deixou influenciar por ela. E que está, também, na liberdade criada pela cabeça de cada um dos espectadores que assistiu a algum filme de Fassbinder e incorporou alguma forma de sabedoria transmitida pelo filme em sua vida.

curadoria


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SUMĂ RIO

11 As cidades do homem e sua alma 17 Do romance ao filme: Berlin Alexanderplatz, de Fassbinder 26 Entrevista O legado de R. W. Fassbinder uma conversa com Juliane Lorenz 39 As Mulheres de Rainer Werner Fassbinder 52 Os anos Fassbinder 75 Biografia 78 Fichas tĂŠcnicas


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As cidades do homem e sua alma Rainer Werner Fassbinder Algumas reflexões não-ordenadas sobre o romance Berlin Alexanderplatz, de Alfred Döblin.

Há mais ou menos vinte anos – eu deveria ter quatorze, talvez quinze anos de idade e atravessava uma puberdade quase mortal – iniciei minha viagem, totalmente não-acadêmica, extremamente pessoal e comprometida apenas com minhas próprias associações, através da literatura mundial e deparei-me com o romance de Alfred Döblin, Berlin Alexanderplatz. Antes de tudo, para ser sincero, o livro não mexeu comigo de forma negativa ou positiva, como na verdade já ocorrera com alguns poucos “livros” que eu já havia lido. Muito pelo contrário, as primeiras duzentas páginas me entediaram tanto, que eu deixei o livro de lado, não continuei a leitura até o fim e com quase toda certeza jamais o teria lido. É estranho! Eu não só teria perdido um dos mais excitantes e interessantes contatos com uma obra de arte como, também, minha vida, certamente não toda e eu acho que sei, do que estou falando -, teria sido outra se Berlin Alexanderplatz de Döblin, não tivesse penetrado em minha cabeça, minha carne, em todo meu corpo e em minha alma. Por mim podem rir, se quiserem. Na verdade, Döblin – talvez por covardia, talvez por uma timidez inexplicável diante dos conceitos morais de sua época e de sua classe social, talvez ainda por um medo inconsciente do envolvimento pessoal – dá voltas em torno do verdadeiro tema de seu romance ao longo de muitos capítulos. O encontro entre o “herói” Franz Biberkopf com Reinhold, o outro herói do romance, determina a trajetória da história de vida dos dois homens, e somente acontece no decorrer da edição de bolso, do romance de 410 páginas, na página 155, ou seja, um terço após o início da história; e

a meu ver, pelo menos quando daquela primeira leitura, muito tarde. Embora com o passar do tempo esta impressão tenha mudado um pouco, devo dizer que se mantém basicamente até hoje. Sei lá como, mas com toda certeza para minha própria felicidade, consegui suportar a primeira parte de Berlin Alexanderplatz que – como disse – me entediara mais do que confundira, perturbara ou mesmo excitara, e continuei a ler, mas de uma forma que a gente quase não chamaria ler e sim devorar, comer ou sugar. E mesmo assim, ainda teria escolhido conceitos muito fracos para definir este ler, que era perigoso e muitas vezes já nem era mais ler, e sim vida, sofrimento, desespero e medo. Mas por sorte o romance de Döblin é tão bom que não permite que a gente se sinta deprimido ou se perca. Várias vezes quase fui obrigado, como creio que todo leitor seria, a retornar a si mesmo, à sua própria realidade, a analisar a realidade de cada um. Eu acredito que esta deva ser a pretensão de toda obra de arte. É provável que Berlin Alexanderplatz tenha me ajudado a reconhecer este requisito da arte, a formulá-lo e, por último, a torná-lo parte de meu próprio trabalho. Eu me deparara, então, com uma obra de arte que não só estava em condições de auxiliar à vida, isto também – mas ainda falarei sobre isso –, mas ajudava a desenvolver teorias, sem ser teórico; obrigava a atos morais, sem ser moralista; a aceitar o ordinário como o verdadeiro, como o sagrado, sem pretender ser comum ou sacralizar; ou colocar-se como um relatório da verdade; e tudo isto sem ser cruel, o que muitas obras deste nível quase sempre são. Berlin Alexanderplatz ajudou-me não somente em algo como um amadurecimento ético, não, ele foi para mim um verdadeiro companheiro na puberdade; e também um auxílio para a compreensão da vida – porque naquela época ao ler a história de dois homens, cuja vida sobre a Terra foi destruída, que não tiveram a possibilidade de encontrar a coragem, de pelo menos reconhecer, sem falar em admitir, que se gostavam de uma maneira peculiar, que de certa maneira se amavam, que alguma coisa secreta os unia, algo que entre os homens usualmente não é permitido – eu simplesmente reduzi o romance de Döblin aos meus problemas e questionamentos.

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No entanto, o livro não trata de maneira alguma de um relacionamento sexual entre pessoas do mesmo sexo, Franz Biberkopf e Reinhold não são de modo algum homossexuais – a questão não é esta, nada nos leva a interpretar assim. Nem mesmo o inequívoco relacionamento sexual de Reinhold com um jovem na prisão; e não importa como Döblin queira descrever esta relação como feliz. Eu afirmo que isto nada tem a ver com aquilo que havia entre Franz e Reinhold. Não, o que há entre Franz e Reinhold não é nada mais nada menos do que um amor puro, que nada tem a temer da sociedade. É isto. Porém, é claro que ambos, Reinhold ainda mais do que Franz, são seres sociais; e neste sentido não estão naturalmente em condições de entender este amor, de aceitá-lo, de serem felizes em um relacionamento amoroso, que raramente surge entre as pessoas. E de fato, compreende-se: o que pode significar um amor como este, que não conduz a nenhum resultado visível, a nada que se possa mostrar, explorar, a nada que seja útil para uma pessoa que tenha sido educada como nós fomos ou de maneira semelhante? Um amor assim, tão triste e tão apavorante deve provocar medo àqueles que aprenderam que o amor é útil; ou pelo menos proveitoso, não só no sentido positivo quanto no sentido negativo – pois também aprendemos a sentir prazer no sofrer. Deve ter sido esta minha interpretação ao ler Berlin Alexanderplatz pela primeira vez. E, para ser concreto, esta leitura me ajudou a reconhecer meus medos torturantes, que quase me paralisavam, o medo de admitir meus anseios homossexuais; a ceder às minhas necessidades reprimidas, esta leitura me ajudou a não me transformar em um doente, um mentiroso, um desesperado, me ajudou a não morrer. Mais ou menos cinco anos mais tarde eu reli Berlin Alexanderplatz. Desta vez a leitura me impressionou de modo totalmente diferente, ou tenha me despertado para uma descoberta, que por outro lado me auxiliou a entender muito daquilo que é: Eu. Uma descoberta que me ajudou a não fazer alguma coisa inconsciente, que eu de modo informal gostaria de chamar de “viver uma vida de segunda mão”. Nesta segunda leitura tornou-se a cada página cada vez mais claro – primeiro de forma espantosa, depois cada

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vez mais apavorante e por último tão perturbador – que eu me senti quase obrigado a fechar os olhos e os ouvidos, a reprimir, para não ver mais e mais claramente que uma grande parte de mim mesmo, meu comportamento, minhas reações, muita coisa que eu julgava própria de mim mesmo, havia sido descrita por Döblin em Berlin Alexanderplatz. Ou seja, eu havia inconscientemente transformado as fantasias de Döblin na minha própria vida. E foi mais uma vez o romance de Döblin que me ajudou a superar esta crise angustiante e a trabalhar em alguma coisa – que a gente por fim pode chamar de identidade – até onde seja possível em meio a toda esta porcaria estragada. A seguir eu assisti ao filme Alexanderplatz de Phil Jutzi, que em si mesmo é um filme muito bom. No entanto, não havia nada nele que remetesse ao romance de Döblin, que foi totalmente esquecido. O livro e o filme não tem nada a ver entre si. Cada um deles é uma obra independente. E como o cinema é a linguagem artística com a qual mais me identifico, decidi-me naquela ocasião que algum dia – e já não sei mais por que algum dia, talvez porque achasse que devesse esperar até quando eu soubesse o bastante – a tentar fazer de Berlin Alexanderplatz o protocolo de um estudo desta literatura muito especial, com meus meios cinematográficos. Atrever-me a um experimento. Passaram-se mais de dez anos até que isto acontecesse. E se a situação não tivesse sido do jeito que foi – eu tinha de fazer, senão outro teria feito –, eu teria me concedido um pouco mais de tempo. Cronologicamente aconteceu também que nos dez anos anteriores eu havia inserido muitas citações do romance de Döblin em muitos de meus trabalhos. E então, de repente, porque escreveram um livro a meu respeito, eu assisti a todos os meus filmes, um após o outro, durante três dias seguidos. E me dei conta, perplexo, de que havia muito mais citações em meus trabalhos, e a maioria delas mais uma vez inconsciente, do que eu supunha. Este foi o motivo. Foi então que li o livro mais uma vez, agora eu queria saber exatamente o que houvera entre o romance de Döblin e eu. Muita coisa se tornou clara, mas o mais importante foi reconhecer que este romance, uma obra de arte, foi decisivo para o decorrer de minha vida.


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Alguém que não tenha lido o livro, certamente perguntará agora, qual teria sido a história contada por Alfred Döblin que poderia ter tido um significado tão grande, quase existencial para um único leitor; um efeito realmente singular para uma única obra de arte. A esta pessoa seria preciso responder com sinceridade que isto não tem muito a ver com a história. Muito pelo contrário. A história do ex-motorista de caminhão Franz Biberkopf – de como ele saiu da prisão e a partir daí jurou permanecer honesto, e de como não conseguiu manter-se firme em seu propósito – é muito mais do que uma, em parte incrivelmente brutal, sucessão de pequenas histórias, das quais cada uma delas poderia ser apresentada em um folhetim obsceno. O essencial em Berlin Alexanderplatz não é, portanto, sua história. O que este romance tem em comum com alguns outros grandes romances da literatura mundial é: sua construção é possivelmente ainda mais ridícula do que a construção de Goethe em Afinidades Eletivas – o essencial é simplesmente como as ações banais e inacreditáveis são contadas. E sua atitude diante dos personagens – quando o autor desnuda sombriamente para o leitor, enquanto o deixa aprender a vê-los com grande ternura e por fim a amá-los. Neste ponto farei uma tentativa de contar resumidamente a trama do romance. Como já foi dito, o ex-motorista de caminhão Franz Biberkopf foi libertado da prisão, na qual ele passou quatro anos por ter golpeado mortalmente Ida, sua ex-namorada, com um batedor de creme. A situação da economia na década de vinte em Berlim era bastante difícil e Ida havia se prostituído por sua causa. O presidiário libertado supera seus problemas iniciais de impotência sexual com um quase estupro praticado contra a irmã de sua vítima. Logo após inicia uma relação com a polonesa Lina, uma relação que julgaram ser amor e que o leva a jurar tornarse, a partir de então, uma pessoa honesta. A situação financeira é péssima, todas as tentativas de conseguir uma base estável fracassam; sejam elas prendedores de gravata, literatura erótica, o Völkische Beobachter, que o coloca em dificuldades diante de amigos antigos, com os quais outrora se envolvera, porque gostava deles. Sobraram os cordões de sapato, destes a gente sempre precisa, e ele começa a vendê-los junto com um tio de sua namorada Lina; até que este trai a confiança

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que Franz depositara nele, ao chantagear e ameaçar uma viúva a quem Franz prestara serviços sexuais e fora pago por eles. Franz, que sempre acreditara na bondade das pessoas, está tão magoado, que se afasta do mundo e das pessoas, e durante semanas não faz outra coisa além de embriagar-se, mas depois retorna à vida e às pessoas. É então que ele conhece Reinhold, um pequeno gângster, mas de alguma maneira tão estranhamente fascinante, que Franz faz com ele um estranho tipo de negócio. Ele fica com as mulheres que Reinhold, após ter feito de tudo para conquistar, não quer mais; e que tem dificuldade de se livrar. É algo quase doentio, mas Franz está tão fascinado por ele que se presta a este papel.Tudo corre bem, até que Franz recusa-se a ficar com a terceira conquista. Reinhold deve aprender a permanecer mais tempo com uma mulher, porque isto é saudável, e Franz quer ajudá-lo a fazer o que é certo. Pouco depois, por coincidência, Franz participa de um negócio que julgou ser um transporte regular de frutas, mas na verdade tratava-se de um roubo. Ele quer sair fora, mas não consegue. Depois do roubo, Franz e Reinhold estão sentados em um carro, quando Reinhold tem a impressão de que estão sendo seguidos. O medo da perseguição e a raiva que sente de Franz se misturam e, de repente, Reinhold joga Franz para fora do carro. Franz é atropelado pelo automóvel que vinha atrás e parece estar morto. Mas Franz Biberkopf não está morto, ele apenas perdeu seu braço direito. Sua ex-namorada Eva e seu cafetão cuidam dele; sem o braço direito ele volta à cidade e conhece um pequeno malfeitor para quem ele trabalha com receptação, e isto o leva a uma certa prosperidade. É então que Eva lhe traz uma jovem, que ele chama de Mieze, e mais tarde se descobre que se prostitui por ele. Franz aceita isto, e durante algum tempo eles são felizes. Eles se amam. Porém Reinhold se intromete neste relacionamento, encontrase com Mieze várias vezes, até que a mata. Franz é acusado por esta morte e vai parar em um asilo de loucos, onde ele, após um longo período de um “processo de catarse inversa”, torna-se um membro comum e útil para a sociedade. Ele já não é mais o mesmo. Ele se tornará nacionalista, tal foi a ruína que seu encontro com Reinhold provocou. Bem, esta é a história.


No fundo, não passa de um romance folhetinesco. O que o faz então ser tão grande? Mas não se trata aqui do “que”, é antes de tudo o “como”. Em Berlin Alexanderplatz as menores e as mais simples emoções, sentimentos, momentos felizes, anseios, satisfações, dores e medos são permitidos aos “pequenos”e insignificantes indivíduos; enquanto que na arte, em geral, somente são permitidos aos grandes. As pessoas, de quem fala Döblin em Berlin Alexanderplatz – principalmente o protagonista, o ex-motorista Franz Biberkopf, mais tarde cafetão, assassino, ladrão e mais uma vez cafetão – são dotadas de um inconsciente tão diferenciado, associado a uma quase inacreditável fantasia e paixão, que na maior parte das vezes só é encontrado nas grandes figuras da literatura mundial, como, por exemplo, os letrados, os intelectuais e os grandes amantes, apenas para citar algumas delas, mas que não é permitido aos “simples”. A postura de Döblin diante de seus personagens, estas criaturas pobres e insignificantes, é com toda certeza, isto eu afirmo – mesmo que Döblin o tenha negado muitas vezes –, influenciada pelas descobertas de Sigmund Freud. Berlin Alexanderplatz teria sido assim a primeira tentativa de aplicação dos conhecimentos freudianos à arte. Isto em primeiro lugar. Em segundo lugar, Döblin descreve cada ato, mesmo que seja o mais banal, como se fosse o mais significativo e grandioso processo, como parte de uma mitologia secreta, ou como tradução de um momento religioso, seja este cristão ou judaico. Döblin, como alguém que abandonou a fé judaica pelo catolicismo, teve mais problemas com a religião do que em geral é comum. Talvez por este motivo ele tenha tentado resolver este problema ao descobrir o comum na particularidade da religião, e assim o descrever.

Mas o que importa para o leitor não é saber se a técnica de redação foi escolhida ou inventada, isto é tarefa para os estudiosos da literatura. O que de fato é importante para quem lê é a forma adequada à narração. E esta Döblin conseguiu encontrar em Berlin Alexanderplatz. Também não importa se Döblin conhecia ou não Ulisses de James Joyce; isto não faz seu romance ser melhor ou pior. A propósito, seria bem possível que dois autores, que viveram quase na mesma época, inventassem uma mesma técnica de narração. Por que não? Como acontece com a própria História, nem tudo na história da literatura pode explicar-se por si mesmo. Mais interessante do que questionar se “Döblin conhecia Ulisses” é pensar como eu, que a linguagem de Berlin Alexanderplatz é influenciada pelo ritmo dos trens que passavam a todo o momento diante do cômodo em que Döblin trabalhava. A linguagem de Berlin Alexanderplatz está cheia de coisas assim: em sua maioria ruídos da cidade grande, seus ritmos específicos, seu constante ir e vir. E da percepção do que é viver na cidade grande vem a técnica de colagem que Döblin soube empregar como poucos autores de romances de cidade grande. Viver em uma cidade grande significa alternar constantemente sua atenção entre os ruídos, as imagens, os movimentos. E de forma semelhante alternam-se também as partes do enredo, sem que se perca a linha narrativa. Outras pessoas podem dizer mais a respeito do estilo específico de Döblin, eu desejo apenas salientar que Döblin escreveu outras coisas, obras de arte – que possivelmente significarão mais para as gerações futuras – que talvez sejam mais importantes do que Berlin Alexanderplatz é hoje. E desejo que Döblin seja muito mais lido do que atualmente. Para o bem dos leitores. E da vida. Março, 1980.

Para simplificar, isto significa que nenhum momento da ação, mesmo quando completo, é isolado em si mesmo, mas junta-se a outro como se fosse parte de outra narração; um segundo romance dentro do romance ou talvez também parte de uma mitologia particular do autor. Porém, não quero ter de decidir isto agora. E por último, em terceiro lugar, há a técnica de redação, que Döblin inventou ou talvez tenha escolhido para Berlin Alexanderplatz.

Die Städte des Menschen und seine Seele © Rainer Werner Fassbinder Foundation, Berlin / Verlag der Autoren, Frankfurt am Main

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Do romance ao filme: Berlin Alexanderplatz, de Fassbinder Susan Sontag

Achamos natural que os cineastas, se assim o desejam, trabalhem no ramo da reciclagem. Adaptar romances é um dos projetos cinematográficos mais respeitáveis, ao passo que um livro que se declara um filme romanceado parece, com razão, algo bárbaro. Arte híbrida e também tardia, o cinema sempre esteve em diálogo com outros gêneros narrativos. Os filmes foram vistos, a princípio, como um tipo excepcionalmente poderoso de teatro ilusionista, em que o retângulo da tela correspondia ao proscênio de um palco, no qual aparecem – atores. Desde o início do cinema mudo, peças de teatro eram com frequência “convertidas” em filmes. Mas filmar peças não estimulava o desenvolvimento do que era de fato peculiar ao cinema: a intervenção da câmera – sua mobilidade de visão. Como fonte de enredo, personagem e diálogo, o romance, por ser uma forma de arte narrativa que (como o cinema) se desloca livremente no tempo e no espaço, pareceu mais adequado. Muitos dos primeiros sucessos do cinema (O nascimento de uma nação, Os quatro cavaleiros do Apocalipse, Ramona, Stella Dallas [Mãe redentora], It) eram adaptações de romances populares. As décadas de 1930 e 1940, quando os filmes alcançaram seu maior público e obtiveram um monopólio sem precedentes no setor do entretenimento, foram provavelmente o auge dos projetos de transformar romances em filmes – os clássicos melífluos calcados nos romances das irmãs Brontë ou de Tolstói não eram nem mais nem menos ambiciosos, como filmes, que as adaptações de livros best-seller como E o vento levou, Horizonte perdido, Rebecca, Terra dos deuses, A luz é para todos. O pressuposto era que o destino de um romance era “tornar-se” um filme.

