O CINEMA É NICHOLAS RAY

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O Cin ema é n icH ol a s . Ray o cinema é nicholas ray


Ministério da Cultura e Banco do Brasil apresentam

o cinema é nicholas ray

Brasília 01-13 nov 2011 Rio de Janeiro 15 nov-04 dez 2011 São Paulo 16 nov-04 dez 2011


A programação audiovisual do Centro Cultural Banco do Brasil busca estimular a reflexão e permitir ao cidadão brasileiro o contato com obras cinematográficas universais e atemporais. Por meio da realização de mostras abrangentes, sempre acompanhadas de debates, encontros, cursos e publicações de livros e catálogos, o CCBB contribui para que o público possa ter acesso a propostas estéticas significativas e singulares na história nacional e de outros países. A mostra O Cinema é Nicholas Ray, apresentada pelo Ministério da Cultura e Banco do Brasil, traz, pela primeira vez, uma retrospectiva completa do cineasta Nicholas Ray ao Brasil, no ano do centenário do diretor. A mostra contará, ainda, com a presença da viúva Susan Ray, debates, masterclasses e com o lançamento brasileiro da cópia restaurada do último filme de Nicholas Ray, We Can’t Go Home Again. A força que sua produção exerceu sobre a vida e a arte cinematográfica de seu país e do mundo fica documentada no catálogo, inédito no Brasil, produzido especialmente para a mostra, com críticas da época, ensaios, textos originais e informações sobre sua filmografia completa. Com satisfação, o CCBB convida o público a apreciar cada um dos filmes exibidos, oportunidade para conhecer o legado cinematográfico marcante deste ícone do cinema mundial.

Centro Cultural Banco do Brasil


Havia o teatro (Griffith), a poesia (Murnau), a pintura (Rossellini), a dança (Eisenstein), a música (Renoir). A partir de agora há o cinema. E o cinema é Nicholas Ray. Jean-Luc Godard, Au-delà des étoiles

A inevitável epígrafe de Godard. O cinema é Nicholas Ray? Quando Godard escreveu esta definição, não tinha assistido ainda a Jornada tétrica, A bela do bas-fond, Sangue sobre a neve, O Rei dos reis, 55 dias em Pequim, We can’t go home again e Um filme para Nick. Ray tem uma trajetória errática, indefinitiva, irredutível. Atravessou o pós-guerra, atravessou os EUA, emblematizou na jovem crítica francesa dos anos 1950 e 1960 o autor a ser defendido, o cinema de autor, uma base para a “política dos autores”. Marcou a passagem entre o que ficou tradicionalmente denominado de Cinema Clássico e Cinema Moderno. A invenção da juventude no cinema. Ray é profundamente íntimo do trabalho cinematográfico, do ofício da direção. Consciente da imagem e do som, do corpo e do espaço, do tempo, se entrega à sua criação como um amante desvairado, sem perder o instinto da própria destruição do que se cria. O mais imperfeito dos grandes — e por isso o maior — assume o risco a todo instante, e nesse risco permanente constitui-se o mais espontaneamente poético. Do encontro e síntese impossível da paixão e da lucidez, do impulso inesgotável do desequilíbrio nasce a sua obra, destinada à entrega incondicional. Contrário a qualquer autoridade, Ray naturalmente questionou (e implodiu) cânones cinematográficos em seus filmes. Nestes filmes, (re)trabalhou gêneros consolidados; foi do Western feminista à aventura juvenil, do fantástico televisivo ao cinema-espetáculo épico religioso em 70mm, do Noir ao coletivo experimental amador. Encenou sua própria morte. Morreu no cinema. Apresentamos nesta mostra todos os longas-metragens que dirigiu, num momento que julgamos oportuno para a visualização de sua obra – hoje e, assim como outro momento qualquer, sempre. Contudo, em 2011 Nicholas Ray faz cem anos e esta mostra é ainda uma homenagem. Convidamos a todos a ver o Cinema no Cinema. Uma ótima mostra.

Eduardo Cantarino e Thiago Brito | Curadores


índice

Uma Introdução de Sete Faces

I (1948 – 1969) The Twisted Road – Brog Quatro Filmes Modestos – Alex Viany Crime não compensa – Hugo Barcelos O Crime não compensa – Moniz Vianna Johnny Guitar – Ely Azeredo Juventude Transviada – Ely Azeredo O pensamento de Nicholas Ray – Paulo Emílio Juventude Transviada – Moniz Vianna La Fureur de Vivre – R. Tailleur Quem Foi Jesse James – Ely Azeredo Quem foi Jesse James – Moniz Vianna Sangue Ardente – Moniz Vianna Ardente Gitane – F. Hoda Dialética Sensível – Flavio Pinto Vieira Amargo Triunfo – Ely Azeredo Amargo Triunfo – Hugo barcelos Amargo Triunfo – Salvyano Cavalcanti de Paiva Amargo Triunfo – Moniz Vianna A Bela do Bas-fond – Moniz Vianna Jornada Tétrica – Moniz Vianna Cruel Vitória – J.B da Costa Sangue sobre a neve – Douglas Cox O Rei dos reis – Fernando Ferreira O Rei dos reis – Claudio M. E Souza


O Crime não compensa – G. R Santos Pereira

Bruno Andrade

O Cinema de Nicholas Ray – V.F Perkins

Chris Fujiwara

55 dias em Pequim – Ely Azeredo

Leo Levis

55 dias em Pequim – Ironides Rodrigues

Pedro Ferreira

Broston em Pequim – Paulo Perdigão

Hernani Heffner

55 dias em Pequim – Alex Viany

Felipe Bragança

Johnny Guitar – Fernando Ferreira

RAY dois (1970 – 1989) Ray’s world according to Ray Todos os lugares solitários – Thomas Alsaesser

Da estória ao Roteiro

Nicholas Ray, hoje – J. Greenberg

Sobre direção

Circulo de dor – J. Rosenbaum

Retrato do Artista

Juventude transviada – Peter Biskind

I Hate a Script

Juventude transviada – carlos armando

Ensinando e Aprendendo

Nick Ray ultima entrevista – Bigelow

Do I Contradict Myself? (citação)

Lightning – Kathe Geist

Color

Paroxismo da Interpretação – Bernardo de Carvalho

Cutting poema and when the time comes Iam the best damn filmmaker (citação)

3 (1990 – 2011)

When I look into my face what do I see “The closer I get to my ending…"

Wisconsin Boy – Eisenschitz

Senhor Exposto

Trauerarbeit – Eisenshitz

The Best Epitaph

I was Interrupted – Susan Ray O Filme de Nick – Eduardo

Imagens

Le Plan Absent – Ranciére We Cant go Home – J.B da Costa

Créditos

Juventude transviada – Ruy Gardnier Out of the Box – Susan Ray Marco – Claudio Mazzatenta Toni D’Angela Ely Azeredo Fabián Nuñez Luis Alberto Rocha Melo

Agradecimentos


Uma introdução de Sete Faces

Do I contradict myself Very well then I contradict myself (I am large, I contain multitudes.) 1 Walt Whitman, Song of myself

Mundo mundo vasto mundo se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, não seria uma solução. Mundo mundo vasto mundo, mais vasto é meu coração. Carlos Drummond de Andrade, O Poema de sete faces

É difícil – às vezes impossível — precisar o que de fato ocorre em um filme de Nicholas Ray. Às vezes é o corte, às vezes é o enquadramento, às vezes é o plano — mas o certo é que nos sentimos como que trespassados, encabulados, sentados na sala de cinema, assistindo ao correr dos créditos e ruminando o impacto que acabamos de sofrer. Afinal, o que foi, o que é e o que permanece de Nicholas Ray? Um mito, um romântico, um autor, um poeta, um radical, um completo porralouca, um homem de esquerda, um anarquista. Nicholas Ray parece às vezes ser um pouco tudo isso. Nos resta sempre uma imagem fragmentada, retorcida, fugidia, mas, ao mesmo tempo, fortemente afirmativa, una, inteira — uma contradição? Ray é como o menino que tem um pé dentro da água, e um pé fora da água — ambos estão em um lugar e circunstância diferentes, mas coexistem. A coexistência dos opostos e o paradoxo da nossa lógica: os filmes de Nicholas Ray.

1. Eu me contradigo/ Muito bem, então eu me contradigo/ (Sou vasto, contenho multidões).

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O presente catálogo tem duas finalidades. A finalidade primeira seria um mapea-

entranharem-se. Os textos originais são também urdidos por sua diversidade

mento histórico. Nossos protagonistas são os textos que, de 1948 à 2011, refletiram,

e caráter. Vejamos aonde eles nos levam.

amaram e odiaram os filmes de Nicholas Ray. Em nosso catálogo encontram-se

Com um caderno inteiro dedicado à uma boa parcela do que Ray (“ele mes-

críticas diárias, jornalísticas, artigos, ensaios, declarações enérgicas de raiva ou

mo”) escreveu, chegamos ao clímax de nosso poema de sete faces. Através de

amor, reavaliações, trabalhos acadêmicos e textos biográficos. E, ao mesmo tempo,

seus textos, poemas e diários, podemos conhecer a maneira como Ray via a sua

palavras, poemas e reflexões, escritas pela mão de Nicholas Ray. Mas tudo em seu

vida, sua obra, seu mundo. Extremamente bem articulado, por vezes beirando

tempo, espaço e lugar - separados, em fissuras. Aquilo que possam significar, o que

o temperamento de um poeta lírico, os textos de Nicholas Ray são invariavelmente

está em suas entrelinhas e embates, sua exegese – isto tudo está a cargo de vocês,

trabalhos íntimos, subjetivos, em que o autor nos convida a olhar para dentro da

queridos leitores: e esta é a aventura que lhes propomos. Nossa finalidade segun-

alma daquele que cria, expondo a todos os conflitos que conturbavam sua alma.

da: caminhar pela seara das palavras e ideias e de lá extrair o confuso desenho

Para Ray, o ato de escrever era como uma extensão do seu trabalho, um momento

que possivelmente exista por detrás de suas inúmeras peças. Assim como a obra

tão reflexivo quanto a prática que exercitava. Por isso, são todos como que entre-

de Ray, os textos estão tão abertos quanto fechados.

cortados, às vezes até mesmo obscuros e incompletos. A verdade – ou pelo menos

Ordenado de forma cronológica, vamos de 1948 até 2009, seguindo os passos de homens e mulheres que dedicaram sua vida – ou pelo menos, grande parte

é assim que por ora nos parece — é que Ray — de alguma forma – força-nos a buscar a união em meio ao estilhaço de seus vestígios.

dela – em expressar em palavras aquilo que os filmes incitavam, ao mesmo tempo em que buscavam insuflar ideias e discussões dentro do mundo cinematográfico de seus determinados países. No Brasil, começamos com um texto de Alex Viany, da extinta revista Filme, em que busca sintetizar uma possível mudança no caráter

* * *

dos filmes hollywoodianos, destacando a primeira obra de Ray, Amarga esperança (They Live by Night, 1948), como um dos pontos altos do ano (1949). De Alex Viany

Mas, então, nem todos os textos falam diretamente sobre Nicholas Ray. Alguns,

a Roger Tailleur, de Flavio Pinto Vieira a Bernard Eisenschitz: os textos comuni-

na realidade, o consideram quase como um efeito colateral, outros abertamente

cam entre si versões, visões e posicionamentos a partir da obra de Nicholas Ray.

declaram sua ojeriza a seus filmes, e ainda existem aqueles que eloquentemen-

Se Antônio Moniz Vianna decidiu dedicar cerca de seis páginas, do jornal Correio

te destronaram suas qualidades artísticas com questões para lá de pertinentes.

da Manhã, analisando Juventude transviada (Rebel Without a Cause, 1955), tere-

Àqueles que buscam compreendê-lo, talvez este catálogo não servirá de todo a

mos uma resposta diametralmente oposta, no outro lado do oceano, com Roger

muita coisa. Àqueles que buscam questioná-lo, nossa mão está estendida. Afinal,

Tailleur, em sua critica para a revista Positif. Se Jonathan Rosenbaum viu no filme

Ray nunca foi muito de unanimidades, seus caminhos são em geral erráticos, tor-

We Can’t Go Home Again (1973), o “cinema em seu zênite”, Peter Biskind aparece

tuosos e sempre renovados. Um homem, no fim, contraditório e combativo – até

para analisar Ray a partir de uma perspectiva histórica, buscando destroná-lo do

mesmo quando queria expressar seu amor. Talvez a melhor forma de se aproximar

epíteto de “o grande rebelde de Hollywood”. Um contra o outro, um à favor do

de sua obra seja revirando-a.

outro: os textos contra argumentam-se e nos devolvem uma imagem facetada, onde, ora Ray é um grande cineasta, ora Ray é um grande incompetente. Com a presença de textos originais, temos a oportunidade de vislumbrar

Boa leitura a todos.

e questionar o que atualmente se pode pensar e vingar dos filmes de Ray, o que ainda sobrevive e inspira nas pessoas caminhos e ideias; o que podemos perceber e compreender do momento histórico em que sua obra foi construída, e até mesmo as questões que circulavam pelo universo cinéfilo e crítico da época; e,

Eduardo Cantarino

ainda, como novos críticos e pensadores buscam reformular para si o impacto da

Thiago Brito

visualização de sua obra, a maneira como seus filmes podem ainda espantar-nos,

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I

1948 – 1969


The Twisted Road Brog. 1, 2

Por trás de The Twisted Road (1948), está uma sombria e comovente história sobre um malfadado amor entre jovens. O filme possui poucos atrativos. Não há tentativas de se forçar um final feliz, enquanto a trama segue rumo ao seu inevitável desfecho trágico. A honestidade com que o tema é tratado, assim como a própria história, vai além das expectativas, embora seja perceptível o uso de alguns recursos exploratórios. Um elenco jovem e talentoso se destaca em interpretações absolutamente realistas. Farley Granger e Cathy O’Donnell são os protagonistas, interpretando seus papéis com força. Ambos possuem um futuro promissor. O roteiro de Charles Schnee é baseado no romance Thieves Like Us, de Edward Anderson, e conta a história de um jovem que foge da prisão, apaixona-se e se casa com uma garota em situação não muito melhor do que a sua. Nicholas Ray adaptou o romance e dirigiu, demonstrando total entendimento de seus personagens. A triste história é muito bem contada. Howard da Silva brilha como um implacável ladrão que possui apenas um olho e Jay C. Flippen está igualmente excepcional ao retratar um criminoso. Helen Craig, Will Wright e Ian Wolfe completam de forma competente o elenco de apoio. O produtor John Houseman se mostra a serviço do contexto da história. O título do filme é inspirado na música homônima usada numa sequência noturna, interpretada pela voz de Marie Bryant.

1. Pseudônimo de William Brogdon. 2. Originalmente publicado no semanário Variety, em 30 de junho de 1948. The Twisted Road foi lançado nos cinemas norte-americanos em 1949 como They Live by Night (Amarga esperança). Tradução de Daniel Pech.

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Quatro filmes modestos

grossos do veterano diretor têm o toque de Midas. E o público já está por demais viciado a ser conduzido pelo flautim mágico dos camelôs.

Alex Viany

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Inútil é dizer que só a soma destinada à publicidade de Sansão e Dalila (Samson and Delilah, 1949) daria para a confecção de um punhado de bons filmes. Hollywood não trabalha assim. Cada filme tem a publicidade que merece — e ninguém irá dizer que Sansão e Dalila não merece tudo o que o dinheiro pode

Quatro filmes baratos, recentemente vistos no Rio de Janeiro, são aqui comentados:

comprar. Possuindo todos os engodos possíveis e imagináveis, será um sucesso cer-

Punhos de campeão (The Set-Up, 1949), de Robert Wise; Ninguém crê em mim (The

to se houver uma penetração das massas em grande escala. E haverá, como se sabe.

Window, 1949), de Ted Tetzlaff; Amarga esperança (They Live by Night, 1948), de

Nada disso nos importaria, e trataríamos de ignorar as aventuras de

Nicholas Ray; e O gângster (The Gangster, 1949), de Gordon Wiles. Devido a sua

Mr. DeMille com o lançamento de sua obra-prima, gozando-a somente quando

modéstia, tais filmes foram lançados com a máxima despreocupação pelas distri-

aqui chegasse, se, por outro lado, Hollywood tivesse uma produção mais ou menos

buidoras e exibidores locais — que nisso apenas imitam a maioria de seus irmãos

firme de pequenos filmes experimentais, de orçamento modesto e ideias avançadas.

de todo o mundo.

Há público para isso, mas tal público raramente é “penetrado”. Quando o cinema

Desde que se tornou uma grande indústria, dispondo de uma máquina pu-

americano faz um filme capaz de interessar a uma plateia de adultos mentais, como

blicitária eficientíssima, o cinema americano caiu no hábito de lançar seus filmes

que por descuido, trata de lançá-lo quase sem publicidade (a verba publicitária é

com adjetivos diretamente relacionados com o custo dos mesmos. Através de uma

correspondente, em geral, ao custo de produção), quase às escondidas. Isso é repre-

campanha de saturação a longo prazo, o público foi sendo levado até o ponto ex-

sentativo da mentalidade tacanha da maioria dos industriais do cinema americano:

tremo de não mais poder distinguir entre qualidade e custo: a publicidade afirma

se o produto é barato, facilmente recuperará o capital nele empregado (a exibição

que filme caro é filme bom, e o espectador médio reage até com violência àqueles

é controlada pelos estúdios), e não vale a pena arriscar a sorte com uma verba de

hereges que ousam classificar com fria precisão um ...E o vento levou (Gone with

publicidade exagerada. No entanto, quando descobertos pelo público inteligente,

the Wind, 1939) ou qualquer espetáculo de Cecil B. DeMille.

o público que sabe escolher seus críticos e pensar por conta própria, esses filmes

No momento, o público cinematográfico de todo o mundo começa a ser pre-

produzem rendas que surpreendem Hollywood.

parado para o lançamento da nova epopeia demilleana, uma espécie de paródia

Um excelente exemplo disso é encontrado na notável série de filmes de

da história de Sansão e Dalila com Victor Mature e Hedy Lamarr — e, com toda a

“horror” que Val Lewton fez para a RKO: Sangue de pantera (The Cat People,

certeza, “um elenco de milhares”. Sem falar no Technicolor. Apesar da crise que

1942), O homem leopardo (The Leopard Man, 1943), A morta-viva (I Walked with

a assola, Hollywood sabe que os fãs pagarão para ver suntuosidade, cores, pom-

a Zombie, 1943), A maldição do sangue de pantera (Curse of the Cat People, 1944),

posidade, e falsificação histórica feita especialmente para imbecis, por imbecis.

A sétima vítima (The Seventh Victim, 1943), O fantasma dos mares (Ghost Ship,

Depois de ter empregado uns quatro ou cinco milhões de dólares na confecção de

1943), O túmulo vazio (The Body Snatcher, 1945), A ilha dos mortos (Isle of the

sua última aventura bíblica, DeMille gasta mais um ou dois milhões para preparar

Dead, 1945) e Asilo sinistro (Bedlam, 1946). Feitas com pouco dinheiro e muito

o terreno. Henry Wilcoxon percorre os Estados Unidos como “enviado especial”,

talento, essas películas estiveram entre as mais ousadas experiências do cinema

falando a clubes femininos, fazendo conferências “culturais” em escolas e agremia-

americano desde o advento do som. E Lewton deu ótimas oportunidades a atores,

ções, e, principalmente, cantando os jornalistas. Uma literatura imensa vai sendo

roteiristas, coordenadores e diretores. Chegou a fazer escola. Mas suas produções

distribuída a todos os jornais e revistas do mundo, com fotografias sugestivas de

eram dirigidas, pela distribuição, aos cinemas de segunda linha e do interior. Além

Miss Lamarr e Mr. Mature. Sem dúvida alguma DeMille e a Paramount recuperarão

desse fator, a publicidade insistiu em apresentá-los como simples histórias de

a fortuna gasta na produção, com toda a crise e desvalorização monetária. Os dedos

horror. Assim, grande parte do público que se interessaria pelas lições de cinema contidas na obra de Lewton nem soube de sua existência, ou, se soube, procurou

1. Originalmente publicado na primeira edição da revista Filme, em dezembro de 1949.

fugir dela. E quando o produtor insistiu em fazer boa coisa, foi chutado da RKO

A revista sobreviveu por apenas duas edições. Era editada por Alex Viany e Vinicius de Moraes.

com a máxima sem-cerimônia.

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Quatro filmes recentes — sendo que três da mesma RKO — vêm demonstrar

observa que a preocupação realística de Corpo e alma (Body and Soul, 1947) e

mais uma vez que os americanos estão perdendo uma esplêndida ocasião de trei-

Dois contra uma cidade inteira (City for Conquest, 1940), duas outras histórias

nar talentos novos e conquistar o público de adultos que, sistematicamente, foge

de pugilismo, “é ultrapassada por Wise, no aspecto do realismo cronológico”.

da maioria de sua produção. Todos foram feitos com pouco dinheiro — um deles

Comparado com Festim diabólico (Rope, 1948), de Alfred Hitchcock, que também

por um estúdio pequeno —, todos conquistaram os aplausos da crítica responsá-

tenta obter esse realismo, Punhos de campeão é uma obra-prima: Wise fez o que

vel, todos foram, de uma ou outra maneira, francamente experimentais. E, como

Hitchcock não pôde fazer, ao escravizar-se, aparentemente por puro diletantismo

sempre, foram lançados sem o estardalhaço que acompanha as superproduções

técnico, também ao espaço. A história de Art Cohn acontece num ambiente res-

de Hollywood.

trito, dentro de um período de uma hora e 15 minutos (das 21h05 às 22h20), mas é cinemática nos mínimos detalhes. E Robert Wise, em vez de seguir seu herói como uma sombra, não hesita em cortar para onde está Audrey Totter, em suas amargas perambulações, ou George Tobias, em suas torpes maquinações. E insere

I

magníficas tomadas nas cenas do ringue, mostrando brutalmente as reações da

Punhos de Campeão. Robert Wise começou a dirigir em 1943. Foi então que

assistência brutal. Nisso, como em quase todos os seus detalhes, o filme alcança um

Val Lewton tirou-o de uma sala de montagem da RKO, onde Wise coordenara,

plano poucas vezes atingido por outros do gênero: é um impiedoso e cru desnuda-

entre outros, Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941) de Welles. Inicialmente, o ex-

mento do homem que busca o sadismo. Mais que a história de Stoker Thompson,

-coordenador dividiu as honras diretoriais de A maldição do sangue de pantera

um pugilista medíocre e honesto que está nas últimas, a obra de Wise é a história

com Gunther Fritsch, também saído de uma sala de montagem. Depois, ainda para

do sadismo em uma hora e 15 minutos.

Lewton, dirigiu sozinho Mademoiselle Fifi (1944) e, O túmulo vazio (A Game of

Os ensinamentos de Lewton não foram esquecidos pelo diretor.

Death, 1945), o primeiro baseado em dois contos de Guy de Maupassant, já muito

Punhos de campeão mostra, como Sangue de pantera, O homem leopardo e A ilha

filmados, e o segundo numa obra de Robert Louis Stevenson.

dos mortos, que o silêncio, no cinema sonoro, não é apenas a ausência do som,

Quando Lewton deixou a RKO, Wise dirigiu outro filme de horror para a

mas, isto sim, de um elemento sonoro. E a ausência completa de uma partitura

companhia. Chamou-se A fera humana (Criminal Court, 1946), e era uma nova

musical (só há música natural) aumenta mais ainda esse efeito. Nas cenas em

versão de Zaroff, de O caçador de vidas (The Most Dangerous Game, 1932). Com

que Robert Ryan procura fugir do gângster Alan Baxter — talvez o único tipo apre-

um produtor menos inteligente, parecia que o novo diretor estacara, e mesmo

sentado com um certo convencionalismo —, o silêncio é tão audível como, por

recuara um pouco: as melhores cenas de A fera humana, uma perseguição na

exemplo, nas cenas da piscina de Sangue de pantera. E as sombras, as mesmas

floresta do caçador louco, podem ser consideradas como plágio da sequência se-

sombras de A ilha dos mortos, são otimamente exploradas por Wise: é nelas que

melhante de A morte-viva, de Lewton e Jacques Tourneur. Infelizmente, não pude

a câmera mergulha para ir buscar o rosto cada vez mais angustiado do pugilista

acompanhar passo a passo a carreira de Wise. Não vi seus três filmes subsequentes:

que não soube perder.

Nascido para matar (Born to Kill, 1947), Absolvida (Criminal Court, 1946) e Mistério

No papel do lutador, Ryan está perfeito. E Audrey Totter, cada dia mais pa-

no México (Mystery in México, 1948). Parece-me, entretanto, que o diretor, sem o

recida com Carole Lombard, faz bem o pouco que tem a fazer. George Tobias tem

ânimo que lhe dava a inteligência de Val Lewton, continuou parado através desses

o melhor desempenho de sua carreira. Mas os outros, os assistentes, os pugilistas

filmes, à espera de melhor oportunidade.

novatos e decadentes que se agrupam num vestiário sujo, esses é que dão uma

Sangue na lua (Blood on the Moon, 1948), que marcou sua transferência para

autenticidade incomum ao filme. Stoker Thompson também é sádico, como a

as produções mais caras, pouco mais é que um western de segunda classe — valo-

plateia, ou não estaria na profissão. E é, também, como Gunboat, o represen-

rizado pelo sentido composicional de Wise e pelo bom corte. Punhos de campeão,

tante típico do homem que já passou. Ao mesmo tempo, porém, é como Darryl

porém, já é obra de um diretor seguro, eficiente e, acima de tudo, convincente.

Hickman, o pugilista que está começando, pois tem os mesmos medos, e como

No Diário de Notícias do Rio de Janeiro, Hugo Barcellos nota, com muita

James Edwards, o jovem pugilista negro que pressente a vitória. Não é à toa que

justeza, que o filme é “um ensaio realista” e, no Correio da Manhã, Moniz Vianna

Art Cohn usa as mesmas palavras para Edwards e Ryan. Sua vida, que é satisfazer

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ao sadismo de todos, inclusive ao seu, é uma vida de esperanças destruídas diaria-

a esperança do cinema americano. Queria realmente fazer coisas baratas e boas,

mente, renovadas diariamente, e novamente destruídas e renovadas. Wise e Cohn

dando oportunidade de trabalho e experiência a gente nova. Dinelli, vindo do rá-

sabem mostrá-la de maneira convincente, dando-nos a sensação incomodativa de

dio, onde escrevera muitos programas de primeira ordem para a série Suspense,

que pouco marchamos desde a época em que os romanos babavam-se sadicamente

fizera a sua estreia cinematográfica com Silêncio nas trevas (The Spiral Staircase,

diante de leões, gladiadores e cristãos. O método de exposição é preciso e violento:

1945), de Siodmak, sob a supervisão do mesmo Schary. Quando estive com ele,

tem uma inevitabilidade quase científica.

já tinha pronto o cenário de The Boy Cried Murder, que viria a ser The Window. Falou-me com entusiasmo de Schary — a quem se devia, confessou-me, a mudez de Dorothy McGuire naquele admirável espetáculo de suspense. E anunciou-me que a direção de The Window caberia a Ted Tetzlaff, ex-cinegrafista, devidamente

II

anotado em minha lista de promessas desde Uma aventura no Panamá (Riffraff,

Ninguém crê em mim. Velho leitor viciado de toda a literatura policial que me

1936). A produção caberia a Frederick Ullman Jr., rival de Louis de Rochemont no

cai nas mãos, sou também um antigo admirador de Cornell Woolrich de quem

terreno dos pequenos documentários, realizador das séries Assim é a América (This

conheço a obra completa — contos, novelas e romances em que a qualidade literá-

Is America, 1933) e Hoje e amanhã (Today and Tomorrow). O filme seria quase

ria é, muitas vezes, superior ao próprio interesse detetivesco. Como fã de cinema,

inteiramente feito em Nova York, num bairro pobre.

tenho acompanhado a trajetória cinematográfica dos argumentos de Woolrich:

O resultado aí está. Uma pequena obra-prima, em que é mesmo difícil en-

O homem leopardo, A dama fantasma (Phantom Lady, 1944), e tantos outros.

contrar defeitos e chavões. Uma fita que custou pouco e vale muito. A melhor

Mais do que a grande maioria de seus colegas de profissão, o escritor americano

demonstração possível de que Hollywood pode fazer coisas boas em sua produção

parece ter nascido para o cinema; seus romances jamais dependem do diálogo,

de segunda linha. Ninguém crê em mim, com um diretor novo, sem astros, é a

que é seco, realístico e econômico; sua imaginação lida com imagens bem com-

prova concludente — se prova ainda exigíssemos de uma coisa para nós tão óbvia.

postas, cheias de sombras cabalísticas, e sua narrativa tem a continuidade de um

Um amigo, impressionado com a economia dramática da realização de

bom cenário. Mestre do suspense — ou melhor, da tensão —, é também econômico

Tetzlaff e Dinelli, marcou num cronômetro o tempo que o filme toma para esta-

na caracterização: em vez de apresentar personagens estereotipadas segundo as

belecer o ambiente, os personagens e o problema: seis minutos. Depois disso,

fórmulas de Hollywood, vai buscá-las na vida real. Seu segredo está em jogar

tudo é suspense, tudo contribui para o motivo central, que é a perseguição a um

tais personagens verdadeiros, cotidianos, em situações que só encontramos, nós

garoto, por dois vilões com pinta de gente, no próprio cortiço onde mora, pelos

cotidianos, em sonhos pesados que podem vir após uma feijoada de verão — ou no

telhados sujos do bairro, pelas ruas tragicamente desertas da noite, e, finalmente,

noticiário impessoal dos jornais.

num casarão em ruínas.