Como um filme que é uma transcrição de um romance pega carona na reputação e no interesse do romance, as comparações são inevitáveis. E, agora que o cinema deixou de ter o monopólio do entretenimento, os critérios ficaram mais elevados. Quem pode ver os filmes feitos dos romances Lolita ou Obtómov ou O processo sem se perguntar se o filme é adequado ao romance – a formulação de comparações invariavelmente hostis depende de o romance pertencer ou não à literatura. Mesmo um romance menor, como Mefisto, de Klaus Mann, revela-se muito mais rico que o filme. Parece quase da natureza do cinema – a despeito da qualidade do filme – abreviar, diluir e simplificar todo bom romance que venha a adaptar. De fato, um número muito maior de bons filmes foram feitos a partir de boas peças de teatro do que de bons romances – apesar da opinião de que tais filmes tendem a ser estáticos e, portanto, contrários ao cerne daquilo que é caracteristicamente cinematográfico. Os cineastas das décadas de 1930 e 1940, como Wyder, Stevens, Lean e Autant-Lara, tinham uma atração particular por projetos de transformar bons romances em filmes – como, mais recentemente, tinham também Visconti, Losey e Schlöndorff. Mas a taxa de fracasso foi tão impressionante que, desde a década de 1960, a aventura passou a ser vista como suspeita em certos setores. Godard, Resnais e Truffaut declararam sua preferência por gêneros subliterários – romances policiais e de aventuras, ficção científica. Os clássicos pareciam amaldiçoados: tornou-se uma norma a ideia de que o cinema se alimentava melhor com ficção barata do que com literatura. Um romance menor podia fornecer o pretexto, um repertório de temas que o cineasta podia manusear livremente. No caso de um bom romance, há o problema de ser “fiel” a ele. O primeiro filme de Visconti, Ossessione – adaptado de e postman always rings twice [O destino bate à sua porta], romance de James M. Cain –, é uma realização muito mais digna do que a sua bela, respeitável, transcrição de O leopardo ou do que sua dura e um tanto descuidada versão de O estrangeiro, de Camus. O melodrama de Cain não precisava ser “seguido”. Existe também o obstáculo representado pela extensão da obra de ficção, não apenas por seus atributos literários. Até o inverno passado, eu só tinha visto um filme adaptado de obra literária que

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considerei de todo admirável: um filme russo. A dama do cachorrinho, adaptado de um conto de Tchekhov. A extensão padrão, arbitrária, dos filmes é aproximadamente o tempo que se demora para ler um conto ou representar uma peça. Mas não um romance – cuja natureza é a expansividade. Para fazer justiça a um romance, é preciso que o filme seja não só um pouco mais longo, mas sim extremamente longo – que rompa as convenções de duração estabelecidas pela frequência à sala de cinema. Era essa, sem dúvida, a convicção de Erich von Stroheim quando se aventurou à sua lendária e abortada adaptação de McTeague, intitulada Greed [Ouro e maldição). Stroheim, que desejava filmar o romance de Frank Norris inteiro, fez um filme de dez horas, que o estúdio reeditou e por fim reduziu a 2 horas e 45 minutos (dez rolos, dos 42 de Stroheim); os negativos dos 32 rolos descartados foram destruídos. A versão de Ouro e maldição que sobreviveu a essa carnificina é um dos filmes mais admirados que existem. Mas os amantes de cinema estarão sempre de luto pela perda das dez horas de Ouro e maldição que Stroheim editou. Fassbinder alcança êxito onde Stroheim se viu frustrado – ele filmou quase um romance inteiro. Mais ainda: fez um grande filme de um grande romance, e fiel a ele – se bem que, se em algum paraíso ou refúgio platônico de julgamentos existir uma lista dos, digamos, dez maiores romances do século XX, provavelmente o título menos conhecido será Berlin Alexanderplatz, de Alfred Döblin (1878-1957). Não permitiram que Stroheim fizesse um filme de dez horas. Fassbinder, graças à possibilidade de exibir um filme em partes, na televisão, pôde fazer um filme de 15 horas e 21 minutos. A extensão desmedida dificilmente poderia garantir a transposição bem-sucedida de um grande romance para um grande filme. Mas, embora não seja uma condição suficiente, é provavelmente uma condição necessária. Berlin Alexanderplatz é o Ouro e maldição de Fassbinder não só no sentido de que Fassbinder obteve êxito na realização do filme longo, o grande filme adaptado de um romance, mas também por causa dos numerosos e impressionantes paralelos entre o enredo de Berlin Alexanderplatz e o enredo de Ouro e maldição. Pois, de fato, o romance americano, publicado em 1899, relata uma versão primitiva da história contada no romance alemão, publicada trinta anos mais

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tarde, que tem uma textura muito mais densa e um alcance muito maior. Escrevendo em San Francisco no fim do século XIX, o jovem Frank Norris tinha Zola por modelo de um “naturalismo”imparcial. Döblin, muito mais sofisticado, já na metade de sua carreira (tinha 51 anos quando Berlin Alexanderplatz foi publicado) e escrevendo na década mais criativa na arte do século XX, inspirou-se (segundo se diz) em Ulisses de James Joyce, bem como nas tendências expressivas hipernaturalistas do teatro, da cinema, da pintura e da fotografia alemães, com os quais estava familiarizado. (Em 1929, o mesmo ano em que Berlin Alexanderplatz foi publicado, Döblin escreveu um refinado ensaio sobre fotografia como prefácio num volume que reunia obras do grande August Sander.) Um homem corpulento, sentimental, ingênuo e violento, ao mesmo tempo inocente e brutal, é o protagonista dos dois romances. Franz Biberkopf já é um assassino quando Berlin Alexanderplatz começa – acabou de cumprir uma pena de quatro anos de cadeia por matar a prostituta com a qual vivia, Ida. O protagonista de McTeague termina matando uma mulher, sua esposa, Trina. Os dois romances são anatomias de uma cidade, ou de parte dela: a sórdida rua Polonesa de San Francisco, no romance de Norris, e os bairros de trabalhadores, prostitutas e criminosos rasteiros de Berlim, no romance de Döblin, são muito mais do que um mero pano de fundo para os infortúnios do herói. Os dois romances começam com um retrato do herói sozinho e a pé, na cidade – McTeague segue sua rotina dominical de caminhadas solitárias, jantar e cerveja; Biberkopf, recém-libertado da prisão, vaga aturdido pela Alexanderplatz. Antigo operador de elevador numa mina, McTeague conseguiu estabelecer-se em San Francisco como dentista; no meio do romance, ele é proibido de clinicar. O ex-cafetão Biberkopf tenta ganhar a vida honestamente numa série de empregos subalternos mas, quando não consegue mais trabalho (perdeu o braço direito), a mulher a quem ama vai para as ruas para sustentá-lo. Nos dois romances, a ruína do protagonista não é apenas má sorte, ou circunstancial, mas engendrada por seu ex-melhor amigo – Marcus em McTeague, Reinhold em Berlin Alexanderplatz. E os dois pares de amigos são estudos de contrastes. McTeague é de poucas palavras; Marcus é hiperverbal – um lider político em botão, que jorra os clichês do populismo reacionário.


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Biberkopf, que ao sair da prisão prometeu ser honesto, não fala mal; Reinhold pertence a uma gangue de ladrões e é gago. O herói crédulo é estupidamente dedicado ao amigo secretamente malévolo. No romance de Norris, McTeague herda – com a permissão de Marcus – a garota que Marcus cortejava e casa com ela no momento em que a jovem ganha uma grande soma de dinheiro na loteria; Marcus jura vingar-se. Em Berlin Alexanderplatz, Biberkopf herda – ante a insistência de Reinhold – várias mulheres de Reinhold, e é quando se recusa a descartar uma das ex-namoradas de Reinhold, num momento em que mais uma mulher já está pronta para ser transferida para ele, que Reinhold se torna traiçoeiro. Marcus é quem priva McTeague do seu meio de vida e de sua frágil respeitabilidade: denuncia-o às autoridades municipais por exercer a odontologia sem ter diploma, e o resultado é não só a indigência mas também a ruína do seu relacionamento com a patética esposa, já mentalmente perturbada. É Reinhold quem dá um fim atroz aos bravos esforços de Biberkopf para se manter honesto, primeiro induzindo-o ardilosamente a participar de um arrombamento e depois, durante a fuga, empurrando-o para fora do furgão, na frente de um carro – mas Biberkopf, após a amputação do braço, estranhamente não tem desejos de vingança. Quando Eva, sua protetora e ex-amante, retira Biberkopf do seu desespero encontrando para ele uma mulher, Mieze, por quem se apaixona, Reinhold, incapaz de suportar a felicidade de Biberkopf seduz e mata Mieze. Marcus é motivado pela inveja; Reinhold, por uma malignidade em última análise imotivada. (Fassbinder chama a indulgência de Biberkopf com Reinhold de um tipo de amor “puro”, ou seja, imotivado.) Em McTeague, o elo fatal que une McTeague e Marcus é retratado de modo mais sumário. No fim do romance, Norris retira seus personagens de San Francisco: os dois homens se encontram no deserto, paisagem que é o oposto da cidade. O último parágrafo mostra McTeague acidentalmente algemado a Marcus (a quem acabou de matar, em autodefesa), no meio do Vale da Morte, “olhando atônito à sua volta” condenado a esperar a morte ao lado do cadáver do seu inimigo/amigo. O fim de McTeague é meramente dramático, embora de um modo maravilhoso. Berlin Alexanderplatz termina como uma série de árias de dor, sofrimento, morte e sobrevivência. Biberkopf não mata Reinhold, nem ele mesmo morre. Enlouquece após o assassinato da sua adorada Mieze (a mais lan-

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cinante descrição de dor que conheço na literatura), é encarcerado num hospício, e, quando é solto, um caso encerrado, por fim consegue um emprego respeitável, como vigia noturno numa fábrica. Quando Reinhold é, afinal, julgado pelo assassinato de Mieze, Biberkopf se recusa a testemunhar contra ele. Tanto McTeague como Biberkopf se entregam a bebedeiras alcoólicas desenfreadas, que alteram sua personalidade – McTeague porque sente muito pouco, Biberkopf porque sente demais (remorso, dor, terror). O ingênuo e viril Biberkopf, que não é burro mas estranhamente dócil, se mostra capaz de ternura e de generosidade, bem como de amor verdadeiro, por Mieze; em contraste com o que McTeague pode sentir por Trina: fascínio abjeto, seguido pelo estupor do hábito. Norris nega uma alma ao desajeitado e corpulento McTeague, digno de pena e semi-rretardado; ele é descrito, repetidas vezes, como primitivo ou animalesco. Döblin náo transige com seu herói – que é em parte Woyzcck. em parte Jó. Biberkopf tem uma vida interior rica, convulsiva; de fato, no decorrer do romance, ele adquire cada vez mais compreensão das coisas, embora ela nunca seja adequada aos acontecimentos, à profundidade da horrenda especificidade do sofrimento. O romance dc Döblin é um romance educativo e um Inferno moderno. Em McTeague, existe um ponto de vista, uma voz imparcial – seletiva, sintetizadora, compactadora, fotográfica. Ao filmar Ouro e maldição, diz-se que Stroheim seguiu o romance de Norris parágrafo por parágrafo – pode-se ver como. Berlin Alexanderplatz é tanto (ou mais) para o ouvido quanto para o olha. Tem um método complexo de narração: forma livre, enciclopédica, com muitas camadas de narrativa, reminiscência e comentário. Döblin passa depressa de um tipo de assunto para outro, às vezes dentro de um mesmo parágrafo: comprovação documental, mitos, contos morais, alusões literárias – do mesmo modo como passa de gíria para uma linguagem lírica estilizada. A voz principal, a de um autor onisciente, é exaltada, pressurosa, tudo menos imparcial. O estilo de Ouro e maldição é antiartificial. Stroheim recusou-se a filmar qualquer coisa em estúdio, insistiu em filmar Ouro e maldição inteiro em locações “naturais”. Mais de meio século depois,


Fassbinder não teve nenhuma necessidade de pagar tributo ao realismo ou à veracidade. E dificilmente seria possível filmar na Alexanderplatz, aniquilada pelos bombardeios de Berlim durante a Segunda Guerra Mundial. A maior parte de Berlin Alexanderplatz parece ter sido filmada em estúdio. Fassbinder optou por uma estilizaçâo declarada e familiar: iluminar a locação principal, o quarto de Biberkopf, por meio da luz de um letreiro de neon que pisca na rua; filmar muitas vezes através de janelas e em espelhos. O extremo da artificialidade, ou da teatralidade, é obtido nas sequências nas ruas de prostitutas, de aspecto circense, e na maior parte do epílogo de duas horas. Berlin Alexanderplatz tem a distensão de um romance,mas é também muito teatral, como é a maioria dos melhores de Fassbinder. O gênio de Fassbinder estava no ecletismo, na sua extraordinária liberdade como artista: não almejava o especificamente cinematográfico e tomava com liberdade empréstimos ao teatro. Começou como diretor de um grupo teatral em Munique; dirigiu quase o mesmo número de peças e filmes, e alguns de seus melhores filmes são peças filmadas, como As lágrimas amargas de Petra von Kant e Liberdade em Bremen, ou se passam sobretudo em interiores, como Roleta chinesa e A poção de Satã. Numa entrevista em 1974, Fassbinder descreveu seus primeiros anos de atividade desta forma: “Produzi teatro como se fosse cinema e dirigi filmes como se fosse teatro, e agi assim de maneira

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completamente obstinada”. Onde outros diretores, ao adaptar um romance para o cinema, pensariam em abreviar uma cena porque durava muito, e portanto se tornaria estática (como podiam temer), Fassbinder persistia e insistia. O estilo de aspecto teatral que Fassbinder concebeu o ajuda a manter-se perto do livro de Döblin. Exceto pela invenção de um personagem novo – uma figura de mâe capaz de tudo perdoar, Frau Bast, a senhoria de Biberkopf –, a maioria das alterações feitas na história por Fassbinder apenas torna a ação visualmente mais compacta. No romance, Biberkopf não mora sempre no mesmo apartamento de um quarto, como ocorre no filme, e Fassbinder situa ali fatos que no romance ocorrem em outros locais. Por exemplo, no romance, Franz mata Ida na casa da irmã dela; no filme, o horripilante espancamento – que vemos num flashback repetido e alucinatório – se passa no apartamento de Biberkopf, e é testemunhado por Frau Bast. No romance, Biberkopf não mora com todas as mulheres a quem se liga; no filme, todas delas, uma a uma, se mudam para o seu apartamento, o que reforça a unidade visual do filme, mas também torna os relacionamentos anteriores à união com Mieze um pouco cômodos demais. E, mais do que aparentam no romance, as mulheres parecem prostitutas com um coração de ouro. Uma última invenção: é difícil não desconfiar que o canário na gaiola que Mieze dá de presente a Biberkopf (o presente é mencionado só uma vez, no romance de Döblin),


que aparece muitas vezes nas tomadas feitas no apartamento de Biberkopf, cuja adoração pelo passarinho nós podemos observar, é uma reencarnação do canário que é o bem mais querido de McTeague, a única coisa que ele salva da ruína da sua felicidade doméstica, e que ainda está a seu lado, “em sua pequena gaiola dourada”, quando seu destino é selado, no deserto. O cinema de Fassbinder é repleto de Biberkopfs – vítimas da falsa consciência. E o material de Berlin Alexanderplatz é prefigurado no decorrer dos seus outros filmes, cujo tema recorrente são vidas degradadas e existências marginais – criminosos rasteiros, prostitutas, travestis, trabalhadores imigrantes, donas de casa deprimidas e trabalhadores sobrecarregados, no limite de suas forças. Mais especificamente, as angustiantes cenas de matadouro em Berlin Alexanderplatz são prefiguradas pela sequência no matadouro em Wildwechsel e em Num ano de treze luas. Mas Berlin Alexanderplatz é mais do que um compêndio de seus temas principais. Foi o coroamento – e a origem. Num artigo escrito em março de 1980, após os dez meses que levou para filmar Berlin Alexanderplatz, Fassbinder declarou que leu o romance de Döblin pela primeira vez quando tinha catorze ou quinze anos e sonhou em transformá-lo em filme desde o início de sua carreira. Foi o romance da sua vida – descreveu como suas fantasias ficaram impregnadas pelo romance – e o seu protagonista foi o alter ego de eleição de Fassbinder. Vários heróis de seus filmes chamaram-se Franz; e ele deu o nome de Franz Biberkopf ao protagonista de Fox e seus amigos, um papel que ele mesmo representou. Dizem que Fassbinder gostaria de representar o papel de Biberkopf. Não o fez; mas fez algo igualmente adequado.Tornou-se Döblin a voz do narrador e a sua.Döblin é onipresente em seu livro,comentando e lamentando. E o filme tem uma recorrente voz fora de cena,a voz do romance,por assim dizer – e a voz de Fassbinder. Assim ouvimos muitas histórias paralelas, contadas no romance, como a do sacrifício de Isaac. Fassbinder preserva a exorbitante energia da voz que, no romance, remói os pensamentos, sem quebrar a cadência narrativa. A voz que remói os pensamentos é empregada não como um artifício antinarrativo, como nos filmes de Godard,mas sim para intensificar a narrativa; não para nos distanciar,mas sim para nos fazer sentir mais.A história continua a se desdobrar da maneira mais direta e comovente.

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Berlin Alexanderplatz não é um metafilme, como Hitler, de Hans Jürgen Syberberg; Fassbinder nada tem da estética do grandioso de Syberberg, a despeito da extensão de Berlin Alexanderplatz, ou de sua reverência pela alta cultura. É um filme narrativo, mas com aquela duração: um filme que conta uma história, em cenários de época (fim da década de 1920), com mais de cem atores (muitos papéis são representados por atores da trupe de Fassbinder) e milhares de extras. Um ator de teatro de 53 anos que tem papéis menores em alguns filmes de Fassbinder, Günter Lamprecht, representa Franz Biberkopf. Por excelentes que sejam os demais atores, em especial Barbara Sukowa no papel de Mieze e Hanna Schygulla como Eva, o Biberkopf de Lamprecht eclipsa todos eles – uma representação forte e comovente, expressiva e esplendidamente diversificada, tão boa quanto as representações de Emil Jannings ou de Raimu. Embora possível graças à televisão – é uma coprodução das tevês alemã e italiana –, Berlin Alexanderplatz não é uma série de tevê. Uma série de tevê se constrói em “episódios”, concebidos para serem vistos com intervalos – uma semana é o costume, como os antigos filmes seriados vespertinos de sábado (Fantomas, Os apuros de Pauline, Flash Gordon). As partes de Berlin Alexanderplatz não são de fato episódios, estritamente falando, uma vez que o filme fica diminuído quando visto dessa maneira, espaçado em catorze semanas (como o vi pela primeira vez na tevê italiana). A exibição num cinema – cinco segmentos de cerca de três horas, ao longo de cinco semanas consecutivas – é com certeza uma forma melhor de vê-lo. Em três ou quatro dias seria muito melhor. Quanto mais curto for o tempo em que a pessoa desviar sua atenção, melhor o resultado, exatamente como ocorre ao se ler um romance longo com o máximo de prazer e de força. Em Berlin Alexanderplatz, o cinema, essa arte híbrida, alcançou pelo menos algo da forma aberta, protelatória, e da força acumulativa do romance, ao ser mais longo do que qualquer filme jamais ousou – e por ser teatral. [1983]

Novel into Film: Fassbinder’s Berlin Alexanderplatz’, extrato de WHERE THE STRESS FALLS © Susan Sontag, 2001. Todos os direitos reservados. Tradução gentilmente cedida pela editora Companhia das Letras.


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entrevista

O LEGADO De R. W. FASSBINDER UMA CONVERSA COM JULIANE LORENZ


COMO VOCÊ O CONHECEU? Bem, eu era muito jovem – é como um conto de fadas. Eu não pensava em nada, pensava que seria qualquer coisa, talvez uma escritora... Eu estudava em Munique, e ia para os Estúdios Bavária porque minha mãe trabalhava lá. Outra ideia era que eu talvez pudesse aprender a fazer filmes, porque eu não queria ir para outra escola, queria aprender algo prático. Foi assim que eu fui para os Estúdios Bavária, eu aprendi muito rápido, em seis semanas, a ser uma assistente. Isso na época em que não havia computadores, você tinha que aprender manualmente como fazer um filme. Eu tinha alguma experiência de quando tinha feito uma peça, no colegial. Mas eu queria saber como o filme se desenvolvia, o que era um filme. De certa forma, minha família contribuiu pois vinham desse contexto. Enfim, meu primeiro trabalho de edição veio por acaso, em um documentário, um amigo havia me recomendado a alguém. E depois eu fui recomendada novamente, como assistente, para a editora Ila von Hasperg – um trabalho muito breve. Ela era uma menina muito maluca, e muito gentil, ela gostava de mim mas eu tive que deixar o trabalho no meio do caminho. Ela me disse “Por que não faz o meu próximo filme comigo? Será Roleta chinesa.Aos 19 anos, é maravilhoso, mas honestamente, naquele momento Fassbinder era um nome para mim, eu havia sido apresentada a ele uma vez em um pequeno restaurante, sabendo que nunca mais iria encontrá-lo. Eu fiquei muito impressionada, pois aquele era o tal Fassbinder sobre quem se falava em toda a Alemanha como um homem muito ambicioso, que tinha feito muitos filmes e que era provavelmente louco... enfim. Assim foi o início. Quando ele veio conferir a primeira edição, ele chegou à sala de edição, Ila me apresentou – eu era muito, muito tímida –, e eu fui muito respeitosa (eu aprendi a ser assim, respeitosa frente a pessoas que tenham feito alguma coisa e obviamente ele havia feito muita coisa). Ele tinha cerca de 29 anos. Veio o filme seguinte e ele me perguntou “por que não faz comigo?”. Von Hasperg não poderia fazer, porque havia ido para os EUA. O filme era A mulher do chefe da estação – ela estava editando este filme em duas partes para a tevê. Eu aceitei, apesar de ter que interromper meus estudos – Ciências Políticas na época, o que não era grande coisa, mas eu achava que tinha que aprender algo sobre política.

Foi um trabalho maravilhoso. Rainer não estava muito presente na sala de edição, então eu só o encontrei quando ele veio ver o copião – naquela época ainda se via o copião -, quando os takes eram escolhidos. Mas ele não falava muito, ele nunca dizia nada e eu pensava “que maravilha!” porque era tudo tão calmo... Quando eu fazia minhas marcações, às vezes ele dizia “talvez fosse melhor a partir de tal parte, o final naquela parte...”. Era uma forma tão suave de entrar na sua maneira de trabalhar, de aprender sua forma de trabalho... e eu adorava a história, um livro de Oskar Maria Graf, um autor exilado que viveu em Nova York nos anos 1930 quando os nazistas chegaram ao poder, era um libertário e tinha ficado esquecido por muito, muito tempo. Fassbinder de algum modo começou a se interessar pela obra deste autor – o filme é de 1977. Depois de terminado, nós mixamos o filme e Rainer teve a ideia de fazer uma versão para o cinema – que nós fizemos. Ele então me perguntou se eu poderia fazer isso com ele. E foi a primeira vez que eu... não, não a primeira vez, porque eu sempre percebia que ele estava observando o que eu fazia, algumas vezes fazia algum comentário... e era uma época em que eu era mesmo muito tímida, e não conversava muito, só observava as pessoas. Talvez fosse a juventude, ou aquele tipo de juventude, ou talvez fosse eu. Mais tarde percebi que ele lida com isso de forma muito cuidadosa, como se tivesse uma boa impressão de uma pessoa que não esteja falando. Algumas vezes, quando eu dizia algo, eu não pensava se era uma crítica ou não, eu só tinha alguma espécie de comentário [a fazer]. Eu estava interessada em tudo o que ele fazia como diretor, não do ponto de vista da edição. Do ponto de vista da edição era tão perfeito, porque ele preparava cada cena de forma tão bela, e muito pronta para o editor. Não quer dizer que o editor não tivesse o que fazer, mas ele tinha uma cabeça de editor por si mesmo. ... O passo seguinte foi Despair. Foi tudo num período muito curto, sabe? Eu o conheci em agosto de 1976, nós filmamos A mulher do chefe da estação em outubro, em novembro editamos para lançamento em dezembro. A versão para os cinemas foi em janeiro de 1977 e já havia o grande projeto de Despair, que foi o primeiro

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grande projeto dele, também para os Estúdios Bavária. Outra coisa era que eu não pensava em me apressar, ou o que deveria fazer da vida, como estudante, eu estava simplesmente caminhando junto. E ele veio e disse “A propósito, Despair será feito” – e Ila estava certa de ir para os EUA, ela foi para lá e vive lá até hoje, e ele havia decidido chamar um editor inglês, muito famoso, que havia feito filmes com Sir Lawrence Olivier e Alain Resnais... Enfim, Rainer o havia escolhido porque acreditava que o editor conhecia o ator muito bem – ele tinha feito alguns filmes que [Dirk] Bogarde havia estrelado. Rainer achou que seria bom para Bogarde, e que ele poderia aprender de um editor inglês. Ele não era na época, e nunca foi, o tipo de diretor que acredita que é o maior, que sabe tudo. Ele sempre queria ser inspirado por pessoas com experiência. Com Despair ele tinha pela primeira vez uma estrela mundial, tinha Herbet Strabel fazendo o set – na época ele havia feito o set de Cabaré, com Liza Minnelli, pelo qual havia ganho um Oscar. Esse momento foi quando, especialmente na Alemanha, Rainer chegou a um nível em que as pessoas pensavam “bem, ele pode ser importante...”. Ele já havia feito cerca de vinte filmes... não, ele já havia feito trinta filmes. Ele me disse “você será a assistente” e eu disse “ah, mas eu tenho que estudar...” e algo como “mas essa é a última vez que vou ser assistente”. Foi a primeira vez que eu fui mais... direta, tive a coragem de dizer isso. E ele disse “tudo bem”! E então eu fui a assistente de Reichenbach, o que para mim foi um prazer,já que eu falava bem inglês (Rainer entendia, mas ele não se sentia bem falando) e eu fui a tradutora. De repente houve uma espécie de... sensação muito boa em ser assistente, já no terceiro filme que eu fazia – qualquer nível que fosse, isso não era importante. Mas ele teve alguns problemas na Alemanha e outras coisas em sua vida pessoal e ele não veio logo assistir ao primeiro corte – embora eu deva dizer que ele estava aparentemente convencido de que, agora que ele tinha um editor internacional que iria entregar a ele esse filme, o que era interessante, porque não era a maneira como os diretores do chamado Novo Cinema Alemão tratavam isso, eles queriam estar ao lado do editor –, ele nunca gostou disso. Ele ficava, sim, para ver os resultados, mas nunca durante o processo de edição. O que aconteceu é que ele chegou mais tarde para ver o chamado “primeiro corte”, a primeira edição real de todo o material que o editor havia recebido, que tinha 3 horas de duração – ele filmava muito, ele tinha muito material, muito dinheiro claro... não que ele fizesse milhares de tomadas, mas ele filmava muitos ân-

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gulos... e claro estava ansioso para ver o que este editor havia feito com o material dele. Então ele viu o primeiro rolo de material editado e ficou um pouco confuso porque ele sabia que deveria fazer uma versão menor – três horas [de duração] não era permitido naquela época. Nós tínhamos uma grande exibição para os produtores... e para encurtar a história, o editor saiu – ele era muito correto, às 17h ele terminava o trabalho – e Rainer me chamou e a Michael Ballhaus, que depois também saiu, ele olhou para mim e disse “temos que fazer uma versão apresentável agora”. “Mas o editor foi embora”, eu disse.“Sim, ele saiu, mas você está aqui”, ele respondeu. Eu disse “eu não posso, eu sou a assistente, há um editor...”. Aquilo foi no momento, naquele momento você faz um certo papel, mas eu estava era ansiosa por fazer [a edição], se ele quisesse. Ele então disse “nós faremos juntos”. Nós começamos a editar, e às 10h da manhã tínhamos uma versão mais...

TUDO EM UMA SÓ NOITE? Sim, sim, nós estávamos... inspirados! Eu não sei, foi mesmo o dia e a noite mais maravilhosos que eu tive em minha vida, no âmbito profissional, porque não havia conversa, nós éramos esse trabalho não verbal que funciona geralmente na sala de edição. Eu tinha..., eu tinha duas mesas de edição, era fantástico. Na manhã seguinte nós apresentamos esta versão nova e o editor, obviamente, não estava muito feliz e pediu demissão e foi assim que eu comecei. Quero dizer, esta foi a primeira metade de sua primeira pergunta – foi como eu comecei.

BEM, ISSO COBRE UMA BOA PARTE DA PRIMEIRA QUESTÃO E EU ACHO QUE ALGUMAS DAS OUTRAS... MAS COMO VOCÊ SE SENTIA EM RELAÇÃO À PERSONA PÚBLICA DELE NESSA ÉPOCA? Eu não tinha muita opinião, porque não era esse o meu interesse – meu interesse era o homem e o cineasta. E o que escreviam... você não se interessa por essas coisas quando você começa uma relação artística, você enxerga a pessoa com a qual você convive. Eu tinha uma ligação com Rainer desde o primeiro momento e, de certa forma, eu era para ele uma nova geração, uma geração


mais nova, eu era inspirada por ele e ele adorava. Então, desde o primeiro momento, era uma relação muito igual. Mais tarde, quando eu entendi “oh, eu sou uma editora agora, eu sou responsável”, eu me vi na situação de aprendiz por um tempo. Mas era realmente liberdade, porque ele simplesmente me deixou ir e ele só me ajudou. O que diziam sobre ele naquela época, eram coisas de países pequenos, como a Alemanha Oriental era naquela época, que não tinha nada a ver com a grande, grande tradição cinemática que havia tido e que – quando a Nova Geração de Herzog, Wenders e Fassbinder estava estourando ninguém gostava de seus filmes – eles diziam “eles são loucos, o que eles fazem? Eles falam de pessoas sem importância...”. Isso é um problema, falar de pessoas sem importância? Ou de paisagens, formigas na África, América do Sul – o que isso significa? Ou Wim Wenders? e sua visão sobre os Estados Unidos e o modo de vida americano. Fassbinder era o mais realista entre eles, e porque era tão real em seu trabalho ele tinha temas reais, pessoas morrendo porque estão infelizes e isso as leva à morte – isso não era comum. Ele também tinha seu trabalho no teatro, naquele curto período de três anos que você pode chamar de sua época de Antiteatro, e era inacreditável o que ele havia produzido. Claro que as pessoas estavam com medo desse homem, desse “maníaco”. Esse tipo de coisa estava sempre por perto, qualquer pessoa que falasse de Fassbinder dizia “ah, ele é louco, ele é horrível, ele não faz tal coisa...”. Mas o homem que eu conheci era completamente diferente, então eu não me importava, eu não me importo até hoje – quero dizer, eu percebo isso, e falo sobre isso, eu escrevi um livro... Depois que Rainer morreu, e depois de um longo período de luto, eu quis conhecer o passado, a época em que eu não estava presente, e me encontrei com pessoas e tive longas conversas – algo que me ajudou, pois para mim Rainer era perfeito, era uma espécie de herói. Mas é claro que ele não era perfeito, claro que ele se desenvolveu – no início ele era um jovem, e havia muita agressão, muita agressividade em nossa cultura e em nosso país e é claro que essa agressividade se expressou na forma de tabloides... Os mais jovens não têm ideia do que era aquela época. Eu converso muito com estudantes, na escola que recebeu o nome de Rainer, Escola Rainer Fassbinder, em Munique, e eles me perguntam às

vezes, me mandam emails perguntando “por que escrevem coisas tão ruins sobre ele?”. Porque eles não veem as coisas... quero dizer, veem, e são forçados a pensar e entendem hoje em dia. Mas eu não fui influenciada por aquilo, como eu poderia? Quando você é jovem e alguém diz que você é ótimo, você vai às alturas. Ele nunca disse “você não sabe nada” ou “você é muito jovem para fazer isso”, ele só dizia “faça”. Eu sou uma pessoa que sou muito inspirada por pessoas que dizem “você consegue”. Você pode dizer para algumas pessoas centenas de vezes “você consegue, você consegue”, mas elas têm medo. Eu não tinha medo, mas não tinha experiência nenhuma. Mas ele confiou em mim.

VOCÊ DISSE QUE ESTAVA COM ELE DURANTE AS FILMAGENS DE DESPAIR… Eu não estava nas filmagens, mas estive mais tarde, em A terceira geração, eu participei em todos os filmes… alguns pequenos papéis… durante o tempo em que estivemos juntos eu chegava de manhã para as filmagens e à noite íamos para casa e eu sabia o que iríamos filmar no dia seguinte porque preparávamos o plano de filmagens. Ele era muito ligado à sala de edição. Berlin Alexanderplatz eu editei desde o início, não houve correria. A partir de Berlin Alexanderplatz eu editei desde o início, não havia pressa – ele fazia só uma tomada e uma outra tomada de segurança de cada cena. Isso significava que eu devia ser rápida, devia ser precisa e eu tinha que apresentar a ele antes, qual era a cena anterior, o que iríamos filmar naquele dia. Eu estava obviamente envolvida em todas as cenas e eu o ajudava – isso é normal, quero dizer, se você fala de seu trabalho... quando ele chegava, eu lia os seus textos, ele lia os meus textos, ele via minha edição, eu via o que ele havia feito, é uma espécie de troca, uma troca com alguém que não era somente meu chefe, era também um pouco mais.

MAS, ENQUANTO EDITORA, ELE FREQUENTEMENTE PEDIA QUE VOCÊ ESTIVESSE PRESENTE NAS FILMAGENS? Não, era eu que queria. A única coisa que ele falava era “não fique muito lá, porque você não precisa saber dessas coisas que aconte-

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cem em torno, só veja o filme”. Isso eu aprendi com ele, não ir às filmagens e não ter nenhuma outra informação, só assistir o que eu tinha na minha mesa.

ALGUMAS VEZES OS DIRETORES QUEREM QUE SEUS EDITORES MANTENHAM CERTA DISTÂNCIA DAS FILMAGENS... Ele não me pedia mas eu queria... De certa forma ele foi muito educativo, ele sabia o quão interessada eu era, que eu queria estar ali às vezes... eu era assistente dele, eu traduzia, eu estava ali o tempo todo e à noite eu editava – mas isso era às 10h da noite. Mais tarde eu percebi que eu não queria saber, eu não queria saber se tal ator tem problemas com suas falas ou qualquer outra coisa porque senão você fica fraca...

...TENDENCIOSA, INFLUENCIADA POR ISSO... Sim, sim. E isso eu notei por mim mesma... Algumas vezes eu ia a [às filmagens de] Alexanderplatz, porque era tão rápido, e eu já tinha feito tudo e havia uma noite de filmagens... claro que eu ia, eu observava muito... Como editora, você fica incrivelmente solitária, e eu queria ter mais ligações com a vida de fazer um filme.

ACREDITO QUE VOCÊ JÁ FALOU SOBRE ISSO MAS, SOBRE A EDIÇÃO... VOCÊ DISSE QUE ELE FILMAVA MUITO, MUITOS ÂNGULOS, MAS ISSO OCORREU PARTICULARMENTE NESTE FILME OU ELE FAZIA ISSO TODAS AS VEZES? ELE PREPARAVA PRATICAMENTE TUDO NA FILMAGEM, COM RELAÇÃO AO BLOCKING E À DECUPAGEM OU HAVIA UMA CERTA LIBERDADE NA SALA DE EDIÇÃO PARA ALGUMAS VEZES RECONSTRUIR O SENTIDO DE UMA CENA OU O FILME INTEIRO? Em Despair nós fizemos isso, ele tinha todo esse material, porque ele gostava de experimentar a si próprio. Primeiro o trabalho com câmeras, muito especial – muitos zooms, muita ação, ele gostava disso de ... por si próprio. Outra coisa foi que, em Despair foi, se não a primeira vez, uma das primeiras vezes que ele não escreveu o roteiro sozinho. Era um roteirista muito bom, muito famoso, Tom Stoppard, foi seu primeiro roteiro. Ele não teve que escrever, ou reescrever, mas ele teve que organizar o roteiro da sua maneira, da maneira como ele sempre fazia seus filmes. Tom Stoppard escreveu um roteiro nos padrões ingleses e americanos, mas não era um roteiro com detalhes, um roteiro como dizemos na Alemanha que sobre o qual você realmente pode filmar. Não era um roteiro de filmagens, era um roteiro de filme. Há uma diferença. E a precisão das cenas, como ele deveria filmar... ele manteve as cenas, claro, mas quantos ângulos, quantos não sei o quê... isso era tudo escolha dele, é claro, e era muito preciso, mas não estava no roteiro. Ele tinha uma filmagem diferente [das cenas], elas eram numeradas, depois reunidas, e... sua direção, como ele dirigia os atores, para onde iam, daqui para lá... Do ponto de vista da edição, você sabia disso, de que tinha que ser editado naquele ponto. Você aprendia isso instintivamente. Os filmes de Fassbinder estavam editados em sua cabeça, claro, mas você sempre tinha a chance de fazê-lo de uma forma completamente diferente. Não um filme totalmente novo, mas de uma forma diferente.


Na época em que nos conhecemos... os seus filmes anteriores eram muito precisos, ele não tinha dinheiro para filmar muito e não havia muito material... então eu sei, de uma de suas editoras anteriores, que ela havia editado um filme como O mercador das quatro estações em dez dias.

OS FILMES DO INÍCIO DOS ANOS 1970 ERAM GERALMENTE UM PARA UM? Não, não, eles tiveram mais, eles tiveram copiões... geralmente duas ou três tomadas. Algumas vezes mais, talvez. Ele mesmo se desenvolveu. Mas ele era muito preciso desde o início. Se você tiver a chance de ler meu livro, há uma entrevista com Peter... , que depois foi corroteirista em ..., ele foi uma pessoa que me disse logo no início que, mesmo quando ele fez essas chamadas novelas de televisão, ele era muito preciso desde o início. Ele forçava a todos a dizerem exatamente o que queriam, ainda que ele já tivesse marcado as suas ideias, já tivesse dado um parâmetro de certa forma, mas ele queria que todos fosem muito precisos porque ele mesmo era sempre muito preciso. Ele tinhas métodos incríveis. E ambição, ele sabia exatamente do que precisava. Quando ele chegava em uma sala ou num set eu diria que em dez minutos ele sabia o que e onde as coisas deveriam estar.

HÁ ALGUM CASO EM QUE A EDIÇÃO MUDOU DRASTICAMENTE O QUE ESTAVA PREVISTO NO PROJETO? Sim, sim. Eu diria que Despair foi marcante, realmente marcante. Depois houve estes pequenos filmes como Num ano de 13 luas que não foram determinados pela edição de maneira alguma, mas pela história, mesmo assim eu o editei muito rapidamente, eu concluí minha montagem em três dias. Nós da A terceria geração aprendíamos cada vez mais... quero dizer, se você assistir aos filmes da época, em comparação com a edição de hoje, eles são lentos, mas a edição mudou, sim, mais em Lili Marleen, que era um filme que deveria parecer que fora produzido durante o nazismo, então era muito perfeito e muito hollywoodiano.

SIM, DOS FILMES DE FASSBINDER ACREDITO QUE ESTE É O QUE MAIS SE ASSEMELHA AO ESTILO DOS FILMES DE HOLLYWOOD. NA ÉPOCA EM QUE VOCÊ O CONHECEU E COMEÇOU A TRABALHAR COM ELE, ELE PASSOU A TER ORÇAMENTOS MAIORES E PROJETOS COM TEMPO DE FILMAGEM MAIOR. ELE AINDA FILMAVA MUITO, EM RELAÇÃO AO NÚMERO DE FILMES POR ANO, MAS ELE NÃO FAZIA MAIS CINCO FILMES POR ANO COMO ANTES. É, os cinco filmes foram somente nos anos 1970... Depois eram três ou quatro... Porque ele não podia mais fazer isso. Mas na cabeça das pessoas era "ah, esse cara faz cinco ou seis filmes por ano" o que ficava.

AINDA QUE SEJA SÓ UM MODO DE FALAR, É BASTANTE INCOMUM UMA PESSOA FAZER CINCO FILMES NUM ANO. VOCÊ ACHA QUE, APESAR DOS ORÇAMENTOS E DAS DIFICULDADES COM FILMAGEM, COM OS GRANDES PROJETOS, A ESTÉTICA DELE MUDOU DOS PRIMEIROS FILMES PARA OS DEPOIS DOS ANOS 1970? Ah, sim... Seus primeiros filmes eram lentos, de certa forma, e muitos deles eram em preto e branco. Ele costumava dizer que, dos seus primeiros dez filmes, ele não gostava mais. Nem de O machão ele não gostava mais. Só havia um filme que ele aceitava, Precauções diante de uma prostituta santa. Era uma espécie de ponto final, porque todas aqueleas ideias de 1968, de viver em uma comunidade, ser criativo em conjunto em uma comunidade, isso desaperecera. Ele sabia extamente o que era isso, nos anos 1970 o Antiteatro havia quebrado, ele tinha muitas dívidas, cerca de 300 mil marcos, o que é equivalente hoje a cerca de € 150 mil. Era muito dinheiro. E ele era responsável, então tornou-se muito pé no chão. Foi quando ele fundou a sua própria produtora,Tango Films, foi quando ele começou a trabalhar muito para o canal de tevê alemão WDR, em Colonia, onde ele fez (e nós estamos ter-

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minando a restauração dele) O mundo por um fio, que é um filme para a tv, que ele fez em 1973. Ele queria ser um diretor comercial, bem-sucedido, normal. Essa era a sua meta. Claro que ele mudou, ele se desenvolveu, mas eu acho que ele manteve o estilo Fassbinder, que era a câmera. Eu lembro de como ele ficava feliz em experimentar com Michael (Michael é um amigo muito querido com quem acabamos de fazer a restauração de O mundo por um fio). Ele sempre me falava de como era divertido essas experiências conjuntas. Eles assistiam a muitos filmes juntos, também, só para conhecerem novos estilos. É algo muito especial... Eu não sei se as pessoas têm ou possam ter essa habilidade hoje em dia. Elas estão tão marcadas pela nossa educação pela tevê! Eu acho que existem realmente poucos cineastas que tenham uma visão de cinema.

VOCÊ JÁ MENCIONOU QUE FASSBINDER E MICHAEL ASSISTIAM A FILMES JUNTOS. É SABIDO QUE FASSBINDER ASSISTIA A MUITOS FILMES, ELE eRA INFLUENCIADO E ESCREVEU SOBRE OS CINEASTAS QUE O INFLUENCIARAM - MICHAEL CURTIZ, CLAUDE CHABROL E DOUGLAS SIRK, SOBRETUDO, E RAOUL WALSH... Ele também foi influenciado por Hitchcock, ele não falava muito sobre isso, mas sim. Ele adorava Hitchcock.

ELE FALAVA PARA A EQUIPE ASSISTIR A FILMES? Sim. Nós assistíamos juntos.

TAMBÉM OS ATORES, DIRETORES DE FOTOGRAFIA, EDITORES...? Sim, no início da produção. Durante a preparação para Berlin Alexanderplatz, ele pediu a todos nós – Barbara Sukowa, que interpretava Mieze - que víssemos, por exemplo, La Strada; quando fizemos Lola nós assistimos Johnny Guitar. Sempre como uma es-

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pécie de referência, nós não queríamos fazer como aquilo, mas sabíamos de onde a inspiração vinha. E podíamos fazer algo novo.

ISSO É ALGO SOBRE O PROCESSO DELE, DAS INFLUÊNCIAS DELE, QUE EU SEMPRE QUIS SABER... Eu fiz um grande evento de retrospectiva em Berlim, em 1992. Nós editamos um grande catálogo e um programa, e nesse programa também foram incluídos todos os seus filmes prediletos, tivemos cerca de 120 [filmes]. Eu lembrava de todos eles, porque ele falava de todos os filmes que via. Eu não conhecia todos os filmes antes de conhecê-lo, mas quando ele falava deles eu guardava, e esse foi o motivo de mostrá-los.

EU GOSTARIA DE FAZER ALGUMAS PERGUNTAS SOBRE A RESTAURAÇÃO DE BERLIN ALEXANDERPLATZ E AS DIFICULDADES DESSE PROCESSO É uma longa história... Bem, agora está feito, e as dificuldades não tiveram nada a ver com a arte ou com o filme em si. É importante dizer que, nós decidimos, eu decidi que nós deveríamos ter uma nova cópia em 35mm – o filme foi feito em 16mm por razões orçamentárias, em 1979. É claro que era muito dinheiro, e nós somos uma fundação privada, todo dinheiro que entra e sai vem dos trabalhos dele. Somos indepentendes, sem orçamento, sem o Estado para dar apoio. Por um lado é bom, mas por outro lado eu às vezes me pergunto por que faço isso. Mas eu faço porque os filmes de Fassbinder devem ser salvos – todos os filmes que são de outras épocas, se eles contaram algo sobre um país. Esta chamada “consciência” sobre a restauração e sobre a manuenção desses filmes para a geração ..., como a geração dos cineastas de 1968 deve ser cuidadosa por conta de problemas materiais, como o do arquivamento dos [filmes da] Eastman [Kodak]. Scorsese escreveu muito sobre isso, começou a escrever nos anos 1980. E isso não está na consciência de quem custeia filmes, eles querem ter novos filmes, novos filmes, novos filmes. E eles sempre me diziam “ah, esse é um filme velho, ninguém quer ver”. E eu respondia: “estes são filmes muito importantes”. Então se tudo o que foi escrito, se todos os romances devem ser retira-


dos para abrir espaço, não haverá espaço para os períodos históricos importantes. Há também os direitos das músicas, que estavam liberados para TV, mas não para DVD, naquela época ninguém pensou sobre isso, sobre o que estava por vir. E também houve toda a digitalização em 2K, que era muito cara. Então eu tive que captar 1,375 milhões de euros, o que é muito. E o filme não havia sido produzido por Rainer, era dos Estúdios Bavária, então eu tive que me comunicar com estas novas pessoas – quero dizer, o filme foi feito há 30 anos, naquela época eram 25 anos [do lançamento do filme] quando eu comecei. Era o início de 2000 quando eu bati à porta deles e disse “eu quero restaurar o filme”. Havia pessoas naquela época que não tínham o mínimo interesse nisso, então eu desisti por dois anos. Mas eu ainda estava buscando dinheiro e pensando em como eu poderia fazer isso, e graças a Deus nós demoramos tanto, porque a edição digital mudava o tempo todo, a coisa estava indo muito bem, e nós tínhamos um dos melhores laboratórios na Alemanha, Arri, que também faz câmeras, são conhecidos pelas câmeras. Mas eles desenvolveram um equipamento de digitalização, Arriscan, que agora é conhecido no mundo todo como a que produz melhor digitalizações. Então as pessoas tinham que aprender essa nova [técnica]. Não havia muita experiência, como há hoje, mas isso foi quatro anos atrás – nós começamos em 2006 e eu só pude fazer isso quando eu tive todos os membros e quando pela primeira vez eu consegui financiamento para filmagens, da Film Fund, que nunca deram dinheiro para filmes antigos, eles sempre diziam “ah, isso é um projeto para a Cinemateca” e eu dizia “este filme é ..., esse é um filme novo, é um filme tão importante que precisa ser visto como um filme novo”. Esse foi o meu argumento.