Quando li The Boy Cried Murder 2 numa revista que, infelizmente, já desa-

Não devemos esquecer, aqui, a contribuição que o coordenador, Frederick

pareceu — Mystery Book Magazine —, fiquei entusiasmado com as perspectivas

Knudtson, deve ter dado ao filme. Pois posso mesmo desafiar qualquer cineasta

cinematográficas da história. E, estando na época em Hollywood, comecei a vigiar

patrício a cortar uma só cena — não importa qual e de que duração — sem prejudicar

de perto o noticiário dos estúdios, na certeza de que Hollywood não deixaria passar

o conjunto. Ninguém crê em mim é absolutamente enxuto e direto. Não perde tempo

tão excelente oportunidade de fazer suspense por pouco dinheiro. Pois, mais ainda

com divagações. Uma vez apresentado o problema, sai em busca de um clímax

que as histórias anteriores de Woolrich, The Boy Cried Murder era econômica: uma

que, apesar da pouca duração do filme, é esperado com uma ansiedade sempre

parábola de simplicidade bíblica que se desenrola num bairro pobre de Nova York.

crescente — resultado da tensão bem construída, bem levada, nos termos mais

Ao saber que a RKO comprara a novela, e que entregara adaptação cinema-

cinemáticos possíveis.

tográfica a Mel Dinelli, poucas dúvidas tive quanto ao sucesso do futuro filme.

Situando-se, também, entre os chamados semidocumentários — não pelo

Naquela ocasião, sob o olhar inteligente de Dore Schary, a RKO era, para mim,

assunto, mas pela técnica —, a obra de Tetzlaff mostra claramente que a realidade de todos os dias, as caras não glamorizadas, os ambientes sem retoque,

2. Conto escrito por Woolrich em 1949. (N.E.)

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as vielas sem polimento, contribuem de maneira definida e definitiva para a

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consecução de uma realidade cinemática — mesmo numa história intrinsecamente tão melodramática como a de Woolrich. Ao vermos uma situação incomum

Mas isso é uma coisa pequena num filme que, apesar de pequeno em tamanho e em custo, é uma das obras de cinema mais importantes do ano de 1949.

apresentada por gente tão comum, toda a improbabilidade desaparece. E o maior milagre do filme talvez esteja na apresentação de uma criança comum na pessoa de Bobby Driscoll, diante do qual mais razão tenho eu para odiar essa maneirosa Margaret O’Brien. Em toda a história do cinema, muito difícil será encontrar tra-

III

balho mais convincente de um ator infantil. Mas, naturalmente, Bobby é parte de

Amarga esperança. Lembrando bastante Vive-se uma só vez (You Only Live Once,

um conjunto homogêneo. Por isso mesmo, entretanto, qualquer exagero de menino

1937), um dos bons filmes americanos de Fritz Lang, este é um surpreendente

prodígio teria sido mais notável.

drama que serve para revelar o diretor Nicholas Ray. Infelizmente, Ray não teve

Parece-me supérfluo elogiar a fotografia, que é sempre boa, e outros detalhes

sorte com seu segundo filme, A vida íntima de uma mulher (A Waman’s Secret,

técnicos do filme. Mas vale a pena registrar que toda a história é contada com seis

1949), que, devido ao tema — o lesbianismo, quase que completamente escondido

personagens apenas: um casal, seu filho, outro casal, um detetive. Na medida do

na versão final —, deve ter sofrido horrores nas mãos da censura de Hollywood.

que é praticável num espetáculo de pouco mais de uma hora, todos os seis têm

Seu terceiro trabalho, O crime não compensa (Knock on Any Door, 1949), parece

profundidade e caráter. Um dia, num bairro pobre de Nova York, nós os conhece-

ser melhor. Mas as esperanças que deposito no novo cineasta vêm exclusivamen-

mos como se lá morássemos. Vemos que não são gente de Hollywood: poderiam

te do talento demonstrado por ele em Amarga esperança. História de um jovem

morar logo ali na casa da esquina. Barbara Hale e Arthur Kennedy, o casal sério,

criminoso foragido (Farley Granger), e de sua fuga com a jovem amada (Cathy

trabalhador; Bobby Driscoll, o garoto que, reagindo contra a miséria ambiente,

O’Donnell), o filme baseia-se num forte romance de Edward Anderson, Thieves

tem sonhos de grandeza (a ideia do rancho) e de aventura (o início do filme, que

Like Us, que é uma tremenda condenação da civilização americana. O roteiro de

é uma condenação tácita das histórias em quadrinho), até a hora em que é lançado

Charles Schnee é mais discreto, mas nem por isso deixa de ter força, e está cheio de

numa terrível aventura com qualidades de pesadelo (ele próprio, num momento,

qualidades cinemáticas. O tema diz que a sociedade é a verdadeira culpada pelos

levado pela falta de imaginação dos pais, chega a duvidar da realidade); Paul

crimes de seus cidadãos. Nada de novo, está visto, mas muito bem apresentado.

Stewart e Ruth Roman, o casal sem escrúpulos, boa gente para os vizinhos que

Socialmente responsável, Amarga esperança é também comovente e bonito.

não espiam pela janela; Anthony Ross, o detetive que, se não estou enganado, é

De fato, é um dos romances de amor mais bonitos que o cinema tem apresentado

realmente detetive na vida real, e que, talvez por isso mesmo, pode constar entre

nos últimos tempos. Os fãs mais suscetíveis dificilmente ficarão de olhos enxutos

os poucos policiais convincentes do cinema — apesar das pouquíssimas cenas

ao ver a implacável perseguição que a lei move contra Granger e O’Donnell. Ray

em que aparece.

arrancou magníficos desempenhos desses jovens artistas. Granger está muito

O filme, na parte interpretativa, é de Bobby Driscoll. Mas a verossimilitude dos

melhor do que em Festim diabólico. E Miss O’Donnell, talvez a mais completa das

outros cinco muito contribui para isso. A discretíssima maquiagem das mulheres

atrizes jovens de Hollywood, tem um trabalho ainda mais preciso que em seu filme

é admirável. Até agora, Barbara Hale era somente uma pequena bonita, dentre

de estreia, Os melhores anos de nossas vidas (The Best Years of Our Lives, 1946).

muitas. Com Ninguém crê em mim, passa a ser uma atriz de futuro. E Ruth Roman

É pena que, em certas sequências, apareça por demais glamorizada. Isso chega

— já viram vocês, atrás da camada de maquiagem de qualquer sereia de Hollywood,

a prejudicar um pouco a narrativa, e vem provar mais uma vez que a maquiagem

já viram vocês uma mulher mais sensual no cinema americano?

deve ser muito bem dosada no cinema.

Se Ninguém crê em mim tem um defeito mais ou menos óbvio, tal defeito

George Diskant foi o cinegrafista, e sua fotografia é da melhor qualidade.

está no final. Bobby Driscoll acaba prometendo aos pais que não inventará mais

Tecnicamente, o filme também apresenta um interesse especial nas cenas foto-

histórias. A gente fica com pena. Sacrificando a sua imaginação — e espero que o

grafadas de autogiro, durante a fuga de Granger, Howard da Silva e Jay C. Flippen.

garoto da história tenha desobedecido aos pais —, jamais fugirá do cortiço onde

Fora os dois jovens namorados, Howard da Silva e Helen Craig brilham em

vive. Além disso, aquele finalzinho é anticlimático: o filme termina quando o garoto

papéis menores. Os ambientes que o filme apresenta são quase que inteiramente

atira-se na rede dos bombeiros.

novos — talvez por evitarem caminhos muito trilhados. É como se estivéssemos

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vendo pela primeira vez o quintal cheio de capim e de cacarecos, abandonado, de

mesma quando passa, abruptamente, do platonismo à ação; um contador, que se

um palacete a que vamos diariamente. E lá encontramos tipos e coisas que nos

degenerou por causa das corridas de cavalos (John Ireland), procura ali refúgio

parecem incomuns por serem comuns.

de seus cunhados, de quem roubou 1.300 dólares; sua mulher (Virginia Christine),

Não é só no título brasileiro que existe amargura. Os dois namorados fortuitos

desgrenhada e aflita, vai lá à sua procura; Jammey preocupa-se com a mulher, que

são postos em contato, depois de cada momento de ternura, com a realidade mais

só se preocupa com doenças inexistentes, e também se preocupa com o dilema

sórdida. Por mais que queiram viver a sua vidinha, fugindo num ônibus, casando-se

que lhe impõem Shubunka e o gângster rival (Sheldon Leonard); a caixa (Joan

às pressas, refugiando-se numa cabana isolada, a sociedade persegue-os sempre

Lorring) olha, do trono de sua “bondade” — que Fuchs e Wiles sabem ironizar —,

por um crime que ela própria cometeu. O fim é cruel, bárbaro como um pontapé

para o drama daquela gentinha; e a outra caixa (interpretada por Shelley Winters,

na cara de um oponente caído. E Amarga esperança mostra que a sociedade orga-

hoje em grande moda) preocupa-se exclusivamente com a sua maquiagem e o

nizada considera o indivíduo como oponente.

encontro que terá logo mais à noite.

Nada de novo, como disse, mas muito benfeito.

O dinheiro é outro personagem importante. É o dinheiro — e o que ele traz e tira — a força motriz de todo o drama. Shubunka, mesmo não sendo suficientemente ruim, julga-se seguro por causa da pressão que pode exercer sobre os políticos venais — e também “por não estarmos mais em 1929”. Engana-se, porém: os políticos

IV

podem ser comprados por outros. E os gângsteres rivais, “suficientemente ruins”

O gângster. Produzido pelos irmãos King, que já nos haviam dado Dillinger

— capacitados, portanto, para vencer —, não reconhecem que os tempos mudaram,

(1945), O gângster é um dos melhores filmes do gênero que temos visto nos últi-

e fazem uso dos mesmos métodos que foram a fortuna de Dillinger e Al Capone nos

mos anos — e algo mais do que isso.

bons tempos. Quando o filme procura dizer que não, naquela tola narração final,

Gordon Wiles, o diretor, que só fizera uma fita insignificante anteriormente,

evidentemente imposta pela censura, vemos que o argumento não é do roteirista.

foi o diretor artístico de Vidocq, um escândalo em Paris (A Scandal in Paris, 1946),

Como Clouzot em Anjo perverso (Manon, 1949), Fuchs é extremamente pessimis-

aquele bom filme de Douglas Sirk, e aqui repete a sua mania por grandes faixas

ta. O microcosmo que nos apresenta de nosso mundo é depressivo, fatalístico.

em preto e branco nas paredes, e grandes quadrados pretos e brancos nos tetos

O mundo vai de mal a pior, diz ele, e só poderão vencer aqueles que dominarem

e no chão. O efeito é muito bom, e a cinegrafia de Paul Ivano sabe tirar partido da

a situação através dos próprios métodos impostos por ela. Shubunka, por outro

decoração. Em algumas cenas, pode-se também notar o uso de tetos baixos — como

lado, que já trabalhava para os gângsteres aos nove anos de idade, é sempre do-

em Cidadão Kane — em benefício da atmosfera dramática. Exemplo: o encontro

minado pela situação. É mau porque tem de ser, e não porque deseja sê-lo. Sente a

de Barry Sullivan e Joan Lorring no bar de Akim Tamiroff, quando ele, que admi-

necessidade de ser desconfiado e vil, para vencer: quando o verdadeiro Shubunka

ra a inatingível “bondade” da moça, procura fazer com que ela compreenda seu

— ou o falso, não se sabe bem — aparece à tona, ele leva na cabeça. O instinto diz

modo de vida.

que deve desconfiar de Nancy (Belita). Mas, por não ser suficientemente ruim, ele

A história de Daniel Fuchs parece ter sido, em parte, inspirada por The Time of Your Life, de Saroyan, A floresta petrificada (The Petrified Forest), de Sherwood,

se deixa enganar. Nancy, entretanto, para justificar sua traição, diz que ele jamais foi “suficientemente bom”. Shubunka era um deslocado; tinha de desaparecer.

e outros dramas teatrais em que um bar ou uma casa qualquer de reunião pública

O gângster esteve perto de ser um grande filme. Às vezes, falha ao querer

serve de cenário e agente catalisador para os dramas pessoais e diversos de um

tornar muito claro um ponto: quando Akim Tamiroff caminha vagarosamente pelo

grupo de indivíduos. O gângster, porém, tem outro ponto focal na própria figura de

bar, a cumprimentar fregueses com um ar feliz, logo sabemos que algo o espera,

Shubunka (Barry Sullivan). Enquanto o seu drama caminha para um fim inexorá-

aonde quer que vá. A cena é lenta e longa demais. E a narrativa inicial, na voz de

vel — “porque não fui suficientemente ruim, nem suficientemente intransigente” —,

Barry Sullivan, era completamente desnecessária, assim como a final imposta pela

outros pequenos dramas desenrolam-se no bar de Jammey (Tamiroff): o copeiro

censura, que tem de castigar o assassino do herói-vilão.

(Henry Morgan) disserta a respeito de suas qualidades donjuanescas, escreve cartas

Mais do que qualquer outro filme que me venha à memória — Até a vista,

amorosas para uma freguesa balzaquiana (Fifi d’Orsay), e vem a ser repelido pela

querida (Murder, My Sweet, 1944), com história de Raymond Chandler, ou mesmo

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O falcão maltês (The Maltese Falcon, 1941), de Dashiell Hammett —, O gângster

O crime não compensa

consegue transportar para o cinema o clima do moderno romance policial americano: tenso, um tanto confuso e desorientado, violento, contado em golfadas de

Hugo Barcelos 1

melodrama e realismo. Não fossem as suas outras qualidades, só isso bastaria para dar-lhe um lugar destacado na longa série de filmes de violência que têm produzido alguns dos melhores valores do cinema de Hollywood.

Nem a direção esteve à altura do enredo, nem o enredo esteve à altura da história, nem esta, ainda, à de uma lógica mais admissível. Nicholas Ray, o diretor, por

V

não ter captado a plástica de um assunto essencialmente dramático, qual o da criminalidade juvenil, narra geralmente por fórmulas e com palavras comuns,

Quatro filmes de custo modesto, lançados quase às escondidas. 3 No entanto, quanto

demonstrando pobreza de vocabulário, falta de vivacidade, além de que o estilo

talento apresentaram: no roteiro, na direção, na fotografia, na interpretação. Será

lhe sai incolor das mãos, para logo demandar a rotina pão-e-laranja dos homens

pedir muito que Hollywood tenha mais cuidado para com os filmes que custam

que fazem cinema sem compreendê-lo.

pouco — e que podem valer muito?

O argumento, porque não vive expressão completa do tema, deixa-se frustrar em boa parte. E o tema, afinal, não conduz a lugar algum, fica no meio do caminho sem uma bússula que aponte sequer o norte das próprias intenções. Não lhe sobra coragem para lançar a responsabilidade da delinquência ao criminoso, preferindo atribuí-la à sociedade. No entanto, ao terminar, mostra-se vacilante, e sem uma explicação, mínima que seja, para tornar menos odiosa a saída, eletrocuta calmamente o criminoso, apenas porque assim requeria o bem comum. Mas não havia sido o criminoso gerado pelo meio, e não era isso o que se vinha buscando provar desde o início? Por que, então, o executaram? Eis até que disparates pode chegar a desorientação de uma fita realizada convencionalmente. Tenta, a todo custo, convencer-nos de que Nick Romano era vítima de um bairro sórdido, da casa de correção que o tratara como a um delinquente nato, como a um desses que não têm remédio, que não têm remissão — tenta isso, e depois aplica-lhe a pena capital. E note-se que a solução estava no próprio filme, naquela frase do advogado segundo a qual há momentos decisivos em nossa vida: ou seguimos à direita, onde seremos gente de bem, ou seguimos à esquerda, onde nos perderemos. Naturalmente que o meio social pesa, e muito, mas, no fim, o que conta mesmo é a livre determinação, ou não haveria responsabilidade, nem castigo. Mas o espetáculo, bem interpretado, possuindo algumas cenas tensas e origi-

3. Os filmes de Val Lewton também foram lançados às escondidas no Rio de Janeiro e, pro-

nais, não é de todo mau. Bogart, por exemplo, está correto como sempre. Dá ânimo

vavelmente, em todo o mundo. Em Londres, Ninguém crê em mim e Amarga esperança, lançados inicialmente em cinemas afastados, foram colocados em casas melhores quando a revista Sequence chamou a atenção dos demais críticos locais para eles. Seu sucesso, então, deve ter constituído uma incompreensível surpresa para a distribuidora. (N.A.)

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1. Publicado originalmente no jornal Diário de Notícias em 1949.

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ao personagem que interpreta. John Derek não tem classe, e o papel não lhe pedia

O crime não compensa

muito, uma vez que, meio esquemático, era feito mais pela câmera do que por ele mesmo. George Macready, num tipo sádico, não é necessário dizer que satisfaz.

Antonio Moniz Vianna 1

Os outros, eficientes.

Um policial é friamente assassinado ao perseguir o assaltante de um botequim de Chicago; e, entre as várias pessoas detidas, o barman reconhece o criminoso: Rick Romano, um produto do meio, muito jovem ainda e, no entanto, já corrompido, já irremediavelmente degradado. Levado a julgamento, seu advogado, que também se criara naquele meio, tudo faz para absolvê-lo. O pai de Romano, anos antes, fora defendido por ele, mas, condenado por um seu descuido, morrera na prisão, deixando a família na miséria. Mudando-se os Romano para Skid Row — uma filial do Dead End nova-iorquino —, o jovem Nick passou a conviver com gente da pior espécie, vigaristas, assaltantes baratos, prostitutas. Preso ao tentar roubar um automóvel, é induzido a um reformatório, onde progride a desintegração de seu caráter, os maus tratos sofridos enchendo-o de revolta. Não pode mais acostumar-se a uma existência honesta, embora o tente várias vezes; e a jovem com quem se casara, desesperada, suicida-se. Acreditando em sua inocência, o advogado o defende e está com a causa praticamente ganha quando uma hábil manobra do promotor obriga Nick a confessar-se culpado. O seu eloquente defensor culpa, então, a sociedade por este e outros crimes semelhantes; Nick fora vítima de sua juventude abandonada, dos hediondos métodos disciplinares das casas de correção, da miséria em que fora forçado a viver. “Somos culpados com ele”, diz Morton, o advogado. A sociedade é culpada. Bata em qualquer porta, e você encontrará um Nick Romano. Devemos condená-lo? Ou devemos absolvê-lo, para que assim possamos nos esquecer um pouco? Nick Romano é condenado à pena capital. Não há nisso, porém, a menor contradição. A sociedade ainda não se regenerou, ainda não teve coragem suficiente para assumir oficialmente a responsabilidade da pobreza, do gangsterismo, da prostituição, ou da guerra. Mas a acusação de O crime não compensa fica de pé. Esta é a história, este é o tema de O crime não compensa. Como se vê, o filme de Nicholas Ray não se diferencia muito de Dead End, a excelente peça de Sidney Kingsley que William Wyler transformou, respeitando-a embora, num dos grandes filmes do cinema falado, Beco sem saída (Dead End, 1937). Beco sem saída

1. Originalmente publicado no jornal Correio da Manhã, em 1949.

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é a obra-prima do gênero, entretanto, ao passo que O crime não compensa

Johnny Guitar

não vai além de um filme feito com certo cuidado, inferior a muitos que abordaram a questão — Homens de amanhã (No Greater Glory, 1934), de Borzage;

Ely Azeredo 1, 2

Idade perigosa (Wild Boys of the Road, 1933), de Wellman; Anjos de cara suja (Angels with Dirty Faces, 1938), de Curtiz. É inferior ainda à outra realização de Nicholas Ray — Amarga esperança (They Live by Night, 1949), em que um jovem é também desviado do caminho reto, porque a sociedade o esqueceu.

Johnny Guitar, dirigido por Nicholas Ray, e lançado pela Republic como superpro-

A direção de Nicholas Ray é razoável. As primeiras cenas do filme têm for-

dução, é um western que só tem de invulgar a audácia com que assimila a vulga-

ça, tanto no ritmo como na plástica, esta semelhante à da “escola” neorrealista

ridade de diversas fórmulas comerciais. É colorido, mas pelo péssimo Trucolor.

norte-americana de Cidade nua (Naked City, 1948), O justiceiro (Boomerang!,

Tem Joan Crawford, mas nunca a atriz foi tão maltratada.

1947) etc. E o enterro da jovem suicida, assistido de longe pelo marido foragi-

Mas apreciadores de programas duplos, Johnny Guitar se apresenta apetitoso.

do da polícia, possui alguns décimos da poesia que Nicholas Ray acrescentou a

No argumento de Philip Yordan, baseado numa novela de Roy Chanslor, há assunto

Amarga esperança. Nas cenas do tribunal, Ray procura fugir da rotina, mas só con-

para vários filmes. Algumas cenas têm toda a sofisticação exigível de um veículo

segue no momento em que coloca o advogado diante do júri, examinando jurado

de Joan Crawford; cenas em que a grande atriz pode arregalar os belos olhos e

por jurado, com a finalidade de melhor encaminhar a defesa (um monólogo interior

concentrar em poucas falas toda a subliteratura de seus piores filmes.

bem resolvido), ou na apresentação das testemunhas pelos esboços que faz um

A sombra de Os brutos também amam (Shane, 1953), de George Stevens,

pintor que assistia ao julgamento. Neste detalhe, Ray nos faz lembrar dos esforços,

projeta-se sobre os novos pistoleiros que Hollywood vem dando à luz, Johnny

com melhor resultado, de Siodmak, também empenhado em romper o convencio-

Guitar (Sterling Hayden), o pistoleiro contratado por Vienna (Joan), não esca-

nalismo das cenas de tribunal em A dama fantasma (The Phantom Lady, 1944).

pa à regra. Como herói de Alan Ladd, é um forasteiro aparentemente pacato,

Um novo ator, John Derek, tem o papel central, tocando a Humphrey Bogart

que procura esquecer uma sanguinária folha de serviço. Suporta pacificamente

a incumbência de personificar o advogado Andrew Morton. Derek revela, sobre-

as primeira chalaças do valentão Bart (Ernest Borgnine), mas, descontrolando-se

tudo, uma inexperiência grave, e em muitas ocasiões esta inexperiência o tornou

com a demonstração de pontaria de um rapazola (Ben Cooper), revela sua condição

insensível às recomendações do diretor. Interpreta o assassino-vítima, o criminoso

de pistoleiro. Até então, sua pistola dormia na mochila.

baby face. Humphrey Bogart está correto, assim como George Macready (o promo-

Com Johnny Guitar, a fita está (relativamente) em boas mãos. As coisas pio-

tor), Barry Kelley (o juiz), e Allene Roberts (a jovem esposa de Romano). Ótima

ram muito com Vienna, a carreirista que fez muitos sacrifícios para levantar um

fotografia de Burnett Guffey (sem embargo do mau estado da cópia em exibição

saloon num ponto onde passará a ferrovia, e não pretende abandoná-lo, apesar

no Ipanema) e boa música de George Antheil.

das ameaças do ambicioso McIvers (Ward Bond) e da ciumenta Emma Small (Mercedes McCambridge). Se algum dia quisermos uma caricatura cinematográfica de Joan Crawford ou do estrelismo, será preciso recorrer às cenas antológicas dessa fita: Vienna no alto da escada, em calças compridas, dando ordem aos crupiês; num elegante vestido branco, ao piano, esperando os linchadores em companhia das musas; ou, ainda, no duelo de morte com Emma Small. Crawford, sem dúvida, lembrará sempre com remorso o momento em que aceitou esse papel. Deformada pelos fotógrafos, com seus 47 anos (oficiais) bem

1. Originalmente publicado na Tribuna da Imprensa, em 17 de agosto de 1955. 2. O artigo foi ligeiramente revisado e editado pelo autor. (N.E)

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visíveis à luz do Trucolor, é apenas uma charge, sem espírito, de seus grandes

Juventude transviada

dias. Mercedes McCambridge (Oscar de coadjuvante em A grande ilusão [All the King’s Men, 1949]) não perde as saias, mas também não faz um papel insultuoso ao

Ely Azeredo 1, 2

seu valor como atriz. Mais felizes em seus papéis são Sterling Hayden, Scott Brady (Dancin’ Kid), Ward Bond (McIvers) e John Carradine (o zelador). 3 O problema da delinquência juvenil nos Estados Unidos continua à espera de um grande filme de análise. Por sua amplitude, por suas características, difere do que se vê em outros países: é um problema nacional. Não se limita às camadas menos favorecidas da população, também florescendo numa classe média cujo nível de conforto e segurança materiais não tem precedentes na história. Das três produções mais famosas que abordaram o problema nos últimos anos — O selvagem (The Wild One, 1953), Sementes da violência (Blackboard Jungle, 1955) e Juventude transviada (Rebel Without a Cause, 1955) —, este é o único cujas boas intenções não levam a nenhum resultado importante. O selvagem, o melhor, apenas expunha o problema, e suas virtudes, além da força cinematográfica e poética, incluíam um provocante e salutar efeito de choque. Sementes de violência, embora admitindo “soluções” fáceis, tinha coragem de apontar aqui e ali as nódoas de seu país e de sua época. Juventude transviada sugere que os pais podem ser os verdadeiros delinquentes e, pelo menos nos três casos centrais do filme, eles podem ser responsabilizados — por egoísmo, incapacidade ou omissão involuntária. Mas as omissões e os erros dos pais, ainda que sejam a origem dos sentimentos de insegurança e rejeição dos filhos, não os transformam necessariamente em gângsteres. E como gângsteres procedem vários adolescentes do filme: (1) utilizam processos terroristas contra os inimigos; (2) recorrem a disputas de gosto sádico, como um duelo a facas onde não vale matar, mas experimentar o prazer de sangrar o adversário; 3. Johnny Guitar, cujas correntes de sexualidade e política passaram praticamente despercebidas na época do lançamento, figura – estranhamente – em inúmeras avaliações da crítica internacional como um dos “melhores westerns de todos os tempos”. Fatores extra-

(3) inventam um teste de coragem, o chicken run, em que os contendores, em automóveis roubados, correm vertiginosamente para um precipício e o que saltar primeiro é chicken (medroso).

gênero supervalorizaram o filme, produzido com orçamento irrisório na Republic. Na época

Quais os responsáveis por essa violência, esse gosto macabro, essa falta de

não se sabia que a história chegou às mãos de Nicholas Ray depois de comprada por Joan

ideais, essa insensibilidade moral? O Cinema? A subliteratura de bolso ou em qua-

Crawford; nem que os dois haviam sido amantes. A alegada bissexualidade de Ray, facilitaria

drinhos? A conversão dos ideais humanos em moeda corrente? O círculo vicioso

– driblando as censuras – que o ângulo histérico da trama fluísse a partir tensão sexual entre Vienna e Emma. Apesar da sinalização heterossexual entre elas e “seus” pistoleiros, a libido

de guerras? A política de armamento dos espíritos? O filme não responde. E não

não se esconde no conflito de poder entre as duas personagens. Por outro lado, a pressão para delações na investigação sobre o roubo de dinheiro destinado ao Banco compõe uma alegoria contra a Comissão de Atividades Antiamericanas (HUAC ) que, naquela época,

1. Originalmente publicado na Tribuna da Imprensa, em 1955.

promovia uma “caçada às bruxas vermelhas” em Washington. (N.A)

2. O artigo foi ligeiramente revisado e editado por parte do autor. (N.E)

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podemos comentá-lo como thriller porque suas pretensões são muito maiores.

O pensamento de Nicholas Ray

É, portanto, um filme frustrado. Nicholas Ray não se mostra um grande diretor, mas a coragem e a au-

Paulo Emílio Salles Gomes 1

tenticidade de O crime não compensa (Knock on Any Door, 1949) e Amarga esperança (They Live by Night, 1948), seus dois filmes anteriores delinquência juvenil, eram credenciais para a realização realista que o problema está exigindo. Em O crime não compensa e Amarga esperança, filmes que, diga-se de passa-

As livrarias dos países de língua inglesa já devem ter recebido o volume

gem, contaram com roteiristas de muito valor (Daniel Taradash, Charles Schnee),

Rebel: The Story of a Film, escrito por Nicholas Ray com a colaboração de Gavin

Ray convidava a sociedade ao banco dos réus. Em Juventude transviada, suas

Lambert. Esse tipo de livro, como o que Lilian Ross consagrou à realização de

acusações ficam no âmbito familiar. Mas, no último momento, muitas dúvidas se

A glória de um covarde (The Red Badge of Courage, 1955), de Huston, pode ajudar a

infiltram no espírito do espectador: embora louvasse na sequência inicial o trabalho

crítica a fundamentar de modo mais consistente as variações estéticas consagradas

da divisão juvenil da polícia (com psiquiatras em plantão noturno), o filme a exibe

ao cinema norte-americano, que se ressentem em geral da falta de detalhes sobre

matando um garoto de 15 anos, que tentava escapar do cerco de impressionante

as condições de produção vigentes em Hollywood. Melhor, porém, do que o livro

aparato bélico, aterrorizado com ordens só admissíveis em caçadas de assassinos

de Lilian Ross — em que, apesar de Huston ter comunicado à autora suas ideias e

profissionais. Então, temos o direito de perguntar: é a polícia coautora do problema

intenções, reina uma atmosfera de reportagem exterior —, o volume de Nicholas

da delinquência juvenil? Como a sociedade se alia a tais criminosos?