É uma questão financeira agora. A restauração tem a ver com dinheiro e com o dinheiro que retorna. Então é muito difícil para filmes que não são tão famosos como os filmes de Fassbinder. Mas eu estou trabalhando para que, no futuro, haja mais consciência oficial disso.

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Eu estou exausta, mas está mais fácil agora, com O mundo por um fio, porque estamos mais estabilizados. Houve um grande escândalo porque [a ex de] Fassbinder tinha algo a dizer, mas de qualquer forma, quando você chega a um certo nível as pessoas passam a ter inveja ou dizem que você está errado... Mas eu sobrevivi a isso, nós todos sobrevivemos a isso... Não é fácil, por conta da recessão, é claro, mas nós temos uma fundação maravilhosa, uma fundação estatal para as artes – para todas as artes – e eles me ajudam. E eles, especialmente a Fundação Cultural da Alemanha, eles de fato ajudaram, eles decidiram restaurar Berlin Alexander-

platz. Foi um foi um modo novo, especial como eles decidiram. E desde então eles têm feito mais, e têm me ajudado. Mas nunca todo o custo, só uma parte, e o resto ... como eu agora tenho os direitos de O mundo por um fio, eu tenho a possibilidade de recuperar, através da venda, os gastos que eu tive que fazer, o que eu tive que pagar antes. E a Fundação Cultural, e o Berlin Film Fund, eles ajudam um pouco. Eles me reembolsam o que eles recuperaram com Berlin Alexanderplatz. Todos têm a sua participação.


VAMOS ESPERAR QUE SIM Sim, nós não somos tão pobres assim. A Alemanha tem muito dinheiro para cultura, mas nós colocamos muito em ópera, o que é maravilhoso, mas o cinema é... a sétima arte, e é sempre deixado para trás.

AINDA SOBRE BERLIN ALEXANDERPLATZ, QUAL O PAPEL QUE ESSA SÉRIE TEM NA OBRA DE FASSBINDER? É a sua obra-prima. É o ápice de tudo o que ele quis em sua vida, fazer esse livro sobre Berlim. Ele mesmo estava consciente de que precisava ter experiência suficiente para fazê-lo, e também que era preciso ter financiamento suficiente. Na época, seria a série mais cara já feita para a televisão alemã. Claro que ele sabia que deveria ter bons parceiros. Naquela época os Estúdios Bavária era o maior estúdio, e a WDR era a rede de televisão. Foi uma coprodução, na época a primeira coprodução da Alemanha com a RAI, a televisão italiana. Então era algo grande, e ele sabia que Berlin Alexanderplatz... era tudo o que ele queria. Depois ele disse em uma entrevista: “agora eu conheço o meu trabalho, agora eu sei como lidar com qualquer coisa. Até Berlin Alexanderplatz eu sabia que era capaz”. Ou seja, levou esse tempo todo.

ELE CONTA, EM UM TEXTO SOBRE BERLIN, SUA HISTÓRIA COM O LIVRO, SOBRE A PRIMEIRA VEZ QUE ELE LEU E DEPOIS A SEGUNDA VEZ... E COMO QUANDO ESTAVAM FAZENDO UM LIVRO SOBRE ELE, E ELE TEVE QUE ASSISTIR VÁRIOS DE SEUS FILMES E PERCEBEU O QUANTO DE BERLIN ALEXANDERPLATZ JÁ EXISTIA NESSES PRIMEIROS FILMES, MUITO ANTES DELE COMEÇAR A FILMAR. Exato. Ele sempre se identificou com Biberkopf, de certa forma. Mas seria muito simplista dizer que ele era Biberkopf. Há pessoas que sempre falam sobre o que ele era, Biberkopf, ou o Biberkopf malvado, ou o bondoso, ou o ingênuo. Ele mesmo dizia: “Pode

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ser, mas eu sou todos os três. Biberkopf, Reinhold e Mieze”. Isso era algo que eu sempre gostei nele, que ele queria ter essas três figuras especiais, fazendo essa... e claro Eva, que era uma espécie de ideal. E era uma espécie de filme.. havia o malvado, o bonzinho, o ingênuo... e Mieze, você pode dizer que ela é algumas vezes um pouco estúpida, mas tão ingênua, tão maravilhosa, tão cheia de amor... ele agia assim também. Para mim, Berlin Alexanderplatz e a história de Franz Biberkopf está muito ligada a Rainer, claro. Mas eu devo dizer que ele também era um intelectual, não um intelectual de verdade, ele não se sentava numa cadeira e dizia “pense!”, ele era um Biberkopf ativo.

QUAIS OS PRÓXIMOS PASSOS DA FUNDAÇÃO FASSBINDER? VOCÊ JÁ MENCIONOU O mundo por um fio... O mundo por um fio estreará no Festival de Berlim em 2010, nós já agendamos. Eu estou escrevendo um livro, que será “o” livro, que eu não acho que estará pronto antes de 2012, mas que precisa ser escrito. Eu ainda tenho algumas portas para abrir no meu futuro, e meu futuro está de certa forma ligado à Fundação Fassbinder porque é onde eu estarei, com certeza. Fassbinder esteve na minha vida desde os meus 19 anos, como eu disse no início. Eu estou mais velha agora, e um pouco mais sábia. E algumas vezes eu me pergunto “o que há nesse mundo ainda? Que outros filmes também podemos restaurar?”. Nós vamos ver... Eu também espero que seja criado uma espécie de Centro Fassbinder, na Alemanha, não sabemos bem onde mas haverá algo quando nós tivermos restaurado... Eu sou como uma dona de casa às vezes, eu adoro donas de casa, eu acho que elas são práticas. Se todos os filmes forem restaurados, eu acredito que um ponto estará pronto, teremos terminado. Nós agora restauramos O mundo por um fio em 35[mm], com novas masters digitais. E há três filmes da Bavaria Films, Despair, Amulher do chefe da estação e Eu quero apenas que vocês me amem. Eu os inspirei, eu estou atrás deles dizendo “não se esqueçam, vamos fazer isso!”. Eu meio que preparei o mercado. E ainda há quatro produções feitas em fita magnética, que são adaptações teatrais de Coffeehouse, Nora Helmer e Bremer


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Freedom – elas estão em fita. Ele fez esse filme para teatro... Frauen in New York, raramente esse filme é visto, ele não está em DVD. Eu não tenho os direitos dele.

A segunda ausência, digamos, em relação à obra de Fassbinder, é o uso de seus trabalhos no teatro. E isso cresce muito. Seus filmes são adaptados em todo o mundo para os palcos.

Eu tenho a minha equipe, mas não dá para fazer tudo sozinha. Tenho que encontrar o momento certo, e o dinheiro. E no momento estamos um pouco pobres, porque os filmes clássicos – e os filmes de Fassbinder são clássicos – não são mais exibidos na tevê na Alemanha. Só quando há alguma efeméride de nascimento ou morte, então é duro. Existem os canais pequenos de televisão, mas eles não pagam muito e esse tipo de renda é muito importante para nós.

Eu não tenho medo que ele seja esquecido. E estou muito feliz de estarem fazendo outra retrospectiva no Brasil, porque eu sei que é um dos países com mais fãs de sua obra. Juliane Lorenz é fundadora da Fundação Fassbinder e responsável por projetos como a restauração do filme Berlin Alexanderplatz Entrevista concedida a Ruy Gardnier em 25 de agosto de 2009.



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As Mulheres de Rainer Werner Fassbinder Roberto Acioli de Oliveira

“Muitas mulheres foram educadas para se satisfazer completamente quando esses mecanismos de repressão se fixam. Isso não significa que elas não sofram... claro que sim”.1 Rainer Werner Fassbinder

A Simbiose Entre Dominador e Dominado Em seus filmes do princípio da década de 70 do século 20, Fassbinder mostrava tanto mulheres quanto homens sendo capturados por estruturas sociais opressivas2. Entretanto, era muito criticado pelas feministas, que o acusavam de mostrar as mulheres basicamente como vítimas que internalizam a opressão sofrida em vez de tentar se liberar. Fassbinder admitia isso, porém insistia que essa aceitação da vitimização por parte das mulheres era o resultado de poderosas forças sociais. Em Effi Briest (Fontane Effi Briest, 1973), Fassbinder procura clarear a questão do mecanismo de opressão3: exercer o poder convencendo os dominados de que serem explorados é bom para eles. É o que faz Effi perdoar seus opressores e culpar a si mesma por seus problemas. O marido dela aumenta seu controle sobre a esposa manipulando os medos dela. A questão de dominar alguém estimulando seus temores: talvez, na fraqueza dos personagens masculinos, estimular os medos dos personagens femininos para poder sentir-se superior a alguém. Assim, em vez de livrar-se do problema, transferi-lo para outra pessoa; e torná-la mais fraca que si mesmo: fazer alguém ficar pior que eu. ................................................................................................................. 1 WATSON,Wallace Steadman.Understanding Rainer Werner Fassbinder:Film as Private and Public Art. USA: University of South Carolina Press,1996.P.133. 2 Idem, p. 150. 3 Ibidem, p. 142.

Ao contrário de Martha (1973), cuja fonte de ansiedade é um marido, ou de Effi, que teme o marido, o medo de Margot, em O medo do medo (Angst vor der Angst, 1975), não tem explicação objetiva. Uma das hipóteses sugere que a fonte de sua ansiedade seria a reação do governo alemão e da sociedade às posturas da esquerda e aos atos terroristas do grupo Baader Meinhof. A fonte desse estado de coisas seria a repressão da sociedade à ansiedade que ela própria cria: a repressão necessária para segurar a frustração que ela própria engendra. Em Uma mulher de negócios (Bremer Freiheit, 1972), temos Geesche Gottfried, uma mulher executada em 1831 pela acusação de envenenamento e outros crimes. Fassbinder consultou os arquivos da época, mas o filme se afasta deles de forma significativa, no esforço de mostrar as pressões que teriam levado esta mulher a isso4. No fim, a sugestão do filme é a futilidade da resistência feminina à opressão da sociedade patriarcal. Para Geesche, resta a capitulação, o desespero, nenhuma independência, solidão, além da certeza de sua morte. Em Womem in New York (Frauen in New York, 1977), um grupo de ricas mulheres americanas fofocam, difamam e fazem intrigas em butiques caras, salões, ou em suas salas, quartos e banheiros luxuosos. São servidas por cabeleireiras, manicures, vendedores, professores de ginástica, empregados e secretárias. Os homens não estão presentes, mas são o tema básico das conversas e ciúmes entre essas mulheres. Em contraste com as personagens femininas de Bremer Freedom (Bremer Freiheit, 1972) ou de Nora Helmer (1973), elas nunca protestam contra a hegemonia masculina, atitude que reflete o pessimismo e a resignação presentes no trabalho posterior de Fassbinder. Enfim, o que temos aqui são mulheres felizes com sua condição inferior num mundo dirigido por seus maridos5. “Eu levo as mulheres mais a sério do que a maioria dos diretores.” Fassbinder ................................................................................................................. 4 Ibidem, p. 147. 5 Ibidem, p. 149.

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Muitos criticaram Fassbinder por apresentar em seus filmes mulheres fracas e submissas como as que podiam ser encontradas nos “filmes de mulheres” que se popularizaram em Hollywood entre as décadas de 30 e 50 do século 20. Nos filmes de gângster do início de sua carreira pode-se perceber uma misoginia. Também existem os filmes em que a mulher é insultada e maltratada por homens oprimidos. Entretanto, Wallace Steadman Watson discorda e afirma que os primeiros filmes do cineasta mostram um retrato solidário em relação à solidão e opressão das mulheres, da mesma forma que caracterizam a misoginia como uma atitude de homens imperfeitos6. Watson mostra que em filmes como As lágrimas amargas de Petra von Kant (Die Bitteren Tränen der Petra von Kant, 1972), Uma mulher de negócios (Bremer Freiheit, 1972), Effi Briest (Fontane Effi Briest, 1972-3), Martha (1973), Nora Helmer (1973), Como um pássaro no fio (Wie ein Vogel auf dem Draht, 1974), O Medo do Medo (Angst vor der Angst, 1975), Mulheres em Nova York (Frauen in New York, 1977) as protagonistas femininas submetem-se passivamente aos constrangimentos impostos por homens dominantes. Já em filmes como A mulher do chefe da estação (Bolwieser, 1976-77), O Casamento de Maria Braun (Die Ehe der Maria Braun, 1978), Lili Marleen (1980), Lola (1981), O desespero de Veronika Voss (Die Sehnsucht der Veronika Voss, 1981), que investigam a história recente da Alemanha, as mulheres são mais assertivas, ainda que no final a maioria não seja mais bem-sucedida em desafiar os costumes patriarcais do que nos filmes citados anteriormente. Watson chama atenção para os modelos cinematográficos de Fassbinder para além das influências do cinema americano. Mulheres positivas, mas no fim também vitimas, são as personagens de dois filmes que Fassbinder considera os mais importantes que ele já viu. Em Viridiana (1961), de Luis Buñuel, uma mulher rica, ingênua e religiosa é explorada por mendigos cínicos que ela levou

................................................................................................................. 6 WATSON, Wallace Steadman. Understanding Rainer Werner Fassbinder: Film as Private and Public Art. USA: University of South Carolina Press, 1996. Pp. 132-3.

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para casa com o intuito de ajudá-los. Em Viver a vida (Vivre sa Vie, 1962), de Jean-Luc Godard, uma mulher casada se torna prostituta como forma de atingir um sentido de independência, sendo acidentalmente morta no final do filme – Fassbinder afirmou que assistiu a este filme umas 27 vezes em 1974. Nos dois filmes, ainda que as mulheres acabem como vítimas, ambas afirmam a si mesmas em função das limitações de expectativa em que a sociedade tradicionalmente as confinou. Este é justamente o elemento que gerou mais críticas das feministas em relação aos “filmes de mulheres” de Fassbinder: ele é acusado de mostrar mulheres como vítimas que internalizaram sua opressão em vez de tentar libertar-se. O cineasta não nega, mas afirma que essa interiorização da opressão é o resultado de forças sociais poderosas, e que elas sofrem muito em função disso. Fassbinder acredita inclusive que as mulheres, mesmo quando interiorizando sua opressão, são capazes de resistir melhor que os homens. Elas usariam a opressão que sofrem, afirmou o cineasta, como um instrumento de “terrorismo”. Já os homens, completa Fassbinder, são simples e primitivos nessa hora. “Fassbinder nega vigorosamente a acusação de misoginia que às vezes é levantada contra ele. ‘Eu levo as mulheres mais a sério do que a maioria dos diretores’, ele alega. ‘Para mim as mulheres não estão lá apenas para manter os homens andando’.(...) ‘Diretores que sempre as mostram como maravilhosas, elegantes... não gostam de mulheres, não as levam a sério’, ele disse. Mas ele resiste em ser rotulado de apoiador da liberação das mulheres, conversa que o irrita. ‘O mundo não é um caso de mulheres contra homens, mas de pobres contra ricos, de oprimidos contra opressores. E existem tantos homens reprimidos quanto mulheres reprimidas’. Ele disse que procurou mostrar as mulheres honestamente, reconhecendo que elas ‘se comportam tão indignamente quanto os homens’. Não é ele que deve dizer como elas podem se liberar; cada uma deve decidir isso por si mesma”7.

................................................................................................................. Idem, p. 134.

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Oportunismo e Heroísmo No período final de sua carreira, Fassbinder criou cinco obras que, a partir de cinco mulheres, permitem que se tenha um quadro da história da Alemanha no pré-guerra (República de Weimar), durante a Segunda Guerra Mundial e no pós-guerra. A mulher do chefe da estação (1976-7) cobre o período final da República de Weimar. Lili Marleen (1980) é ambientado durante a guerra. O Casamento de Maria Braun (Die Ehe der Maria Braun, 1978), começando em 1943, durante a guerra, e pulando para o imediato pós-guerra, terminando em 4 de julho de 1954. O desespero de Veronika Voss (Die Sehnsuch der Veronika Voss, 1981), cobrindo algumas semanas em 1955, terminando no Domingo de Páscoa. E Lola (1981), ambientado entre 1957-88. Os três últimos filmes constituem a Trilogia da República Federal da Alemanha. Nestes filmes, mesmo a mulher mais dogmática ou positiva se dobra aos poderes da sociedade patriarcal. Alguns sugeriram que seria um gesto de desesperança por parte de Fassbinder. Um gesto nascido de uma “melancolia da esquerda” em relação à direção que tomava a política na Alemanha Ocidental do final da década de 70 e início dos anos 80 do século passado. Mais especificamente, em relação tanto a problemática da desesperança dos revolucionários idealistas que viraram terroristas (o grupo Baader Meinhof ), quanto à reação autoritária do governo em relação à questão9.

Entre Casamentos e Amantes A mulher do chefe da estação é ambientado numa pequena cidade da Bavária em 1920, onde um chefe de estação ferroviária vive com uma mulher que o domina e o trai com dois homens. Para além do melodrama, o filme constitui um retrato realista da vida alemã pouco antes do começo do nazismo. Xaver Bolwieser, o marido, é a variação de um tipo frequente em Fassbinder: traído, maltratado, e finalmente abatido. Em seu uniforme de chefe, ele impõe ................................................................................................................. 8WATSON, Wallace Steadman. Understanding Rainer Werner Fassbinder: Film as Private and Public Art. USA: University of South Carolina Press, 1996. P. 206. 9Idem.

respeito aos subordinados. Porém, em relação à sua esposa, ele é um dependente masoquista que não pode satisfazê-la sexualmente. Hanni, a esposa, acaba fazendo com que Xaver testemunhe num tribunal a favor de um de seus amantes. Depois de ser abandonado em favor de outro, o primeiro amante acusa Xaver de perjúrio. O resultado é que Xaver vai preso e acaba concordando com o pedido de divórcio de Hanni. Seja como for, Hanni constitui uma das personagens femininas mais independentes dos filmes de Fassbinder. Por sua atitude senhorial em relação a seus subordinados na estação ferroviária, Xaver representaria o oficial subalterno autoritário que logo encontraria um lugar na burocracia das forças armadas nazistas.

Amores Proibidos Em Lili Marleen temos uma cantora (Willie) de cabaré que vê sua carreira decolar rapidamente durante a vigência do Estado Nazista na Alemanha. Baseado na autobiografia da cantora alemã Lale Anderson, que ficou famosa durante a Segunda Guerra com sua música (chamada “Lili Marleen”) sobre um soldado que deseja reencontrar sua namorada, o filme mostra como Willie parece não perceber os desdobramentos de suas escolhas naquele momento histórico conturbado. O filme também mostra seu dilema profissional. O problema é que sua música virou uma espécie de hino nos campos de batalha durante a Segunda Guerra Mundial. Embora sua canção fosse admirada por vários exércitos inimigos entre si, os nazistas fizeram dela uma espécie de namorada do soldado alemão. Sua vida se complica quando ela se apaixona por um maestro suíço, que, além de judeu, era um espião trabalhando para tirar outros judeus da Alemanha. O pai do maestro esforça-se em vão para separá-los, julgando que essa ligação pode colocar a vida do filho em perigo. Os alemães começam a desconfiar dela também. No final, desmascarada, ela se vê forçada a continuar apoiando publicamente o regime nazista para não ser morta. Como chegou a dizer, ela era apenas uma cantora com uma música. O que você faria se sua única chance profissional dependesse de fazer amizade com alguns crápulas, ou os crápulas de um governo corrupto ou de um burocrata durante uma ditadura?

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Entre a Falta de Opção e o Oportunismo O casamento de Maria Braun nos apresenta a situação de uma das milhões de viúvas de soldados alemães depois da guerra. Sem opção de sobrevivência numa Alemanha destruída, a mulher se prostitui num bar que serve os soldados dos exércitos vitoriosos. Um soldado americano negro se interessa por ela, que, ou não pode recusar, ou vê nele uma chance de resolver seus problemas de sobrevivência. Casam-se. De repente, ela descobre da pior forma possível que seu marido ainda está vivo: ele mata o americano ao encontrá-lo com sua esposa. Vai preso. Enquanto isso, a mulher faz progressos profissionais e encontra outro homem que se apaixona por ela. Além de maltratá-lo muito, ela deixa claro que é casada. Enquanto isso, seu marido sai da prisão e desaparece. Na cena final, depois de ouvir que o homem que ela maltratava havia morrido e deixado tudo para ela, seu marido explica porque havia sumido. Enquanto ele estava na prisão, foi procurado pelo masoquista que amava sua mulher. Fizeram um acordo: ele pagaria para que o marido de Maria desaparecesse, só podendo voltar após a morte do masoquista. Maria Braun, que durante todo o tempo acreditava ter o controle de sua vida no mundo dos homens, subitamente percebe que foi negociada como uma mercadoria. Ela acende um cigarro no fogão, mas não fecha o botão do gás. Em poucos minutos o gás explode, enquanto ouvimos no rádio a partida da copa do mundo que daria a vitória a Alemanha em 1954. Fassbinder não nos dá uma pista para sabermos se foi acidente ou suicídio.

Um Mundo sem Futuro ou Um Futuro sem Mundo O desespero de Veronika Voss mostra, numa surrealista atmosfera em preto e branco, a decadência de uma famosa atriz. O filme é baseado na vida de Sybille Schmitz, uma estrela de cinema durante o nazismo, que vê sua carreira desmoronar depois da guerra. Schmitz é colocada sob os cuidados de uma neurologista que deliberadamente a viciou em morfina, além de controlar sua vida através de soníferos depois que a atriz passou seus bens para a médica.Certamente, este é um comentário de Fassbinder sobre a corrupção oficial na República Federal da Alemanha10 (o nome do país antes da queda do muro de Berlim em 1989), levandose

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em consideração a relação entre a neurologista e um funcionário da saúde pública que coopera com ela. A dependência de Veronika em relação à morfina funciona como uma metáfora em relação ao que eodor Adorno chamou de “a sociedade administrada”: os representantes da sociedade (a doutora, a enfermeira e o funcionário da saúde publica) vitimam exatamente as pessoas que eles deveriam proteger11. Robert, um repórter de futebol que é convocado para entrevistála, acaba tomando suas dores.Tenta livrá-la das garras dos traficantes, mas acaba morto. Em Veronika Voss, Fassbinder, além de mostrar uma mulher tentando deixar sua marca num mundo de homens, reapresenta o tema da exploração emocional nas relações íntimas. Não apenas Veronika é vitima da neurologista e do funcionário da saúde pública,mas Robert é explorado por Veronika e a namorada de Robert é explorada por ele12. A própria Veronika não tem outro fim senão também morrer no final.O mundo de Veronika virou de cabeça para baixo.Não pertence mais a ela, assim como a própria Alemanha não pertence mais a si mesma (dividida entre os vitoriosos da guerra recém terminada, a Alemanha tambémestá incerta emrelação a seu futuro).

Manipule a Vida dos Outros e Seja Feliz Lola é um filme tão pessimista quando os anteriores. Entretanto, nele fica mais claro, mais rapidamente, quem é quem. Lola é uma dançarina de cabaré e prostituta. Vive e trabalha numa boate cujo proprietário (que é seu amante) é também um grande empresário da cidade. Seus clientes no prostíbulo, muitos dos funcionários públicos da cidade, acabam trabalhando para ele ao manipular as decisões da prefeitura. Portanto, o cenário de Lola é a corrupção entre empresários e funcionários públicos na Alemanha. O filme se passa no momento do pós-guerra em que a Alemanha está se reconstruindo, quando as oportunidades de lucro são ................................................................................................................. 10 Ibidem, p. 221 11 Ibidem, p. 225. 12 Ibidem, p. 224.


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imensas. Eis que na cidade surge de repente um novo funcionário público encarregado das licenças para as obras. Incorruptível, ele se torna um problema! Lola entra em ação e consegue fazer desse “funcionário problemático” um animalzinho de estimação. Mas ele ainda não sabe que ela é uma meretriz local. Lola conquistou aquele homem fazendo-se passar por uma mulher pura e de bons sentimentos. Passa-se um tempo até que o funcionário público descubra a verdadeira identidade da mulher. Então, quando imaginamos que a história tomaria outro rumo e que os bons venceriam os maus, temos uma surpresa. O homem aceita casar-se com ela, assim como aceita render-se aos interesses do empresário (que em segredo continua amante de Lola). De fato, Lola colocou um homem de joelhos, por outro lado, ela é “funcionária”de outro. Portanto, o mundo patriarcal masculino ainda dá a palavra final.Além do tema da exploração emocional nas relações íntimas, Fassbinder retrata aqui a realidade econômico-financeiraindustrial da Alemanha durante as duas décadas seguintes à Segunda Guerra. Qualquer semelhança com a situação do serviço público de certo país da América do Sul talvez seja mera coincidência...

AutoBiografia, Melodrama e Autoritarismo Você consegue pensar num cinema mais autobiográfico que o do sueco Ingmar Bergman ou o do italiano Federico Fellini? Pois os filmes do cineasta alemão Rainer Werner Fassbinder são um capítulo à parte no assunto. Em sua busca para criar filmes que chamem plateia, Fassbinder se afasta da lógica do filme de ação (história forte e cena de suspense). Ele se concentra nos protagonistas da trama, como se eles fossem espectadores de suas próprias vidas. Desenvolve-se a partir daí uma singularização dos atores e atrizes enquanto personificação de uma função no enredo13. Fassbinder parte de sua descoberta dos melodramas do diretor americano Douglas Sirk, na década de 50 do século 20. Nos melodramas de Fassbinder, os heróis são vítimas sem o saber. São personagens representando gente comum e até banal, do tipo que

não tem a mínima capacidade de autocrítica para perceber uma eventual identificação masoquista com os próprios opressores. Ainda assim, Fassbinder não direciona esse masoquismo para uma perspectiva na qual o espectador possa se projetar – que seria o caso daquele tipo de filme onde, por exemplo, o homem masoquista não se liberta da dançarina de cabaré dominadora (O anjo azul, de 1929, que levou Marlene Dietrich ao estrelato). Em seus filmes, Fassbinder também sugere que os horrores do Terceiro Reich não constituem aberração casual, expressam a xenofobia e o autoritarismo presentes no caráter do povo Alemão. O qual também poderia ser captado no materialismo, intolerância e tendências reacionárias presentes no pós-guerra do propalado “milagre econômico”14. Entretanto, Fassbinder questiona a hipótese de que podemos identificar a opressão social e a opressão na família. Não se trata de processos paralelos. Tornar a figura paterna um mero representante do capitalismo no interior do lar equivaleria a tornar-se um rebelde à imagem do opressor. Fassbinder opera duas inversões no problema da autoridade e identidade, assim como na questão do papel do herói. Em primeiro lugar, os papéis de personagens femininos são frequentemente rebeldes e fortes. A incapacidade dessas personagens em alcançar uma identidade estável através da revolta não é apenas motivada pela programação das necessidades e desejos que a mulher recebe na sociedade patriarcal, mas apontariam para uma falha na identificação edipiana. Em segundo lugar, Fassbinder substitui o modelo opressor/oprimido pela dupla sujeição (double-bind) sadomasoquista15.

Sadomasoquismo, Família e Liberdade As influências do melodrama de Douglas Sirk obscurecem uma estrutura sadomasoquista evidente entre os personagens de filmes do como Martha (1973) e O mercador das quatro estações (Der ................................................................................................................. 13 ELSAESSER, omas. New German Cinema. London: Macmillan, 1989. Pp. 137. 14 WATSON, Wallace, Steadman. Understanding Rainer Werner Fassbinder: Film as Private and Public Art. USA: University of South Carolina Press, 1996. P. 2.

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ELSAESSER, omas. Op. Cit., pp. 227-8.

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Händler der vier Jahreszeiten, 1971)16. Seja qual for o tipo de relacionamento, heterossexual ou homossexual, a exploração é o motivo central. É dentro dessa exploração que o herói busca salvação. A submissão, mais do que a rebelião, torna-se o elemento central do desejo de seus personagens. Tais mecanismos, ainda que tenham origem na família e sejam reforçados pelas relações de poder na sociedade, apenas podem ser vividos do interior dos ciclos viciosos. Masoquismo, ao ponto do autoabandono, tornase o gesto de liberdade que sozinho restaura a identidade. Em quase todos os filmes do período central da produção de Fassbinder, assim como em muitos dos posteriores, persiste uma tendência de autodestruição: tudo acaba em suicídio.As famílias também são sempre incompletas ou tortas. Existem mães e esposas castradoras e severas (muitos desses papéis são interpretados pela própria mãe de Fassbinder), e raramente temos pais ou figuras paternas. O que se vê são constelações dominadas por irmãs, irmãos e amantes em filmes como As lágrimas amargas de Petra Von Kant (Die Bitteren Tränen der Petra von Kant, 1972; originalmente uma peça teatral, que teve seu texto traduzido para o português e fez sucesso no Brasil), seu Alemanha no outono (Deutschland im Herbst, script e direção compartilhados, 1978), O Casamento de Maria Braun (Die Ehe der Maria Braun, 1978) e O desespero de Veronika Voss (Die Sehnsucht der Veronika Voss, 1981). Questionando a apropriação dos fetiches-objetos de poder, a identidade nos filmes de Fassbinder é geralmente o ponto final de uma trajetória no sentido de aceitar a sua falta deles. Ao contrário, quando um personagem deles se apropria, como em Lola (1981) ou O casamento de Maria Braun, os filmes são estruturados em torno de momentos onde o poder fálico é mostrado como um fetiche, um espetáculo que em Fassbinder é sempre tragicômico, irônico ou grotesco - e, nos últimos filmes, sempre ligado à história da antiga Alemanha Ocidental17.

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Disponível em: http://cinemaeuropeu.blogspot.com/2008/02/as-mulheresde-rainer-werner-fassbinder.html ................................................................................................................. 16 Idem, p. 228. 17 Ibidem.


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OS ANOS FASSBINDER “Um dia é um ano é uma vida”. Esta foi a resposta de Rainer quando lhe perguntei, como ele conseguia trabalhar tanto, em tão poucos dias. Andy teria me dado uma outra resposta. Mais ou menos assim: “Mas este é o trabalho, que você vê em mim”. E Truman Capote? “Por favor não me recorde do meu trabalho. Tudo isso é passado e esquecido.” Tudo começou com Rainer... Munique, 1968.

Este texto foi gentilmente cedido por Ulli Lommel e é parte integrante de sua autobiografia Die Zärtlichkeit der Wölfe.

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“Eu quero fazer cinema. Você gostaria de ser o protagonista em meu filme? Alguém me prometeu dinheiro, se você estiver junto.” Um ano antes eu havia sido eleito “Astro da atualidade“ pelos leitores adolescentes da revista Bravo, e desde então recebido a cada mês mais de mil pedidos de autógrafos. Minha carreira como ator andava de vento em popa. Televisão, cinema e teatro. Sem interrupção. Eu tinha trabalho pelos próximos três anos. E tinha algum valor. Fassbinder sabia disto. Eu refleti por um instante e olhei para ele pensativo. Ele era um ano mais jovem do que eu, havia acabado de completar 22 anos. Algumas vezes ele parecia um chinês incomodado em busca de respostas extraordinárias, que aparentemente ninguém tinha e que a gente também não podia encontrar em nenhum livro. Além disso, ele ainda tinha uma certa pose, alguma coisa como uma mistura de fedelho atrevido, malandro e gênio imemorável. Ele era um fumante inveterado, quase sempre tinha as unhas sujas e algumas vezes gostava de exagerar na bebida. As drogas ele rejeitava categoricamente. Pelo menos no começo. Suas calças eram sempre alguns números menores e ele também era um pouquinho gordo. Mas amável. E sexy. E afetuoso. Como um lobo. “Quando você pretende filmar, Rainer? Talvez eu tenha tempo em janeiro ou fevereiro do próximo ano.” Não falamos mais sobre isso em nossa primeira noite juntos. Mas nós fomos ao cinema, ao Arri na Türkenstrasse, e assistimos Uma bala para o general, um filme de Damiano Damiani, com Lou Castel, Gian Maria Volonté e Klaus Kinski. O filme falava de amizade masculina, revolução e traição, e para nós ficou imediatamente claro, que havíamos sido feitos um para o outro, porque nós ríamos e chorávamos nas mesmas cenas. Este foi o começo de nossa amizade. “Um faroeste italiano duro, sem compromissos e com fundamentos cínicos, que representa os excessos de uma revolução furiosa da mesma maneira que a crueldade de um reinado de violência. Encenado de forma empolgante e bem interpretado.“

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Conforme a Enciclopédia de Filmes Internacionais. O primeiro filme de Fassbinder O amor é mais frio que a morte, que nós rodamos no início de 1969, tinha um tema semelhante. Quando no primeiro dia de filmagem cheguei ao apartamento de Fassbinder no segundo andar de um prédio antigo na Rua Stolberg no centro da cidade, próximo ao rio Isar, a primeira coisa que pensei foi que estava no endereço errado. De Fassbinder mesmo não havia nem sombra, também não havia câmara, nem luz e a equipe e os atores não estavam presentes, apenas uma mulher jovem chama Irm Hermann, que me perguntou, se eu era Ulli Lommel. “Sim, mas onde será a filmagem?” “Ora, aqui. Sente-se! Você gostaria de uma xícara de café?” “Não, obrigado! Eu não bebo café.” “Eu vi você em Detetive, de Rudolf ome. Um filme muito bom.” Eu ainda continuava de pé e indeciso, quando descobri um outro ser vivo, um homem jovem, que remexia em uma câmera de 35mm. Uma Arri. “Oi! Eu me chamo Dietrich Lohmann. Operador de câmara e pau para toda obra.” Logo ficou bem claro que Lohmann não havia feito nenhuma piada. Ele era realmente o único membro da equipe e fazia tudo. Colocar o filme, ajustar a nitidez, girar, luz e sombra. E se alguma vez a câmara tivesse de se movimentar, então um dos atores tinha de chegar perto. Em geral, a fronteira entre o diante e o detrás da câmara era de alguma forma vaga, ou para ser bem sincero, ela na verdade nem existia. Aquilo a que eu normalmente estava acostumado, como por exemplo, cem pessoas no local da filmagem e um orçamento gi-


gantesco, tudo isso não havia com Fassbinder. E quando ele finalmente apareceu, olhou-me desesperado da cabeça aos pés. “Mas você não está vestido com o traje certo, Ullrich Manfred.” “Roupa?” “Sim, mas o quê então? Nós tínhamos combinado claramente, que você precisaria se parecer com Alain Delon em Segundas intenções. Com aquele chapel de Borsalino e a capa de chuva. Será que você já reprimiu tudo de novo, ou esqueceu? E a maquiagem... você ainda precisa providenciar isto. Você tem de estar tão bonito quanto possível, ok? Isto está claro? E não me olhe com este jeito esquisito, você me deixa totalmente nervoso! Então vá, apresse-se e arranje as coisas, nós precisamos finalmente começar a filmar, ok?” Este Fassbinder ou é maluco ou é um gênio. Eu desci um pouco perplexo, cambaleando pela escada e quando cheguei lá embaixo, eu não sabia se devia abandonar o barco, antes que fosse muito tarde, ou me deixar levar por esta aventura um pouco louca. Eu ansiava há muito tempo por alguma coisa diferente, pela libertação da mediocridade. Aceitei o risco, e fui mil vezes recompensado. Como em um dos contos de fada dos Irmãos Grimm. Entre 1969 e 1977 eu atuei em dezesseis produções de Fassbinder, não só para o cinema como Effi Briest e Roleta chinesa como também para a televisão, o teatro e o rádio. E muita luz e sombra. O amor é mais frio que a morte estreou mundialmente na Berlinale, no verão de 1969, e Fassbinder e eu fomos bastante vaiados e desdenhados. Mas também houve outros, que perceberam que aqui estava começando alguma coisa revolucionária. Eles gostaram principal-


mente da última cena do filme. Nela, o grande Rudolf Waldemar Brem aparece de repente como um tira, em uma motocicleta. E imediatamente, sem nem mesmo um piscar de olhos, é alvejado por um tiro disparado por mim. Suas últimas palavras ao morrer são “Oh, boy…”, e isto como um guardião da ordem bávaro! Isto era Warhol, era Godard, era James Cagney, era Brecht e era também este novo diretor alemão fantástico chamado Fassbinder. Luz e sombra. Desde esta morte inenarrável e muito maneira, Rudolf Waldemar pertence ao meu círculo de amigos mais íntimos e também fez muitos filmes comigo, não só na Alemanha, como também nos Estados Unidos. Fassbinder não se preocupava muito com controvérsias e não demorou muito até que ele e eu mais uma vez nos retirássemos para o Cemitério Norte de Munique, onde nós com frequência procurávamos inspiração e ouvíamos “Season of the Witch” do Doors, até tarde da noite e até que nos colocassem para fora. Foi lá, também, que ele começou a escrever O machão, o filme que lhe trouxe todos os prêmios nacionais possíveis. Na época de O machão, sua jaqueta de motoqueiro de couro preto já fazia parte dele como uma segunda pele. Como Marlon Brando em O Selvagem. Ele a tirava muito raramente. Eu havia lhe dado esta jaqueta de presente durante as filmagens de O amor é mais frio que a morte. Ela era originalmente uma peça de meu próprio guarda-roupa, que eu havia usado no palco para meu papel na comédia Tapetenwechsel, em 1968. Além de minha jaqueta de couro também dei para Fassbinder meu MG vermelho, um carro esporte inglês, para que ele pudesse concluir O amor é mais frio que a morte. Porém, em vez de vendêlo, como ele havia me prometido inicialmente, ele mesmo o dirigia, ou para ser mais exato, deixava-se conduzir por Peer Raben – que naquela época não só cuidava de seus negócios, como também fazia a música para todos os seus filmes –, já que Fassbinder não possuía carteira de motorista.

À noite nos encontrávamos de vez em quando no Witwe Bolte, um autêntico botequim bávaro, no qual Fassbinder e seu grupo Antiteatro, quando não estava rodando nenhum filme, apresentavam peças revolucionárias, com Hanna Schygulla como Marilyn Monroe e Fassbinder como Elvis Presley. Fassbinder amava Elvis e eu precisei contar para ele cada uma de minhas histórias do Elvis pelo menos umas vinte vezes, e ele sempre queria mais, muito embora a cada vez ele jurasse que nunca as tinha ouvido antes. Hanna Schygulla também representou Marilyn Monroe em Bibi o musical de Heinrich Mann, que Fassbinder encenou em Bochum, em 1973. Eu fiz o papel principal e com isto tive a oportunidade de esquentar, minha versão alemã de “Teddy Bear”, do Elvis. Eu atuei na estreia com 40 graus de febre, em delírio, porque Fassbinder recusou-se a adiar a estreia por causa de meu resfriado. “Agora para com isso, Ullrich Manfred, você é terrível! O que é então que pode acontecer? E se você morre, então você morre e pronto. Um fim tão dramático e ainda por cima no palco, afinal o que você quer mais?” E lá se foi ele. Em suas exuberantes botas militares negras. Como um militar da SA. Fassbinder era brutal. Mas também podia ser muito gentil. E afetuoso. Como um lobo. Luz e sombra. Em 1970, quando rodei Haytabo, meu primeiro filme, ele representou um lobo da estepe perdido, que andava sobre a neve bávara e dizia filosofias selvagens. Ele atuou de graça. Como em todas as suas atuações em meus filmes. Ao lado de Fassbinder atuaram ainda dois conhecidos e mal-afamados ícones de 1968, Rainer Langhans e Uschi Obermaier, como um casal do século XVIII. E Eddie Constantine, o legendário detetive do clássico cult francês Ces dames s'en mêlent.


Para os críticos alemães o filme era muito amador e nada comercial. Fassbinder me encorajou. “Você desenvolveu o seu próprio estilo, Ullrich Manfred. E você deveria se orgulhar disto. Além do mais é bonito ser amador. A palavra vem do latim e significa alguma coisa como amante. Amante da arte. Alguém que se dedica à coisa com amor. Um profissional é também muitas vezes apenas um animal treinado, que faz tudo perfeito segundo o esquema X.” Desta vez ele foi gentil comigo. Mais luz do que sombra. A ternura dos lobos. Uma ideia para um filme que nasceu no Hotel Deutsche Eiche, em fevereiro de 1973. Fassbinder e eu estávamos festejando o carnaval em nosso hotel preferido na Rua Reichenbach, e que também tinha a melhor comida de Munique. “Aqui estão 180 mil Marcos de uma premiação de cinema nacional, Ullrich Manfred, que têm de ser gastos até o fim do ano, senão não poderão ser mais usados. Faça este filme, que o Kurt escreveu. Eu produzo, Kurt representa o Fritz Haarman e você dirige. E tudo deve ser feito enquanto estivermos em Bochum no Teatro Zadek. Um filme de suspense com muito sangue. Uma mistura de M, O Vampiro de Dusseldorf de Fritz Lang e de Psicose de Hitchcock. Isto seria algo para você, ou não? Somente o lobinho podia ser tão amável e afetuoso. A gente quase pegava fogo de tanta luz. Sempre que eu chegava a Munique, eu me hospedava no Deutschen Eiche, que a propósito quase teria sido demolido, se os extraordinários Dietmar Holzapfel e seu amigo Sepp não tivessem salvado o estabelecimento no último minuto. Hoje o Eiche floresce mais do que nunca, com os quartos mais bem decorados, a mais deliciosa comida para todos os gostos, os garçons mais engraçados e por último, mas não menos importante, a melhor sauna do mundo.