Ray e Gavin Lambert permitirá que se conheça o pensamento do autor de Juventude

Nessa coluna nunca pretendemos violentar as diretrizes dos filmes. Não pleiteamos simplificações demagógicas e acreditamos que, sejam quais forem as respostas, elas não podem elidir a responsabilidade individual. Mas o cineasta está no dever de falar claro e com autoridade. 3

transviada (Rebel Without a Cause, 1955). É pelo menos o que se depreende do fragmento publicado pela Sight and Sound. Ao interesse com que os meios europeus de cultura cinematográfica seguem as atividades de Nicholas Ray, não é indiferente a sua aproximação intelectual e profissional com Gavin Lambert. Fundador da revista Sequence, membro proeminente do British Film Institute e editor, durante anos, da Sight and Sound, Gavin Lambert é um crítico e autor do naipe de um James Agee. É provável que sua contribuição artística, mesmo eventualmente frustrada, para a indústria cinematográfica seja pelo menos tão significativa quanto a de Agee, cujo último lampejo assistimos em O mensageiro do diabo (The Night of the Hunter, 1955). O fragmento do livro de Ray mostra que ele goza em Hollywood de uma situação invejável. À companhia Warner — que lhe propõe um filme sobre as fantasias de violência reveladas em estado hipnótico por um jovem delinquente, baseado no livro Rebel Without a Cause, de Robert Lindner, cujos direitos já haviam sido adquiridos —, Ray retruca com a contrapro-

3. Na ocasião do lançamento, a crítica se concentrou nas bases temáticas do filme: o con-

posta de uma ideia original sua. Não só impõe a sua história, mas o livro sugerido

flito de gerações; a violência entre grupos de jovens; o clima de repressão dos anos 1950.

utiliza o título que lhe agradava. Foi ainda facultada a Ray a escolha, e isso é bastante

Mas análises sociológicas não seduziam Nicholas Ray. Sempre identificado com os solitários à

incomum, do produtor executivo do filme, dentre os que no momento estavam sob

margem dos padrões institucionais, mostra um carinho especial pelo adolescente Plato (Sal Mineo), o personagem mais vulnerável. Em versão anterior este era o real protagonista status que perdeu quando contrataram James Dean como o rebelde “titular”. Embora a histó-

contrato na Warner. Não apenas teve a mesma liberdade na escolha do roteirista, como pôde substituí-lo duas vezes até encontrar um terceiro que lhe conviesse.

ria original de Ray tenha passado pelas mãos de três roteiristas, sua marca de autor se impõe como dramaturgia audiovisual: na escultura do tempo (tudo se passa em 24 horas); na tensão

1. Texto publicado no Suplemento Literário do jornal O Estado de São Paulo, no dia 01 de

do ritmo; e no aproveitamento estético do (então) novo espaço do CinemaScope. (N.A)

dezembro de 1956.

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Nicholas Ray sabia o que queria. Rejeitara a ideia do filme sobre os delírios

situação. Todos esses elementos de informação evidenciam, e algumas preocupa-

do paciente de Robert Lindner por se tratar de um caso já bastante nítido de delin-

ções ingênuas não desmentem, a determinação de Nicholas Ray em realizar um

quência. O que o interessava no momento era a situação de jovens delinquentes

filme que suscitasse preocupação por alguns problemas focalizados com seriedade.

por assim dizer normais. Esses eram os personagens da sinopse que preparara e

Podemos desde já perguntar em que medida se reflete no filme realizado toda

à qual deu o título de The Blind Run. A expressão “corrida cega” aplicava-se não

essa seriedade de intenções. Só conheceremos as condições exatas da realização

só ao comportamento geral dos personagens diante da vida, mas também a um

propriamente dita de Juventude transviada quando lermos o livro de Ray, porém

momento preciso da ação, uma corrida cega de automóveis num túnel. Se The

tudo indica que as eventuais pressões externas não foram decisivas no processo

Blind Run era uma simples ideia para um filme, ainda sem estrutura dramática,

de degradação de seu pensamento. Naturalmente que a culpa pode ser jogada

ela continha um ponto de vista preciso. Esse ponto de vista, e de partida, era que

inteiramente sobre Hollywood. Para isso basta pensarmos em toda Hollywood

os atos sem objetivo claro dos jovens delinquentes nascem do isolamento e do

que existe dentro de Nicholas Ray, informando suas concepções dramáticas e seus

ressentimento que experimentam no seio da família. Pela frequentação dos depar-

objetivos artísticos.

tamentos juvenis da polícia, Nicholas Ray pôde verificar a justeza de sua ideia

O primeiro movimento do pensamento de Nicholas Ray foi o de um moralista

e iniciar a visualização de seus personagens. O encontro com um adolescente

e, mesmo no filme realizado, ainda se encontram resquícios de incontestável boa-

de 16 anos que, “para se divertir”, atirara o automóvel num grupo de crianças, terá

-fé inicial. O assunto proposto era, pois, o de que jovens mais ou menos normais

importância para a criação do personagem de Plato, se bem que Ray, preocupado

podem ser levados à delinquência pela influência nefasta de seus lares. Preocupado

em evitar os casos extremos de delinquência, tenha substituído o massacre de

em não se limitar a casos singulares e extremos, Ray apresentou três tipos de

crianças por um automóvel pelo de cachorrinhos por tiros de revólver. Nicholas

família que cobrem uma larga média. Uma delas destruída pelo divórcio, outra

Ray levou realmente a sério o assunto.

dominada pelas constantes

O critério utilizado na escolha de seus companheiros de trabalho foi o da fami-

disputas do casal e a terceira na qual reina a harmonia entre o pai e a mãe.

liaridade com os problemas da juventude. Pediu a colaboração de David Weisbart

Uma quarta família é apenas sugerida numa cena entre um dos capangas de Buzz

como produtor executivo, porque este tem dois filhos adolescentes. Antes de entrar

e o pai, na porta da delegacia. Já vemos que o desenvolvimento lógico do ponto de

para o cinema, o escritor Leon Uris dirigira um grande jornal onde se tornou co-

partida de Ray o levaria a meditações extremamente importantes e graves. Como

nhecido como o confessor de cerca de quarenta jovens que tinha sob suas ordens,

a fonte dos distúrbios dos adolescentes é a famflia, e como as famílias focalizadas

razão determinante de seu contrato como roteirista. Quando foi preciso substituí-lo,

não apresentam nada de particularmente delinquente, a tese sugerida seria a da

a escolha caiu sobre Irving Shulman, porque fora professor de ginásio; e também

agonia da própria instituição da família em largos setores da comunidade. Este

porque tinha paixão por carros esportivos, terreno comum a James Dean, o que,

pensamento só transparece no filme de forma discreta e às vezes confusa. Deve

segundo o diretor, poderia facilitar o trabalho de equipe.

ser curioso o exame detalhado do processo de diluição desse ponto central durante

O jovem ator de Vidas amargas (East of Eden, 1955) havia sido escolhido por

o desenvolvimento da realização de Juventude transviada.

Ray ao assistir ao filme de Kazan. Quando Nicholas Ray conheceu melhor a perso-

A fidelidade ao espírito da sinopse de The Blind Run exigia que os polos dra-

nalidade de James Dean, a sua insegurança, a sua necessidade de encorajamento,

máticos fossem os jovens de um lado, as famílias do outro. O conflito central deve-

de tolerância e compreensão, não só confirmou sua escolha como regozijou-se por

ria eclodir entre esses dois elementos. Acontece, porém, que tendo sido admitida

ela. Essas indicações sobre o método de trabalho de Ray devem ser completadas

como ponto de partida a inocência dos jovens e a metafísica hollywoodiana exigin-

por uma alusão a experiências pessoais, que provavelmente melhor esclarecem

do nos conflitos uma demarcação entre as forças do bem e do mal, os realizadores

sua preocupação com o problema do adolescente e de suas relações familiares:

seriam levados a concentrar toda a carga negativa nas famílias. O filme mostra que

quando a Warner apresentou fortes objeções à cena do filme que mostra um cheque

esse perigoso empreendimento foi evitado. Apesar de uma sequência onde James

acompanhado de quatro palavras batidas à máquina, “para manutenção do filho”,

(Dean) Stark quase estrangula pai, dá safanões na mãe e pontapés no retrato da

como único contato entre Plato e o pai, Nicholas Ray explicou estar tanto mais

avó, o filme é de tal forma construído que, no conjunto, os conflitos familiares, que

convencido da realidade do episódio quanto ele próprio tinha dois filhos naquela

deveriam constituir o centro constante de interesse, passam para o segundo plano

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em benefício de cenas acessórias e conflitos paralelos transformados nos morceaux

Juventude transviada

de bravoure da fita. Nicholas Ray exprimiu seu reconhecimento a Irving Shulman pela ideia do chicken run na direção do abismo, que substituiu a “corrida cega” do

Antonio Moniz Viana 1

projeto original, mas em seguida ele interrompeu a colaboração com o roteirista porque este não admitia a sequência final do planetário. Aplaudindo ou censurando Shulman, Ray estava nos dois casos, traindo seus propósitos; criando situações tensas ou enfáticas fora de sua linha original. Ainda mais grave é a sequência da briga entre os amigos de Buzz e Plato, momento de suspense do filme, pois a sua função é escamotear o verdadeiro conflito, o das famílias, implícito em toda a história. Esta briga é tanto mais arbitrária, ou antes, de má-fé, que segundo a ideologia do autor não há nenhuma diferença de situação entre Buzz e seus amigos e Jimmy, Plato ou a moça. Os finais felizes de Hollywood são frequentemente irrisórios. É verdade que Plato assassinado pela polícia (que o filme sugere às vezes como substituto possível da família) não teve um fim feliz, mas o que dizer do rapaz e da moça que escapam da danação familiar dando os primeiros passos para a constituição de nova família? Mesmo o sorriso palerma dos pais não nos convence de uma eventual ironia de Ray. A trama de concessões em que se envolveu dificilmente lhe permitiria uma conclusão lúcida e cáustica. Nicholas Ray considera Romeu e Julieta como a melhor história já escrita sobre a delinquência juvenil. Criando a sua história, ele esqueceu que na peça de Shakespeare os vilões são as famílias dos Montéquios e dos Capuletos e que só aceitamos o fim digno porque os culpados são duramente castigados em seus sentimentos. Com as visões de fim do mundo no planetário e com a preocupação de respeito às três unidades, Nicholas Ray teve a pretensão de dar ao seu filme uma dimensão de tragédia clássica. Na realidade, essa intenção foi o álibi para a traição de propósitos iniciais aparentemente mais modestos e certamente mais corajosos. O resultado final é melancólico. Um homem inteligente, hábil cineasta e dispondo de rara liberdade, realiza um filme a que se assiste dificilmente uma segunda vez.

I Diretor que se revelou logo no primeiro filme, Nicholas Ray, de Amarga esperança (They Live by Night, 1948) a Sangue ardente (Hot Blood, 1956), deu tantas e tão inequívocas exibições de talento que o mais surpreendente não é ter realizado uma obra-prima como Juventude transviada (Rebel Without a Cause, 1955), senão o fato de não serem grandes todos os seus filmes. Algumas vezes, realmente, ele não conseguiu vencer a rotina a que estava a priori condenado pela própria natureza do assunto — o caso de Horizonte de glórias (Flying Leathernecks, 1951) e Alma sem pudor (Born to Be Bad, 1950). Outras vezes, em troca, enfrentou sem se perturbar, com entusiasmo até injustificável, assuntos que muitos repeliriam ou tratariam com indiferença — por isso, Fora das grades (Run For Cover, 1955) e sobretudo Sangue ardente, embora não sendo grandes filmes, a quase todo instante estão mostrando uma admirável direção. Não é demais repisar nesse ponto, uma vez que ainda há quem insista em negar a Nick Ray o que dão, indebitamente, aos medíocres fazedores de “neorrealismos” e atribuem o prestígio do cineasta a uma “invenção” de alguns críticos franceses — por sinal os melhores da Europa e os que, neutralizando o academicismo de alguns colegas e expulsando os Sadouls, fizeram da Cahiers du Cinéma a revista que discute com maior personalidade e mais penetrantemente os problemas do cinema. Se o entusiasmo, em algumas ocasiões, traz a idolatria — segundo esses críticos, Nicholas Ray é o cinema como Bach é a música, o que pode ser discutido tanto da parte de Ray quanto da parte de Bach —, a sua falta ou sua inversão gera anomalias graves e aparentemente incorrigíveis (“cinemaScofobia”, zavattinite obliterante) quando não leva à depreciação, por anestesia, dos mais legítimos valores artísticos. É reconfortante observar, todavia, que não se perderam os esforços de Nicholas Ray, desde a sua revelação instantânea em Amarga esperança. Os que sentiram o impacto emocional e estético de No silêncio da noite (In a Lonely Place, 1951), de Cinzas que queimam (On Dangerous Ground, 1952), de Paixão de bravo (The Lusty Men, 1952), só podem estar tranquilos quando vêm aumentar o prestígio

1. Originalmente publicado em duas partes no jornal Correio da Manhã, em 1956.

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de Nick Ray com uma obra tão perturbadora, tão consistente, tão complexa como

Ray, todavia, empenha-se mais no aproveitamento estético do que o problema em

Juventude transviada.

foco, como qualquer outro, é capaz de suscitar — e que sempre suscita, quando quem

Não deve ser simples coincidência o fato de Nick Ray atingir precisa-

o explora é um artista. Se aponta o mal, o filme não se apressa a dar, logo abaixo, a

mente com uma história de sua autoria o vértice de sua carreira como diretor,

receita para extingui-lo, embora não tenha, na exposição do problema, a neutrali-

Juventude transviada aborda um problema que parece ter contado a constituir um

dade absoluta de um O selvagem (The Wild One, 1953), de Laslo Benedek. Só este

“ciclo” em Hollywood — o problema da delinquência juvenil. Já em seu filme de es-

filme de Kramer e Benedek e o Sementes de violência (The Blackboard Jungle,

treia, Ray o havia tocado, sem discutir-lhe as causas, mas mostrando o mais trágico

1955), de Richard Brooks, seus pares no “ciclo” sobre a delinquência juvenil que

de seus efeitos. Depois de Amarga esperança, voltou ao assunto, para focalizar em

voltou a constituir-se em Hollywood, valendo acentuar que Juventude transviada,

O crime não compensa (Knock on Any Door, 1949) a eclosão de criminosos entre a

como O selvagem, faz a romantizaçao de uma adolescência insatisfeita, por isso

juventude desajustada pela pobreza e em inevitável contato, no bairro miserável

ambivalente e confusa, e, como Sementes de violência, tem o ambiente de uma

em que vive, com bandidos e contraventores. O menor delinquente, mesmo não

escola entre as causa propícias à orientação para a violência, por facilitar aos

sendo o centro da narrativa, é personagem frequente nos filmes de Nick Ray —

jovens a reunião em gangues. Vale salientar, também, que, ao contrário dos de

é o Ben Cooper de Johnny Guitar (1954), é o menino (Cumner Williams) caçado

Sementes de violência (e dos de outro filme de Nick Ray, O crime não compensa),

na neve em Cinzas que queimam, é o John Derek de Fora das grades, já adulto,

os heróis de Juventude transviada não provêm de classes menos favorecidas: não

porém necessitando, como se fosse uma criança, de que James Cagney o proteja

estudam num colégio de artes e ofícios, mas numa moderna e bem aparelhada

contra os seus próprios instintos. Não só o menor delinquente; também a violência

high school; não são órfãos; nem vivem em cortiços, mas em casa providas de todo

cometida, nem sempre em revide, contra esse menor figura entre os elementos

o conforto. Variam as classes sociais, as causas também variam — mas os efeitos

mais constantes dos filmes de Nick Ray — também desde Amarga esperança.

são os mesmos: os rapazes dos cortiços de O crime não compensa, os estudantes

Assim, Juventude transviada é a soma de vários precedentes. Ao escrever a história, Ray deve ter-se orientado tanto por uma antiga tendência como pela certeza

de Sementes de violência, os motociclistas de O selvagem e os rebeldes de Nick Ray estão no caminho de todas as violências.

de já estar capacitado a produzir a obra artisticamente definitiva que suas outras

Nick Ray é o poeta da violência e do amor e, como observou um crítico (Eric

experiências prefiguravam. Mais maduro, também, mas sem refrear em seu estilo a

Rohmer), “é a fascinação própria a estes dois sentimentos que o obceca, mais

inquietude do pesquisador, Nick Ray pôde atingir o objetivo sem desvios ou tropeços

do que o estudo de sua gênese e de suas repercussões próximas ou longínquas”.

— sem consentir no prevalecimento de uma tese sobre os demais elementos, fazendo-

É por isso que jamais se sentiria o diretor inclinado a empregar o estilo realista

a sair do drama, e não com que os incidentes dramáticos sejam satélites dela. Mesmo

de Brooks — e nem em O crime não compensa, quando tudo o levava ao realismo,

ao apontar como uma das causas da delinquência juvenil, talvez a mais importante,

foi só um realista. É por isso, também, que, em Juventude transviada, ele transfere

a negligência, por incompreensão ou irresponsabilidade dos pais, o filme não der-

a questão social para o plano da poesia ao descrever, como ainda não se fizera, a

rama uma “mensagem”. Ray não é Cayatte (ou Moguy), e Juventude transviada,

ansiedade de uma juventude que sabe da existência de uma meta, mas é só o que

porque Ray é essencialmente um artista, não faz sociologia de bolso: a interpretação

sabe: onde ela está, como alcançá-la e o que significa, nenhum dos “rebeldes” está

que dá ao problema é sempre menos sociológica do que poética.

capacitado a dizer. Como não tem quem os aconselhe ou lhes dê exemplos em que possam inspirar-se, movem-se às cegas e se transviam, porque, como houve quem acentuasse, todos os esforços com que visam substituir a ação pelo pensamento

II

permanecem no terreno da ação, não raro a mais violenta. Assim, quando Jim, o protagonista, pergunta ao seu competidor numa desvairada corrida de automóvel

O tema de que os pais têm uma parcela considerável de responsabilidade nos erros

qual o objetivo da corrida, a resposta é: “você tem de fazer alguma coisa” — e ele

cometidos pelos filhos é ilustrado em Juventude transviada por meio da seleção de

aceita sem a menor relutância.

três casos: os de três jovens que, ao começar a narrativa, estão detidos na divisão

Na primeira cena do filme, já Nick Ray nos dá com um maravilhoso ator um

juvenil de um posto policial. Ao acompanhá-los, depois, no lar e na escola, Nicholas

retrato dessa juventude ansiosa e confusa: James Dean, embriagado, tem nas mãos

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um macaquinho de brinquedo, que põe para dormir ao seu lado; no passeio onde

de que ele necessita), com o idílio de Jim e Judy e com a chegada ameaçadora dos

pouco depois vem apanhá-lo a polícia. A longa sequência na divisão juvenil do dis-

lugares-tenente da gangue de Buzz, que o pequeno Plato, despertando e se vendo

trito policial faz a apresentação dos três personagens centrais, insinuando também

só, enfrenta de revólver na mão.

a tensão doméstica que eles experimentam. Jim (James Dean) foi detido por em-

O fim é o cerco do menino armado no planetário em que ele se refugia da polí-

briaguez, Julie (Natalie Wood, que já nessas cenas revela extraordinário talento),

cia, é a crise de lucidez que leva Jim a acalmar Plato e a convencê-lo a entregar-se,

por estar sozinha na rua a uma hora da madrugada; Plato (Sal Mineo, outra ex-

é o gesto irrefletido que acende um farol no rosto de Plato, é o tiro indesculpável que

pressiva revelação dramática), por ter matado alguns cachorrinhos. Quando os

abate o menino. É o pranto da negra, o desespero de Jim, a imobilidade da polícia.

pais de Jim vêm buscá-lo fica bem claro a tirânica influência da mãe (Ann Doran)

Um belo final para um grande filme que traz, ainda, a segunda performance memo-

sobre marido (Jim Backus), hesitante e covarde. Posteriormente, outras cenas do-

rável de James Dean, o maravilhoso ator revelado em Vidas amargas (East of Eden,

mésticas mostram que uma das causas da frustração de Jim é o desprezo que ele

1955), por Kazan, e que só fez três filmes antes de morrer tragicamente num desas-

se sente compelido a ter por um pai moralmente fraco — e, quando este, usando

tre de automóvel (Assim caminha a humanidade [Giant, 1956], de George Stevens,

um ridículo avental de cozinha, está recolhendo o que caiu da bandeja, agachado

o terceiro). Como disse um crítico inglês a propósito de Juventude transviada,

e receoso de que a mulher o surpreenda, é o filho que procura aconselhar o pai.

“Dean não poderia encontrar melhor monumento”. Vale salientar também outros

No lar de Julie, o que Nick Ray descreve em poucas mas sugestivas cenas é a falta

atores, como Natalie Wood e Sal Mineo, que estão admiráveis, e ainda a beleza

de afeição paterna que a magoa profundamente, e que o pai (William Hoper) não

da fotografia do veterno Ernest Haller e a alta qualidade poética da partitura de

lhe dá, porque, parece insinuar o filme, espera repelir com essa frieza um pensa-

Leonard Rosenman.

mento incestuoso. Quanto a Plato, o que o fere é a falta absoluta de atenção dos pais, divorciados e ausentes, que o deixaram só num casarão, aos cuidados de uma governanta negra. Focalizados separadamente no distrito policial, os três jovens são depois reunidos e acompanhados pela câmera em suas tentativas desordenadas de compreensão de valores morais que eles ignoram. E é daí que Nick Ray retira os grandes momentos de Juventude transviada: 1) o jogo de faca, pois é menos uma luta do que um jogo, à saída da aula no planetário de Griffith Park, quando o chefe da gangue escolar (Corey Allen) obriga Jim a enfrentá-lo, numa cena tão intensa quanto a de Sementes de violência, em que outro “rebelde” (Vic Morrow) avança de faca em punho contra o professor; 2) a corrida para o abismo, com a qual Buzz e Jim têm de afastar as dúvidas deixadas pelo “jogo da faca”: em automóveis roubados, eles se obrigam a fazer em grande velocidade um pequeno percurso na escarpa de Millertown e quem saltar primeiro é “chicken” (covarde); Judy, que é garota de Buzz, dá sinal de partida, com os braços levantados e o rosto iluminado não só pelos faróis dos outros automóveis, mas também pelo sensualismo que lhe desperta a violência da corrida, ao passarem por ela os dois carros em disparada para o abismo; Jim salta no último momento, mas antes de Buzz, que se precipita no abismo; e, no belo final da sequência, depois que todos se afastam do local, Jim estende a mão a Judy, herdando, por assim dizer, a namorada do jovem que acabava de morrer; 3) o êxtase na mansão deserta, com as correrias dos três heróis que brincam de família (e Plato “encontra” em Jim e Judy os pais

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Juventude transviada

Pois, no percurso, Ray dá ao Problema da Delinquência Juvenil de que tratou tão bem, ele, a chave, que vos deixo aqui sem comentários: seus heróis são ado-

Roger Tailleur

1

lescentes-que-lutam-para-se-tornar-homens; sua crise é a passagem da infância à maturidade, um mau momento a se passar, o mais ingrato, na saída da idade assim nomeada. Ao escolher James Dean, assumiu com ele outros ecos de Vidas amargas (East of Eden, 1954) — esquecendo que esse filme transpunha os aborrecimentos

As causas e os efeitos Juventude transviada (Rebel Without a Cause, 1955) apresenta, entre outros casos, os seguintes: a) moleques que dão errado; b) Nicholas Ray.

de Adão e de seus filhos para o paraíso terrestre —, dentre os quais os menos harmoniosos não são aqueles de Leonard Rosenman. Como em Vidas amargas, James Dean suplica a seu pai para lhe dar o Conselho, para proferir a Palavra. Pois a verdade apenas saberia vir de um outro

a) Lançado após O selvagem (The Wild One, 1953) e Sementes de violência

e do alto, do Pai, do Deus. Dadier, em Sementes de violência, efetua uma aborda-

(Blackboard Jungle, 1955), Juventude transviada sofre fortemente do atraso, da

gem em um sentido exatamente oposto: “Quais são as regras, Miller?”, pergunta,

comparação e do complexo de imitação e de distanciamento habitual dos fil-

à beira do desespero. James Dean é tão convencido da importância desse papel do

mes “seguidores”. Rever Amarga esperança (They Live by Night, 1948) logo após

pai que não tem nada de mais urgente a fazer, uma vez rejeitando o seu, que inter-

Vive-se só uma vez (You Only Live Once, 1936) já era uma experiência suficiente-

pretar dignamente esse papel diante de Sal Mineo. 2 Toda a obra de Ray demonstra

mente cruel para o filme de Ray, e não apenas devido ao “páthos” característico

a fatalidade dessa servidão: o jovem, o fraco, confiando o que quer que tenha ao

do cineasta.

velho, ao forte, Farley Granger aos seus companheiros de “quarto”, John Derek a

Ao fazer de seus heróis filhos de famílias ricas, Ray pretendia clamar seu

Humphrey Bogart e James Cagney, Robert Ryan a John Wayne. O forte, que detêm

desprezo pelas causas e razões “sociais”? O próprio título, tendendo a fazer de

detém indefectivelmente o segredo do bem, vemos quando isso pode chegar ao ab-

James Dean um Lafcadio, permanece uma proclamação violenta de um gosto

jeto com Horizonte de glórias (Flying Leathernecks, 1951). Ele é o “líder” a quem se

duvidoso. Mas ela em si não é nada, pois o autor original Ray se lançou no mais

confiar cegamente, aquele que Brooks expressamente condena (quando um Dadier

puro estilo Cayatte, tão visível já em O crime não compensa (Knock on Any Door,

ainda estúpido pede a Miller que seja aquele a quem a classe seguirá o exemplo).

1949), que eu, por isso, não pensava então em acusar somente o infeliz roteirista

Ah, como o filme era belo nos primeiros 15 minutos: quando James Dean,

Dan Taradash de edificador de causas, muitas causas.

embriagado, jogava-se ao solo, Natalie Wood chorava em close-up, Sal Mineo ria

O avental de cozinha que veste o pai, aquilo dificilmente é sério; a mãe cas-

da fala do psicanalista, quando tantos tormentos não haviam revelado completa-

tradora apoiada pela avó corajosa já é um pouco melhor; o órfão-pelo-divórcio,

mente suas pobres causas psicológicas e familiares: a falência dos respectivos pais.

a filha rapidamente crescida que seu pai jovem teme preferir a uma esposa pouco

Na galeria de cretinos que representam no filme as grandes pessoas, e no

atraente, eis o não muito novo que resistiu melhor ao ser apenas evocado. A alu-

meio dos “colegas” particularmente desgraçados, um tira se destaca. Tendo mais

são pode gerar ilusão; a cena — mesmo única — quando é chapada como aqui,

de padre que de policial, ele é compreensivo, encoraja a confissão, é pródigo de

descobre e introduz irremediavelmente honestas intenções. Segue uma confusão

bons conselhos; chegaremos a vê-lo quando tudo vai mal, sua ausência provoca

freudiana que faz pesar ainda mais a estrutura, onde víamos demasiadamente

o pior. Ray chega até a nomeá-lo com seu próprio sobrenome. Aqui ainda, Brooks

os alicerces, segue um personagem “neurótico”, fugitivo de um hospital psiqui-

aparece em contraste absoluto: Dadier rejeita firmemente os serviços do comis-

átrico, segue uma segunda metade de filme que, como habitualmente em Ray, é

sário de polícia.

desarticulada e se arrasta em duração, segue a fatalidade, segue a divinização do

Que me desculpem por essa referência constante ao autor de

personagem do Pai.

Sementes de violência: é que tratando de personagens da mesma idade, ele exibe,

1. Originalmente publicado na revista francesa Positif, nº 17, junho-julho de 1956. Tradução

2. É claramente a voz do pai que fala através de James Dean quando, na casa vazia, ele imita

de Alice Furtado.

Mr. Magoo, herói que tem, como sabemos, a voz de Jim Backus. (N.A.)

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em sua maneira de se aproximar e de compreendê-los, um completo desacordo

lançados no chão. Um brinquedo de criança estigmatiza a idade atômica: junto

com aquele de Juventude transviada.

à cúpula estrelada de um planetário, ele tem menos sucesso em nos dar a grave

b) Juventude transviada é, dos filmes de Ray, aquele que mais acumula daquilo que é con(mas é claro )vencionalmente chamado de “temas preferidos”: o bom  3

imagem de um mundo futuro do que certo equipamento de coro e certa musica de Leith Stevens num filme já citado.

tira, o casal de adolescentes, a fatalidade, 4 o violento (contra a sua vontade) que

Tomando emprestado um plano de Hitchcock (a imagem ao contrário, de-

encontra uma mulher, e esse outro par que acabo de evocar: aquele do forte e do

pois recolocada na posição correta, da mãe sobre a escada), uma ideia de Cocteau

fraco. Com esse último filme, do qual escreveu o argumento, Ray está, portanto,

(o carro que fala, transmitindo do além a mensagem de Buzz a Jim), um cenário de

bem em seu mundo. Cabe a ele se deleitar dentro disso. No máximo podemos

Wilder, Ray, de qualquer maneira, faz um filme frequentemente tão desaparelhado

desejar-lhe que o sacrifício de rapazes, ao qual se juntam hoje dois novos corpos,

quanto o par de sapatos de seu herói mais jovem.

não lhe gere tanta má consciência quanto o John Wayne de Horizonte de glórias,

A poesia, ele a solicita com esforços visíveis: em busca do maravilhoso ele muda de tom no meio de uma cena com um ruído de caixa de câmbio velha:

inflexível provedor. Esse mundo, sendo sincero, é indiferente para mim, como aquilo que pode

convoca os fins do mundo e as falésias íngremes, e subloca a piscina vazia outro-

provocá-lo: revolta ou aceitação culpada, desde o momento — lapalissiano — em que

ra utilizada em Crepúsculo dos deuses (Sunset Boulevard, 1950). A violência, esse

o cineasta parece incapaz de torná-lo interessante. O filme de Ray que mais admiro,

“especialista” a emascula, mas talvez assim transformada ela reflita o tempera-

o único completamente, junto com os começos de No silêncio da noite (In a Lonely

mento de James Dean (o personagem ou o ator?). Estamos longe da violência e

Place, 1950) e de Cinzas que queimam (On Dangerous Ground, 1952) e de cenas

da poesia de O selvagem, da violência e da inteligência de Sementes de violência.