Rainer Werner e eu admirávamos Hitchcock. Vertigo com Kim Novak e James Stewart é para nós o melhor de seus filmes. Durante muitos anos eu só me interessei por mulheres que se parecessem com Kim Novak. Era fatal. Tão forte foi a impressão deixada por este filme que eu até hoje assisti certamente umas cem vezes. Minha viagem pelo horror começou em outubro de 1973, em Bochum. A ternura dos Lobos foi meu primeiro filme deste gênero, Força assassina o de maior sucesso e também certamente o mais famoso. Entre 1973 e 2009 rodei vinte e sete filmes de suspense, dezessete deles entre março de 2005 e agosto de 2007, em nosso novo estúdio na Praia Venice, a Hollywood Action House. E eu ainda continuo sempre à procura do monstro meigo em todos nós. O território do outro, o lado sombrio de cada um de nós sempre me fascinou. Durante as três semanas de filmagem em Bochum, todos nós morávamos juntos em uma casa grande. Quase sempre era assim com Fassbinder. Nós, e entre outros também Reiner Langhans, Peter Chatel, Kurt Raab e Rudolf Waldemar Brem, vivíamos, amávamos, odiávamos, brigávamos e trabalhávamos juntos. O lobo solitário, Jeff Roden, também chamado Bernd Rüd, ou apenas Bernardo. Alain Delon também era seu ídolo. E ele se parecia muito com ele. Jeff fez o papel do amante de Fritz Haarmann, Franz Gans. Nós já tivéramos algumas aventuras, antes de começarmos a rodar A ternura. Tödlicher Poker era o título do filme, com Götz George no papel principal como um policial gay, que se apaixona por um rapaz ( Jeff Roden), mas é chantageado por ele e deveria se corromper. No entanto, George o engana e o mata friamente a tiros, muito tranquilo, totalmente profissional, como um tira em serviço. Michael Ballhaus operava a câmara, era uma produção germanofrancesa e foi rodada em Berlim. Infelizmente o coprodutor se revelou um vigarista e o filme teve de ser interrompido em meio às filmagens.O dinheiro do francês simplesmente acabou e George queria sua grana.Esta nunca chegou e o negativo do filme se encontra até hoje em laboratório. No entanto, dois anos mais tarde Jeff recebeu o papel de seus sonhos como cúmplice do assassino em série.

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(...) Nesta época Rainer Werner estava namorando um árabe chamado Salem, que também havia feito o personagem principal em O medo devora a alma. No entanto, todos os fins de semana, Fassbinder tinha de ir a Paris, para alguma reunião, e o angustiado Salem era sempre deixado para trás. Um dia ele espionou Fassbinder e descobriu, que as tais reuniões na verdade eram visitas a saunas gays. Salem pirou. Armado com um longo facão e totalmente embriagado, ele atacou a todos que estavam em nossa casa neste final de semana, ameaçou nos massacrar, também nos acusou de conspiração com seu amante, e destruiu todos os móveis e demais objetos valiosos, que teve ao seu alcance. Desesperados, ligamos para a polícia, que como sempre demorou muito, e não nos restou nenhum outro jeito a não ser fugirmos para Gelsenkirchen, onde às escondidas nos entrincheiramos então em um hotel de luxo. Nós estávamos muito zangados e firmemente decididos a apresentar a conta do hotel a Fassbinder. No entanto, quando Fassbinder voltou e nós quisemos nos queixar a ele, ele imediatamente virou o jogo: “Seus porcos medíocres! Mas isto é realmente o máximo! Durante toda a semana vocês filmaram este filme de horror extremamente violento, borrifaram tudo com um monte de sangue e ainda se divertiram com isto, mas quando o pobre Salem precisou de sua ajuda, todos vocês são um fracasso, nada mais do que pequeno-burgeses fracassados!” E lá estávamos nós mais uma vez na defensiva. Este era o outro Fassbinder. Um mestre da manipulação. O general do Diabo. E nós ainda tivemos de pagar as despesas do hotel.

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Porém isto não foi nada em comparação às filmagens de Whity, o faroeste cinemascópico de Fassbinder, no qual eu interpretei o papel principal e infelizmente também produzi... Almeria, Espanha. Verão de 1970. Toda a equipe de Fassbinder estava hospedada em um hotel no Mar Mediterrâneo. Perto da mansão de Sergio Leone, onde o mestre italiano nos anos 60 filmou com Clint Eastwood seus faroestes-espaguete, e onde também nos aninhamos por quatro semanas para rodar o nosso filme. Hanna Schygulla estrelava o principal papel feminino,uma cantora de bar,que estava apaixonada por um mordomo negro,que era explorado, maltratado e escravizado pela família sulista a quem ele servia. O papel do negro foi interpretado por Günter Kaufmann, por quem Fassbinder naquela época estava totalmente apaixonado, mas sem esperanças. Uma tragédia, que se tornou a raiz de todo o desastre. O filme foi exibido como participação alemã na Berlinale, recebeu inúmeras premiações nacionais, mas depois foi proibido por Fassbinder. Nem ele, nem ninguém poderia ver o filme outra vez, em todo caso pelo menos enquanto ele vivesse. E como eu havia colocado muito dinheiro na produção, para mim isto significou temporariamente minha ruína financeira. É certo que eu poderia ter denunciado Fassbinder, ter me vingado ou nem sei mais o quê, mas eu não tive simplesmente nenhuma vontade de fazê-lo. Em 1971 Fassbinder filmou Precaução diante de uma prostituta santa, um filme sobre as filmagens de Whity, no qual eu primeiro deveria interpretar Günter Kaufmann. O roteiro na verdade tinha muito pouco a ver com o que realmente acontecera em Almeria, mesmo assim a reflexão de Fassbinder foi um filme bonito, que nós rodamos na Itália, em Sorrento, com Lou Castel como Fassbinder. O mesmo Lou Castel, que já interpretara o protagonista em Uma bala para o general, o drama de Rainer Werner e eu. Para Fassbinder a vida privada e a arte sempre estiveram estreitamente ligadas uma à outra. Mesmo quando ele, como Brecht, aliena a maioria dos acontecimentos, ou os estiliza demais, como Sirk.


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Mas voltemos aos mais do que divertidos trabalhos de filmagem de Whity...

Mais algumas garrafas de coca-cola com rum, outra noite sem dormir e ele já pensava diferente.

Eu havia me tornado amigo do câmeraman Michael Ballhaus em Ibiza, durante as filmagens de Deine Zärtlichkeiten (1969, direção de Peter Schamoni, com Doris Kunstmann e Bernhard Wicki). Michael e eu achamos muito divertido descobrir que naquela época nós tínhamos o mesmo gosto para sapatos. Elegantes, maneiros e italianos. Eu disse naquela época, porque nossos caminhos desde então se separaram consideravelmente. Meus sapatos se tornam cada vez mais extravagantes, ao contrário de Michael que permaneceu fiel ao seu velho estilo. Fassbinder deve ter achado este estilo de alguma maneira ofensivo.

“Pois bem, Sr. Ballhaus, então vamos tentar. A primeira tomada tem exatamente a duração de quatro minutos, três jornadas com a câmara sobre o Dolly, as mais variadas deslocações de intensidade, todos as possíveis inclinações e assim por diante. De quanto tempo o senhor precisa para iluminar isso e experimentar?”

“Por que você me põe frente à frente com este cara chato e de expressão burguesa, Ullrich Manfred? Você por acaso está querendo me punir? Então diga logo, pois eu vou embora imediatamente!”

Fassbinder ficou pasmo.

Eu balancei a cabeça angustiado.

Uma hora mais tarde Ballhaus estava de fato pronto para filmar. A cena, na realidade muito complicada, foi rodada apenas uma vez. Fassbinder olhava Ballhaus de maneira inquisidora.

“Ele entende muito de luz e sombra, Rainer. Como teu ídolo Douglas Sirk.”

Ballhaus aceitou este desafio, propositadamente desumano e de fato irrealizável, totalmente tranquilo. “Mais ou menos uma hora.”

“Está bem. Então estarei de volta exatamente em uma hora.”

“Tudo bem, senhor Ballhaus?” Fassbinder gemeu chateado. “Douglas Sirk! Não me faça rir!

“Sim, se está ok para o senhor, então também está ok para mim, senhor Fassbinder.”

E então ele tomou mais um Cuba Libre. Cuba Libre, Deus sabe que Rainer Werner não bebeu poucos durante as filmagens em Almeria. E ainda por cima naquele calor miserável.

Fassbinder e todos os outros membros da equipe e os atores, que estavam no local da filmagem, quase não podiam entender como ele conseguira.

Eu havia lhe trazido Michael Ballhaus de surpresa, um dia antes dos trabalhos de filmagem começarem. Fassbinder havia originalmente sugerido Jost Vacano, mas este estava indisponível, por falta de tempo.

Nosso gênio deixou a locação sem comentários, engrenou seu Mercedes conversível em direção ao mar, local em que tarde da noite foi mais uma vez foi encontrado embriagado de Cuba Libre. Então as provas chegaram.

“Eu não quero este Ballhaus, me diz uma coisa, você pirou? Você está querendo me enganar, Ullrich Manfred, você quer que este filme seja minha ruína, mas eu não vou permitir que você faça isto!”

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“Bem, agora é que eu quero realmente ver, Ullrich Manfred, é bem provável que não tenha dado em nada! Impossível!


E é claro Alphaville, no qual Eddie Constantite também estrelou o personagem principal.

Fassbinder queria em segredo, que Ballhaus fracassasse. Mas aconteceu justamente o contrário. As provas estavam sensacionais e Rainer Werner me abraçou banhado em lágrimas.

“Nós precisamos impreterivelmente fazer alguma coisa com a Anna Karina, Ullrich Manfred, eu vou pensar em algo imediatamente!”

“Meu Deus, Ullrich Manfred, o homem é um verdadeiro gênio!” E então mais uma vez sentou-se em seu carro esporte e desapareceu. Luz e sombra. Os dezoito dias planejados para as filmagens transformaram-se em vinte e seis, e o orçamento duplicou-se. Principalmente por causa do carro de bebidas, que tinha sempre de estar no local da filmagem, em todo caso foi isto que Fassbinder quis, e que colocava à disposição para todo aquele que quisesse, e antes de todos naturalmente o próprio Fassbinder,Cuba Libre,cerveja,vinho e vodka.Grátis para todos, exceto eu. É que eu era o idiota a quem todas as manhãs a conta era apresentada e tinha de pagar. Fassbinder morria de rir sobre isso. Depois de Whity Ballhaus tornou-se o número um para Fassbinder. Até que depois de muitos, muitos anos eles brigaram. Porém eu acredito, que Fassbinder não teria sido Fassbinder sem Ballhaus. E o contrário também. Depois desta experiência um tanto decepcionante com Fassbinder eu precisei de um pouco de distância. Eu fui embora para Ibiza e escrevi meu primeiro filme. Os trabalhos de filmagem de Haytabo foram iniciados na Baviera, já no inverno seguinte. Em 1976 eu me vinguei finalmente de Fassbinder por todas as suas crueldades. Nesta época eu morava em Paris com Anna Karina. “Como? Anna Karina?”

“A mulher mais fantástica do mundo!” Ele amava todos os filmes de Godard com Anna Karina. Principalmente Viver a vida, Banda à parte e O demônio das onze horas.

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Fassbinder quase não podia mais se conter.


Nós passamos a noite inteira em um puteiro de luxo parisiense, onde jogamos fliperama com a proprietária e tocamos para ela as canções de Freddy, Heino, Vicky Leandro e Esther Ofarin, nossas músicas alemãs preferidas. “Mas eu também tenho uma ideia, Rainer Werner. A vida privada de Adolf Hitler. Com Kurt Raab no papel de protagonista. E você interpretará Ernst Röhm; a Carstensen, Marlene Dietrich; e eu, Joseph Göbbels. O que você acha disto? Somente sua vida particular, nenhuma palavra sobre antissemitismo ou sobre a Segunda Guerra Mundial.” Fassbinder não pensou muito tempo, pegou imediatamente o telefone e discou um número na Alemanha. “Eu sinto muito despertá-lo, caríssimo senhor Eckelkamp, mas é que eu estou agora em Paris com Ulli Lommel, a quem o senhor conhece bem, pois ele já o deixou podre de rico com A ternura dos lobos, e agora ele quer rodar um novo filme sobre a vida privada de Hitler, eu estou disposto a produzí-lo mas a gente ainda precisa de mais ou menos cem mil marcos, quando podemos filmar?” Hanns Eckelkamp era o empreendedor e bem-sucedido chefe de distribuição da Atlas Filmes, que nos anos de 1960 e de 1970, fez muito pelo cinema alemão. Ele concordou imediatamente. “Tudo bem, senhor Fassbinder, a ideia é excelente e o dinheiro está à sua disposição a qualquer momento. ”

Marlene Dietrich também ficou indignada. Ela chegou a me telefonar pessoalmente de Paris. “Mas me diga, senhor Lommel, como é que o senhor pode afirmar uma coisa destas? Eu nunca, mas nunca tive nada com este Hitler! Que atrevimento!” “Mas senhora Dietrich, é disso que se trata! É exatamente o contrário do que a senhora diz! A senhora detesta Hitler no meu filme!” Ela não acreditou em uma palavra do que eu disse e me convocou de imediato a Paris, para exibir o filme para ela e seus advogados. Para mim isto era ótimo. Eckelkamp adorava este tipo de publicidade e imediatamente isto rendeu uma grande quantidade de manchetes na Alemanha. “Lommel afirmou que Marlene Dietrich teve um caso de amor com Hitler!” Marlene Dietrich se convenceu logo do contrário e após a apresentação do filme, deixou sem dizer uma palavra, o cinema que havíamos alugado para ela nos Champs Elysées em Paris, acompanhada por seus vassalos. Meu olhar ainda recaiu rapidamente sobre seu negro casaco de pele, seus sapatos pretos altos, mais ou menos 58 anos e tamanho 36, e então ela desapareceu novamente em seu Citroen, também negro.

Nós fizemos o filme alguns meses mais tarde, Ballhaus na câmera, e tudo como planejado. Foi o último filme que eu rodei na Alemanha, antes de ir para a América, em agosto de 1977. E meu último trabalho com Fassbinder.

O futuro de Adolf e Marlene,como o filme de repente foi intitulado por Eckelkamp, para explorar realmente a agitação da publicidade, também parecia negro. Eu de fato queria intitulá-lo O homem de Obersalzberg, mas este título já não era mais comercial o bastante. Tudo cheirava fortemente a truques baratos e à propaganda, e junto com as críticas massacrantes o filme foi um fracasso total.

As críticas na terra natal foram mistas, para me expressar de maneira suave. Um crítico ficou de tal forma horrorizado, que eu tivesse zombado de Hitler, que quase perdeu totalmente a razão e afirmou “Lommel dirige como um pastor alemão sarnento, que simplesmente levanta a perna e urina no sagrado carvalho alemão.”

Não apenas na América, Paris ou Londres. Lá ele quase foi aclamado como uma pequena obra-prima, como homenagem a Ernst Lubitsch, que também tratara como comédia de humor negro um tema semelhante (Ser ou não ser, 1942). A propósito, ao lado de A ternura dos lobos, Adolf e Marlene também foi um dos filmes de

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Ulli Lommel preferidos por Andy Warhol.

“Essa não! Mas que amigos você tem!”

No ano de 2004, ou seja, quase três décadas após sua estreia, Adolf e Marlene foi exibido durante minha retrospectiva na Mostra de Cinema, em Hofer. Nós tivemos três sessões lotadas, os espectadores se divertiram, muitas cenas foram aplaudidas e depois da primeira sessão um representante do governo disse, que isto seria cultura alemã de alto nível.

Ela já havia desfrutado da companhia de meu amigo Fassbinder, durante as filmagens de Roleta chinesa. O filme que Fassbinder escrevera exclusivamente para Anna e para mim. Ele começou a escrevê-lo no puteiro em Paris, na mesma noite em que lhe falei da minha ideia sobre Hitler.

Como os tempos mudam. Como cineasta, pintor ou compositor, você só é realmente bem-sucedido quando não está além da época. Ou também quando não está aquém dela. Mas quem é que pode escolher para si mesmo estar à frente ou atrás do tempo? À pergunta, se estas reações positivas foram para mim uma espécie de satisfação, eu respondo que não posso afirmar isto. Eu sempre gostei do filme. E, para falar a verdade, eu acho que este é o melhor de todos os meus filmes. Em segundo lugar estaria então A ternura dos lobos e depois Força assassina. E talvez ainda A segunda primavera / Der zweite Frühling com Curd Jürgens. Porém, antes de chegar à segunda primavera, houve ainda um episódio com Kurt Raab, que interpretou os dois vilões Fritz Haarmann e Adolf Hitler. Foi em fins de maio de 1977, e após a estreia em Cannes de Adolf e Marlene Kurt foi com Anna Karina e comigo a La Garde Freinet, onde Anna possuía sua casa de veraneio, doze quilômetros ao norte de St. Tropez. No ano anterior nós já havíamos rodado lá Ausgerechnet Bananen, uma sátira com Anna e eu nos papéis principais. Kurt se encontrava, assim como Fassbinder em Almeria, depois de sua interpretação de Hitler quase sempre totalmente embriagado, em um estado em que ele já não fazia nenhuma diferença entre si mesmo e a figura do Führer. Em momentos como este eu preferia não ficar por perto, mas desta vez isto parecia impossível, pois ele era nosso hóspede. Anna Karina estava profundamente indignada.

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Era verão de 1976, nós todos morávamos e filmávamos em Stöckach, perto de Würzburg, no castelo de Michael Ballhaus, que também operou a câmara. Ao lado do quarto que Anna e eu ocupávamos no segundo andar, morava também Fassbinder com seu “disciplinador”, que viera de Frankfurt, aquele que a maior parte do tempo usava um uniforme da SS, e tinha a tarefa de cuidar do “bem-estar” de Rainer Werner. Uma manhã, o sol estava nascendo, Anna não aguentou mais os eternos gemidos e gritos do quarto ao lado e correu para fora à beira de um ataque de nervos e quase nua. Eu a segui extremamente preocupado e procurava confortá-la, quando Fassbinder, totalmente nu e seguido por seu disciplinador nazista, que o chicoteava, também quis respirar um pouco de ar puro. Atrás de Anna e eu, à distância, próximo ao sol que nascia, vi um guarda-florestal de tocaia, ele estava de olho em um cervo, de doze galhos, totalmente concentrado, sem perceber o que estava acontecendo aqui. Fassbinder nos viu e também ao guarda-florestal e ao veado, e teve imediatamente um ataque de risos. Nem seu disciplinador, nem Anna ou o guarda-florestal, perceberam o absurdo e a loucura desta cena. “Teus amigos, essa não!” Anna não conseguia se acalmar. E é preciso que eu diga, que certamente não era fácil para um estranho aceitar Fassbinder e seu grupo. Quanto mais, gostar. A gente não podia simplesmente julgar. E é aí que eu acredito que esteja a raiz da questão. Eu nunca julguei Fassbinder. Nem nos bons, nem nos maus tempos. Nós éra-


mos amigos. Amigos de verdade. E a gente não condena os amigos. No dia 27 de maio no sul da França a bruxa estava solta. Literalmente. Kurt Raab havia mais uma vez se embebedado durante a noite toda, interpretado Adolf Hitler e instigado os jovens de La Garde-Freinet a marcharem como cegos atrás dele pelo vilarejo e a cantar com ele canções nazistas. Foi um escândalo sem precedentes e Anna me fez um ultimato. “Ou você manda este Kurt Raab agora para casa, ou eu me separo de você neste mesmo instante! Eu não posso me permitir algo assim! Inacreditável! E isto é ser teu amigo!” Minha conversa com Kurt foi muito deprimente. Ele estava ficando novamente sóbrio e nos pediu de joelhos, para lhe darmos uma última chance. Ele também não podia voltar para Fassbinder que, após os jornais na Alemanha terem estraçalhado com Kurt e com o filme sobre Hitler, no momento não queria saber dele. Kurt se encontrava em uma situação desesperadora, mas Anna não queria saber disso e assim eu o levei ao aeroporto em Nice. Ele chorou durante toda a viagem, que durou algo mais do que duas horas. (...) Fassbinder também inventou um nome fictício para si mesmo, como redator de muitos de seus filmes: Franz Walsch. Conforme seu diretor americano preferido, Raoul Walsh (A morte tem seu preço, 1958). Fassbinder e eu refletíamos muitas vezes sobre a morte.

Este é o seu comentário mais célebre a respeito deste tema. Estritamente lacônico como Andy Warhol. E rigosamente apropriado. “De qualquer modo meus melhores amigos já estão mortos há muito tempo..”

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“Você pode dormir, quando estiver morto!”


Foi o que ele disse em 1981, na noite da entrega do Oscar, em um clube a oeste de Hollywood. Ele olhava fixamente para um cara negro e muito bonito que havia sentado ao nosso lado. Cinco minutos mais tarde os dois já haviam desaparecido em uma sauna que ficava logo na esquina. É assim que a gente encara a morte. Fassbinder entendia disto como ninguém mais. Até que ela o levou. Amigos mortos. Alguns deles eu não conheci nem mesmo quando estavam vivos. E mesmo assim somos amigos. E mesmo assim eu converso com eles. E os ouço. E aprendo com eles. A melhor época que passei com Fassbinder foi sem dúvida em novembro de 1976 em Tânger, Marrocos. Nós ainda queríamos rodar algumas cenas com Kurt Raab como Hitler e Margit Carstensen como Marlene, mas a câmara nunca conseguiu passar pela alfândega. A sopa primordial tinha outras intenções, e assim passamos duas semanas inteiras embriagados em um hotel-restaurante de quinta, sobre o porto. Mal acabáramos de chegar e Kurt já deixava entrar em seu quarto os primeiros senhores marroquinos, e depois de alguns dias eles de fato já faziam fila diante de sua porta. Com o passar do tempo o rei Kurt parecia estar em um estado de delírio total. “Le prochain! O próximo, por favor!” Nós temíamos que, aos poucos, o Kurt pudesse estar exagerando e achávamos que tínhamos de intervir. Quando eu finalmente consegui dar uma olhada em seu quarto, fiquei totalmente estupefato: lá estava o querido senhor Raab sentado em sua cama como um soberano, iluminado pela luz de muitas velas e rodeado por jovens devotos, e lia a Bíblia. Fassbinder usou o precioso tempo para escrever. Para isso, ele instalou-se no restaurante. Lá ele não apenas trabalhava, como também dormia, seja sentado em uma cadeira à mesa ou então debaixo da mesa. A depender de seu estado de espírito.