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destacadas de outros, é também aquele onde nada ou quase nada se reconhece das

E é o momento escolhido pelos críticos para “reconhecer” Nicholas Ray.

obsessões enumeradas acima: Paixão de bravo (The Lusty Men, 1952). Era ainda

A unanimidade se faz a respeito do último filme, tanto na Inglaterra como nos

aquele onde em que o estilo do realizador era, por seu rigor e segurança, o mais

Champs-Elysées, de Georges Beaume a Georges Sadoul. Nenhuma embaixatriz

adequado a uma história notável na qual Ray se absteve de colaborar, mas da

se ofende. Films in Review se abstém de aplicar sua célebre etiqueta de “confusão

qual o saudoso Horace McCoy foi coautor. Não procurando ressaltar seu talento,

e adolescência intelectuais”, rótulo tão útil já que denuncia os filmes originais.

Ray cumpria, graças a uma perpétua desconfiança do efeito grandioso, todos os

Sei bem que para uma grande parte o filme se beneficia disso que eu chamarei

seus objetivos, inclusive aquele de me emocionar. Um amor quase inconfesso o

de caso (não a gag, infelizmente) de compreensão — ou de sensibilidade — atrasada:

salvava do sentimentalismo; heróis “sãos”, da patologia assim como da danação;

O selvagem havia escandalizado ou desconcertado, Sementes de violência interessou

uma paisagem rural, da polícia; e a modéstia do orçamento, “poesia”.

ou familiarizou, Juventude transviada de imediato fascina. Esse coro perfeito, se não

Com Juventude transviada, Ray não apenas exibe todo o arsenal, como o lustra

foi capaz de inquietar os três espectadores do Gaumont-Palace, é responsável pela

e faz brilhar todos os seus fogos. Felizmente tentado por um cinema de ideias-

tomada de partido necessária deste artigo, persuadida de que há sempre (alguma

-símbolos e dos efeitos que carregam, Ray, sem dúvida entusiasmado pela largura

coisa que faz soar) um sino ali onde ouvimos apenas um som.

de sua tela, repete seus símbolos à exaustão e martela seus efeitos, quando ele não os “telefona” ou não lança sobre eles a lupa de um close-up. Os aventais floridos brilham, assim como os retratos de família rachados, as casas assombradas, as “chickens” bem emplumadas (como se ao juntar-se à palavra a imagem se tornasse suportável), e os pais ignóbeis risivelmente postos num trono ou violentamente

Terminarei citando personagens (de No silêncio da noite) como testemunhas de acusação: Dixon Steele, roteirista hollywoodiano: Você, há vinte anos, refaz sempre o mesmo filme. É um vulgar vendedor de amendoins. Lloyd Barnes, cineasta hollywoodiano: Eu sei, e você também. A única diferença entre nós é que eu não nego.

3. O autor faz um trocadilho com a abreviação do adjetivo connard (idiota). (N.T.) 4. Fatalidade e danação! Tudo está no título de Alma sem pudor (Born to be bad, 1950), inédito na França. (N.A.) 5. E também, revisões feitas, o belo poema do “dramaturgo” Philip Yordan: Johnny Guitar. (N.A.)

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O roteirista, Humphrey Bogart (pois vocês o reconheceram): Um dia, eu lhe surpreenderei e escreverei algo bom. Não tenhamos medo de ser mais ray-alistas que Ray, e peçamos a ele que abandone um pouco seu assunto, seus temas, seu filme, em suma, e que “nos

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surpreenda”, para usar suas próprias palavras, assim como as de Kim Novak a

Quem foi Jesse James?

Fred MacMurray em A morte espera no 322 (Pushover, 1954). Isso será talvez com Sangue ardente (Hot Blood, 1956), ex-Tambourine 6 —

Ely Azeredo 1, 2

Sangue ardente foi nos Estados Unidos o primeiro título de trabalho de O selvagem (ainda!), filme sobre o mundo cigano nos Estados Unidos de hoje, que parece não se assemelhar a nada que Ray fez até aqui. Ray desenvolvia esse projeto há cinco anos, em parceria com sua amiga Jane Russel. Jane, que astutamente levou Cornel

Distante do nível dos bons filmes, Quem foi Jesse James? (The True Story of Jesse

Wilde ao casamento, esforça-se para tornar sua união branca em algo menos

James, 1957), é um dos espetáculos mais assistíveis da semana (fraquíssima).

virginal, e obtém sucesso após um mês de louváveis esforços.

É refilmagem, em CinemaScope e DeLuxe Color, do Jesse James que Henry King

Apostemos que por um assunto tão pouco “válido” a metade dos entusiastas de hoje julgará inútil se incomodar.

dirigiu em 1939, com Tyrone Power, Henry Fonda e Nancy Kelly nos papéis agora a cargo de Robert Wagner (Jesse), Jeffrey Hunter (Frank James) e Hope Lange (a mulher de Jesse James). A produção, bastante comercial, é a segunda e última dirigida por Nicholas Ray para a Fox, e não lhe oferece oportunidade tão interessante como a primeira, Delírio de loucura (Bigger Than Life, 1956), do produtor James Mason. Principais obstáculos: o roteiro, que adota a narrativa em flashbacks, sem dar aos personagens a substância dos bons westerns psicológicos; e os jovens intérpretes incapazes de acompanhar o envelhecimento e a crescente amargura de Frank e Jesse, bandoleiros formados na escola da Guerra Civil. O filme, que no original se chama “A verdadeira história de Jesse James”, é francamente simpático ao biografado. Diz-nos que, sem a hostilidade dos lavradores vizinhos, adeptos de um Missouri unânime ao lado da União, Jesse e Frank teriam sido exemplares pais de família. Concentrando em alguns vizinhos as tintas da vilania, Quem foi Jesse James? poupa o exército nortista e, como a quase totalidade dos filmes correlatos, evita mexer muito nas cinzas da revolução. Nas mãos de um diretor passivo, o filme teria caído completamente no melodrama inconsequente.

Nicholas Ray é claramente rebelde ao western. Johnny Guitar (1954) e

Fora das grades (Run for Cover, 1955) estão entre os piores filmes de sua carreira. É curioso notar, porém, que o primeiro era 50% melodrama crawfordiano, e que o segundo seguia a linha sentimental de tantos filmes sobre delinquência juvenil. A alergia do diretor, naturalmente, não é alheia a esses resultados. Quem foi Jesse James? também foge às fórmulas do western puro e, se perde muitos apreciadores com a transformação, ganha, por outro lado, em coerência com os métodos e preferências do cineasta.

1. Originalmente publicado na Tribuna da Imprensa em 1957. 6. Título original de Sangue ardente. (N.E.)

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2. O artigo foi ligeiramente editado e revisado pelo autor. (N.E)

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Nem sempre uma boa direção produz um bom filme e estamos ante

Quem foi Jesse James?

exemplo inequívoco. A descrição dos dois assaltos noturnos à fazenda dos James, o fracasso de Northfield, Minnesota, e a sequência final são excelentes. Encerra o

Antônio Moniz Vianna 1

filme um lamento poético que é também discreto comentário sociológico: o mendigo negro e cego que desce a rua improvisando uma balada sobre a morte de Jesse é bem uma imagem do Sul desarvorado pela Guerra Civil, que via no bandoleiro, irracionalmente, o Robin Hood de suas frustrações.

Permanecendo na 20th Century Fox, após ter realizado ali Delírio de loucura

Com exceção de Agnes Moorehead e John Carradine, o elenco está aquém

(Bigger Than Life, 1956), obra tão insólita quanto perfeita, Nicholas Ray voltou com

das exigências do filme. Mas Hope Lange (Nunca fui santa [Bus Stop, 1956]) é bonita

Quem foi Jesse James? (The True Story of Jesse James, 1957) ao “Wild West”, onde já

e sensível, talvez venha a ser uma boa atriz. Muito boa, como sempre, a fotografia

estivera com Johnny Guitar (1954), imprimindo ao desequilibrado script um ritmo

de Joe MacDonald, apesar dos senões do DeLuxe Color. O som sempre me parece

delirante, e com Fora das grades (Run for Cover, 1955), em que utilizu o Oeste como

irritantemente alto nos filmes da Fox. Ou será culpa dos cinemas? 3

moldura de um problema que já havia equacionado, tempo atrás, nos cortiços de Skid Row (O crime não compensa [Knock on Any Door, 1949]). Não importa que os dois westerns citados, assim como o atual, não estejam entre as grandes realizações de Nick Ray, o cineasta de Juventude transviada (Rebel Without a Cause, 1955) e No silêncio da noite (In a Lonely Place, 1950). Não importa porque, em primeiro lugar, em todos eles o estilo do artista prevalece sobre quantas ciladas tenham sido armadas pelos scripters. Muitas vezes é até mais fácil medir o verdadeiro talento de um diretor pelos obstáculos que ele tem de superar do que por triunfos alcançados com scripts irrepreensíveis. O caso de Quem foi Jesse James? não é o de um script medíocre. Ao contrário, o trabalho de Walter Newman, do ponto de vista histórico, é exemplar, corrigindo todos os desvios existentes no que Nunnally Johnson contribuiu para o Jesse James (1939) de Henry King, e no qual Newman se apoiou, e atribuindo à história dos célebres bad men de Missouri qualidades que tornam o filme perfeitamente apto a usar o true story no título. Quando Nunnally Johnson abordou a trajetória de Jesse e Frank James, a lenda ainda dominava inteiramente a história, e a ficção era permissível ao roteirista Walter Newman, que já encontrou aquela situação no caso dos James alterada pelos estudos de James D. Horan. Este, além de fazer um levantamento completo dos grandes vultos do Wild West, cuidou particularmente em outro livro, Desperate Men, dos James e também dos Yongers - seus vizinhos e companheiros de gangue. Outros autores, como Will Henry em The Raiders, também fizeram pesquisas, porém James D. Hogan, a partir de 1949, é a fonte obrigatória de todos os fazedores de filmes sobre Jesse e Frank James, assim como

3. O tema do filme, nascido de uma pesquisa de mercado encomendada pela Fox, chegou a interessar a Ray, que pretendia entregar a Elvis Presley - também filho de fazendeiro - o papel de Jesse. Mas a produtora impôs Robert Wagner, que tinha sob contrato. O uso da voice-over, na narrativa, também foi decisão do estúdio. (N.A)

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1. Originalmente publicado no Correio da Manhã, de 1956.

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nenhum roteirista tem o direito de focalizar o vulto de Wyatt Earp sem recorrer a

já estão dentro do banco. Com o tiro de Cole, a cidade compreende a situação e a

Stuart N. Lake (Wyatt Earp, Frontier Marshall).

reação que os bandidos encontram é tão inesperada quanto violenta. Do desastre de Northville ao tiro pelas costas com que Bob Ford, tentado pela recompensa, não hesita em disparar contra Jesse James, passaram-se na realidade

***

seis anos, dando-nos o filme, entretanto, a impressão de que um episódio sucedeu o outro, sem maior intervalo. É uma das falhas que se observam na montagem de

A narrativa de Quem foi Jesse James? também na cronologia dramática diverge

Quem foi Jesse James?, mas que não perturbam a narrativa em seu impacto dramáti-

da de Jesse James, tendo início após o último assalto do bando de Jesse com a

co. A reconstituição do assassinato de Jesse também é perfeita — e, aliás, já o era no

caçada a ele movida pelo xerife (John Doucette) de Northfield à frente de uma

velho filme de Henry King, do qual, aí, o de Ray não diverge. O epílogo desta nova

posse cujos integrantes estão estimulados pelo prêmio de 25 mil dólares oferecido

versão, todavia, é superior: em vez de focalizar o túmulo do herói, como King fez,

pela St. Louis Midland Railroad a quem capturar o bandido — recompensa que,

Ray aproveita a mesma cena (impressionante) em que Bob Ford (seguido por seu

durante a perseguição, um agente da Pinkerton (Remington Agency, no filme)

irmão Charley) desce a ladeira gritando histericamente que acaba de matar Jesse

eleva para 30 mil. A cada avanço, os perseguidores parecem esbarrar na lenda de

James, e, na rua que se vai enchendo de curiosos, focaliza um mendigo, fazendo-o

Jesse James, cujo rosto nenhum deles é capaz de identificar — e, se matam alguns

descer a ladeira cantando uma balada na qual, como no epitáfio verdadeiro de

e capturam o gigantesco Cole Younger (Alan Hale Jr.) e seus irmãos Bob e Jim

Jesse James, o nome do covarde que o matou não é citado. O mendigo, por irônica

(Biff Elliot), não conseguem sequer ver Jesse ou Frank. Ainda durante essa per-

coincidência, carrega um letreiro: “Ajude os pobres.”

seguição, a câmera narra, através de flashbacks guiados pela mãe dos bandidos,

Nicholas Ray, que ajustou sem dificuldade a figura de Jesse James à delin-

Zerelda Samuel (Agnes Moorehead), como o adolescente Jesse, espancado por

quência juvenil que atravessa vários de seus filmes, agora tendo como causa social

vizinhos ambiciosos aos olhos de um oficial nortista, deixou a casa do padrasto,

a Guerra Civil, também encontrou bons intérpretes em Robert Wagner, um Jesse

o Dr. Samuel (Barney Philips), para juntar-se a Frank no bando de Quantrill. Em

melhor do que o feito por Tyrone Power em 1939, e em Jeffrey Hunter, este, às

outro flashback, sua jovem esposa Zee (Hope Lange) repele a crítica do reverendo

vezes, parecendo empenhado em imitar Henry Fonda, cuja performance deve ter

Bailey (John Carradine) e recorda como veio a conhecer Jesse, que regressara

tido oportunidade de estudar antes de fazer o papel de Frank James. Alan Hale Jr.,

ferido, e como teve início o romance que a faria, até a morte do marido, em 1882,

que já foi Cole Younger em outro western, volta a sê-lo, agora muito bem. Hope

uma mulher permanentemente intranquila. Outros flashbacks mostram como

Lange, como a prima Zerelda (o mesmo nome da mãe dos bad men), que se tornou

Jesse organizou, com o irmão, os primos e os vizinhos do Condado de Clay, a

esposa de Jesse, não é tão boa atriz quanto Nancy Kelly (Zee na primeira versão),

gangue mais temível de Middle Border, talvez a maior de todo o Oeste, graças

mas nunca compromete o filme, que, quando ela está em cena, também jamais

à habilidade de Jesse, um líder nato e um verdadeiro estrategista — o que o filme

cai no sentimentalismo. Agnes Moorehead é a mãe enérgica e indomável, que

também descreve, mostrando como ele não realizava um assalto antes de planejá-

não considera bandidos os filhos e que vê Jesse como este foi descrito pela lenda,

lo cuidadosamente, estudando o local (banco ou trem), e distribuindo diversas

pelas baladas (uma das quais diz: “He was born one day in the County of Clay/and

funções a seus companheiros.

came from a solitary race” [Ele nasceu um dia no Condado de Clay/e provinha de

Só uma vez Jesse James falhou — e assim mesmo por circunstâncias impre-

uma raça solitária]), finalmente como um Robin Hood. O próprio Carl Sandburg

visíveis: no assalto ao banco de Northville, Minnesota, a 600 quilêmetros de seu

reconheceria a legitimidade desse título: “Há apenas um bandido americano que

quartel-general. De flashback a flashback, a ação de Quem foi Jesse James? chega

é clássico, que é neste país o que Robin Hood e Dick Turpin são na Inglaterra.”

ao planejamento e à execução desse assalto, numa sequência exemplar, a melhor que Nicholas Ray construiu: a chegada dos bandidos, todos vestindo capa clara, está envolvida por uma atmosfera tensa, e a plateia começa a desconfiar de que alguma coisa está errada quando um vagabundo puxa conversa com Cole em algaravia que este não entende e, por isso, se vai impacientando, enquanto Jesse e Frank

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Sangue ardente

Raros diretores de classe, se compelidos a levar à tela Sangue ardente, a isto se lançariam com o entusiasmo de Nicholas Ray, que, talvez em virtude de

Antônio Moniz Vianna

1

não contar ainda com a proteção dos grandes produtores, não pode desperdiçar chance alguma, nem as mais reduzidas. Foi logo depois de ter feito o admirável Juventude transviada que Ray realizou Sangue ardente, melodrama sobre os ciganos dos subúrbios de Los Angeles. A história, sem apreciável densidade dra-

Não é difícil imaginar o que seria Sangue ardente (Hot Blood, 1956) nas mãos de

mátiva, contém a descrição de alguns costumes, das tradições que os ciganos não

um diretor menos habituado a enfrentar as situações mais adversas, até ridículas,

abandonam mesmo quando parecem fixados num lugar — e que o filme ilustra

como tem feito feito, com êxito, Nicholas Ray. Se não são muitos nem muito graves

na cerimônia do casamento de Annie e Stephano e na transmissão do governo da

os defeitos da história de Jean Evens, é débil e frouxo, entretanto, o roteiro dela

“vitsia”, 2 na presença de todos os que compõem e com o assentimento do “conselho

extraído por Jesse L. Lasky Jr., que se opõe com frequência ao talento do diretor,

dos anciões”.

especialmente no último terço do filme. Mas é só então que Nicholas Ray se vê sem

No que tange à história propriamente dita, Jane Rusell, como Annie Caldash,

forças para neutralizar o convencionalismo de um roteiro que até esse ponto trazia

é uma esperta cigana que, patrocinada pelo pai (Joseph Caleia) e pelo irmão (Jamie

sob o domínio de seu estilo. Enquanto dura esse domínio, Sangue ardente mostra

Russell), já ficou noiva em várias cidades, desaparecendo assim que seu pai, de

o sensualismo incontido e poético que transparece em outras obras de Ray — aqui,

acordo com a tradição cigana, recebe o “preço do casamento”. Cornel Wilde, como

na conduta de Jane Russell e Cornel Wilde, como na aproximação irresistível

Stephano, é o noivo que não quer se casar com Annie — porque não a escolhera e

de Susan Hayward e Robert Mitchum em Paixão de bravo (The Lusty Men, 1952),

se rebela contra o poder de seu irmão mais velho, o rei da “vitsia” (Luther Adler).

ou em Juventude transviada (Rebel Without a Cause, 1955), quando surge sob uma

Quando Annie, num gesto impulsivo, leva até o fim o casamento, decepcionando

capa de semi-inocência nas relações de Natalie Wood e James Dean.

tanto o pai, que perde seu “negócio”, quanto o noivo, a trama se complica. E, apesar

Esse sensualismo é partilhado por todos os parentes e amigos embriagados de

de subjugado durante largo período pelo talento do diretor, o filme tem uma so-

tradição, de alegria e de vinho, na noite de núpcias (e de fraude) vivida aos tapas

lução apressada e convencional, o que o deixa numa posição secundária na obra

pela esperta Annie e pelo indignado Stephano, e o barulho é tanto que leva o avô

de Nicholas Ray.

do rapaz, com o mesmo entusiasmo de Barry Fitzgerald diante da cama quebrada

Ao lado do sex appeal de Jane Russell e da impassividade interpretativa de

dos recém-casados de Depois do vendaval (The Quiet Man, 1952), a exclamar,

Cornel Wilde, estão, entre outros, Luther Adler, firme como de costume, e Mikhail

quase em êxtase, “Quanta paixão! Quantas emoções!”, ignorando o que se passa

Rasumny, este na melhor performance de Sangue ardente, como o mais velho dos

e atribuindo a uma trégua o silêncio que se faz quando o noivo consegue fugir.

ciganos e o mais pitoresco e autêntico.

A atmosfera sensual reaparece na briga da heroína cigana com a amante loura (Helen Westcott), nas danças típicas a que a direção dá ainda um tom feérico, transbordante, e na cena em que Jane Rusell, decidida a dobrar o esquivo marido, quase consegue seu objetivo, embriagando-o com vinho e com a proximidade de seu corpo quente e decotado. Mas a melhor cena de Sangue ardente, em tudo digna da classe de Nicholas Ray, é a dança do protagonista na porta da agência, que acaba de dispensar seus serviços: a dança do cigano que se orgulha de saber dançar e que durante a qual mantém à distância o atemorizado Mr. Swift (Richard Deacon), e recebe de uma meia dúzia de transeuntes o acompanhamento rítmico. 2. Clã, linhagem, seita. O casamento pressupõe a união de duas famílias de linhagens dife1. Originalmente publicado no Correio da Manhã, em 1956.

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rentes. (N.E)

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Enfim um verdadeiro filme de autor

pois o velho pai, autor (sem querer) de fofocas que provocam a luta a golpes de cinto, sentimo-nos bem, digo, porque o velho papai será condenado para sempre,

Fereydoun Hoveyda

1

não confessando seu crime involuntário: sua gorda mulher trata de trabalhar para que ele o expie. Como vemos, o profundo senso religioso de Ray lhe permite trazer o raio de luz sem o qual o mundo pareceria sem sentido. (Lembrem-se do tour de force de Juventude transviada, em que, nas últimas imagens, a esperança

Aqueles que querem a qualquer custo diminuir o talento de Nicholas Ray estão

de repente renascia.)

bastante incomodados. Eles não previam isso. Confessemos, a réplica do grande

O interesse principal de Sangue ardente reside no espírito de Nicholas Ray,

realizador é severa. Eis os nossos críticos derrubados. De minha parte, assisti a

que soube, diante de produtores e censores, elevar um assunto inofensivo à grande-

Sangue ardente (Hot Blood, 1956) com bastante prazer e sem assombro. Nós o sa-

za de uma sátira psicológico-social. As intenções do autor são claramente evi-

bíamos há muito tempo: Hollywood permite que todos os talentos floresçam. (Dessa

denciadas por certas imagens: diante da incompreensão de meus colegas, sou

forma, Sternberg, Lang, Renoir, ali realizaram seus melhores filmes.)

obrigado a citar alguns exemplos: na entrada da casa de Marco, a câmera mostra

Essa cigana ilustra admiravelmente um segundo postulado do cinema atual:

um corte do cérebro humano e a palavra “Psicanálise” brilhando em letras ver-

de um assunto aparentemente limitado e insignificante, os grandes cineastas sabem

melhas. As alusões menos claras abundam: os ciganos falam de mãos direitas e

extrair, bem debaixo do nariz de produtores e censores, as mais virulentas ideias.

mãos esquerdas para prever o futuro. A “caravana” comprada por Marco chama-se

Pois convém não se deixar enganar pelo assunto escolhido por Ray; certamente,

“A terra prometida”. Quando o irmão entra no quarto das jovens esposas no mo-

ele rememora os roteiros de filmes egípcios; mas para além da história banal de

mento errado (ponto crucial do conflito de gerações do qual eu falava), o mundo é

amor, no que há de propriamente convencional nos conflitos fraternal e conjugal,

devidamente invertido num giro de câmera de 180o etc. Não, é preciso ser cego para

o célebre autor de Juventude transviada (Rebel Without a Cause, 1955) evidencia o

não reconhecer o valor de tal filme, para ignorar que, contra todos, a relativamente

mal do século: o conflito de gerações. Cornel Wilde e seu irmão Luther Adler não

jovem geração de realizadores americanos soube encontrar um meio eficaz de

são capazes de se compreender. As intenções amicais porém pesadas de Luther

contornar todas as censuras, tanto aquela do Estado quanto aquela dos produto-

terminam por exasperar o fervor espiritual do jovem Cornel, que, cego por sua

res. Mas uma outra conclusão, fortemente tranquilizadora, impõe-se após a visão

ambição de dançarino, ignora a ardente presença de Jane Russel. Da maneira

de Sangue ardente: este filme prova que o cinema está em vias de renovação pela

como o vemos, o conflito de gerações constitui a explicação suprema do mal do

introdução de novos temas. O velho triângulo amoroso, domínio alienado e vulgar,

século. Isso significa que as gerações devem se suprimir? Nada disso. Mas longe

começa a ser substituído por um mecanismo moral e engenhoso de outra forma:

de mim desvelar o sentido da história contada por Ray: o suspense que nos tira o

aquele do conflito de gerações que Alexandre Astruc soube, em primeiro lugar,

fôlego seria esvaziado.

sugerir timidamente, bem antes de Léo Joannon em L’homme aux clés d’or (1956).

Em Sangue ardente, encontramos então os temas habituais de Ray: o bom

Que lição para os pais: em vez de se contentar em querer o bem para suas

tira, o bom boêmio, o casal de jovens mal saídos da adolescência (é certo que

crianças, que eles se debrucem sobre seus problemas e que lhes deem a chance

Cornel Wilde e Jane Russel aparecem velhos na tela, mas sabemos o que significa

de tomar em mãos suas próprias possibilidades.

o sistema de produção americano, que impõe os atores ao realizador; além do mais,

Obrigado, Nicholas Ray, por este belo filme que você nos oferece. Sua men-

a maior parte daquelas que interpretaram Julieta na tela não ultrapassavam a idade

sagem se chocará contra a incompreensão dos críticos; mas tenha certeza de que

de nossas avós?), a fatalidade, o violento que encontra o amor. Aqui, Nicholas Ray

nós somos alguns a saboreá-la, a elite do mundo de amanhã. Dê-nos mais filmes

dá um passo a mais: ele sublinha a importância da confissão. O rapaz só se salva

parecidos e apostaremos que, daqui a pouco, todo o cinema adulto desaparecerá!

a partir do momento em que reconhece sua culpabilidade. E nos sentimos bem,

A nata de sua geração triunfará! Obrigado mais uma vez.

1. Originalmente publicado na revista francesa Positif, nº 21, em fevereiro de 1957. Tradução de Alice Furtado.

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Dialética sensível

Isto posto, veremos que Juventude transviada é o que há de melhor sobre o assunto, a obra que mais carinhosamente expôs o problema. Não estamos aqui

Flávio Pinto Vieira

1

ante uma narrativa fria, mas ante uma narrativa impregnada de lirismo e poesia, atributos, enfim, peculiares ao seu diretor Nicholas Ray, que, finalmente, para nós revela seu grande talento. Vem justamente daí a singularidade da posição dessa obra em relação às outras do grupo. Brooks ou Benedeck, por exemplo, não

As coordenadas do fator econômico como as do fato social determinam uma série

transportaram o problema para o ângulo sob o qual Ray o colocou — expuseram-

de filmes aparentemente distintos, mas que, no fundo, guardam certas similitudes.

no, conforme seus temperamentos, é claro, de uma maneira mais direta (quanto à

O cinema italiano, em particular, oferece-nos exemplos para ambas as categorias:

linguagem) e indireta (quanto ao cenário). Indireta porque ambos os realizadores

na primeira, temos os filmes da série Pão, amor..., nitidamente provocados pelo

permaneceram como que olhando ora do lado dos habitantes e do delegado ora do

fator econômico; na segunda, as fitas que tratam da guerra — um fato social — e suas

lado de sua filha. Nicholas Ray faz inteiramente o contrário: é indireto no tocante ao

consequências, como Viver em paz (Vivere en Pace, 1947), Roma, Cidade Aberta

tratamento (que tem todos os caracteres do drama) e direto no que tange ao cenário.

(Roma, città aperta, 1945) e outros. Ora, o que nos interessa são os filmes origi-

Direto porque vive no meio dos jovens e participa — por isso a impressão que temos

nados de um fato social. No nosso caso, a delinquência juvenil ou a juventude

é de que seu depoimento não é como o de quem visita uma cidade, mas o de quem

transviada é a causa de um grupo de fitas americanas ou europeias que a tem

a habita. Daí também seu filme ser mais sincero e mais autêntico. Parte da força

como tema básico. Antes do dilúvio (Avant le déluge, 1954), Os vencidos (I vinti,

social do filme — não percebida por muita gente — provém justamente desta tomada

1953), e Sementes de violência (Blackboard Jungle, 1955), O selvagem (The Wild One,

de posição do seu realizador. Tomada de posição que faz de Juventude transviada

1953), Rua do crime (Crime in the Streets, 1956), todas mais ou menos da mes-

uma obra rara no grupo, algo de novo e admirável.

ma época, são as companheiras desta nova produção, Juventude transviada

Atacando o problema, então, de dentro para fora e não de fora para dentro,

(Rebel Without a Cause, 1955). Poderíamos esboçar umas comparações entre as

isto é, diretamente, Ray conferiu-lhe uma nova dimensão. Em outras palavras,

diversas fitas, mas ficam para outra oportunidade. Limitemo-nos no momento à

o tema foi moldado ao espírito do autor, que, como já assinalou alguém, sempre se

apreciação de Juventude transviada — talvez o filme que melhor tenha realizado

preocupou com assuntos desta ordem. Este amoldamento dá o tom inesperado ao

o referido tema.

filme, que o particulariza e o põe num lugar mais alto no grupo. Porque, realmente,

Quando dizemos melhor realização, compreenda-se sobretudo do ponto de

o que é fundamental ao interpretar Juventude transviada é a consideração deste

vista estético. Porque é evidente que alguém poderá espernear afirmando que,

aspecto singular em que insistimos, isto é, a vivência do problema, a participação

socialmente, “o filme é falho”. Ora, analisando esta questão mais de perto, veremos

do autor no seu íntimo. O que resulta é uma exposição sentida, como se fosse lá

que é falsa. Pois, se um diretor, dono de um determinado estilo, filma um argu-

de dentro, como se fosse de um próprio jovem, por sua autenticidade e pela sin-

mento “social”, sublinhando precisamente suas virtudes “sociais” por meio de uma

ceridade com que foi feita. Ora, é possível que muita gente não tenha reconhecido

linguagem seca, objetiva e direta, e outro, também dono de um determinado estilo,

tal faceta na fita, assim, apressemo-nos a obter algumas provas.

filma-o não sublinhando o social mas fundindo-o e filtrando-o através de suas

Nicholas Ray não desenvolve seu filme a partir das consequências provocadas

peculiaridades estilísticas — qual deles estará mais certo? Como se vê, a falsidade

pela irresponsabilidade dos jovens, mas o faz a partir de situações normais, comuns

do problema é bastante clara. À crítica, enfim, não serve como critério saber se

a eles — situações em que não participam ativamente elementos estranhos. O filme

este filme é mais “social” do que outro mas, sim, saber qual dos filmes fez a mais

se inicia com três jovens na polícia; em seguida vamos com eles para suas casas;

perfeita transposição artística do tema.

acompanhamo-los até a escola. A câmera entra numa briga, não censurando, mas gritando com eles. Sofre e ama — sempre ao seu lado. Acaba o filme sem nenhuma solução estranha, mas com uma natural que se impunha, aliás, como uma necessi-

1. Publicado originalmente na Revista de Cinema, nº 25, ano IV, vol. V, novembro-dezembro

dade dramática (a morte do personagem Plato). Não há, fora da órbita dos jovens,

de 1957.

nenhuma coordenada psicológica como havia em O selvagem entre os habitantes

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ou o delegado e sua filha, ou ainda em Sementes de violência, entre Dadier e sua

O querer afirmar-se num mundo de valores movediços engendra a insatisfação e

esposa. Poderemos falar aqui em tratamento mais puro do assunto. Aliás, pureza

o desespero do jovem de uma geração perturbada pela época.

é uma das características de Ray, aliada à sua excepcional sensibilidade.

Além de todos esses valores do seu contexto, Juventude transviada traz ainda

O que é preciso ser agora considerado é o problema social em si focalizado pelo

a indiscutível marca de seu autor, que, consoante seu temperamento, conduziu

realizador. A este respeito um dos nossos críticos chegou a afirmar que “a sociedade

os problemas sensivelmente para um domínio artístico por excelência. A eles

não existe em Juventude transviada, que nem mesmo se preocupa em localizar

conferiu um potencial poético que age como um catalisador estético. Quem ainda

a realidade geográfica de sua cidade”. Ora, com efeito, Juventude transviada não

achar Nicholas Ray um faroleiro ou pretensioso vendo esta película, está real-

se deu o trabalho de fixar uma cidade ou uma rua — sua preocupação foi maior:

mente ignorando seu bom senso na linguagem, a limpidez do ritmo. Sobretudo

circunscrever-se numa estrutura social mesmo. Em vez de diminuir sua potência

o excelente emprego do CinemaScope — que, como exemplo, basta citar a sequência

social ou anulá-la, essa inscrição na própria estrutura torna-a mais vigorosa e mais

inicial na polícia: a composição na tela larga funcionando perfeitamente ao mostrar

autêntica. Porque não estamos aqui ante uma narrativa em determinado local,

simultaneamente três elementos dramáticos da mesma ação (Jim, Judy e Plato

mas num país — os Estados Unidos — sob um certo regime. Assim, é um grande

são seus protagonistas). Juventude transviada não é uma obra-prima, mas é um

engano não se ver ambiente ou sociedade em Juventude transviada. Mais do que

grande filme, autêntico e sincero, sobre a crise moral e psicológica de uma juven-

nos outros filmes, é ela — a sociedade americana — o palco do drama dos jovens.

tude incompreendida que procura ficar de pé num mundo de valores movediços.

Já foi notado que Ray dirigiu sua crítica ao sistema americano de vida, ao mostrar a desordem e o desequilíbrio internos, o desnivelamento dos sexos, a falsidade e a inversão de valores nas células familiares. Veja-se, por exemplo, a grande diferença entre as famílias de Ray e de Horas de desespero (The Desperate Hours, 1955). Não há dúvida de que este acento sobre a desordem familiar reflete um mal geral, provocado pelo regime. E é um depoimento bastante sério do antropólogo Kluckhohn (Antropologia; p. 263), comentando a educação americana, que nos vem confirmar este ponto de vista. “Os jovens das classes dominantes economicamente educam-se num luxo relativo. Os pais não formam seus filhos fazendo-os observar normas de conduta rigorosa porque eles mesmos estão confusos.” Ora, a tese de Ray é precisamente esta: a confusão dos pais gerando a confusão da juventude. Sua juventude — burguesa e universitária — é produto direto da desordem moral da família, que, por sua vez, é produto direto da época. Excepcionalmente interpretado por James Dean, o personagem de Jimmy é, talvez, o melhor exemplo de jovem transviado, de “rebelde sem causa”, existente no cinema. Apresentando um autêntico rebelde, a fita de Ray assume proposições sociais mais vastas. Porque o verdadeiro rebelde é um revoltado contra o que está mais próximo, mais imediato. O drama de Jimmy é a essência do drama da juventude transviada que se rebela contra um objeto ignorado, não compreende e nem sabe contra o que lutar. Mas luta. Jimmy, aqui, reage à falsidade da família e não compreende que ela é consequência de uma realidade social. O rebelde “esmurra” as coisas reinantes, porque elas impedem um equilíbrio de valores — que é o seu desejo. “We must do something” — ir à polícia se entregar, gritar, beber, quebrar, mostrar a dignidade de homem para reagir à hipocrisia presente.

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Amargo triunfo

pela guerra. Convém observar, aliás, que, antes da guerra, Leith já era um cético, um homem em fuga ao amor, procurando o isolamento na pesquisa arque-

Ely Azeredo

1

ológica. E, também, que nenhum dos protagonistas é herói. Ambos têm medo; Leith com desvantagem de não crer no código que rege a destruição de vidas em tempo de guerra. Embora não seja um personagem “positivo”, um herói, Leith é porta-voz do

Amargo triunfo (Bitter Victory, 1957), como Glória feita de sangue (Paths of Glory,

cineasta, questionando a todo momento com seu ceticismo sarcástico as regras

1957), pertence ao grupo dos filmes de guerra que pouco apresentam em conflito

do jogo bélico e, paradoxalmente, consumindo suas últimas forças num gesto de

armado. A maior parte de sua metragem dramatiza o medo e a coragem, e discute

amor — a salvação do inimigo. Dois personagens secundários, graças a uma boa

a destruição dos sentimentos pela guerra e pela mentalidade militarista com o

interpretação de Nigel Green (Wilkins) e a outra ótima de Raymond Pellegrin

objetivo de produzir um modus vivendi artificial em relação à consciência do ho-

(Mekrane), também estão bem lançados, dentro da linha um tanto ambígua que

mem. O antimilitarismo de Amargo triunfo não é compacto e polêmico à maneira

Ray adotou na definição de suas criaturas. Mekrane parece representar as virtu-

do filme de Kubrick — que gira em torno de uma corte marcial —, mas, de certa

des do solitário, do “livre atirador”, homem fiel aos sentimentos fora de qualquer

forma, universaliza-o ao chorar, nas palavras do arqueólogo, agora capitão Leith

“engajamento”. E Wilkins, o criminoso a quem a guerra dá as armas e a legitimação

(Richard Burton), e na jornada pelo cenário intemporal (o deserto e as ruínas

de todos os atos, é a figura mais imprecisa, mais “louca”, mais demonstrativa da

milenares), a vocação do homem para a violência, uma vocação suicida. A ação

malignidade da guerra.

de guerra ocupa apenas o primeiro terço da projeção: preparativos e consuma-

“A guerra é coisa ignóbil porque destrói a alma antes mesmo de destruir o

ção do assalto-surpresa ao quartel-general alemão em Benghazi para captura de

corpo. Derrotados e vencedores conservam na boca o gosto desse veneno. Não pode

documentos importantes para os rumos da guerra. Depois temos apenas uma

oferecer mais do que vitórias amargas.” Se substituirmos a palavra “guerra” por

escaramuça na trajetória que os remanescentes da missão (ingleses) descrevem

“violência”, podemos representar nessas palavras, do crítico Jean de Baroncelli

penosamente através do deserto. A guerra, então, - e vale aqui outra referência a

(Le Monde), a mensagem de Amargo triunfo. Na última cena, o vitorioso recebe

Glória feita de sangue - é “interna”, entre representantes de mentalidades opostas

com a medalha o desprezo dos companheiros de missão, além do autodesprezo.

nas mesma fileiras: de um lado, Leith, o intelectual sarcástico e negativista, vítima

Não é difícil compreender e explanar com certo esforço os personagens,

do próprio ceticismo antes de enredar-se fatalmente nos ciúmes e vaidades feridas

a posição moral, a mensagem de Amargo triunfo. Impossível é aceitá-los como se

que envenenam o espírito do major Brand (Curd Jürgens); do outro, este milita-

apresentam na tela sem renunciar ao espírito crítico. Os protagonistas exteriorizam

rista de carreira, burocrata, que, em vez do tradicional “batismo de fogo”, recebe a

em diálogos os pensamentos que mais solicitam reserva, como Brand ao fazer sua

missão que o obrigará a fazer sua primeira vítima com um punhal. No momento,

primeira vítima, quando pelo menos duas pessoas (Leith e Wilkins) conhecem

falta-lhe coragem e o assalto poderia frustrar-se sem a intervenção do punhal

seu desejo de eliminar Leith: “Então, é tão fácil matar?...” Frequentemente, um

de Leith. Só este viu sua covardia, segundo motivo para Brand providenciar sua

incômodo teatralismo tiraniza a disposição dos atores dentro do quadro com a

morte “em ação”. O primeiro: o antigo amor da mulher de Brand (Ruth Roman)

rigidez de certas marcações teatrais. E quase todos encaram fixamente seu in-

por Leith, evidenciado na primeira sequência.

terlocutor ou as figuras próximas (ou todos) antes de fazer um gesto ou enunciar

Apesar do tipo pouco maleável de Curd Jürgens, Nicholas Ray, que não gosta

um pensamento.

de vilões, conseguiu dar certa ambiguidade ao personagem (totalmente sórdido

A ação é em grande parte inverossímil. Não nos referimos a lapsos, como o

no romance de René Hardy). Não há uma luta Bem versus Mal, e, sim, homens

retrato de Hitler derrubado da parede (e que aparece pendurado e intacto no plano

que cedem em pequena ou grande escala ao ressecamento espiritual acelerado

seguinte). Como que temeroso de que a fita não veicule toda a extensão de suas ideias, Ray dá a quase todos os momentos um caráter óbvio que qualquer espectador pode tomar como subestimação de sua inteligência. Com tal preocupação,

1. Originalmente publicado no jornal Tribuna da Imprensa, em outubro de 1958.

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e frustrado no esforço de estilização poética (de acento, às vezes, marcadamente

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expressionista), Ray deixou seu filme no ar, sem bases dramáticas e cinematogra-

Amargo triunfo

ficamente legítimas. Excetuados acertos e até brilhos parciais, Amargo triunfo é obra mal cons-

Hugo Barcelos 1

truída, com alguns defeitos primários de tempo e visualização. Por outro lado, tem um elenco em que só Jürgens destoa (exigindo melhor direção), ao lado de uma Ruth Roman muito boa e de um Richard Burton sempre admirável. Também expressiva a música de Le Roux. 2

Nesta produção franco-americana, que situa o alemão Curd Jürgens, a inglesa Ruth Roman e o francês Raymond Pellegrin, nos papéis centrais, o desconcertante Nicholas Ray — que a crítica francesa considera o maior dos Estados Unidos e que tanto realiza seus filmes “malgrado Hollywood e contra Hollywood” — constrói um drama psicológico amargo, fatalista, com toda aquela pujança introspectiva de Juventude transviada (Rebel Without a Cause, 1955) e Johnny Guitar (1954). Nick Ray trabalha aqui o tema da covardia, desta feita em tempos de guerra, encontrando o deserto da Líbia (durante a Segunda Guerra Mundial, e num preto e branco de indiscutível psicologismo, tão exasperante o “branco”, tão sinistro o “preto”) como palco do relato, um episódio bélico em que, por trás da ação, flui uma intriga passional determinante do comportamento do herói. Este, personificado por Curd Jurgens, major britânico escalado para chefiar uma operação de “comandos” em Benghazi, cujo objetivo são os importantes documentos que os alemães possuem. Como subcomandante da expedição, vai Richard Burton, um capitão que fora amante da mulher que hoje é esposa do major, a senhorita Ruth Roman, também em uniforme militar. Individualista até os limites da rebeldia declarada, Nicholas Ray não respeita normas que já se tornaram tradicionais no manejo da linguagem cinematográfica. Seus personagens não são os dos filmes usuais. São criaturas com algo de onírico, em permanente intercomunicação, que se valem do olhar penetrante e do silêncio para devassarem umas às outras. Nem sempre esse método de expressão foge à arbitrariedade, já que o cineasta exterioriza os dramas de consciência do herói quase que por telepatia. Todos os personagens conduzem-se como se os adivinhassem. Mas, acima de qualquer restrição possível, paira, soberano, o cineasta, que sabe reparar tal falha narrativa — de certa forma, só aparente — mediante o jogo sutil da tensão, que é um elemento fundamental para o relato. Tudo no filme — das cenas de combate (esplendidamente construídas) aos perigos do deserto, com suas tempestades de areia e seus escorpiões — funciona a serviço do tema, que é

2. Nada sabíamos, na época, dos constrangimentos que Ray sofreu nessa coprodução franco-

a covardia do major, e vai tingindo-o com as nuances emocionais necessárias:

americana. Anos depois, ele desabafou sobre as constantes interferências do produtor francês e sobre muitos diálogos (escritos à última hora pelo corroteirista Paul Gallico) que foi obrigado a impor aos atores. (N.A)

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1. Originalmente publicado no jornal Diário de Notícias, em 30 de outubro de 1957.

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através do medo, em relação ao inimigo, do ódio homicida, em relação ao rival,

Amargo triunfo

do menosprezo dos comandados que sentem a pusilanimidade do chefe, até o epílogo irônico, deprimente, em que o falso herói é condecorado, mas não tem

Salvyano Cavalcanti de Paiva 1

as condições morais para ostentar a medalha, e confere-a a um boneco de pano, mais digno dela, sem dúvida. Os atores, todos bons, facilitam a tarefa do cineasta. À exceção dos últimos dois minutos, como uma “regeneração” absurda e inverossímil, este novo filme de Nicholas Ray, produzido na Líbia, é excelentemente narrado e confirma não só talento como a versatilidade do realizador de Juventude transviada (Rebel Without a Cause, 1955). O roteiro é forte, “direto na ação de superfície e interiormente sutil… A narrativa, na medida do possível, faz-se visualmente, num vigoroso impacto, e a poesia de Amargo triunfo (Bitter Victory, 1957) é a de outros filmes de Ray”, diz o crítico Moniz Vianna. Como Morte sem glória (Attack, 1956), de Aldrich, Gloria feita de sangue (Paths of Glory, 1957), de Kubrick, e, em certo sentido, Os que sabem morrer (Men in War, 1957), de Mann, pertence ao grupo dos filmes de guerra que pouco apresentam do conflito propriamente, mas que constituem hinos ao antimilitarismo. “A intriga dramática se processa em outro plano, no da consciência individual e coletiva” e o superproblema gira em torno daquilo que separa um individualista sarcástico, negativista, um intelectual vítima do próprio ceticismo (bom desempenho de Burton) e um militar de carreira, burocrata, covarde e ciumento (magnífico trabalho do alemão Jürgens). O mais é moldura, mesmo o romance triangular entre Ruth Roman e os dois colegas e rivais de farda, posto que, o quase adultério da esposa do major Brand (Jürgens) com Leith (Burton), aumenta a tensão psicológica entre os dois. Nicholas Ray conta essa história de preconceitos, convencionalismos e covardia numa linguagem simples, escorreita; mas às vezes, em momentos culminantes, deixou-se enredar pela literatura de Hardy e do próprio dialoguista adicional, o talentoso — porém irremediavelmente literato — Gallico, e certas sequências da fita deixavam muito a desejar. A camera de Kelber é que muito contribuiu para a perfeita veracidade da ambientação e a música de Le Roux é tão expressiva quando a que Aldrich conseguiu para Morte sem glória e Cayatte para Somos todos assassinos (Nous sommes tous des assassins, 1952).

1. Publicado originalmente em 5 de novembro de 1958. No texto original, não consta o jornal de procedência.

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Amargo triunfo

possível, faz-se visualmente num vigoroso impacto, é a poesia de Amargo triunfo e a de outros filmes de Ray, não importando a diversidade de gêneros. Embora a guerra arraste os personagens — do Cairo até Benghazi, onde um

Antônio Moniz Vianna

1

comando inglês deve apoderar-se de documentos secretos alemães; e de Benghazi pelo deserto, na viagem que os sobreviventes têm de fazer a pé —, a intriga dramática se processa em outro plano, no da consciência individual (o major e o capitão) e coletiva (a parte daquele conflito que se torna acessível à interpretação dos I A guerra não é só um dos assuntos (ou, às vezes, moldura adequada para o desenvolvimento de outros temas) que melhores manifestações têm proporcionado ao cinema — as constantes de uma lista não muito extensa, porém das mais ilustres, com alguns dos grandes filmes de Ford, Wellman, Pabst, Lean, Huston, Renoir, Aldrich, Mann, o mais importante que já fez o jovem Kubrick, e os maiores de Milestone. Ao mesmo tempo, a guerra também é a porta por onde o cinema tem conseguido chegar mais perto do homem. Estudando-o no instante do medo e da covardia, na traição e no embrutecimento mental e moral, vítima do estilhaço ou do autoritarismo, confuso ou lúcido na solidão, com sede, febre e ódio, na hora da morte do companheiro ou da própria morte — e na paz, ainda com gosto de guerra depois —, o cinema se vale de tudo isso para tentar compreender o homem, para umas vezes justificá-lo, e para outras, abandoná-lo a si mesmo. Em certas e raras ocasiões, não obrigatoriamente com um bom filme (como no caso de Para que os outros possam viver (Time Limit, 1957), a guerra, nem condenada nem exaltada, pode conduzir o cinema a um humanismo mais profundo, tornando tão secundários, em relação à posição do humanismo absoluto tomada por um dos personagens, problemas como o da alta traição. Na guerra, muitas vezes, o cinema é mais corajoso do que os homens na paz. A guerra está no começo, no meio e no fim de Amargo triunfo, o filme que Nicholas Ray — talvez por ter se incompatibilizado, finalmente, com a morna monotonia dos estúdios californianos a que sempre soube reagir e quase sempre venceu — foi fazer na Líbia, em regime de coproducão franco-americana. Baseou-se o diretor de Juventude transviada (Rebel Without a Cause, 1955) num romance de René Hardy, tendo com este e mais Gavin Lambert, o crítico inglês, elaborado o script,

companheiros). A guerra em Amargo triunfo é um catalisador e é uma moldura — como a de Glória feita de sangue (Paths of Glory, 1957) e a de Morte sem glória (Attack, 1956). Ela existe, tem até algumas cenas a seu favor, porém não funciona tanto como faz funcionar o drama em outro plano. As primeiras cenas se desdobram no Cairo, onde se prepara um ataque relâmpago contra o quartel-general inimigo — e já na forma de escolher a chefia da missão, Nicholas Ray frisa uma posição antimilitarista: é o general que não aprova o nome do capitão (Richard Burton), que, além de ser um civil fardado pela guerra, “é um intelectual (a entonação dada a esta palavra é de crítica ou de desprezo) e um galês”. Pelo duplo preconceito, o comando é entregue a um militar de carreira (e de gabinete), um major (Curd Jürgens) que já no primeiro instante não parece estar muito certo de que será capaz de cumprir a missão com êxito. Ainda nessa primeira parte, Ray apresenta outro incidente que terá a maior importância na história: o encontro de Burton com a mulher (Ruth Roman) de Jürgens, quando este percebe ter havido alguma coisa entre os dois primeiros e, também, a continuação do interesse ou, pelo menos, uma esperança. Uma das grandes virtudes da narrativa está exatamente no silêncio que se faz em torno desse incidente até quase o fim da fita. Mas não há a menor necessidade de uma referência para que se saibam as causas da rivalidade entre Jürgens e Burton e se compreenda a atitude passional do major ou a renúncia (também passional) de Burton à felicidade e à própria vida. Também as indecisões de Jürgens — a primeira corrigida por Burton, que é quem mata a sentinela ante a inércia do major —, assim como suas decisões (a designação de Burton para ficar atrás com os feridos), quase todos os pequenos e grandes incidentes da trama tão tributários daquele conflito triangular esboçado no início, mas tão forte que ainda estará ressoando na última cena.

que é forte, direto na ação de superfície e interiormente sutil. Um bom script, talvez com qualidades mais altas do que as do romance. A narrativa, na medida do II 1. Originalmente publicado em duas partes no jornal O Correio da Manhã, em outubro

Um dos filmes mais ásperos, por fora, e mais profundamente humanos que a

de 1958.

guerra já sugeriu. Amargo triunfo se insere entre os melhores até hoje realizados

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por Nicholas Ray. Não é bem a guerra — como presença física ou fenômeno social

Os feridos gemem mais alto quando nasce o sol — e restam dois apenas:

— o que interessa ao diretor dos indivíduos. É daí que parte da análise para alcançar

o alemão gordo com a roupa colada de sangue no peito e o inglês de quem, pouco

o centro do tema principal: o ato, ou a arte, de matar.

depois, Burton tira o revólver —, é matar para acabar com a dor, como se mata o

Após os preparativos do comando no Cairo — onde também o aparecimento

cavalo que quebrou a perna. Uma bala só: primeiro para o alemão, que procura

da mulher traz a recordação de um romance frustrado e promoverá o conflito entre

comovê-lo, que quer viver mais algumas horas — e que talvez o comovesse, se ele

os dois homens —, e após o ataque relâmpago, minuciosamente descrito, contra o

fosse um carrasco em vez de um homem que sente também a dor dos outros.

quartel-general nazista em Benghazi, a narrativa vai para o deserto, onde, como

O inglês, quando Burton se aproxima, pede-lhe que atire logo; a sua coragem é a de

observou o crítico Jean Duloup, “os soldados estão entre si e entre homens, onde

quem tem medo de ter medo. Mas já não há mais bala. Com o segundo ferido nas

a guerra se perde e pouco a pouco se esquece, mas onde, paradoxalmente, os

costas, sem ouvir os gritos de dor pedindo-lhe que o ponha de novo sobre a areia,

princípios da guerra permanecem”. Do antagonismo surdo, silencioso, entre Curd

Burton caminha a esmo quando surge o guia árabe e retira de seus ombros o ho-

Jürgens e Richard Burton, das diferenças essenciais entre o major e o capitão dos

mem que parou de gritar, que morreu: “Matei o vivo e salvei o morto.”

reflexos desse conflito sobre os outros homens, que o testemunham mas que não

A narrativa caminha, Burton e o árabe alcançam o grupo, todos caminham

o compreendem perfeitamente — do encadeamento quase imperceptível de diversos

— e não há fim. Até a cidade da Coroa, onde os companheiros, escalados para

fatores, Nicholas Ray processa a transferência da história para um plano ético:

esperá-los, estão mortos, não há água nos tonéis, não há camelos — só um e que

“matar por projétil teleguiado ou matar à arma branca, qual a diferença? Morrer

terá de ser sacrificado, quando a caminhada recomeça e a tensão aumenta entre

de sede ou pelas balas do inimigo ou pela complacência de um companheiro que

o major e o capitão. Este, sem um aviso de Jürgens, é mordido por um escorpião

pratica o coup de grâce cientificamente libertador (eutanásia), qual a diferença?”

e a bexiga do camelo arrancada pelo árabe é uma espécie de antídoto, o único que

Nestas palavras de Gilbert Salachas, está a súmula das discussões entre Jürgens

era possível encontrar naquela situação. Nesta cena, Jürgens parece projetar-se

e Burton que encaminham, impelidas pelo conflito passional, o tema de Amargo

no escorpião, fazendo-o seu instrumento — e o gesto de medo antes da picada,

triunfo. É uma série de transfigurações, ou talvez melhor, é a projeção de um

que intrigara o árabe, à noite é comprendido por este: o major vira o escorpião e

elemento em outro - o seu símbolo -, o que Nicholas Ray utiliza largamente para

não avisara o companheiro. E mais adiante, Burton tem de ficar atrás, ferido e com

atingir seus objetivos.

febre, mas morre antes que partam os companheiros retardados pela tempestade

Contou o diretor com dois excelentes intérpretes — Richard Burton, na atuação

de areia. Morre protegendo o adversário, até então inepto, com seu próprio corpo.

mais legitimamente cinematográfica de sua carreira, e Curd Jürgens, este deixando

Não há tempo para chorar por ele — mas ainda há tempo para ver o prisioneiro

de lado a costumeira empáfia, a pose de galã e cabotino, para surgir como um ver-

alemão, depois de ver Jürgens e todos os outos correrem ao encontro da patrulha

dadeiro ator pela primeira vez em sua vida. No elenco internacional, Ruth Roman

inglesa, incendiando os documentos obtidos no ataque relâmpago de Benghazi.

é só quem representa Hollywood — em breve mas sensível aparição; e o francês

A cena é grave e bonita: o alemão olha a mala dos documentos, olha o corpo de

Raymond Pellegrin, vestido como árabe, mal se deixa reconhecer, tendo a seu favor

Burton — o único que seria capaz de impedir seu gesto, mas que está morto —,

a boa cena em que desperta o major para que este saiba que vai morrer, mas apenas

e acende a fogueira.

conseguindo com isso dar a Jürgens a oportunidade de matar de perto, face a face

De novo em Cairo, Jürgens é condecorado diante de seus homens — que se

com a vítima. Todo o elenco, como em todos os filmes de Ray, trabalha bem e para o

retiraram em silêncio, como se retira também sua mulher. E, ao ficar sozinho,

filme. E, da mesma forma, submetem-se também à direção como elementos de uma

ele prega a medalha no peito de um manequim. É o homem de palha, vestido como

orquestra a fotografia de Michael Kelber e o fundo musical de Le Roux — o último,

um paraquedista ou um marciano, e com a medalha no coração, é um homem

tão inexpressivo em Prisioneiros do desejo (Le Piège, 1958), aqui surge transformado,

sem rosto que resta ali, quando Amargo triunfo chega à última cena.

com uma partitura no início estranha (num estilo às vezes concreto) e que depois, desenvolvendo temas quase melódicos, surge sempre no instante preciso. Entre as melhores cenas de Amargo triunfo, uma é digna de figurar em antologia: a de Burton com os feridos, no deserto.

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A bela do bas-fond

boa dançarina e mulher igual a Cyd em cena. A bela do bas-fond, ao contrário, é uma série de incidentes mal-arrumados em volta de Robert Taylor, advogado do racketeer e invencível no “golpe do relógio” diante do júri (para livrar John Ireland,

Antônio Moniz Vianna

1

o pistoleiro do terno verde) ou do próprio Lee J. Cobb, no fim e no momento em que o paroxismo da situação não se faz com suspense. Aí — no quartel-general do chefe, já cercado pela polícia, que, sem motivo plausível, chega atirando — há um vidriSendo um filme de Nicholas Ray, e tendo no elenco Cyd Charisse, A bela do bas-

nho cheio de vitríolo, destinado à desfiguração de Charisse se Taylor continuar a

-fond (Party Girl, 1958) é a absoluta decepção. Fosse outro o diretor — um Daniel

fazer o bom-moço. O vitríolo vai de mão em mão no meio do tiroteio, de Cobb para

Mann, um Henry Levin, um Joshua Logan —, o filme seria ruim, provavelmente

Taylor, deste para Ireland, voltando a Cobb e servindo, num imprevisto, à velha

pior, mas não decepcionaria. História tão desconchavada como esta é rara no

tese de que “crime doesn’t pay” 5. Ou “o vitríolo não compensa”.

âmbito da chamada “superprodução”. E é ainda rançosa, os seus incidentes se

A narrativa começa mansamente — com uma festa para apagar no coração de

assemelhando aos românticos melodramas de gângster de vinte e trinta anos atrás,

Cobb a “traição” de sua estrela: Jean Harlow, que acaba de casar-se em Hollywood

os produtos falsificados daquela época áurea para aquele gênero, graças ao movi-

e que o racketeer jamais chegou a conhecer, amando-a tanto, porém, quanto aquele

mento de gente tão boa como James Cagney e Edward G. Robinson, Howard Hawks

outro gângster (Edmond O’Brien, que em Sabes o que quero [The Girl Can’t Help It,

e William A. Wellman. Já então havia, no entanto, os subgângsteres, mas hoje a

1956] amava outra loura, Betty Grable). As “party girls”, todas apetitosas — Barbara

situação é mais grave: não há mais quem faça Scarface — A vergonha de uma nação

Land, Myrna Hansen, Betty Uttey e a melhor de todas, Cyd —, são convocadas para

(Scarface, 1932) ou Inimigo público (The Public Enemy, 1931) e até diretores da

animar o ambiente a cem dólares por cabeça (A bela do bas-fond, entre nós, tem

classe de Nick Ray são compelidos a fracassar na área em que, antes, acertavam

o seu equivalente, não tão dispendioso, nas “cocktail girls” muito citadas pelos

até os William Keighley e Mervyn LeRoy, e com certa frequência.

colunistas e bem adestradas para sua função em organização comercial realmente

A bela do bas-fond, aliás, nem chega a ser um drama de gângsteres.

eficiente). A festa só começa a ficar animada quando o gângster, saindo de sua

Os speakeasies estão ali, frequentados por juízes e políticos, que apreciam o álcool

depressão, saca o revólver e acerta alguns tiros na cara de Jean Harlow — no

e temem a Rico Angelo, o nome, naturalmente italiano, do rackeeteer interpretado,

retrato da estrela, felizmente. Pouco depois, Cyd Charisse conhece Robert Taylor,

ou melhor, exagerado por Lee J. Cobb, mas também não é um musical: há apenas

não demorando a tornar-se amante do advogado (cuja mulher recusa a assinar o

três “números especiais” (a melhor coisa da fita, naturalmente) — o de abertura,

divórcio) e indo até à Suécia atrás dele, que, operado, volta mancando muito menos.

onde as pernas das “party girls” e de Cyd Charisse, as quais logo o espectador iden-

É uma medíocre Chicago a deste melodrama que se desenrola nos “early

tifica (e então é só o que vê), as pernas admiráveis, número um de todo o cinema;

thirties”, quando deveria prevalecer ainda o espírito dos “roaring twenties”. 6 A cor,

e mais dois balés de Cyd, fazendo num deles (“The Blues”) quase um striptease,

com a qual se dizia ter feito Nicholas Ray uma experiência, também decepciona

enquanto um “dois-de-paus” surge empunhando um trompete; e se derramando

— não porque não seja boa, mas em virtude da ilegitimidade da propalada expe-

toda sobre um tambor imenso (e feliz) no outro, intitulado “Drum Dance”.

riência. Às vezes, percebe-se o uso numa cena de vários tons de vermelho, só de

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4

O produtor Joe Pasternak se esqueceu até de usar a fórmula que fez o sucesso

vermelho — porém o motivo está oculto. Outras vezes, os personagens estão vesti-

de Ama-me ou esquece-me (Love Me Or Leave Me, 1955), em que havia mesmo um

dos de preto e branco, os móveis e todos os objetos são também pretos e brancos

racketeer (James Cagney) e eram muitas as canções, embora não houvesse tão

— mas nem isso é novidade, nem há razão agora para que tenha sido feito. A experiência cromática de A bela do bas-fond, reduzida a esses toques, não

1. Originalmente publicado no Correio da Manhã, em 1958.

deve ter sido ideia de Nicholas Ray. A impressão é de que Ray não deu maior im-

2. Bares ou casas de show onde se vendiam bebidas alcoólicas ilegais na época da Lei Seca

portância ao que lhe recomendou Pasternak, o velho e irregenerável corruptor.