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Pela manhã as faxineiras chegavam e preparavam o salão para o café da manhã sempre muito preocupadas em tratar o ainda muitas vezes adormecido gênio alemão com o respeito devido. O roteiro de Fassbinder crescia diariamente com pelo menos vinte páginas manuscritas, que algum membro de nossa equipe podia datilografar, mas somente após jurar não comentar seu conteúdo com ninguém, pois ele queria que seu novo projeto pelo menos por enquanto permanecesse em segredo, e por este motivo, de vez em quando circulavam os mais variados boatos. “Será uma história de amor!” “Não, um filme policial, com Ulli Lommel no papel principal!” “Uma comédia com Hanna Schygulla!” “Uma tragédia sobre a sua própria vida e seus casos de amor.!” “Não, não! Nada disto! Será uma série para a televisão!” Nem uma coisa, nem outra. Durante os dias de que dispunha em Tanger, Rainer Werner escreveu mais de trezentas páginas. Era o início do que mais tarde o New York Times deveria qualificar de sua maior obra, quando não simplesmente o melhor filme de todos os tempos: Berlin Alexanderplatz. Entretanto, o roteiro teve de suportar alguns dissabores. Armin, o namorado de Fassbinder, urinou enfurecido sobre suas páginas, porque seu amante não tinha tempo para ele; um turista selvagem da Austrália acertou um soco na cara de Fassbinder, depois de descobrir que Fassbinder era homosexual, o que levou a um derramamento de sangue nada insignificante e algumas gotas foram parar sobre as páginas cinquenta e cinquenta e um; o vento da manhã, quando as faxineiras abriram as janelas, carregou as páginas oitenta e três e noventa e dois para o ar livre, de onde elas


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velejaram até o porto lá em baixo e somente com o grande esforço de um esquadrão de caçadores desesperados puderam ser novamente postas a salvo.

da manhã Leila me sussurrou alguma coisa aos ouvidos e segundos mais tarde Raissa, sua irmã de treze anos, dançava totalmente encoberta diante de mim.

Além disso, houve ainda uma grande quantidade de cerveja, de vez em quando também um copo de cuba libre, e bastante café e cinzas dos milhares de cigarros de Fassbinder.

“Ela é sua, meu amigo.” Ibrahim, oitenta e nove anos, o chefe da casa, queria realmente me dar sua pequena Raissa de presente.

Nada mais estava no caminho da obra-prima. Leila mais uma vez cochichou algo. Durante nossa estada em Marrocos, Fassbinder deixava seu quase santificado lugar de criação apenas para realizar o necessário. Nem calças, nem sapatos (um par de chinelos gastos marrom escuro), nem roupa de baixo, nem camisa, nem jaqueta de couro (a mesma de sempre!) foram trocados. De vez em quando Armin trazia para Fassbinder um vidro de perfume, que encobria o aroma do trabalho duro que em geral era sentido em todo o restaurante. “Ficki, ficki?” O jovem marroquino olhava para mim sem esperanças.

“Meu pai espera que você lhe dê um donativo pelo seu presente.” “Um donativo?” “Dois mil marcos seria muito?” Eu sorri um tanto inibido e usei a desculpa de que já seria muito tarde e que agora eu tinha de voltar para o hotel. Fassbinder quase chorou. Eu o encontrei às três horas da manhã em sua mesa cativa, onde mais?, e na página duzentos e sete.

“Não, eu não me interesso por homens.” “Mas isto é incrível, Ullrich Manfred, um presente do céu!” Cinco minutos mais tarde ele me trouxe Leila, uma jovem de dezoito anos, de Tânger. Descobri que Leila havia sido incumbida por seu pai de cuidar dos turistas por algum dinheiro. Ingênuo ou ainda muito romântico, apaixonei-me por ela. Eu não queria sexo, apenas carinho. E paguei a ela por isso. Ela usava sandálias leves como as do tempo de Cristo e uma longa túnica lilás. Sua pele, principalmente a de seus pés delicados, me atraía. Eu admirava Leila, a projeção de meus anseios, de verdade, eu a venerava como a uma santa. Nós passeamos muitas vezes por Kasbah, alugamos um pequeno barco a velas e éramos ambos muito felizes.

“Eu não sei, Rainer, mas eu não posso fazer isto! Eu não posso mesmo assumir uma responsabilidade destas!” “Ah, que responsabilidade! Agora pegue o dinheiro, pegue a pequena e leve-a com você para a Alemanha!” Ele enfiou a mão no bolso de sua jaqueta de couro e tirou um monte de notas de cem. Fassbinder sempre tinha o bastante delas com ele, ele chamava a isto de seu fundo de guerra para imprevistos, como as necessárias viagens de repouso à sauna em Paris. “Não eu não posso fazer isto! Eu não quero isto, Rainer Werner!”

Ela deve ter falado a seus pais sobre este homem estranho porque uma noite eu fui convidado para jantar em sua casa. Aquilo foi talvez um banquete! E durou sete horas. Por volta das duas horas

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Seu semblante escureceu-se.


“Mas você é o fim, Ullrich Manfred! Eu estou realmente abalado! Tanta mediocridade! Pior do que Michael Ballhaus algum dia foi! Deixe-me sozinho, eu agora estou totalmente deprimido e não quero ver você nunca, nunca, nunca, nunca mais!”

Sua aparência não era boa. Seus olhos estavam fundos e ele havia engordado no mínimo vinte quilos. E ainda com sua jaqueta de couro. E ainda as botas pretas. E ainda um cigarro atrás do outro. E então ainda cocaína. E calmantes e soníferos.

Fecha.

Eu temi por ele, mas de qualquer modo a gente não podia lhe dizer nada. Qualquer comentário sobre isso teria sido desqualificado por ele como medíocre e pequeno-burguês demais.

Um dia é um ano é uma vida. Quando eu era menino minha mãe levou-me ao lago, onde havia dois cisnes brancos. “Os cisnes são fiéis um ao outro até o fim da vida.” Nunca esquecerei a frase de minha mãe. Esta sempre foi a grande expectativa de nossa sociedade “saudável”. Casar e ter filhos. Até que a morte os separe… O mundo dos cisnes nunca foi algo que me interessasse. Eu sempre fui mais feliz com os lobos. Lá eu me sinto livre. Lá posso cantar e dançar e correr e rir e chorar. No território dos lobos. Um dia é um ano é uma vida. Hollywood, 1981. O dia da entrega do Oscar. Fassbinder havia chegado a Los Angeles, para conversar com Walter Kohner, nosso agente, sobre elenco. Para seu projeto Cocaína com Romy Schneider. Eu não via Rainer desde agosto de 1977. Nós estávamos sentados em um bar gay na zona oeste de Hollywood. “Fantástico, este Força assassina. Você mostrou a eles. É verdade que eu ainda não vi o filme, mas o jornal Süddeutsche escreve que é muito bom. E além disso, o que você anda fazendo, Ullrich Manfred? Como vão as mulheres?”

Durante muito tempo ele não disse absolutamente nada e apenas olhou em volta. Então ele foi para a sombra e colocou um pesado óculos escuros.



“Este eterno sol aqui em Los Angeles me deixa doente. Como é que você consegue aguentar isto, Ullrich Manfred?”

pre na sombra. E nós rimos e choramos, como outrora, quando assistimos Uma bala para o general.

Este não era mais o meu velho Fassbinder, este era Onassis em uma viagem de LSD.

Por um momento o mundo estava em ordem novamente. E nós cantamos uma canção de Esther Ofarim:

“As últimas palavras de Goethe foram ‘Mais luz’. Eu não entendo porque, Ullrich Manfred. Mais sombra faz realmente muito mais sentido, você não acha?”

“Pergunte à lua prateada, onde mora o amor, mas não pergunte, por que algumas vezes ele se acaba...” Um dia é um ano é uma vida.

“Eu gosto das últimas palavras de Leonardo da Vinci. ‘Eu ofendi a Deus e à humanidade, porque meu trabalho nunca alcançou a qualidade, que deveria ter.’ Quanta modéstia isso já é loucura!” “Ou as últimas palavras de Maquiavel. ‘Eu gostaria de ir para o inferno e não para o céu, porque no inferno eu posso desfrutar da companhia de papas e reis.’ Pois bem, é para lá que eu também quero ir, para o inferno. Ou você, por acaso, gostaria de ir para o céu, Ullrich Manfred, isto seria muito constrangedor. Mas na verdade combina com você.”

“Se nós pudéssemos mais uma vez começar do início, Ullrich Manfred, se você pudesse fazer tudo de novo, o que você faria diferente?” “De onde veio esta ideia, Rainer? Nós estamos no meio desta viagem. Você está com trinta e cinco anos, é um homem jovem.” De repente ele pareceu muito velho e acabado. Como um elefante velho que estivesse fazendo sua última viagem do Circo Krone para o zoológico.

“E o que você acha do que Heinrich Heine disse ao morrer?” “Eu não sei. O que foi que ele disse no fim?” “Deus me perdoará. Este é o seu ofício.” “Nada mau. Muito embora eu jamais pensaria em pedir por perdão. De que adianta, se o bom Deus te perdoa? Teus amantes, aos quais você traiu, machucou e decepcionou, estes sim devem te perdoar enquanto vivo. Eu acho isto muito mais bonito.”

“Os trinta e cinco anos de minha viagem me parecem agora três mil e quinhentos.” Três meses mais tarde Rainer estava morto. E eu não estou seguro, se aquela história de querer ir para o inferno deu certo. O lobo que havia dentro dele era simplesmente um muito bom para o Diabo. Ele teria tido um pressentimento de sua morte iminente? Será que o lobo meigo, grande e mau estaria cansado? Muita luz, e muita sombra.

Ele começou a cantar bem baixinho uma música de Vicky Leandro: “Você sabe eu amo a vida. O carrossel vai continuar a girar, até que nos vejamos de novo.” Nós vagueamos pelo já naquela época um pouco decadente Hollywood Boulevard, passamos por mendigos, por imitadores de Michael Jackson, Marilyn e Elvis, pelas estrelas dos astros, e sem-

“O que eu faria de outra forma? Ah... sabe, Rainer Werner, isto é uma longa história. Mas talvez eu devesse ter dado à melancólica Ingeborg Bachmann os sapatos vermelhos de salto alto, da Bally, que ela admirou com grandes olhos redondos, quando andávamos pelo Kudamm, em 1963. Talvez ela se sentisse feliz…”

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RAINER WERNER Rainer Werner Fassbinder nasce em 1945 na cidade de Bad Wörishofen, na Bavária, de pai médico e mãe tradutora. Depois de cinco anos, o casal se divorcia e Fassbinder fica com a mãe, que se instala em Munique. Em criança, vai ao cinema diariamente. Depois de uma tentativa frustrada de entrar na Escola de Cinema de Berlim, Fassbinder entra no grupo Action eater de Munique em 1967. No ano seguinte encena com Peer Raben sua primeira peça, O machão. Com Raben, cria ainda no mesmo ano o grupo Anti-Teater, e encena O soldado americano. Em 1969, lança O amor é mais frio que a morte, seu primeiro longa-metragem. Fassbinder começa então uma das carreiras mais prolíficas da história do cinema, realizando de três a quatro filmes por ano (às vezes mais que isso) até 1976. A primeira parte de sua produção é de feitura rápida, com filmes de orçamento muito barato, antipsicológicos, confrontativos e realizam diversas estratégias de distanciamento que revelam influências de Brecht e de Godard (O machão, Rio das Mortes). A partir de O mercador das quatro estações (1971), incorpora definitivamente as características do melodrama americano – em especial os de Douglas Sirk, sua maior influência – a seu cinema, e consegue seu primeiro sucesso de público. No ano seguinte, adapta para o cinema uma peça sua, As lágrimas amargas de Petra von Kant, que serve de matriz para muitos de seus filmes posteriores: a história de mulheres arrui-

Fassbinder nadas sentimentalmente e despersonalizadas pelo convívio com pessoas opressoras (Martha, O desespero de Veronika Voss). Consegue seu primeiro sucesso internacional – e o prêmio da crítica no Festival de Cannes – com O medo devora a alma, de 1973, que narra o amor de uma sexagenária por um árabe muito mais jovem que ela. O direito do mais forte, filmado no ano seguinte e estrelado pelo próprio Fassbinder, aplica a fórmula do melodrama feminino para narrar a história de um amor homossexual autodestrutivo. Despair, de 1978, marca a passagem de Fassbinder para uma fase de produções mais caras. A partir de então, começa a trabalhar em suas histórias um afrontamento mais direto com a história alemã no século XX, do nazismo à instalação da Alemanha Ocidental. São dessa fase alguns de seus trabalhos mais conhecidos: O casamento de Maria Braun, Lola, Lili Marleen, A terceira geração. Em 1980, faz para a televisão alemã uma adaptação em forma de minissérie do romance Berlin Alexanderplatz, de Alfred Döblin, que, com mais de quinze horas e em 14 episódios, é considerado sua obra-prima. Excessivo, barroco, polêmico, escandaloso, o cinema de Fassbinder é um dos mais singulares da história da sétima arte. Pouco depois de adaptar Querelle, de Jean Genet, Fassbinder morre vítima de uma overdose de drogas, em junho de 1982.

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PROGRAMA ESPECIAL Berlim Alexanderplatz Berlin Alexanderplatz

*Franz Walsch é pseudônimo de RWF, homenagem a Franz Biberkopf, herói de Berlin Alexanderplatz, e ao cineasta americano Raoul Walsh.

Berlim, anos 20. Franz Biberkopf sai da prisão depois de cumprir uma pena de quatro anos por ter assassinado a namorada. De volta às ruas, pretende começar uma nova vida. Mas, sem conseguir emprego e sentindo-se inútil, entrega-se à bebida. Entre as pessoas próximas a ele estão a companheira Lina, a prostituta e ex-namorada Eva e Reinhold, um criminoso que exerce uma estranha fascinação sobre Franz. Baseado no livro homônimo de Alfred Döblin.

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Alemanha, 1980, 894 min, 35mm, cor, 18 anos. Elenco: Günther Lamprecht, Hanna Schygulla, Barbara Sukowa, Gottfried John, Franz Buchrieser, Brigitte Mira, Harry Baer, Margit Carstensen, Ivan Desny, Adrian Hoven, Udo Kier, Peer Raben, Werner Schroeter. Roteiro: Rainer Werner Fassbinder. Fotografia: Xaver Schwarzenberger. Montagem: Franz Walsch*, Juliane Lorenz. Música: Peer Raben.

PROGRAMA FASSBINDER A Viagem a Niklashauser Alemanha, 1970, 86 min, 35mm, cor, 16 anos. Elenco: Michael König, Michael Gordon, Rainer Werner Fassbinder, Hanna Schygulla, Margit Carstensen, Kurt Raab. Direção: Rainer Werner Fassbinder, Michael Fengler. Roteiro: Rainer Werner Fassbinder, Michael Fengler. Fotografia: Dietrich Lohmann. Montagem: ea Eymèsz. Música: Peer Raben, Amon Duül II

No século XV, o pastor de ovelhas Hans Böhm afirma que a Virgem Maria apareceu para ele. Começa a fazer pregações e conquista milhares de discípulos que o julgam o novo messias. Termina preso e morre na fogueira por ordem da igreja. Fassbinder narra a história com figurino de época e locações contemporâneas.

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Die Nicklashauser Fart


Despair – Uma Viagem na Luz Despair – Eine Reise ins Licht Alemanha/França, 1977, 119 min, 35mm, cor, 16 anos. Elenco: Dirk Bogarde, Andréa Ferréol, Volker Spengler, Klaus Löwitsch, Alexander Allerson, Bernhard Wicki. Roteiro: Tom Stoppard. Fotografia: Michael Ballhaus. Montagem: Juliane Lorenz, Franz Walsch, Reginald Bech (este último apenas na versão americana). Música: Peer Raben.

Alemanha, anos 30. Hermann Hermann é um imigrante russo que vai progressivamente perdendo a razão. Ao conhecer um homem que crê parecer-se com ele, Hermann pretende assassinálo para trocar de identidade e fazer sua mulher retirar o dinheiro do seguro de vida. Adaptação do romance de Vladimir Nabokov.

Eu quero Apenas Que Vocês Me Amem Ich will doch nur, dass ihr mich liebt

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Alemanha, 1975, 103 min, DVD, cor, 16 anos. Elenco: Vitus Zeplichal, Elke Aberle, Alexander Allerson, Ernie Mangold, Johanna Hofer, Katherina Buchhammer. Roteiro: Rainer Werner Fassbinder, baseado em livro de Klaus Antes e Christine Ehrhardt. Fotografia: Michael Ballhaus. Montagem: Liesgret Schmitt-Klink. Música: Peer Raben.

Desde criança, Peter tenta comprar com presentes o amor dos pais, que prestam muito pouca atenção nele. Já adulto, continua inseguro e carente de atenção. Casa-se com Erika, e atola-se em dívidas dando presentes caros à esposa. Os sentimentos reprimidos acabarão ocasionando uma desgraça.

Mamãe Kusters Vai ao Céu Mutter Küsters Fahrt zum Himmel Alemanha, 1975, 120 min, 35mm, cor, 16 anos. Elenco: Brigitte Mira, Ingrid Caven, Karlheinz Böhm, Margit Carstensen, Irm Hermann, Gottfried John. Roteiro: Rainer Werner Fassbinder, com colaboração de Kurt Raab. Fotografia: Michael Ballhaus. Montagem: ea Eymèsz. Música: Peer Raben.

Depois que seu marido enlouquece, mata o filho do patrão e se suicida nas máquinas da fábrica, Mamãe Kursters vira celebridade da noite para o dia. Depois de ser explorada pela mídia sensacionalista, que a faz de boba, ela cai nas graças de um casal comunista que pretende usar o ato de seu marido como ato de rebeldia.

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O Amor É Mais Frio Que a Morte Liebe ist kälter als der Tod

Fichado na polícia por assalto, Franz recusa-se a ingressar no sindicato do crime organizado, preferindo agir por conta própria. Franz fica amigo de Bruno, que é do sindicato, e juntos eles planejam um assalto. Joanna, namorada de Franz, fica preocupada com o futuro da operação e decide denunciar o esquema para a polícia.

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Alemanha, 1969, 88 min, 35mm, p&b, 16 anos. Elenco: Ulli Lommel, Hanna Schygulla, Rainer Werner Fassbinder, Hans Hirschmüller, Ingrid Caven, Kurt Raab. Roteiro: Rainer Werner Fassbinder. Fotografia: Dietrich Lohmann. Montagem: Franz Walsch. Música: Peer Raber, Holga Münzer.

O Direito do Mais Forte Faustrecht der Freiheit

Sem dinheiro, Franz Biberkopf começa a prostituir-se. Seu primeiro cliente é um homem mais velho e elegante, que torna-se seu amigo. No dia seguinte, Franz descobre que ganhou 50 mil marcos na loteria. Através do novo amigo conhece Eugen, herdeiro de uma editora falida. Franz se apaixona por Eugen e passa a ter com ele numa relação conflituosa.

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Alemanha, 1974, 123 min, 35mm, cor, 16 anos. Elenco: Rainer Werner Fassbinder, Peter Chatel, Karlheinz Böhm, Rudolf Lenz, Karl Scheydt, Kurt Raab. Roteiro: Rainer Werner Fassbinder. Fotografia: Michael Ballhaus. Montagem: ea Eymèsz. Música: Peer Raben, com canções de Leonard Cohen e Elvis Presley.

O Medo do Medo Angst vor der Angst

Margot é uma dona de casa de classe média. Inesperadamente, ela é acometida por diversas situações de mal-estar, e adquire um medo inexplicável. Margot tenta explicar seus sintomas ao marido e à família, mas recebe olhares indiferentes. Recorre ao álcool e às drogas para aliviar a dor, mas acaba vítima da depressão e do vício.

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Alemanha, 1975, 88 min, 35mm, cor, 16 anos. Elenco: Margit Carstensen, Ulrich Faulhaber, Brigitte Mira, Irm Hermann, Armin Meier, Adrian Hoven. Roteiro: Rainer Werner Fassbinder, baseado em ideia de Asta Scheib. Fotografia: Jürgen Jürges. Montagem: Liesgret Schmitt-Klink. Música: Peer Raben.


O Mercador das Quatro Estações Der Händler der vier Jahreszeiten

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Alemanha, 1971, 83 min, DVD, cor, 16 anos. Elenco: Hans Hirschmüller, Irm Hermann, Hanna Schygulla, Andrea Schober, Gusti Kreissl, Klaus Löwitsch. Roteiro: Rainer Werner Fassbinder. Fotografia: Dietrich Lohmann. Montagem: ea Eymèsz.

Hans Epp é uma pessoa sociável que busca a admiração daqueles que o rodeiam. Seu trabalho como feirante incomoda sua família aburguesada, sua mulher está descontente e até os fregueses zombam dele. Humilhado, ele passa a beber muito e adquire comportamento violento. A mulher e a filha o abandonam, e ele tem um ataque cardíaco. Quando ele se recupera, o trabalho começa a prosperar...

O Pequeno Caos Das kleine Chaos

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Alemanha, 1966, 9 min, 35mm, p&b, 14 anos. Elenco: Marite Greiselis, Christoph Roser, Rainer Werner Fassbinder, Lilo Pempeit. Roteiro: Rainer Werner Fassbinder. Fotografia: Michael Fengler. Montagem: Rainer Werner Fassbinder.

eo, Marite e Franz tentam ganhar dinheiro vendendo assinaturas de revista. Como o negócio não dá certo, o trio de amigos decide assaltar uma casa.

O Vagabundo Der Stadtstreicher Alemanha, 1966, 10 min, 35mm, p&b, 16 anos. Elenco: Christoph Roser, Susanne Schimkus, Michael Fengler, omas Fengler. Roteiro: Rainer Werner Fassbinder. Fotografia: Michael Fengler, Josef Jung.

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Um vagabundo encontra uma arma no meio da rua e tem dificuldades para se livrar dela. Mais tarde, terá encontros com uma mulher e com dois homens misteriosos.

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Rio das Mortes Alemanha, 1970, 84 min, 16mm, cor, 16 anos. Elenco: Hanna Schygulla, Michael König, Gunther Kaufmann, Katrin Schaake, Joachim von Mengershausen, Ulli Lommel. Roteiro: Rainer Werner Fassbinder, a partir de argumento de Volker Schlöndorff. Fotografia: Dietrich Lohmann. Montagem: ea Eymèsz. Música: Peer Raben.

Michael e Gunther vivem em Munique sem maiores expectativas quanto ao que fazer de suas vidas,até que eles descobrem um mapa do Rio das Mortes, no Peru, e ficam obcecados com a ideia de viajar para lá a fim de encontrar riquezas. Hanna, noiva de Michael, não fica entusiasmada com o plano dos amigos e tenta incutir juízo nos dois.

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Rio das Mortes

Roleta Chinesa Chinesisches Roulette

Gerhard Christ anuncia que vai para Oslo em uma viagem de negócios, mas na verdade viaja com sua amante para a casa de campo da família. Lá chegando, eles encontram Ariane, mulher de Gerhard, acompanhada de seu amante.Mais tarde chega Angela,filha de Gerhard e Ariane, que sugere ao grupo um jogo cruel: a roleta chinesa.

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Alemanha, 1976, 86 min, 16mm, cor, 16 anos. Elenco: Margit Carstensen, Anna Karina, Ulli Lommel, Alexander Allerson, Andrea Schober, Macha Méril. Roteiro: Rainer Werner Fassbinder. Fotografia: Michael Ballhaus. Montagem: Ila von Hasperg. Música: Peer Raben.

Whity Whity

EUA, 1878. Whity é o mordomo mulato da família Nicholson. O pai, Ben Nicholson, tem uma esposa jovem e atraente, Katherine, e dois filhos de outro casamento: o homossexual Frank e o antiquado Davy. Whity tenta executar as ordens que lhe dão, até que membros da família lhe pedem para matar alguns dos outros familiares.

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Alemanha, 1970, 95 min, 35mm, cor, 16 anos. Elenco: Gunther Kaufmann, Hanna Schygulla, Ulli Lommel, Harry Baer, Katrin Schaake, Kurt Raab. Roteiro: Rainer Werner Fassbinder. Fotografia: Michael Ballhaus. Montagem: Franz Walsch. Música: Peer Raben.


CLÁSSICOS (RIO DE JANEIRO) Effi Briest Fontane Effi Briest

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Alemanha, 1973, 141 min, DVD, p&b, 16 anos. Elenco: Hanna Schygulla, Wolfgang Schenk, Karlheinz Böhm, Ulli Lommel, Ursula Strätz, Irm Hermann. Roteiro: Rainer Werner Fassbinder. Fotografia: Dietrich Löhmann, Jürgen Jürges. Montagem: ea Eymèsz.

Effi Briest, uma jovem de dezessete anos, casa-se com o Barão von Instetten, vinte anos mais velho. Infeliz, Effi entrega-se a um amante, o major Crampas. Oito anos depois, o Barão descobre o caso e mata o ex-amante num duelo, repudia a esposa e ensina a filha do casal a rejeitar a mãe. Adaptação do romance homônimo de eodor Fontane.

Lili Marleen

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Lili Marleen Alemanha, 1980, 120 min, DVD, cor, 16 anos. Elenco: Hanna Schygulla, Giancarlo Giannini, Mel Ferrer, Karlheinz von Hassel, Christine Kaufmann, Hark Bohm. Roteiro: Manfred Purzer, Rainer Werner Fassbinder, Joshua Sinclair, baseado nas memórias de Lale Andersen. Fotografia: Xaver Schwarzenberger. Montagem: Franz Walsch, Juliane Lorenz. Música: Peer Raben, Norbert Schultze, Hans Leipp.

Zurique, 1938. Wilkie é uma cantora de cabaré e vive um romance com o músico Robert Mendelssohn. Aproveitando uma viagem dos dois à Alemanha, o pai de Robert, que é contra o relacionamento, consegue fazer com que ela não volte à Suíça. Mais tarde, uma música cantada por Wilkie fará sucesso entre os soldados de Hitler: “Lili Marleen”.

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Lola Lola Alemanha, 1981, 113 min, DVD, cor, 16 anos. Elenco: Barbara Sukowa, ArminMueller-Stahl,Mario Adorf,Matthias Fuchs, Helga Feddersen, Karin Baal. Roteiro: PeterMärtesheimer. Fotografia: Xaver Schwarzenberger. Montagem: Juliane Lorenz. Música: Peer Raben.

Lola é dançarina de um bordel frequentado pelas principais figuras da sociedade local.Nele são arquitetados grandes negócios e verdadeiras tramas de corrupção. Um honesto funcionário público se apaixona por Lola, símbolo do submundo e da corrupção, criando um caos nos bastidores políticos e sociais da cidade.

Martha Martha Alemanha, 1973, 111 min, DVD, cor, 16 anos. Elenco: Margit Carstensen, Karlheinz Böhm, Gisela Fackeldey, Adrian Hoven, Barbara Valentin, Ingrid Caven. Roteiro: Rainer Werner Fassbinder. Fotografia: Michael Ballhaus. Montagem: Liesgret Schmitt-Klink.

Martha, uma mulher solteira na casa dos 30 anos, está de férias com seu pai. Quando ele morre, Martha vai viver com sua mãe, que a trata de forma desrespeitosa. Para escapar da mãe, ela casa com Helmuth, um homem possessivo. Ele convence Martha a abandonar o emprego, aluga uma casa longe da cidade natal da esposa e desenvolve jogos de dominação e violência psicológica.

Num Ano de 13 Luas In einem Jahr mit 13 Monden Alemanha, 1978, 124 min, 16mm, cor, 16 anos. Elenco: Volker Spengler, Ingrid Caven, Gottfried John, Elisabeth Trissenaar, Eva Mattes, Günther Kaufmann. Roteiro: Rainer Werner Fassbinder. Fotografia: Rainer Werner Fassbinder. Montagem: Rainer Werner Fassbinder, Juliane Lorenz. Música: Peer Raben.

Os últimos dias do travesti Elvira Weishaupt. Anos atrás, Elvira era Erwin, e estava apaixonada por Anton, um colega de trabalho. Anton recusa seu amor: “Você não é uma mulher”. Erwin toma a expressão de Anton ao pé da letra e torna-se Elvira, esperando que com isso possa afinal viver o amor que tanto deseja.

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O Casamento de Maria Braun

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Die Ehe der Maria Braun Alemanha, 1978, 120 min, DVD, cor, 16 anos. Elenco: Hanna Schygulla, Klaus Löwitsch, Ivan Desny, Gottfried John, Gisela Uhlen, Günther Lamprecht. Roteiro: Peter Märtesheimer, Pea Frölich, baseado em ideia de Rainer Werner Fassbinder. Fotografia: Michael Ballhaus. Montagem: Franz Walsch, Juliane Lorenz. Música: Peer Raben.

O casamento de Maria e Hermann Braun não dura mais que uma noite e meio dia. Hermann é mandado para o fronte e, no final da guerra, é dado como desaparecido. Maria, no entanto, acredita que ele ainda possa estar vivo. Ela torna-se amante de um soldado negro americano e o mata acidentalmente quando Hermann reaparece. Espécie de síntese da História alemã do nazismo aos dias atuais.

O Desespero de Veronika Voss Die Sehnsucht der Veronika Voss Alemanha, 1981, 104 min, DVD, p&b, 16 anos. Elenco: Rosel Zech, Hilmar ate, Cornelia Froboess, Annemarie Düringer, Doris Schade, Armin Mueller-Stahl. Roteiro: Peter Märtesheimer, Pea Frölich, Rainer Werner Fassbinder. Fotografia: Xaver Schwarzenberger. Montagem: Juliane Lorenz. Música: Peer Raben.

Munique, 1955: um locutor esportivo conhece Veronika Voss, uma antiga estrela de cinema, agora no ostracismo. Veronika, na época do nazismo, supostamente teria tido um caso com Goebbels. Interessado, ele investiga as razões que a levaram ao vício de bebida e de morfina, além do papel que uma certa Dra. Kart desempenha em sua vida.

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O Machão Katzelmacher

Jorgos é um imigrante grego que viajou para a Alemanha em busca de trabalho. Sua chegada numa cidade pequena começa a tumultuar os hábitos e a vida apática do local. Ele tenta fazer amizades, mas é visto com preconceito e insultado. Aos poucos, ele começa a ganhar a simpatia de algumas das jovens da cidade, o que desperta a fúria e o racismo dos rapazes.

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Alemanha, 1969, 88 min, DVD, p&b, 16 anos. Elenco: Rainer Werner Fassbinder, Hanna Schygulla, Lilith Ungerer, Elga Sorbas, Doris Mattes, Harry Baer. Roteiro: Rainer Werner Fassbinder. Fotografia: Dietrich Lohmann. Montagem: Franz Walsch. Música: Peer Raben.

O Medo Devora a Alma Angs essen Seele auf

Numa noite chuvosa, Emmi, uma faxineira sexagenária, entra num bar frequentado por imigrantes árabes. Lá ela conhece Ali, um marroquino que trabalha numa garagem. Nasce entre os dois uma amizade que se transforma em romance, e posteriormente em casamento, incitando a fúria de familiares e amigos. Baseado no filme Tudo que o céu permite, de Douglas Sirk.

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Alemanha, 1973, 93 min, DVD, cor, 14 anos. Elenco: Brigitte Mira, El Hedi Ben Salem, Barbara Valentin, Irm Hermann, Rainer Werner Fassbinder, Doris Mattes. Roteiro: Rainer Werner Fassbinder. Fotografia: Jürgen Jürges. Montagem: ea Eymèsz.


PROGRAMAÇÃO COMPLEMENTAR Eu Não Quero Apenas Que Vocês Me Amem Ich will nicht nur, cass ihr mich liebt – Der Filmemacher Rainer Werner Fassbinder Alemanha, 1993, 96 min, DVD, cor, 16 anos. Com Hanna Schygulla, Michael Ballhaus, Juliane Lorenz, Ingrid Caven, Xaver Schwarzenberger, Peer Raben. Direção: Hans Günther Pflaum. Roteiro: Hans Günther Pflaum. Fotografia: Manfred Burkle, Werner Kurz. Montagem: Ingrid Wolff.

Documentário produzido por ocasião dos 10 anos da morte de Fassbinder, com depoimentos de vários colaboradores de Fassbinder, que falam sobre a pessoa, o método específico de trabalho e a importância do diretor. O filme também conta com depoimentos do cineasta e trechos de seus filmes.

Fassbinder em Hollywood Fassbinder in Hollywood Alemanha/EUA, 2002, 57 min, Beta Digital, cor, 16 anos. Com Ulli Lommel, Hanna Schygulla, Michael Ballhaus, Wim Wenders, Günther Ziegler, Ian Birnie. Direção: Robert Fischer. Roteiro: Ulli Lommel, Robert Fischer. Fotografia: omas Repp, Bruce Schermer. Montagem: Katja Hahn. Música: Roque Baños.

O diretor e ator Ulli Lommel é o apresentador e guia desta incursão pela Hollywood de hoje. No caminho, eles encontram com alguns dos mais importantes parceiros criativos de Fassbinder em sua carreira, como a atriz Hanna Schygulla e o diretor de fotografia Michael Ballhaus. O filme também mostra uma companhia de teatro da Califórnia especializada em encenar peças de Fassbinder.

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Filmes com participação direta e indireta de Fassbinder A Ternura dos Lobos Die Zärtlichkeit der Wölfe Alemanha, 1973, 82 min, DVD, cor, 16 anos. Elenco: Kurt Raab, Margit Carstensen, Ingrid Caven, Jeff Roden, Brigitte Mira, Rainer Werner Fassbinder. Direção: Ulli Lommel. Roteiro: Kurt Raab. Fotografia: Jürgen Jürges. Montagem: ea Eymèsz, Franz Walsch. Música: Peer Raben.

Filme de terror baseado na história real de Fritz Haarman, o assassino conhecido como “Vampiro de Düsseldorf ” que matou dezenas de crianças e serviu de inspiração para o clássico M, O Vampiro de Düsseldorf, de Fritz Lang. Fassbinder é produtor do filme junto com Michael Wengler, além de fazer uma pequena participação como ator.

Gotas d’Água em Pedras Escaldantes Gouttes d’eau sur pierres brûlantes França, 2000, 90 min, 35mm, cor, 16 anos. Elenco: Bernard Giradeau, Malik Zidi, Ludivine Sagnier e Anna omson. Direção: François Ozon. Roteiro: François Ozon, baseado na peça Tropfen auf heisse Steine de Rainer Werner Fassbinder. Fotografia: Jeanne Lapoirie. Montagem: Laurence Bawedin, Claudine Bouché. Música: canção “Traume” interpretada por Françoise Hardy.

Alemanha, anos 70. O ingênuo Franz, de 19 anos, conhece Leopold, um homem de negócios, e vai viver com ele. Aos poucos, os jogos de manipulação tomam conta do relacionamento, fazendo com que surjam brigas e jogos de poder. A situação fica mais confusa quando duas ex-namoradas, uma de cada um, entram em cena.

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filmes de referência A Viagem de Mamãe Krause para a Felicidade Mutter Krausens Fahrt ins Glück Alemanha, 1929, 116 min, 16mm, p&b, mudo, 16 anos. Elenco: Alexandra Schmitt, Holmes Zimmermann, Ilse Trautschold, Gerhard Bienert, Vera Sacharowa, Friedrich Gnass. Direção: Phil Jutzi. Roteiro: Willy Döll, Jan Fethke, baseado em argumento de Heinrich Zille e Otto Nagel. Fotografia: Phil Jutzi. Música: Paul Dessau.

A mamãe Krause vive com seus filhos Erna e Paul num bairro pobre de Berlim. Ela ganha a vida como entregadora de jornais, e o pouco dinheiro da casa é gasto por Paul com bebida. Enquanto isso, Erna começa a namorar um jovem que tenta convertê-la ao comunismo. Um dos clássicos do realismo social alemão dos anos 20, e fonte de influência para Mamãe Kurster vai para o céu.

Berlin Alexanderplatz Berlin – Alexanderplatz Alemanha, 1931, 88 min, Beta Digital, p&b, 18 anos. Elenco: Heinrich George, Bernhard Minetti, Margarite Schlegel, Maria Bard, Albert Florath, Paul Westermeier. Direção: Phil Jutzi. Roteiro: Alfred Döblin, Karl Heinz Martin, Hans Wilhelm. Fotografia: Nicolas Farkas, Erich Giese. Montagem: Geza, Pollatschik. Música: Allan Gray.

Primeira adaptação de Berlin Alexanderplatz, em que o próprio romancista Alfred Döblin participa como corroteirista. O filme segue a trajetória de Franz Biberkopf depois de passar quatro anos na cadeia. Fassbinder considerava o filme muito bom, apesar de o livro ter sido inteiramente esquecido para a feitura do longa-metragem.

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Titanic Titanic Alemanha, 1943, 85 min, DVD, p&b, 16 anos. Elenco: Sybille Schmitz, Hans Nielsen, Kirsten Heiberg, Ernst Fritz Fürbringer, Karl Schönböck, Charlotte iele. Direção: Herbert Selpin, Roteiro: Herbert Selpin, Walter Zerlett-Olfenius. Fotografia: Friedl Behn-Grund. Montagem: Friedel Buckow. Música: Werner Eisbrenner.

Com as ações de sua companhia White Star descendo, Sir Bruce Ismay utiliza a primeira viagem de seu navio Titanic para bater recordes de velocidade e readquirir prestígio e dinheiro. O oficial alemão Peterson tenta impedir a ganância do lorde inglês, mas o navio bate num iceberg. Filme estrelado por Sybille Schmitz, atriz em quem Fassbinder se baseou para o filme O desespero de Veronika Voss.

A Grande Jornada e Big Trail EUA, 1930. 120 min, DVD, p&b, 16 anos. Elenco: John Wayne, Marguerite Churchill, El Brendel, Tully Marshall, Tyrone Power, David Rollins. Direção: Raoul Walsh. Roteiro: Marie Boyle, Jack Peabody, Florence Postal, a partir de argumento de Hal G. Evarts. Fotografia: Lucien N. Andriot. Montagem: Jack Dennis. Música: R.H. Bassett, Peter Brunelli, Alfred Dalby, Arthur Kay, Jack Virgil.

Um jovem guia conduz uma enorme caravana de colonos por um caminho acidentado e cheio de perigos, com despenhadeiros, tempestades de neve, ataques de índios e manadas de búfalos. Durante a viagem, ele se apaixona por uma pioneira e faz de tudo para conquistá-la.

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Almas Maculadas e Tarnished Angels EUA, 1958, 91 min, DVD, p&b, 16 anos. Elenco: Rock Hudson, Robert Stack, Dorothy Malone, Jack Carson, Robert Middleton, Alan Reed. Direção: Douglas Sirk. Roteiro: George Zuckerman, baseado no livro Pylon de William Faulkner.

Década de 1930. Um exímio piloto da 1ª Guerra chamado Roger Schumman foi reduzido a piloto de acrobacias aéreas. Enquanto sua família sobrevive a duras penas, Roger persegue sua verdadeira paixão: o avião. Quando o repórter Burke Devin aparece para fazer uma reportagem, acaba se envolvendo com La Verne, mulher do aviador.

Imitação da Vida Imitation of Life EUA, 1959, 125 min, DVD, cor, 16 anos. Elenco: Lana Turner, John Gavin, Sandra Dee, Susan Kohner, Robert Alda, Dan O’Herlihy. Direção: Douglas Sirk. Roteiro: Eleanore Griffin e Allan Scott. Fotografia: Russell Metty. Montagem: Milton Carruth. Música: Frank Skinner

Em Coney Island, 1947, a atriz Lora Meredith e sua filha conhecem Annie Johnson, uma negra que não tem onde morar, e sua filha Sarah Jane. As quatro passam a viver num apartamento modesto. Para Fassbinder, nenhum outro filme expõe de forma tão clara que os pensamentos, desejos e sonhos dos personagens são provocados e manipulados pela sociedade.

O Leopardo Il gattopardo Itália/França, 1962, 185 min, DVD, cor, 16 anos. Elenco: Burt Lancaster, Alain Delon, Claudia Cardinale, Paolo Stoppa, Rina Morelli, Pierre Clémenti. Direção: Luchino Visconti. Roteiro: Suso Cecchi d’Amico, Luchino Visconti, Pasquale Festa Campanile, Massimo Franciosa, Enrico Medioli, baseado no romance homônimo de Guiseppe Tomasi di Lampedusa. Fotografia: Giuseppe Rotunno. Montagem: Mario Serandrei. Música: Nino Rota. Fotografia: Irving Glassberg. Montagem: Russell F. Schoengarth. Música: Frank Skinner

Don Frabrizio Salina, um refinado príncipe siciliano, testemunha a decadência da nobreza e a ascensão da burguesia durante a unificação italiana, em 1860. O poder da nova classe social é representado por Don Calogero, que casará sua linda filha Angelica com Tancredi, sobrinho de Salina.

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Patrocínio Banco do Brasil

Agradecimentos

Realização Centro Cultural Banco do Brasil

Alfons Hug

Apoio Goethe Institut

Allan Koschdoski

Empresas Produtoras Jurubeba Produções, Zipper Produções

Annemarie Abel Antonio Exacoustos

Coordenação de projeto Arndt Roskens, Cristiano Terto, Alessandra Castañeda

Dennis Gerstenberger

Idealização, Curadoria Arndt Roskens

Fassbinder Foundation

Produção Executiva Alessandra Castañeda

Fernando Brito

Design, Coordenação Gráfica Cristiano Terto

Gisela Wiltschek

Criação de texto Ruy Gardnier

Helena Walter

Produção gráfica e Pesquisas Alessandra Castañeda e Deborah Rebello

Juliane Lorenz

Produção local Rio de Janeiro Marcelle Darrieux

Katrin Seele

Produção local São Paulo Renata Soledad Peña

Márcia Ludovico Cassimiro Soares

Receptivo Gabriel Bortolini e Jéssica Rodrigues

Marcos Cayres

Assistente de Produção executiva Deborah Rebello

Mariana Pinheiro

Assistente de design Licínio Souza

Robert Fischer

Revisão Rachel Ades

Roberto Acioli de Oliveira

Traduções textos Márcia Neumann, Gisele Mendonça

Sandra Lyra

Web Design Cristiano Terto, Daniel Real, Ricardo Prema Programação Website Daniel Real, Ricardo Prema Assistente de produção Reginaldo Cerqueira

Simone Molitor Vitus Zeplichal William Oliveira

Tradução simultânea do debate RJ Marcos Silva Tradução simultânea do debate SP José Santiago Legendagem do DVD A Ternura dos Lobos Anja Kessler Assessoria de Imprensa Rio de Janeiro Meise Halabi Assessoria de Imprensa São Paulo ProCultura

Agradecemos à editora Companhia Das Letras por ceder a tradução do texto “Do Romance ao filme: Berlin Alexanderplatz, de Fassbinder” de Susan Sontag. Agradecemos à editora Rowohlt Verlag por ceder os direitos autorais do roteiro de Despair - uma viagem na luz

Legendagem eletrônica Casarini Produções

Agradecemos a Paulo Betti e Tata Amaral pelo interesse na mostra

Despachante KM Comex & Transportes

Agradecimento especial a Adilson Lopes de Araujo

Foto de capa © Roger Fritz

Agradecimento especial a Versátil Home Vídeo

Foto de contracapa © Goethe-Institut

Agradecimento especial a Ulli Lommel pela atenção e carinho



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