(1920-1933). (N.E.) 3. Ladrão, trambiqueiro. (N.E.)

5. Literalmente, “o crime não compensa”.

4. Acompanhantes, garotas de programa. (N.E.)

6. Expressão popular sobre esta década. Literalmente, “a opulenta década de 1920”.

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Uma das instruções do produtor, acostumado a trabalhar com um George Sidney

Jornada tétrica

ou um homem tão dócil quanto Richard Thorpe (muito hábil a ponto de esconder, para viver, a sua inteligência, só mostrando-a vez ou outra), deve ter sido a de que

Antônio Moniz Vianna 1

Ray fizesse precisamente o inverso de filmes como Amargo triunfo (Bitter Victory, 1957) e No silêncio da noite (In a Lonely Place, 1950). O diretor, embora seja um desses que lutam sempre (Sangue ardente [Hot blood, 1956] é um bom exemplo de vitória sobre o impossível), agora obedeceu. A bela do bas-fond é o filme que

Nunca até esta aventura de Budd Schulberg e Nicholas Ray, o encanto pictórico

Pasternak queria — e é o ponto mais baixo da carreira de Nick Ray.

dos Everglades 2 havia sido tão fotogenicamente esmiuçado. A beleza recapturada pela câmera não é, em momento algum, gratuita ou apenas ornamental: está unida à trama, integrada na narrativa como a paisagem africana na experiência hustoniana de Raízes do céu (The Roots of Heaven, 1958). Os dois filmes têm ainda um traço em comum: a luta pela preservação da vida dos animais que a cobiça de outros animais, ditos racionais, ameaça extinguir a tiros de rifle. Como o marfim dos elefantes na outra caçada africana, as plumas das aves são o alvo dos caçadores dos pântanos da Flórida. As mais belas aves, algumas quase raras, são abatidas em massa para que suas penas, vendidas a alto preço, transformem-se segundo a moda do começo do século em chapéus para mulheres. Contra isso não se levanta uma ideologia, como a encarnada no herói de Huston, mas o representante de uma organização, a Audubon Society. Também não se faz em Jornada tétrica (Wind Across the Everglades, 1958) o levantamento simbólico de todos os valores morais da civilização moderna. Outro é o objetivo, mais específico, da história de Budd Schulberg que seu irmão e sócio Stuart produziu, inaugurando o escritor, cujo nome já estava ligado a três filmes de importância indeclinável (Sindicato dos ladrões [On the Waterfront, 1954]; Um rosto na multidão [A Face in the Crowd, 1957]; A trágica farsa [The Harder They Fall, 1956]), uma unidade independente que, infelizmente, parece ter arado depois deste filme. O objetivo de Jornada tétrica é desenvolver, a partir de um perfil de sociedade da Miami de 1900, o tema da inutilidade, ou melhor, da frivolidade da caçada, estabelecendo a relação entre a selvageria no “campo de tiro” e o conforto ou o luxo da “civilização”, que, aos olhos de muitos e ante a indiferença de quase todos, justifica qualquer matança. Daí parte a narrativa para entranhar-se nos Everglades, onde o herói (Christopher Plummer), entusiasmado por sua missão (mas não o filosófico dessa missão, como o herói hustoniano), enfrenta, como “guarda de passarinho”, Cottonmouth (Burl Ives) e seu bando. A princípio, ao chegar a Miami para ser

1. Originalmente publicado no jornal Correio da Manhã, em 1959. 2. Literalmente, “pântanos”.

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professor, Plummer arranca, num impulso que não contém ainda uma ideia, algu-

Um filme ainda assim fascinante, Jornada tétrica restitui um Nick Ray di-

mas plumas do chapéu para mulher do homem mais influente da cidade. Isso, que

verso do de A bela do bas-fond (Party Girl, 1958), aquele indesculpável equívoco.

o leva à prisão, é o que o aproxima da Audubon Society e o empurra aos pântanos.

A fotografia de Joseph Brun é admirável. E o elenco, no qual sobressai Burl Ives,

A experiência nos Everglades produz uma série de momentos fascinantes,

mostra os progressos de Christopher Plummer (muito diferente do que vimos em

com sua fauna caraterística e seus homens. Estes vêm de todas as classes e de todos

Lágrimas da ribalta [Stage Struck, 1958]) e usa adequadamente o ex-boxeador

os crimes — formam uma espécie de “pátio dos milagres” onde um é contra isso

Tony Galento, o ex-jóquei Sammy Renick, o palhaço Emmett Kelly e o escritor

e outro é contra aquilo, e Cottonmouth é o chefe porque é contra tudo. Um líder,

McKinlay Kantor (o juiz), enquanto Gypsy Rose Lee, campeã do striptease, troca

maior que todos desde o físico, Cottonmouth diverte-se em lançar uns contra os

essa especialidade pela gerência de um saloon-prostíbulo.

outros: para disputar a posse de uma cabana, Tony Galento e um companheiro surdo-mudo, recém-chegados, têm de enfrentar o ex-jóquei Sammy Renick e Emmett Kelly. E o melhor amigo deste chefe é a cobra que ele traz em volta do pescoço ou no bolso. Também como “juiz” revela Cottonmouth o seu sadismo, ao condenar à “mancenilha” o índio seminole (Totch Brown) que se deixara “converter” ao verificar o amor de Plummer pelas aves, agora na alça de mira dos brancos como os seminoles que nunca se renderam. Toda essa experiência nos Everglades prepara, após outro perfil de cidade, a volta aos pântanos e o conflito psicológico e mortal entre Cottonmouth e Plummer. A uma bebedeira “homérica” segue-se um desafio — e o “combate singular” em que os dois contendores prometem não usar o rifle: sairá Plummer vitorioso se conseguir guiar Cottonmouth até a cidade e estará derrotado (e morto) se não achar o caminho. Comer ou ser comigo — a alternativa que faz o equilíbrio da natureza não justifica a matança das aves pelos que querem apenas suas penas. A alternativa clássica se transforma em outra para os dois homens que se enfrentam no barco. E pouco a pouco se altera, quando um começa a ver melhor o outro, através do imprevisto do equívoco. A tensão obtida nessas sequências por Nicholas Ray é contida, até o momento em que Cottonmouth, picado por uma serpente e já agonizando, descobre a beleza das aves que voam acima de sua cabeça. A descoberta parece, por um momento, redimir o “assassino”. Jornada tétrica tem uma certa indecisão na sua narrativa, o que talvez resulte menos da direção de Nicholas Ray do que do ritmo dado a ela na edição. A montagem, em várias ocasiões, pertuba até a fisionomia plástica do filme, cortando as cenas muito antes de seu ponto de saturação. Talvez seja por essa razão que o filme não cumpra as promessas que nos faz a todo instante. Não perde o rumo, é certo, mas não cresce como anuncia, porque se apressa a deixar a área, em que parece inevitável e próximo um clímax. Alguma coisa, esse quase imponderável que freia uma obra a um passo da vitória total, pode ser localizado na montagem porque nos outros setores (roteiro, direção, fotografia, interpretação) nada aparentemente merecia ser substituído.

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Cruel vitória

Porque nada exprimem. Eis. Enquanto que uma só fotografia de Lillian Gish basta para simbolizar Lírio partido (Broken Blossoms, 1919), uma só de Charles Chaplin em Um rei em Nova York (A King in New York, 1957), uma só de Rita Hayworth em

João Bernard da Costa

1

A dama de Shangai (The Lady from Shangai, 1947), até mesmo uma só de Ingrid Bergman em As estranhas coisas de Paris (Elena et les hommes, 1956), a fotografia de Curd Jürgens perdido no deserto, ou de Richard Burton vestido de árabe, nada tem a ver com Curd Jürgens ou Richard Burton na tela. Um abismo separa a foto-

1. ONDE SE FALA

grafia do filme. Um abismo que é um mundo. Um mundo que é o cinema moderno.

E também a alma se move. Move-se com movimento circular quando, regressando a si própria, afasta-se do mundo exterior, quando reúne e unifica as suas forças de intelecção numa concentração que as protege de qualquer desvio, quando se desprende da multiplicidade dos objetos exteriores para, primeiramente, recolher-se em si própria, e depois, uma vez atingida a unidade interior, uma vez unificada por forma perfeitamente una à unidade das suas próprias forças, ser então conduzida ao mesmo Belo-e-Bem, o qual transcende todo o ser, o qual é sem princípio nem fim. A alma move-se com movimento helicoidal, na medida em que é iluminada segundo o modo próprio dos conhecimentos divinos, não, portanto, por meio de intuição intelectual e por forma una, mas pela graça das razões discursivas, como que por atos complexos e progressivos. Finalmente, move-se ainda com movimento longitudinal, quando, em vez de regressar a si própria, tendendo para a união inteligível (e então, como acabámos de ver, o seu movimento diz-se circular), volta-se para as realidades que a circundam e, apoiando-se no mundo exterior como em complexo conjunto de múltiplos símbolos, eleva-se a contemplações simples e unificadas.

É neste sentido que é possível dizer-se que Amargo triunfo é um filme anormal. Não já nos interessamos pelos objetos, mas pelo que entre eles há, pelo que agora se torna também objeto. Nicholas Ray obriga-nos a olhar como real o que, antes dele, nem por irreal olhávamos, o que não olhávamos simplesmente. Amargo triunfo assemelha-se a um desses desenhos em que se pede às crianças que descubram um caçador por entre um emaranhado de linhas aparentemente sem outra significação. Importa não dizer que por detrás do ataque dos comandos ingleses ao Q.G. de Rommel se esconde o símbolo da nossa época, porque não há por detrás nem por defronte. Amargo triunfo é o que é. Não temos de um lado a realidade, que seria o conflito de Leith e do capitão Brand, e do outro a ficção, que seria o combate da coragem e da covardia, do medo e da lucidez, de isto e daquilo. Não se trata nem de realidade nem de ficção, nem de uma sobrepondo-se à outra. Trata-se de outra e bem diversa matéria. Creio que de estrelas e de homens que gostam de olhar as estrelas e sonhar. Esplendorosamente montado, Amargo triunfo é superiormente interpretado por Curd Jürgens e por Richard Burton. É a segunda vez depois de

pseudo-Dinis o Aeropagita, Os nomes divinos

E Deus criou a mulher (Et Dieu... créa la femme, 1956) que acreditamos no personagem de Curd Jürgens. Já Richard Burton, que sempre se soube distinguir em todos os seus precedentes filmes, dirigido por Nicholas Ray, está absolutamente

2. ONDE SE FALA DO FILME Havia o teatro (Griffith), a poesia (Murnau), a pintura (Rosselini), a dança (Eisenstein), a música (Renoir). Agora há também o cinema. E o cinema é Nicholas Ray. Por que permanecemos insensíveis perante as fotografias de Amargo triunfo (Bitter Victory, 1957), embora saibamos que são fotografias do mais belo dos filmes?

sensacional. Importa pouco que se lhe chame um Wilhelm Meister 1958. Porque seria também pouco dizer que Amargo triunfo é o mais goethiano dos filmes. Que interessa refazer Goethe, ou refazer seja o que for, D. Quixote ou Bouvard e Pécuchet, Eu acuso ou Viagem ao fim da noite, uma vez que já o foram? Que é o medo, o amor, o desprezo, o perigo, a aventura, o desespero, a amargura, a morte? Qual sua importância quando olhamos as estrelas? Nunca até hoje personagens de filme nos tinham surgido a um tempo tão próximos e tão distantes. Perante as desertas

1. Texto escrito para a retrospectiva Nicholas Ray, realizada pelo Centro Cultural de Cinema,

ruas de Benghazi, perante as dunas de areia, pensamos, no espaço de um segundo,

em Lisboa, Portugal (7 de abril de 1960).

em coisas muito diferentes, nos snacks-bars da Champs Elysées, numa mulher

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de que se gostou, em tudo e em nada, na falsidade, na covardia das mulheres,

Sangue sobre a neve

na frivolidade dos homens, nos jogos das feiras. Amargo triunfo não é o reflexo da vida, é a própria vida em filme, vista de trás do espelho onde o cinema a capta.

Douglas Cox 1

É a um tempo o mais direto e o mais secreto dos filmes, o mais requintado e o mais grosseiro. Não é cinema e é melhor do que cinema. Como falar de tal filme? Para que serve dizer que o encontro de Richard Burton com Ruth Roman, sob o olhar de Curd Jürgens está loucamente bem trata-

Sangue sobre a neve (The Savage Innocents, 1960) necessita ser avaliado não pelo

do? Talvez fosse essa uma das cenas em que fechamos os olhos. Porque, tal como

que realiza, mas pelo que almeja. Pode-se acreditar que essa adaptação do romance

o sol, Amargo triunfo obriga a fechar os olhos. A verdade cega-nos.

The Top of the World [O topo do mundo], de Hans Ruesch, pretenda ser um retrato

Jean-Luc Godard, Cahiers du Cinéma, n. 79

realista dos esquimós que vivem além do alcance da civilização do homem branco e do resultado desastroso que acontece quando os dois modos de vida — incompreensíveis um ao outro — se encontram. Hoje, tais encontros são inevitáveis, e histórias sobre eles devem ser contadas e recontadas.

3. ONDE DO FILME SE FALA Post-scriptum conclusivo e não científico

Os encontros trazem conflitos que causam angústia da Indonésia ao Congo, e pouco está sendo filmado sobre o assunto (Jean Rouch está fazendo isso na África), apesar de o cinema ser um meio adequado para um tema que deve unir

Essas linhas — as últimas do programa que o Centro Cultural de Cinema dedicou a

pessoas afastadas geográfica e culturalmente. Portanto, quando um filme lida com

Nicholas Ray — nada pretendem ser a mais do que são, isto é, não algo a mais, mas

esse tema, especialmente quando se trata de um filme direcionado ao grande pú-

algo que nem com mais nem com menos procura ter que ver. O que equivale a

blico, ele imediatamente chama nossa atenção. E quando ele falha, e infelizmente

dizer: um pretexto para continuar prosseguindo.

é o que acontece aqui, devemos analisar as razões desta falha para que o tema não

Porquanto é forte a tentação de cerrando memórias regressar a fixas, insones,

seja descartado pelos grandes produtores.

pávidas noites. Regressar à não vista areia dos desertos. Muita calma e crepuscu-

A história pode ser dividida em duas partes. Na primeira, conhecemos Inuk

larmente regressar. Porque apetece dizer uma vez mais do que de cabelos sobre

(Anthony Quinn) e o acompanhamos através de cenas com cores locais e algum

ventos em testas se poderia ser capaz de dizer, e o de que não falaremos ainda

resquício de curiosidade cultural. Inuk nega-se a “rir com” a mulher de um ami-

da vez (esta). Porque quando se fala de jogos de feira lembramos nossos e muito

go, mas corteja e conquista sua própria mulher, à maneira de seu povo. Ele caça

singulares. Porque nas mesmas noites farejamos os mesmos pecados e só o tempo

morsas, focas e ursos e masca gordura para nos convencer de que é um autêntico

em desespero e lucidez era diverso. Porque quando se pensa escrever de vitórias

esquimó. Sua sogra é introduzida de modo a expressar algum tipo de virtude ártica,

(as amargas) as descobrimos palpáveis e íntimas sobre vastas e detidas amuradas.

antes de ser abandonada, como de costume, às garras de Nanook, o urso polar.

Porque há muitas maneiras de se ser fiel.

Trata-se de um material interessante, mas ele perde seu potencial porque a câmera se coloca como um espectador num show de horrores em vez de se integrar de forma legítima e natural à essência da história. A comparação entre o filme de Ray e Nanook, o esquimó (Nanook of the North, 1922), de Flaherty, é inevitável. Apesar de todas as suas falhas, Sangue sobre a neve possui ambições maiores do que o filme anterior, tanto em estrutura dramática quanto como ensaio antropológico. Ray tenta lidar com os personagens de forma profunda e, 1. Originalmente publicado na revista Film Quaterly, volume 14, nº 2, edição de Inverno, 1960. Tradução de Daniel Pech.

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assim, necessitava (ou assim acreditou) de atores e atrizes profissionais. Desse

Cada tema possui suas peculiaridades e cada plateia, suas exigências, mas se

modo, apesar de diversas cenas parecerem tiradas diretamente de Nanook, elas

filmes desse tipo não devem ser exclusivos para a sala de aula, os grupos de estudo

não funcionam tão bem, pois uma coisa é um esquimó realizando suas ações

ou (em casos raros) os festivais, muita especulação ainda deve ser feita sobre como

cotidianas, e outra é ter Anthony Quinn e seus companheiros orientais passando

tornar seu apelo maior sem violentar o material. Como é possível fazer um filme

pelas mesmas experiências.

com a integridade e a percepção de, por exemplo, The Hunters (The Hunters, 1958),

Na segunda parte do filme, Inuk mistura-se com a civilização do homem

mas que possa ser assistido pelo grande número de pessoas para o qual o assunto

branco. À caminho de uma feitoria, onde pretende trocar peles de raposa por um

interesse, e, ao mesmo tempo, que consiga retorno de bilheteria suficiente para

rifle, ele encontra um missionário. Nasce um conflito entre o selvagem e os ino-

garantir a continuação dessas produções?

centes civilizados que culmina com a morte do missionário. Esta deveria ser uma

Podemos notar, acima de tudo, que o sucesso desse tipo de filme depende

cena esclarecedora, mas, infelizmente, é construída de forma apressada. Aqui,

muito da eficácia na criação da ilusão de realidade. Há duas abordagens distintas

certamente, está a essência da história e o ponto crucial do conflito que se segue.

para ilustrá-la: uma, usar povos nativos, que são vistos fazendo o que realizam

No entanto, o homem morto permanece uma figura obscura. Nunca conheceremos

normalmente, e fingir que a câmera é apenas um observador inocente; e a outra,

tão bem o corrompido quanto o corrupto.

criar uma história e um estilo cinematográfico que envolva a plateia para além

Após o incidente, Inuk viaja ao norte com sua família e os Mounties iniciam  2

de sua descrença.

uma busca para tentar encontrá-lo. Eles o acham, mas num acidente de trenó um

Sangue sobre a neve usa os dois artifícios, e falha em ambos. A primeira meta-

deles é atirado na água e morre congelado diante de nossos olhos. As mãos do

de tenta retratar a natureza inocente dos esquimós, mas não nos dá compreensão

Mountie sobrevivente estão prestes a congelar também, mas Inuk mata o cão que

alguma de seu estilo de vida, mesmo a partir de um estilo narrativo à la Disney;

puxa o trenó e salva a mão do homem, enfiando-a dentro das entranhas do ani-

e o retrato dos costumes dos esquimós faz com que eles pareçam simplesmente

mal. Em vez de abandoná-lo, Inuk o leva de volta à mercearia. Fiel a seus códigos,

bizarros. No entanto, mostrar o lado humano dos costumes que nos parecem es-

o homem o avisa que terá de denunciá-lo às autoridades quando lá chegarem. Inuk,

tranhos deveria ser uma das principais preocupações do filme. E isso não se deve

fiel a seus códigos, não compreende. Na viagem rumo ao sul, o Mountie desenvolve

a razões sociais ou antropológicas, mas para despertar um interesse do público.

uma afeição pelo esquimó e por sua família, e, quando chegam, sua consciência

Os relacionamentos entre pessoas de outra cultura são tão interessantes quanto

supera seu dever. Para impedi-los de seguir a viagem, ele os insulta, ataca-os e

os de pessoas como nós e, se pudermos entendê-los, serão igualmente fonte de

corre para avisar que Inuk está morto. Perplexos com o comportamento do homem,

entretenimento.

os esquimós retornam para o norte.

O filme também possui problemas técnicos, que nos lembram que o que

A divisão do filme em duas partes expõe o dilema que um cineasta encontra

estamos assistindo não é real. Os cenários, os fundos falsos, os movimentos de

quando deseja aventar um problema de natureza antropológica. Como equilibrar

travelling, são bem executados, mas não somos totalmente enganados. O fato de a

a qualidade exótica e folclórica do objeto retratado e a trama? O quanto ele pode se

maior parte dos atores serem desconhecidos do público norte-americano é impor-

aprofundar sobre um sujeito desconhecido, cuja linguagem não é a do espectador

tante para o filme, mas, apesar de sua excelente atuação, sempre nos lembraremos

e cuja cultura é complexa demais para ser compreendida nas duas horas conven-

de que Anthony Quinn não foi sempre um esquimó. Além disso, a música é terrível.

cionais de duração do filme? A ilusão de realidade é melhor atingida e mantida

Apesar disso, o filme possui méritos. É feito com o alto nível de habilidade

por meio do uso de nativos enquanto um narrador “fala” por eles ou pode um

técnica que se espera de uma equipe moderna e de Nicholas Ray, e a fotografia é

ator recriar com discernimento suas ações? E quanto à plateia — é melhor ou pior

magnífica. Apesar de nosso veredicto ser de que o filme falha em atingir seu po-

para eles serem atraídos ao cinema por causa de um astro, que agora interpreta

tencial, esperamos que outros sejam encorajados a se aproximar desse importante

um esquimó, quando semana passada foi visto como um bandido ou um soldado?

assunto. Muitas formas e modelos de produção ainda não foram experimentados. Espera-se que Sangue sobre a neve não seja o último experimento nesse campo.

2. Royal Canadian Mounted Police, ou Real Polícia Montada do Canadá. São famosos por seu uniforme vermelho e por serem descendentes da cavalaria real. (N.E.)

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O Rei dos reis

desta “história de Jesus”, um sabor novo que permitisse a impressão de que se está diante de um enredo com o qual pela primeira vez se trava conhecimento. O resul-

Fernando Ferreira

1

tado, entretanto, foi oposto. Não se sabe, no caso, quem é o maior responsável – se Philip Yordan, ou se Nicholas Ray, o diretor. Ambos, evidentemente equivocados, trataram de um assunto para o qual não estavam indicados. Os defeitos acima mencionados enquadram-se também no setor das interpre-

A preocupação de não ferir as suscetibilidades, de fazer da vida de Cristo tema

tações: Jeffrey Hunter é convincente como cowboy em filme de Ford, mas é inacei-

aceitável e compreensível a todos - sem exceção - constitui, a nosso ver, a falha

tável como Cristo, apesar de seus esforços; Siobhan McKenna, nada transmite como

maior desta fita. O filme foi, evidentemente, concebido de maneira a não afastar

Maria; Frank Thring, como Herodes Antipas, super representa; Carmen Sevilla

plateias potenciais. É o que faz com que, visando a não desagradar aos judeus,

e Robert Ryan (Madalena e João Batista), inexpressivos. Os melhores são Hurd

Barrabás seja transformando num reivindicador nacional dos judeus oprimidos

Hatfield (Pilatos) e Brigid Bazlen (Salomé). A música de Miklos Rosza é parecida

pelo romanos; com que Judas, o traidor - citado pelo Evangelho segundo São João

a todas as outras que tem composto para as superproduções deste estilo e alcance.

como um ladrão (12,6) - seja uma espécie de lugar-tenente de Barrabás, e um

Em suma: um filme sobre Cristo que é mais sobre Barrabás. Uma produção

patriota inflamado, que vê na delação de Cristo, a possibilidade única de forçá-lo

cuidada e cara, mas equivocada, longa e frustrada. Os objetivos comerciais em que

a uma atitude de reação que venha a significar a libertação dos judeus; com que

se assenta a produção anulam, o mais das vezes, alguma possível boa intenção.

Pilatos, a encarnação do espírito fascista e discricionário da época, seja o único responsável pela condenação do Nazareno. Visando, por outro lado, a não desapontar os protestantes, o filme silencia sobre alguns milagres que a teologia destes reluta a admitir. Quanto aos católicos, são também eles bajulados quando a fita se propõe a mostrar o papel de “mediadora” da Mãe de Jesus. Finalmente, não foram também esquecidos os indiferentes ou não religiosos: para esses, providenciou-se um retrato de Cristo que é deveras bastante equívoco, e segundo o qual Ele teria sido um Dale Carnegie de incomum habilidade, no manejo de informações práticas sobre normas do “bom-viver”. Não há duvidas de que o produtor, o realizador e os roteiristas desta nova versão de O rei dos reis (King of Kings, 1961), esqueceram uma palavra dura, incomoda e definidora, que Jesus não hesitou em dizer: “Quem não está comigo, está contra mim”. Como realização cinematográfica, este O rei dos reis é também decepcionante, apesar de ter sido uma produção cara e cuidada. O roteiro permite que se arraste desnecessariamente a história, e pretensiosamente, propõe soluções que as mais recentes pesquisas históricas não autorizam sobre determinadas figuras e fatos. O argumento parece fragmentário, disperso e somente consegue uma certa consistência quando se detém na ficção pura e simples em que se arma o episódio de Barrabás, que, muitas vezes, parece ser a figura mais importante da fita...Nota-se, evidente, o desejo dos autores (no caso, o roteirista e o diretor). de conferir ao relato

1. Originalmente publicado no Jornal O Globo, em 17 de abril de 1962.

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O Rei dos reis

O crime não compensa

Cláudio M. e Souza 1

G. & R. Santos Pereira 1

Tudo isso cansa, tudo isso exaure. As paisagens em cores espetaculares, os cenários

O crime não compensa (Knock on Any Door, 1949) é um ensaio sobre violên-

espetaculares, um impressionante número de atores e coadjuvantes, um inesgo-

cia, um prelúdio preparando a formidável orquestração de Juventude transviada

tável tempo de projeção; tudo isso cansa, tudo isso exaure. E já nada existe, neste

(Rebel Without a Cause, 1955), a obra-prima de Nicholas Ray nos domínios da

nosso mundo de espetáculos cotidianos, que nos possa comover apenas baseado

interpretação do fenômeno da delinquência juvenil nos Estados Unidos. Ensaio

na força de alguns adjetivos que a realidade já se incumbiu de enfraquecer. Além

na verdade sério, válido ainda hoje, 12 anos após a realização da fita, mas sempre

de cansar, além de exaurir, este filme, O Rei dos reis (King of Kings, 1961), é uma

um ensaio (e é bom que se empreste ao vocábulo o seu sentido exato).

blasfêmia, como notou, muito acertadamente, o astuto crítico do Time, cujas opi-

Nicholas Ray, excelente artesão, é desses cineastas que sempre esparramam

niões já foram distribuídas ao público pela sra. Tati de Morais em seu excelente

sobre os filmes que assina algumas ideias gerais, e quase sempre generosas, sobre

comentário sobre o filme.

alguns dos males crônicos que caracterizam a comunidade de sua pátria. A vio-

Em seu delírio de espetáculo, possuídos de uma inequívoca vocação para

lência, o crime, a miséria, a corrupção de certos setores da máquina administra-

os fatos epopéicos, os superprodutores de Hol1ywood passaram a ver a história

tivo-policial, a obsessão pelo lucro e pelo conforto moderno, os excessos do sexo,

do homem com lentes deformantes. E desta visão não escapa ninguém, nem os

a gratuidade dos atos de uma juventude sem amanhãs — eis algumas constantes na

santos nem os ímpios. Não escapou nem mesmo a eterna e doce imagem de Jesus,

obra de Ray, um cineasta que perquire tanto os fenômenos sociais e econômicos

que depois de muito lutar e sofrer pela melhoria do mundo e dos homens veio

em suas obras como pesquisa neles a dinâmica da arte que escolheu para dizer

a ser revivida por um ator medíocre, envolvido em situações que perderam toda

através dela um pensamento a serviço de uma ideia maior.

sua grandeza. Fico a imaginar quanto deve ter custado, em tempo e dinheiro, para

O crime não compensa possui unidade exemplar; não importa que a tra-

os produtores realizar um filme como este, que escoa lentamente das telas durante

ma possa sugerir todo um arcabouço tornado convencional pelo uso repetido,

quase três horas.

exemplificado por toda uma corrente de filmes policiais-psicológicos-sociais.

Fico a imaginar, também, que Deus foi muito mais modesto e eficiente quando criou o mundo em apenas sete dias.

A fita possui a sua mensagem, detona a sua crítica, grita o seu libelo contra um apostema social que é preciso curar ou tratar. O crime não compensa, é verdade, mas a miséria compensa muito menos. O advogado de defesa de Nick Romano, que não é outro senão o admirável e imperecível Humphrey Bogart, inculpa-se e culpa toda a sociedade norte-americana pela carreira de crimes e baixezas de seu constituinte, filho da pobreza, do desinteresse dos homens, da falta de assistência do Estado, da incultura e do desamor. Mas não impede que o jovem assassino seja sentenciado à morte, outra violência da sociedade que não pode ou não soube salvá-lo.

1. Originalmente publicado no jornal Diário Carioca, em 19 de setembro de 1962, quando 1. Originalmente publicado no Jornal do Brasil, em 19 de abril de 1962.

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da reexibição do filme O crime não compensa.

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O filme é emotivo, dessa emoção rude, bruta, reflexiva. É menos primário

O cinema de Nicholas Ray

como estrutura fílmica do que direto, linearmente sociológico, adulto e corajoso. Uma oportuna reapresentação, sem dúvida, a de O crime não compensa, filmes

V.F. Perkins 1

em que se dizem verdades importantes e em que ideias generosas, sadias e sempre atuais completam um quadro de sólido artesanato cinematográfico. Os críticos americanos em geral fazem a distinção, de maneira mais ou menos explícita, entre o cinema comercial e o pessoal. Essa distinção é por vezes válida, frequentemente tola, e sempre perigosa. É bastante legítimo, por exemplo, ressaltar que Nicholas Ray por diversas vezes teve de trabalhar a partir de roteiros com os quais ele não estava satisfeito: Fora das grades (Run for Cover, 1955), Sangue ardente (Hot Blood, 1956), A bela do bas-fond (Party Girl, 1958); e que muitos de seus filmes foram mutilados depois de finalizados: Quem foi Jesse James? (The True Story of Jesse James, 1957), Amargo triunfo (Bitter Victory, 1957), Jornada tétrica (Wind Across the Everglades, 1958), Sangue sobre a neve (The Savage Innocents, 1960), O rei dos reis (King of Kings, 1961); e que as tramas de Paixão de bravo (The Lusty Men, 1952), Johnny Guitar (1954) e Delírio de loucura (Bigger Than Life, 1956) talvez não sejam convidativas no papel. Mas filme não é papel, e nunca poderia ser, a não ser na imaginação fértil de um crítico que acha que seus olhos servem apenas para ler. A distinção entre um cinema comercial e um outro pessoal se tornou uma arma que é usada contra filmes que não buscam impressionar pela seriedade superficial de sua trama ou de seus diálogos. A contribuição do diretor seria irrelevante para o sucesso crítico de Amarga esperança (They Live by Night, 1948) e Juventude transviada (Rebel Without a Cause, 1955), assim como é para a negligência crítica nos casos de Johnny Guitar, Delírio de loucura ou Jornada tétrica. É uma bobagem dizer que, em A bela do bas-fond, o talento de Ray é “desperdiçado em uma grande idiotice” (Louis Marcolles, justamente na Cahiers du Cinéma). Talvez o tratamento não tenha sido satisfatório, mas não existem temas insatisfatórios. O próprio Ray já criticou as preocupações literárias de alguns roteiristas: “‘Estava tudo no roteiro’, diria um roteirista desiludido. Mas, na verdade, nunca está tudo no roteiro. Se estivesse, por que fazer o filme?” O roteirista desiludido e o crítico insensível se aproximam na forma que eliminam exatamente aquilo que leva as pessoas ao cinema: a ressonância extraordinária que um diretor pode provocar pelo uso dos atores, cenário, movimento, cor, forma, de tudo que pode ser visto e ouvido.

1. Originalmente publicado como “The Cinema of Nicholas Ray”, na revista Movie Reader, n. 9, primavera de 1963, Londres. Tradução de Fabio Andrade.

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Em primeira instância, vemos e ouvimos os atores. Os filmes de Ray contêm

de afirmar que esse talento é unicamente seu. Essa é apenas a forma de distinguir

uma série de performances que podem ser tidas como excelentes porque criam

um verdadeiro cineasta do pseudodiretor que cria “fotografias de pessoas falando”.

uma caracterização completa: Bogart (No silêncio da noite [In a Lonely Place,

E esse talento não se dá exclusivamente no trabalho de Ray com os atores, mas

1951]), Mitchum (Paixão de bravo), Dean, Wood, Backus (Juventude transviada),

em seu uso de todo o vocabulário do cinema.

Burton (Amargo triunfo) e Christopher Plummer (Jornada tétrica) vêm imediatamente à cabeça. Só que o controle de um diretor é comprovado não somente pela perfeição de performances individuais, mas justamente pela consistência com que os atores de Ray incorporam o seu olhar. Essa consistência é o resultado — e

Hora e lugar

esse é um paradoxo antigo — da busca do diretor pela verdade específica de cada

Poucos diretores, por exemplo, demonstram tamanho gosto pelos poderes suges-

situação específica. O isolamento de Johnny Guitar é composto por linhas tão

tivos do décor e das locações. De um ponto de vista crítico, não há dúvidas quanto

demarcadas que nós somos capazes de compreender, sem a ênfase do diretor,

à necessidade de que cada lugar seja apropriado para a ação e o tema. Mas além

o amplo significado de seu comentário: “Eu tenho muito respeito pelas armas e,

disso, quando a locação perfeita é encontrada, é possível perceber também a influ-

além do mais, aqui eu também sou um estrangeiro.” Em Amarga esperança, Cathy

ência direta do lugar na ação. O décor, nos filmes de Ray, engloba todo o ambiente

O’Donnell não consegue acertar seu relógio porque “não há um relógio certo

visual, incluindo (e nisso ele é único) o momento do dia.

por aqui para eu acertar o meu”. A fala tem um contexto dramático complexo

É essa imensa sensibilidade de Ray aos momentos que faz com que

e específico. E nós sabemos, embora a personagem não saiba, que ela tem uma

a noite possa ser sentida como mais do que a simples ausência de luz do sol.

relevância maior para uma garota que “nunca foi devidamente apresentada para

Juventude transviada traz o mais impressionante exemplo dessa sensibilidade na

o mundo em que vivemos”.

primeira sequência no planetário; aqui, Ray nos faz sentir a intromissão de uma

Ray trabalha com seus atores de maneira tão particular que ele é capaz

luz artificial numa cena que se passa no meio da tarde. A percepção do momento é

de utilizar o que costumamos assumir como seus defeitos. A agressividade de

especialmente destacada nessa sequência, mas ela de fato determina toda a estru-

Susan Hayward (Paixão de bravo), a arrogância de Robert Wagner (Quem foi Jesse

tura do filme. A noite é a hora de confusão e insegurança, o momento em que os

James?), a frieza de Cyd Charisse e o charme autoconsciente de Robert Taylor

pais estão dormindo. O filme começa à noite com um jovem caindo bêbado no

(A bela do bas-fond), tudo isso é usado para intensificar situações e criar signifi-

meio de uma rua escura. Nós o acompanhamos por outras duas “noites”, a artifi-

cados. Ray não é o único a trabalhar atores tanto por suas fraquezas quanto por

cial, no planetário, e a real, em que James Dean participa da “chicken run” — por

suas habilidades, mas nisso ele tem a boa companhia de diretores como Hitchcock

si só, uma evocação extraordinária de confusão, em sua corrida cega e perigosa

e Cukor.

rumo à morte. Por contraste, as manhãs oferecem a possibilidade de um novo

Ao longo de qualquer filme de Ray é possível perceber o domínio completo da

começo, uma jornada em busca de uma nova lucidez. Na primeira manhã, Dean

— muitas vezes contraditória — ação que expressa mais do que realiza, a habilidade

tem esperanças de um novo começo porque está começando numa nova escola.

de condensar uma ideia em um gesto, uma hesitação, um movimento dos olhos.

Suas esperanças são frustradas nas “noites” seguintes. Mas a manhã seguinte tem

Muito do significado de O rei dos reis está na tessitura intricada de olhares que

uma promessa ainda mais clara. É aurora, o verdadeiro começo do dia, em vez

veem, vislumbram e confrontam. As motivações de Salomé são reveladas princi-

de nove da manhã. O filme termina com uma imagem de renovação da vida e do

palmente nesse âmbito. A primeira imagem de Juventude transviada concentra todo

trabalho, com a câmera recuando para revelar um homem caminhando em direção

um histórico de confusão e afetividade desgovernada no gesto protetor de James

ao planetário para começar mais um dia de trabalho.

Dean ao cobrir um macaco de brinquedo com uma folha de jornal. Jornada tétrica

A maneira que Ray usa o décor para destacar situações específicas pode ser

mostra como duas civilizações estão dispostas a ceder e a ser compreensivas pela

percebida nas diversas formas que ele emprega ao adotar o conceito de “andar

forma como o herói compartilha um “charuto da paz” com seu amigo Seminole.

de cima”. Em Johnny Guitar, o andar de cima representa isolamento. A dona do

Com efeito, quando insisto que o gênio de Ray está na maneira como ele atinge

saloon, Vienna (Joan Crawford), separou por completo sua vida pública de sua vida

o universal pelo específico, o abstrato pelo concreto, não tenho qualquer intenção

particular; a primeira é vivida no térreo entre drinques e mesas de jogo, enquanto

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a segunda é retirada ao segundo andar, com décor mais delicado e feminino. Ela é

problema de coração. Sob os efeitos da droga, ele se torna vítima de um delírio de

bem explícita quanto a essa distinção. Parada no meio da escada, com a arma na

superioridade moral e intelectual que ameaça destruir sua família. O quadro está

mão, ela se defende do grupo que veio fazer busca em sua casa: “Aí embaixo eu

sempre em movimento; fechando em Mason, por exemplo, durante a discussão

vendo uísque e carteado. Aqui em cima, você só pode levar uma bala na cabeça.”

com a mulher que provoca um de seus ataques; fechando em seu filho enquanto ele

Nos últimos planos do filme, Johnny Guitar é mostrado ajudando Vienna a romper

se esforça para tranquilizar Mason resolvendo problemas dificílimos de aritmética;

seu isolamento: ele lhe dá apoio enquanto ela desce uma escada (diferente) para

abrindo novamente para um momento de respiro após a solução ser encontrada.

se juntar aos outros personagens.

Pelo uso de linhas e estrutura Ray cria “composições que tornam claros e tangí-

Em Delírio de loucura, como em Quem foi Jesse James?, o andar de cima sugere tanto a possibilidade de uma vida familiar normal quanto o retiro temporário das

veis conceitos tão abstratos quanto liberdade e destino” (Jean-Luc Godard sobre Quem foi Jesse James?).

responsabilidades. Cartazes de viagem decoram as paredes e se tornam progressi-

A turbulência dos enquadramentos é resultado de três tipos de movimento

vamente mais exóticos, indo do Grand Canyon, na porta de entrada, para Bolonha,

cinematográfico — o dos atores, o da câmera, e o dos planos, da montagem. Se há

na parte de cima. O andar de cima representa o desejo do mestre de meia-idade

uma ideia única que domina a técnica de Ray (e portanto sua filosofia, mas isso

(James Manson) de “fugir em algum momento”.

vem mais tarde), é a oposição entre conflito e harmonia. Por exemplo, um filme de

Juventude transviada usa o andar de cima para destacar o fracasso de Jim

Ray pode ser instantaneamente reconhecido pela forma extremamente particular

Backus como marido e pai de família. Seu filho fica chocado e magoado ao encon-

de o diretor trabalhar a edição. Vários dos movimentos de câmera de Ray parecem

trá-lo de joelhos fora de seu quarto. Ele está limpando a sujeira que fez ao derrubar

incompletos. Mesmo o manual mais básico de realização cinematográfica lhe dirá

a bandeja de comida que levava para a mulher. A escolha do lugar, tanto quanto a

que um travelling precisa ter começo, meio e fim. Muitas vezes, Ray usa apenas

convicção das atuações, aproxima-nos da raiva e angústia de James Dean.

o meio: a câmera já está em movimento quando o plano começa, e o movimento é interrompido pelo plano seguinte; ou se o movimento de fato acaba, ele parece de alguma forma fracassar em seu objetivo aparente. Sequências inteiras são cria-

ESTRUTURA

das desses planos “incompletos”, de forma que a montagem se torne uma trama de interrupções em que cada imagem pareça forçar sua chegada à tela às custas

Mas lugares e objetos têm também um valor estrutural, além de simbólico e

do plano anterior (como na apresentação da gangue de Brady em Johnny Guitar).

evocativo. Ray se aproveita ao máximo disso na arquitetura de suas imagens.

Ray é um dos mais “subjetivos” entre todos os diretores. O mundo que ele cria na

Em Paixão de bravo, Arthur Kennedy, contra a vontade de sua mulher (Susan

tela é o mundo visto pelos seus personagens. Seu estilo de edição desloca, refletindo

Hayward), abandona a parca segurança de seu trabalho como rancheiro e se torna

as vidas deslocadas que vários de seus personagens vivem.

um caubói de rodeios. É uma vida sem estabilidade, vivida em trailers e caminho-

Mesmo uma sequência composta principalmente de planos estáticos será

netes. Numa sequência, Susan Hayward vai a uma festa num hotel. Ray a mostra

invariavelmente interrompida pelo corte para um close de um personagem

sentada frente a uma cortina, com um mundo em exuberante movimento às suas

que, aparentemente, está envolvido na ação imediata de forma apenas perifé-

costas. O plano descreve sua insatisfação com essa nova forma de vida e a saudade

rica: Johnny Guitar no primeiro confronto entre Vienna e Emma (Mercedes

que sente de um lar estável: a cortina tem um valor simbólico por si só — a estampa

McCambridge); Viveca Lindfors na discussão entre John Derek e James Cagney,

do tecido é bastante “doméstica” —, mas também divide a imagem verticalmente,

em Fora das grades; Salomé no julgamento de Jesus diante de Herodes Antipas.

separando-a do ambiente do qual ela gostaria de se afastar.

O efeito é de extraordinária dualidade. O corte abrupto contribui para o sentimento

Ray frequentemente usa massas estáticas e de linhas fortes — paredes, escadas, portas, rochas — que invadem o enquadramento e, ao mesmo tempo, desorganizam

de deslocamento, de desarmonia. Mas, pela integração de um elemento aparentemente estrangeiro, ele também sugere uma unidade escondida.

e harmonizam as imagens. Em especial, ele usa objetos que destacam os perso-

O uso da cor nos filmes de Ray também se sustenta fortemente no conceito de

nagens, criando outro enquadramento dentro do enquadramento. Em Delírio de

harmonia. Ele de fato trabalha com cores à maneira clássica, e excelente, de Cukor

loucura, James Mason toma overdoses da cortisona que lhe foi receitada para seu

e Kazan, buscando um efeito emocional: no primeiro rolo de Delírio de loucura

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a fusão do plano predominantemente cinza de Mason saindo da escola para uma

o assassinato de seu irmão como um pretexto para perseguir Vienna; quando ela se

tela praticamente coberta pelo amarelo dos táxis estacionados nos faz sentir o peso

põe à frente da multidão, seu véu de funeral se perde na poeira deixada pelos cascos

de se ter dois trabalhos diariamente. No entanto, é mais característica a maneira

dos cavalos. James Mason exagera no uso de cortisona para inflar sua percepção de

de Ray selecionar cores para criar uma extensão ou um choque com o fundo da

si mesmo: nós o vemos enchendo de vida uma bola murcha de futebol americano.

cena. Apesar de o vermelho que Cyd Charisse veste em A bela do bas-fond ter uma

O uso de imagens tão radicais não se dá apenas nos simbolismos. É algo

força autônoma emocional enorme, seu efeito vem principalmente na relação

que inclui a câmera, em especial nos planos de Juventude transviada, Sangue

com as outras cores no plano: destacando-a e isolando-a dos sóbrios tons marrom

ardente e Jornada tétrica que trazem um olhar subjetivo às conclusões lógicas;

do tribunal; misturando-a e integrando-a ao vermelho mais escuro do sofá em que

eles mostram as imagens invertidas vistas pelos heróis dos filmes e, em Juventude,

ela dorme. A revolta de Cornel Wilde contra as tradições de sua família cigana

a câmera chega a girar verticalmente 180o enquanto James Dean gira seu corpo

em Sangue ardente é expressa pelo embate entre a cor convencional de seu paletó

até se sentar corretamente. Em Johnny Guitar, e por vezes em todos os seus filmes,

e o extravagante estofado “cigano” da cadeira sobre a qual ele o coloca.

Ray usa situações extremas e ações radicais para criar uma representação quase esquemática de ideias, personagens e conflitos. Christopher Plummer expressa seu repúdio ao massacre da vida selvagem dos Everglades arrancando penas do

DISCURSO DIRETO

chapéu de uma mulher vestida de maneira espalhafatosa e perguntando como ela se sentiria se “esse pássaro usasse você como enfeite”. Lee J. Cobb, o chefão

Esse tipo de declaração direta é comum nos filmes de Ray porque ele acredita (fora

gângster de A bela do bas-fond, faz furos com as balas de sua arma num retrato

de moda, talvez, mas pior para nós) que o cinema é um meio de comunicação,

de Jean Harlow quando fica sabendo que ela se casou. Um dos garçons de Vienna

e que é essencial ser claro. A clareza de foco em sua abordagem pode ser perce-

entra num plano médio e olha diretamente para a câmera para nos dizer que

bida na construção de seus roteiros. Os personagens principais de seus filmes são

“nunca tinha visto uma mulher mais parecida com um homem”. Howard da Silva

apresentados da forma mais ágil e econômica possível. O herói normalmente será

destrói o sonho da realização doméstica de Farley Granger (Amarga esperança),

apresentado no primeiro plano, e ao final do primeiro rolo todas as relações impor-

quebrando um dos enfeites em sua árvore de Natal.

tantes já terão sido estabelecidas. Há exceções para essa regra, Sangue sobre a neve e O rei dos reis por exemplo, mas elas só ocorrem quando a natureza da história não permite sua aplicação. A apresentação no começo de Juventude transviada é impressionante em sua agilidade e lucidez. O primeiro plano — por trás dos crédi-

A CORRIDA CEGA

tos — é um close de James Dean deitado na estrada; o segundo é um rápido plano

Tamanho foco e radicalidade de expressão poderiam se transformar rapidamente

de ligação de quando ele é levado à delegacia; e o terceiro introduz Sal Mineo

em mera ração intelectual se não fossem controlados por um olhar profundamente

e Natalie Wood. Menos de dez minutos mais tarde nós já saberemos de todo o pa-

pessoal. Dentro de contexto, no entanto, eles formam um testemunho tocante da

no de fundo familiar de Mineo e Wood, e já teremos até conhecido os pais e a avó

coragem e da lucidez de um cineasta que transmite suas preocupações pela tela

de Dean — novamente, num único plano que sugere a maior parte dos detalhes

com enorme intensidade poética. Cada uma das “operações” de Ray é correlata

de uma relação complexa.

a algum aspecto de sua sensibilidade.

O desejo de comunicação direta também distingue a forma de Ray empre-

Por outro lado, a maior parte de seus filmes não fará muito sentido para

gar simbolismos. Suas imagens nunca são obscuras; muitas delas são tiradas da

qualquer pessoa que vá ao cinema apenas para ouvir uma boa leitura de um bom

natureza, como as referências a fogo e água em O rei dos reis, ou a vento e rocha

roteiro. É necessário reagir às texturas dos filmes de Ray antes de se chegar aos

em Johnny Guitar — na primeira vez em que vemos Emma ela parece estar sendo

seus significados. É preciso apreciar as dinâmicas antes de se perceber, incrustada

carregada pelo vento, e no resto do filme ela sempre agirá de acordo com seus im-

em seu movimento turbulento, uma visão ética e poética do universo e do lugar

pulsos. Esses símbolos são mais sentidos do que percebidos. Mas quando Ray dese-

do homem dentro dele. Em Juventude transviada, Ray usa o planetário para traçar

ja transmitir uma ideia ele não se furta de usar uma imagem radical. Emma explora

um claro paralelo entre os sentimentos de isolamento e de insegurança de seus

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personagens e os da própria humanidade no universo. Durante a apresentação,

Vienna diz à turba: “Eu pretendo ser enterrada aqui — no século XX!” Mas a briga

os membros da plateia assistem à representação do fim do mundo com indiferença,

de Emma com Vienna é, em parte, por sua resistência às mudanças: “Você nun-

desprezo ou horror. Mas o comentarista continua falando: “destruída como sur-

ca verá um trem passar por aqui!” Christopher Plummer nega um convite para

giu, numa explosão de gás e fogo... a Terra não fará falta... e a própria existência

colaborar com o desenvolvimento de Miami: “O progresso e eu nunca nos demos

do homem parece um episódio de pouco significado.” É contra essa ideia de que

muito bem.” E Richard Burton descreve uma versão da vila Berber no século X

a vida humana seria um episódio de pouco significado, mais até do que contra

desdenhando-a como “moderna demais para mim”.

a sociedade, ou a sua própria família, que Dean se revolta.

O progresso contribui para a instabilidade de nossas vidas. Emma se opõe à

O título original de Ray para o filme, The Blind Run [A corrida cega], reflete a

extensão da ferrovia porque ela destruirá o isolamento que a protege. Num discurso

percepção da vida como uma viagem descontrolada e rápida demais, sem direção

violentamente tocante ela diz que o trem irá trazer “fazendeiros. Fazendeiros que

ou sentido aparentes. As ações dos personagens de Ray são condicionadas por esse

não plantam nada! Grileiros! Eles vão nos expulsar daqui! Vocês vão perceber

olhar. Alguns deles, como o diretor, entregam-se à busca por uma alternativa, por

que vocês, suas mulheres e seus filhos foram isolados com arame farpado e cer-

uma unidade que domine um mundo aparentemente caótico, instável e indife-

cas de madeira. É isso que vocês querem que aconteça?” Até Emma, que logo no

rente. Outros, fracassando nessa procura, aceitam o caos sem encontrar paz de

princípio do filme anuncia sua intenção de matar Vienna, tem suas justificativas.

espírito; poucas declarações no cinema são mais angustiadas do que a de Burton

Não há personagens que sejam puramente vilões nos filmes de Ray. Existem

em Amargo triunfo: “Eu mato os vivos, e eu salvo os mortos.” Fora das grades

simplesmente, e mais dramaticamente, falhas de comunicação e de compreensão.

mostra Matt Dow (Cagney) como um homem que conseguiu fazer as pazes com

Em Fora das grades, Viveca Lindfors diz que a mulher que se divorciou de James

o mundo porque foi capaz de alcançar uma estabilidade interior que poucos dos

Cagney “deve ter sido uma má esposa”. “Não”, responde Cagney, “ela apenas não

personagens de Ray têm o privilégio de compartilhar.

suportava me ver”. Cada homem age, independente de seu grau de lucidez, de

Há uma reação à dura realidade apresentada por Ray que invariavelmente

acordo com um código próprio ou a partir de suas mais profundas necessidades.

leva ao desastre: a obstinação em não reconhecer as bases da vida. Em Paixão

Quase todo homem age de uma posição de profunda incerteza e insegurança.

de bravo, Robert Mitchum, um caubói de rodeios aposentado, volta para a caba-

Por ser inseguro a respeito de seu próprio valor é que o herói de Ray tenta conquis-

na onde passou sua infância, “procurando por algo que acreditava ter perdido”.

tar ou manter sua autoestima por meio da admiração ou submissão de quem está

A porta está trancada. No clímax do filme ele volta à arena porque precisa pro-

por perto; mas essa luta apenas aumenta a instabilidade das relações pessoais. Uma

var para si mesmo: “Eu comprava minha própria bebida... um sujeito gosta de

vitória absoluta na batalha por prestígio é impossível, já que ela inevitavelmente

descobrir se ainda é capaz.” Na sequência antes de ele se alistar no concurso,

faz com que a vida do vencedor seja um pouco menos digna de ser vivida: Herodes

um comentarista descreve o desfile de abertura pela cidade texana como “uma

Antipas é atormentado pela culpa porque acatou o pedido de Salomé pela cabeça

excitante exibição da velha glória”. Mitchum morre por conta dos ferimentos

de João, o batista, em vez de “deixar claro que a palavra de um Rei não tem valor”.

que sofre na arena. O fracasso final e a morte de Jesse James decorrem de uma

Os homens farão quase todo tipo de sacrifício para proteger seu prestígio.

forma de vida cada vez mais fantasiosa: ele tenta separar seus dois personagens,

Em Amargo triunfo, Curt Jurgens fica sem ação num momento vital no comando

como Jesse e como o sr. Howard, respeitável homem de uma cidadezinha. Seu

de um ataque a um quartel alemão. Richard Burton lhe diz que “o que aconteceu

bando se desmancha durante um assalto a banco que dá errado porque o leva

nesta noite nada tem a ver comigo, é [uma questão] entre você e você mesmo”.

para longe demais de casa. O excesso de cortisona quase faz com que Mason mate

Mas Jurgens tem certeza de que seus homens o veem como um covarde. Ele ar-

seu filho em Delírio de loucura. No final do filme, Mason só consegue restabelecer

risca sua vida, bebendo de um poço que ele suspeita ter sido envenenado, para

sua sanidade baseando sua vida em suas realidades, em vez de numa reconfortante

demonstrar sua coragem.

ilusão: “Se ele conseguir se lembrar de tudo o que aconteceu, e encarar isso, ele ficará bem.”

Os filmes de Ray trazem um grande número de variações na maneira de cada homem enxergar suas inseguranças. Em A bela do Bas-fond, Robert Taylor, como

A aceitação dos termos da vida inclui a aceitação do caos e das mudanças.

advogado de defesa de um gângster (John Ireland), garante sua inocência trans-

Os personagens de Ray compartilham sua sensibilidade em relação ao tempo.

mitindo ao júri uma impressão de superioridade: ele faz com que o júri sinta pena

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dele — exagerando sua deficiência — e de seu cliente, sugerindo que a imprensa já o

Cyd Charisse em A bela do bas-fond começa com egos feridos e ressentimento

teria condenado antes mesmo do julgamento (tirando, com isso, o direito de decisão

mútuo. Mas ela é construída gradativamente a partir de uma série de testes, até que

do júri). Numa situação equivalente em Fora das grades, vemos o voluntarismo

ambos possam prover a confiança e o respeito de que o outro precisa. É somente

autodestrutivo de John Derek em explorar a compaixão alheia. Ele também tem

por meio de um relacionamento como esse, baseado em instintiva compaixão

uma deficiência física. Numa tentativa de fazer James Cagney sentir pena dele,

e explícita confiança, que os personagens de Ray escapam da dupla ameaça de

ele se curva sobre uma mesa exatamente como fez, no chão, quando tentou andar

isolamento e submissão.

sem muletas pela primeira vez. Christopher Plummer em Jornada tétrica diz que

O delicado equilíbrio necessário para criar e sustentar um relacionamento

não lhe foi dada outra escolha a não ser a de prender o líder dos contrabandistas de

harmonioso só pode ser conquistado a um custo, e está constantemente sob ame-

pássaros (Burl Ives). Na verdade, um mandato para a prisão de Ives lhe havia sido

aça. A elasticidade do escopo dramático ou moral de um personagem só pode

oferecido publicamente, desde que ele o realizasse pessoalmente. Inuk (Anthony

existir após a destruição dessas mesmas barreiras que deveriam lhe proteger, mas

Quinn), o herói esquimó de Sangue sobre a neve, usa de maneira positiva o temor

que de fato o oprimem: falsos relacionamentos, esperanças injustificadas e regras

de um homem em ser desprezado, para salvar sua vida. Ele instiga um patrulheiro

de conduta arbitrárias. Em Juventude transviada, James Dean busca a orientação

a colocar suas mãos geladas no estômago quente de um cão, questionando se um

e o apoio de um pai que, por natureza, é incapaz de fornecê-las. Por fim, através

homem branco seria capaz de resistir à dor.

da angústia e da tragédia, ele é obrigado a aceitar a realidade de sua situação.

A necessidade de ser aceito pela sociedade, com suas pressões conformado-

Só assim ele pode começar a construir um relacionamento verdadeiramente útil.

ras, inevitavelmente entra em choque com o desejo de se viver de acordo com seu próprio código. Os heróis de Johnny Guitar, Jornada tétrica e Sangue sobre a neve quase são mortos na tentativa de serem reconhecidos em seus próprios termos. Os aventureiros de Ray não são aventureiros por escolha, como os heróis de Hawks

UM ESTRANHO AQUI

ou Walsh, mas por uma compulsão interior. Eles são pessoas “deslocadas”, cujo

“Muitas vezes”, diz Burl Ives em Jornada tétrica, “a volta mais longa é o cami-

isolamento é enfatizado pelo envolvimento com um grupo que se coloca fora da

nho mais curto”. Mas muitas vezes os personagens de Ray tentam encontrar ata-

sociedade e, frequentemente, fora da lei. De fato, seu inconformismo é tamanho

lhos para saírem com facilidade de suas dificuldades. Como Mason em Delírio

que eles se isolam mesmo dentro desses grupos não convencionais: Dean choca

de loucura, eles confundem o remédio com a cura. Ou como Arthur Kennedy em

uma gangue de jovens armados com canivetes e carros roubados ameaçando seu

Paixão de bravo, eles permitem que um método se torne um fim em si mesmo.

líder com um pedaço do macaco de seu carro.

Kennedy e sua mulher sentem falta da segurança representada por “um lugar

Mas apesar de um homem poder optar pelo isolamento, como uma fuga

só nosso”. Como um atalho em direção a esse objetivo, Kennedy compete pelos

das pressões da sociedade, esta nunca será uma solução permanente. Em Johnny

prêmios na arena de rodeio. Mas o prestígio que ele ganha o desvia de sua inten-

Guitar e A bela do bas-fond, assistimos a um homem e uma mulher, ambos per-

ção original. Em vez de comprar uma casa, ele compra um trailer, um símbolo de

sonagens profundamente deslocados, retirados, ambos intensamente vulneráveis,

permanente instabilidade.

cada um tentando fugir do isolamento e restabelecer sua autoestima, fazendo o

De forma parecida, as leis e convenções de uma sociedades só têm valor se

possível para merecer o respeito do outro. Johnny Guitar tem uma sequência

elas vão ao encontro de necessidades particulares. Mas elas são muito facilmente

de força extraordinária em que Johnny e Vienna estão juntos, a sós pela primeira

encaradas como absolutos morais; e podem apenas gerar caos e injustiça quando

vez após uma longa e dolorosa separação. Ambos disfarçam suas emoções num

aplicadas fora de seu contexto necessariamente específico. Na primeira meta-

“diálogo” cinicamente calculado, planejado para testar os sentimentos do outro

de de Sangue sobre a neve, somos apresentados a uma vida vivida estritamente

antes de qualquer envolvimento. Johnny diz a Vienna: “Minta para mim... Diga

de acordo com os termos ditados pelo ambiente do Ártico. Mas um missionário vai

que você me esperou”, e Vienna “lê” essas mesmas palavras como resposta, re-

aos esquimós Inuk e Asiak (Yoko Tani), para convencê-los de que Deus — um per-

petindo exatamente o que ele pede para ela dizer, mas tentando suprimir qual-

sonagem que até então não tinha qualquer função na vida deles, e cuja existência

quer vestígio de sentimento. De forma parecida, a relação entre Robert Taylor e

não correspondia a nenhuma necessidade sentida — tem raiva deles por viverem

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no pecado: um conceito que nunca havia se apresentado para eles. Inuk, por sua

Era impossível acreditar que a hostilidade do mundo, retratada com tamanha

vez, despreza a intransigência do missionário em negar as tradições de hospitali-

concretude, pudesse ser somente um reflexo das neuroses do herói.

dade de sua raça, em especial a atenção de Asiak. Em sua raiva ele acidentalmente

Ray se nega a garantir o futuro de seus personagens: no final de Johnny Guitar,

fratura o crânio do missionário. Bem mais tarde, quando Inuk já havia esquecido

Juventude transviada ou Delírio de loucura, o herói chega a um ponto em que pode

de todo aquele episódio, patrulheiros vêm prendê-lo para ser julgado a partir de

progredir para uma existência mais plena e ordenada. Mas não nos é permitido

leis que ele nem sabia que existiam, e cuja autoridade ele não reconhece: “As leis

acreditar em qualquer transformação mágica de sua personalidade. Mesmo após

do meu pai não foram quebradas.” O conflito na parte final do filme é resultado

a morte de Sal Mineo no clímax de Juventude transviada, o grito agoniado de

direto da tentativa de se impor regras que não cabem naquele contexto, e que se

James Dean de “As balas estão comigo!” simboliza para nós a continuação de seu

tornaram mais fortes do que os homens que as criaram. Asiak fala por Ray quando

conflito interior. Há sempre o perigo de que o herói vá se render novamente ao

diz ao patrulheiro que, “quando vocês vêm a uma terra estrangeira, deveriam trazer

caos e à autodestruição.

suas esposas e não as suas leis”.

O perigo não é nada menos real no final de A bela do bas-fond, mas é menos

A rigidez com a qual os homens tentam aplicar seus códigos é apenas

opressivo. Pela primeira vez sentimos que o herói o reconheceu e, consequentemen-

uma manifestação de insegurança. Os filmes de Ray mostram o homem como

te, está mais apto a lidar com ele. Além disso, Robert Taylor já havia chegado, no

um intruso num universo turbulento, indiferente ou hostil. Seu herói muitas vezes

meio do filme, à posição que os heróis de Ray alcançam apenas no final. Por termos

viaja a um ambiente primitivo como o de Everglades em busca de uma certeza

visto sua sobrevivência e amadurecimento através de diversas provações, temos

que se perdeu, uma harmonia perdida entre o homem e seu ambiente. Mas ele

maior confiança em sua capacidade de sobreviver às intempéries do futuro.

leva consigo seus próprios conflitos internos que transformam essa harmonia em

Essa não é uma conquista puramente formal. Ela sugere, na verdade,

algo inatingível. Burl Ives e Christopher Plummer representam reações opostas

uma expansão considerável do olhar do diretor. Nos dois filmes lançados após

à natureza, o primeiro querendo dominá-la, o segundo, servi-la. Ray busca uma

A bela do bas-fond — Sangue sobre a neve e O rei dos reis —, a angústia e confusão de

integração desses dois posicionamentos, no sentido de chegar a uma relação ide-

Juventude transviada ou Amargo triunfo continuam lá. Mas por vezes essa angústia

al do homem com a natureza, assim como entre homem e homem, relação esta

de ambos os filmes é substituída por uma apaixonada serenidade. Todos os filmes

em que a luta por dominação é resolvida no reconhecimento de interdependência.

de Ray equilibram um conflito imediato com uma unidade mais profunda, mas seu

Mas tal harmonia só pode ser encontrada quando um homem encontra a

trabalho mais recente vislumbra um lugar para o homem dentro dessa unidade.

razão de sua vida não na conquista da natureza ou de seus pares, mas de si mesmo. Pois essa é a única conquista que não implica numa derrota ou que necessita de uma vítima. Em O rei dos reis, Ray usa uma fusão, durante a sequência das tentações, que faz a figura de Jesus ser absorvida pela terra. É apenas aceitando os termos de sua relação consigo mesmo, e essa é a única maneira possível, que o homem consegue atingir um equilíbrio com seu ambiente. Essa não é uma pontuação simplesmente moral. Ray muitas vezes nos mostrou personagens que são psicologicamente incapazes de conquistar estabilidade e que, como os heróis de Amargo triunfo e Jornada tétrica, tornam-se vítimas da regra mais básica da natureza, a da sobrevivência do mais apto. Ray faz seus julgamentos morais de uma posição de compaixão e compreensão: embora nós reconheçamos os defeitos e conflitos que destroem nossos heróis, somos forçados a reconhecê-los em nós mesmos e em nossa sociedade. Seus filmes mais bem-sucedidos foram também os que pareciam ter postura mais pessimista: suas resoluções não eram convincentes quando não eram trágicas ou extremamente ambíguas.

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55 dias em Pequim

legitimidade no panorama do cinema-indústria e foi concretizada, anteriormente por Bronston, em El Cid (1961), com resultados positivos. Com a chantagem senti-

Ely Azeredo

1

mental de concentrar a história, arbitrariamente, no setor estrangeiro ameaçado de massacre, 55 dias em Pequim pinta com simpatia os representantes dos governos que pretendiam, aproveitando-se de um momento de fraqueza e fome, tirar fatias grossas do bolo chinês, constantemente atacado, através dos séculos, pelos diver-

As duas horas e meia exigidas para a apreciação de 55 dias em Pequim (55 Days

sos imperialismos. Os nacionalistas apelidados de boxers pelos ocidentais eram

at Peking, 1963) são inglórias e exaustivas. Por isso, e a fim de não estender o

realmente fanáticos, bárbaros, mas por que qualificá-los de bandidos (como hoje

comentário às proporções da alegoria militarista produzida por Samuel Bronston

os mais obscurantistas fazem com os vietcongues), por que ocultar suas razões e

em solo espanhol, evitaremos entrar na análise do roteiro menos que medíocre e

representar seus ritos místicos com a cena da tortura de um padre?

da direção conformada de Nicholas Ray.

Eram apenas quinhentos homens “contra o mais populoso país do mundo”,

É junho de 1900. Estamos na capital do Império Chinês. A esposa (Elizabeth

diz a sinopse. E resistiram por 55 dias até a chegada dos reforços que intimidaram

Sellars) do embaixador inglês (David Niven) preocupa-se com a arrumação das

o dragão de olhos rasgados. Dentro desse prazo, a sensual baronesa se fez enfer-

malas para a viagem de volta a Londres. A baronesa Natalie Ivanoff (Ava Gardner),

meira abnegada, o embaixador russo foi desmascarado como intrigante de alcova,

viúva sem dinheiro, alvo de um escândalo em torno de seu affaire com um general

o heroico major-fuzileiro transformou em espetáculo pirotécnico o arsenal do

chinês, procura meio de deixar Pequim, onde é vítima de constante assédio amo-

Império, Teresinha ficou órfã e foi adotada por Charlton Heston. Apoteose: desfiles

roso do cunhado, o ridículo embaixador russo (Kurt Kasznar). Um destacamento

militares e um concerto de hinos nacionais. 2

de fuzileiros americanos, tendo à frente Charlton Heston (major) e John Ireland (capitão), chega à cidade. A menina eurasiana Teresa (Lynne Sue Moon) arregala os olhos tristes pelas ruas, à espera do pai, o capitão dos fuzileiros. Estes são os principais personagens do drama dito histórico. O que está acontecendo de tão histórico em Pequim? Responde-nos o filme: bandidos, apelidados de boxers, agitam o país com atos de terrorismo e pressionam a imperatriz (Flora Robson), por intermédio de um príncipe vilanesco (Robert Helpmann), a massacrar os representantes dos países que fazem reivindicações territoriais à China. Esses bandidos, caracterizados por fitas e insígnias vermelhas, matam padres e proclamam a força latente da China no concerto das potências mundiais. São tão xenófobos, bárbaros e desafiadores das normas internacionais, que cercam os quarteirões das delegações estrangeiras em Pequim, procurando aniquilar todos, inclusive mulheres e crianças. Cabe aqui perguntar, como nas adivinhações populares: o que é, o que é? O produtor Bronston não diz, mas insinua: são as forças antecessoras da barbárie comunista de Mao Tsé-Tung e sua quadrilha. Começamos pela intenção política (afinal de contas, é fácil ser anticomunista inteligentemente) que produziu um espetáculo de ressonâncias militaristas e racistas, porque a intenção do filme superespetacular, para encher os olhos, tem

2. Foi o último terremoto do cinema industrial no território de Nicholas Ray. Os abalos começaram pelo gigantismo da produção, que encontrou dificuldades para obter injeções complementares de dólares. Houve também conflitos entre atores. As discussões entre Samuel Bronston e o diretor foram tão violentas que este abandonou o set e não retornou, mesmo sabendo que cometia um pecado imperdoável - sobretudo para os códigos de Hollywood. Pouco depois sofreu forte ataque cardíaco. O filme foi concluído por dois

1. Originalmente publicado no Jornal do Brasil, em 7 de abril de 1966.

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diretores convencionais: Andrew Marton e Guy Green. (N.A)

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55 dias em Pequim

é o médico humano e compreensivo. Num elenco que tem tantos nomes famosos, domina com sua arte e imponência interpretativa, Flora Robson, como a imperatriz Tzu-Hsi, que, quando vê toda a luta de seu povo fracassada, exclama angustiada:

Ironides Rodrigues

1

“Minha dinastia está arruinada”, tendo em volta os deuses do templo. Uma frase de sugestiva beleza é dita nesta fita irregular: “Deixe a China adormecida, porque, se acordar, todo o mundo tremerá.” Em suas duas horas e tanto de projeção, 55 dias em Pequim (55 Days in Peking, 1963), de Nicholas Ray, é pura e simplesmente uma justificação cínica da intervenção da Rússia, França, Inglaterra, Estados Unidos e outras potências da época, em território chinês, em 1900. O roteiro de Philippe Jordan apregoa a todo momento que o interesse dessas nações está acima da milenária civilização chinesa, que por meio de alguns patriotas, os boxers, luta desesperadamente com armas rudimentares contra um inimigo poderosamente equipado. Um chinês mesmo exclama a outro chinês, numa cena expressiva, “que são os estrangeiros que lutam e gritam dizendo ao mesmo tempo: A China é nossa”. Feito em tom de superespetáculo, com fotografia vistosa, em cores de Jack Hildyard e uma partitura funcional de Dimitri Tiomkin, a fita, plasticamente, é benfeita, com várias sequências de bom cinema, como a do imponente baile, na embaixada britânica, as dos combates das tropas aliadas com os boxers, isso sem falar na magnífica reconstituição da Pequim do início do século.

II Pequim, com seus pagodes e exóticas casas de madeira, cérebro de uma nação milenar de cem milhões de almas, por esse tempo. Não fosse Nicholas Ray um bom artesão de cinema e um notório controlador de atores, todo o elenco de 55 dias em Pequim estaria recitando, no filme, os diálogos mais sediços e reacionários possíveis. Desta galeria toda, a mais simpática personagem é Ava Gardner, como a baronesa Natalie, de passado duvidoso, mas que luta pela causa chinesa a ponto de morrer, como enfermeira de um hospital, após ajudar os feridos e consolá-los. Charlton Heston é um soldado que luta sem princípios, considerando os boxers simples bandidos. David Niven é o embaixador Arthur, que defende a hegemonia britânica e prepara a resistência imperialista, em 55 dias. Paul Lukas

1. Originalmente publicado em duas partes no jornal A Luta Democrática, em 1966.

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Bronston em Pequim

Helpmann, Kurt Kasznar, Paul Lukas, Elizabeth Sellars, Jacques Sernas, Ichizo Itani, Philippe Le Roy, Eric Pohlmann, Lynne Sue Moon, Massino Serato, Geoffry

Paulo Perdigão

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Baydon, Joseph Furst, Walter Gottel, Alfred Lynch, Alfredo Mayo, Martin Miller, Conchita Montes, José Nieto, Aram Stepham, Robert Urquhart, R.S.M. Brittain, Fernando Sancho, Carlos Casaravilla, André Esterhazy, Felix Defauce, Michael Chow, Mitchell Kowal, Jerome Thor. E mais cerca de sete mil extras em Super

Samuel Bronston, com seu quartel-general montado na Espanha, superproduziu

Technirama e Technicolor. (Samuel Bronston Production; Rank Filmes, 1962).

55 dias em Pequim (55 Days at Peking, 1963) em 1962, logo após o êxito artísticocomercial de El Cid (1961). O espetáculo (que estamos assistindo com quatro anos de atraso) focaliza o levante dos boxers no verão de 1900: um grupo de fanáticos, com apoio do exército imperial chinês, cercou durante 55 dias a cidade tártara de Pequim. Durante esse tempo processou-se violento jogo de ataque e resistência, culminando na derrota da imperatriz Tzu-Hsi e do presidente do Yamen. Bronston, como de hábito, dispensou à produção todos os requintes espetaculares, reconstituindo até em Las Matas (a 16 quilômetros de Madri) as ruas, as casas, as pontes e os rios da milenar Pequim, paisagem real dos acontecimentos. Na direção ficou Nicholas Ray, cineasta que havia passado pela fase de criação artística (Juventude transviada [Rebel Without a Cause, 1955]) e depois se eclipsado. Tanto Ray quanto o roteirista Philip Yordan vinham de outro supershow histórico, o frustrado O rei dos reis (King of Kings, 1961), tendo Yordan colaborado com Bronston, ainda, em El Cid e, posteriormente, em A queda do Império Romano (The Fall of the Roman Empire, 1964). Outros nomes do staff de Bronston figuram na ficha técnica: o músico Dimitri Tiomkin, o cenógrafo Veniero Colasanti, o cameraman Jack Hildyard. Na direção da segunda unidade (responsável pelas grandes montagens) há um titular importante – Andrew Marton, veterano especialista, autor quase anônimo das melhores coisas de A glória de um covarde (The Red Badge of Courage, 1955), Adeus às armas (A Farewell to Arms, 1957), Ben-Hur (1959) e Cleópatra (1963). Marton é também diretor – e o excelente diretor que se viu no drama de guerra Heróis para a eternidade (The Thin Red Line, 1964). Charlton Heston, depois de Ben-Hur e El Cid, antes de Juramento de Vingança (Major Dundee, 1965) e de Miguel Angelo (Agonia e êxtase [The Agony and the Ecstasy, 1965]), interpreta o chefe do destacamento da Marinha americana em Pequim, por quem se apaixona Ava Gardner, baronesa russa. David Niven faz o plenipotenciário inglês na corte de Tzu-Hsi, a imperatriz, desempenhada pela veterana Flora Robson. Outros no elenco: John Ireland, Harry Andrews, Leo Genn, Robert

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Originalmente publicado no jornal Diário de Notícias, em 6 de maio de 1966.

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55 dias em Pequim

-sabilidade dos roteiristas deve-se juntar a do produtor Samuel Bronston e a do diretor Nicholas Ray, o segundo também intérprete do papel de ministro dos EUA.

Alex Viany

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Com a ajud de Andrew Marton e Noel Howard, Ray encenou lindamente algumas cenas de pirotecnia e massas. 55 dias em Pequim, diz-se, custou cerca de nove milhões de dólares.

Segundo a crítica de Judith Crist, do Herald Tribune, de Nova York, 55 dias em Pequim (55 Days at Peking, 1963) é o máximo em questão de exotismo: trata-se, de fato, de um western manchu feito na Espanha. Já um crítico britânico, Peter John Dyer, escrevendo em Monthly Film Bulletin, diz que a caracterização chinesa de Robert Helpmann é um espantoso “travesti” de Gloria Swanson. Aqui de meu cantinho, acrescento que o roteiro dá a impressão de ter sido elaborado por Sax Rohmer, criador do nefando Fu Manchu, com um adjutório de Rudyard Kipling e de outros cantores das glórias do colonialismo. Os roteiristas Philip Yordan, Bernard Gordon e Robert Hamer recorrem até a Napoleão, para explicar o temperamento chinês, mas, na verdade, suas simpatias estão sempre com os heróis ocidentais, que durante 55 dias resistiram em Pequim ao assédio das hordas de boxers. Apesar da proclamação da imperatriz Flora Robson, de que 13 das 16 províncias chinesas estão ocupadas por potências estrangeiras, o filme não só aceita como procura defender o colonialismo. A ação desenrola-se em 1900, quando uma sociedade secreta de nacionalistas chineses — a li ho chuã — levantou grande parte da população contra as forças estrangeiras de ocupação. Até o nome da “seita da justa harmonia” foi mal compreendido pelos ocidentais, que o traduziram como “punhos justos e harmoniosos”, chegando por fim, através dos punhos, ao apodo de boxers. Toda essa incompreensão, essa má vontade, está refletida no filme em geral — e nas principais personagens chinesas em particular. Robert Helpmann lembra mesmo Gloria Swanson a bancar Fu Manchu; Flora Robson, por outro lado, optou pela famosa inescrutabilidade oriental; e Leo Genn deve ter tido seu papel severamente cortado, já que nem sequer chegamos a identificá-lo como personagem. Há ainda uma linda garota chinesa, Lynne Sue Moon, que o empedernido fuzileiro ianque, Charlton Heston, termina por adotar. As personagens ocidentais são tão ridículas quanto as orientais, não se podendo culpar os atores pela insuficiência de suas caracterizações. Mas à respon-

1. Originalmente publicado no jornal Ultima Hora, em 26 de março de 1966.

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Johnny Guitar

Os homens existem como ponto agudo da violência em permanente estado de ebulição. Johnny Guitar, o pistoleiro que Vienna contrata para protegê-la e que já

Fernando Ferreira

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existiu em seu passado, é um homem de ação, de incrível agilidade no gatilho, um homem violento, como outros personagens de Ray, que, incompreendido, torna-se amargurado e solitário. Em torno deste personagem, como do de Kid (Scott Brady) e do adolescente Turkey, o diretor aprofunda a sua sensibilidade dramática no

Se alguém precisa ainda de argumentos contra a onda de westerns italianos defor-

sentido da perspectiva moral de toda a sua obra, que é, caracteristicamente, a de

madores que nos invadiu o mercado e que ameaça propagar-se em 1967, que vá

um não conformista, fato evidente até em suas realizações mais frustradas, como

ver (ou rever) este excelente Johnny Guitar (1954), realizado por Nicholas Ray e

O rei dos reis (King of Kings, 1961).

que, num momento de inspiração, a Art-Films resolveu reprisar. Parece-nos que

Western que, claramente, não se contenta apenas com a fidelidade ao gênero,

este filme torna bem claro que, quando se trata de reinventar o gênero, a tarefa

concebido com um sentido do exótico e da sofisticação e com uma fixação inte-

deve ainda caber aos americanos, os únicos capazes de bem compreendê-lo em

lectual evidente no requintado (e excelente) diálogo do roteirista Philip Yordan,

termos de realização.

como na imagem da tragédia clássica que traz à lembrança em vários momentos,

Conservando do gênero as suas várias determinantes, Nicholas Ray ambicionou, entretanto, fazer em Johnny Guitar um western que fosse diferente ou,

Johnny Guitar é, sem pretender o gosto do contraste, um excelente exemplar do gênero e um dos melhores momentos da carreira do seu diretor.

como já se observou, que não fosse apenas um western. A história, que a julgar pelo que o próprio diretor informa, foi extraída de um original bem pouco significativo de Roy Chanslor, coloca a oposição entre justiça e arbítrio, característica da temática do western, centrada no comportamento de duas mulheres que, no final, segundo o modelo clássico, terão de se enfrentar num duelo de armas. Uma das mulheres, Vienna, é dona de um saloon com o qual espera enriquecer logo que a estrada de ferro venha a passar pela região, o que contraria os interesses da outra (Emma), a qual se coloca à frente dos grandes proprietários de terras que não querem ver atingidos seus privilégios com a chegada de forasteiros — colonos e criadores em potencial, competidores — a disputar-lhes o domínio das terras. Emma, além do mais, é uma mulher frustrada, que vê no mundanismo e na feminilidade de Vienna uma agressão ao sentido de sua existência, condicionada pelo meio rude e violento. Esta personagem — que, de resto, o diretor confessa não ter podido aprofundar, o que se mostra evidente — foi marcada por Ray com uma dominante de exasperação que Mercedes McCambridge soube compreender em suas andanças frenéticas pelo quadro da ação como uma fera pronta ao ataque. Vienna, pelo contrário, mais se assemelha ao gato vivendo entre rendas e almofadas, uma Joan Crawford requintadamente maquiada inserida num décor (o saloon) extremamente sofisticado, e pronta a mostrar as unhas e lutar por um decálogo de existência.

1. Originalmente publicado no jornal O Globo, em 1967.

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dois

1970 – 1989


Todos os lugares solitários: os heróis de Nicholas Ray Thomas Elsaesser 1

O debate sobre a teoria do autor, quando foi introduzido pela primeira vez no mundo de fala inglesa nos anos 1960, por meio de Andrew Sarris ou pelos ensaios na revista Movie, logo ressaltou a necessidade de se ir além de uma mera catalogação dos temas de um diretor. Eles, em si próprios, normalmente são pouco mais que sinalizações no caminho para a compreensão da obra de um autor; geralmente não tão diferentes das situações convencionalizadas de conflito tal como são codificadas nas fórmulas dos gêneros de Hollywood. Portanto, o que me interessa em Ray não são tanto os temas em si, mas os padrões maiores nos quais eles aparecem em seus filmes; e os desenvolvimentos ou variações às quais eles são submetidos ao longo de sua carreira. Além disso, eu gostaria de fazer algumas sugestões de como esses temas se relacionam com sua típica mise-en-scène. A importância de Ray como diretor de cinema se dá essencialmente no nível de sua mise-en-scène e não no nível das ideias, como ele próprio admitiu: “Eu não sou um sujeito muito intelectual, embora tenha levado um tempo para aceitar isso.” Mesmo com os temas, porém, pode-se proveitosamente fazer algumas perguntas. Por exemplo, por que a violência em Fora das grades (Run for Cover, 1955) difere daquela em Johnny Guitar (1954), ou qual é o significado do fato de o adolescente solitário-tornado-delinquente — tão central aos primeiros trabalhos de Ray — transportar-se mais e mais em direção à periferia, até que em A bela do bas-fond (Party Girl, 1958) a jovem Cookie La Motte (Corey Allen) não é nada mais que um pastiche, um contraponto quase cômico para um conflito que está claramente focado em outro lugar; no casal adulto, por exemplo. Novamente, como os primeiros (jovens) casais diferem daqueles em Paixão de bravo (The Lusty Men, 1952) ou A bela do bas-fond, o que exatamente acontece com o sujeito solitário nos filmes subsequentes e o que a inversão de alguns temas em, por exemplo, Sangue sobre a neve (The Savage Innocents, 1960) indica a respeito da visão mutante de

1.Originalmente publicado em duas partes na revista mensal Brighton Film Review, nos números 19 e 20, de abril e maio de 1970, sob os títulos Nicholas Ray (Part I ) e Nicholas Ray (Part II ), respectivamente.Tradução de Augusto Savietto. (N.E.)

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Ray sobre “vida”, “lugares ermos” e “natureza”, modificando tanto o seu próprio

pressão de um relacionamento maduro com Laurel Gray (Gloria Grahame); Davey

abismo binário quanto aquele de Hollywood entre natureza e cultura?

em Fora das grades se junta aos bandidos porque eles se sentem humilhados pela bondade de Matt (James Cagney); e Jesse James (Robert Wagner) em Quem foi Jesse James? (The True Story of Jesse James, 1956) torna-se um fora da lei devido ao seu

Solidão e violência

senso de dignidade e justiça. Os personagens de Ray são fundamentalmente carentes de liberdade porque suas ações constantemente ocultam as necessidades que

Os primeiros e mais adolescentes heróis são facilmente identificáveis: eles vivem

as desencadearam. É por isso que eles tão frequentemente têm que ir “para fora”

num mundo de orgulho e desconfiança, agressão e violência, o que os aprisiona

ou “embora” a fim de encontrar sua identidade; porque Wes (Arthur Kennedy) em

tanto quanto os protege. Esta é a posição de Nick (John Derek) em O crime não

Paixão de bravo abandona seu emprego fixo na fazenda e ironicamente junta-se

compensa (Knock on Any Door, 1949) e Davey (também John Derek) em Fora

aos suspeitos peões de rodeio, para se estabelecer e “ter um lugar para si próprio”.

das grades, Danny (Sumner Williams) em Cinzas que queimam (On Dangerous

Da mesma forma, Jim Wilson em Cinzas que queimam tem que deixar a cidade,

Ground), e Plato (Sal Mineo) em Juventude transviada (Rebel Without a Cause,

e dirige até um cenário isolado pela neve para se encontrar. No centro do dilema

1955). Na medida em que adultos reagem a situações ameaçadores com o mesmo

do herói de Ray costuma haver uma permanente porém altamente significativa

tipo de agressividade cega e instintiva, eles também são adolescentes: o roteirista

indecisão sobre os verdadeiros motivos de seus atos e o lugar de sua revolta.

Dixon Steele (Humphrey Bogart) em No silêncio da noite (In a Lonely Place, 1950)

Introspecção, à maneira dos personagens europeus que encaram dilemas simi-

ou Jim Wilson (Robert Ryan) em Cinzas que queimam. No princípio, seu isolamento

larmente existenciais, nunca parece ser uma opção.

agressivo os torna inadequados para um papel social: Steele é suspeito de um as-

Isso se deve ao fato de que a solidão dos primeiros heróis de Ray é acima

sassinato que não cometeu, e Wilson está prestes a perder seu emprego na polícia

de tudo uma experiência emocional: eles se sentem injustiçados, isolados, in-

porque em várias ocasiões ele agredira um suspeito. Sua violência é a violência da

compreendidos e têm medo de si mesmos tanto quanto de outros. Sua revolta

frustração e da discórdia interna. Assim, sua experiência de sociedade é negativa,

é desfocada, difusa e instintiva. É nisto que eles diferem dos primeiros protago-

e sua resposta, subversiva. Frente a uma vida imperfeita e decisões difíceis, eles

nistas. Com Johnny Guitar e Fora das grades, Ray parece se tornar gradativa-

tendem a correr e a precipitar-se para lugares distantes da violência e do crime

mente crítico de seus adolescentes violentos: enquanto que nos primeiros filmes

ao invés de confrontar seus próprios eus interiores.

a corrupção de sua sensibilidade, sua inclinação pela violência e sua caída para

O fora da lei em Ray — como, de fato, em tantos outros filmes norte-americanos

o crime parecem justificadas pela imagem apresentada de um mundo rigorosa-

— personifica uma recusa existencial. Mas é também a expressão de uma confusão

mente maligno ou de uma sociedade corrupta, onde a fuga é a única saída — por

existencial: os rebeldes de Ray não só se apavoram; sua agressão é geralmente pura

exemplo, em Amarga esperança (They Live by Night, 1948), esta resposta à vida

autoagressão cercada pela má-fé. Isto ressoa bem numa cena em Johnny Guitar,

torna-se o sinal de uma falha mortal nos heróis que se sucederiam, já insinuados

quando Turkey (Ben Cooper), ao tentar mostrar seu amor por Vienna provando

em O crime não compensa, mas somente explorados por completo em Fora das

que é homem, atira em alguns copos no bar. De repente, Johnny aparece, dispara

grades, em que o herói se torna criminoso, em grande parte, por compaixão de

na direção de Turkey para tirar-lhe o revólver das mãos até que sua arma esvazia.

si próprio e por uma sensibilidade mórbida. O título Run for cover 2 é sintomático

Vienna, furiosa, repreende a ambos e os dois ficam ali, como meninos depois de

e representa uma situação recorrente em Ray: muitos dos protagonistas têm escon-

uma brincadeira boba: sua violência demonstra sua imaturidade, sua inadequação

derijos secretos, lugares privilegiados onde buscam proteção não só da sociedade

para o amor que tanto desejam da mulher que amam.

mas também da autocrítica. O chalé em Amarga esperança, a cabana de Danny

Desta forma, as posturas apresentadas pelos protagonistas em seu isolamento

em Cinzas que queimam, a casa abandonada de Plato em Juventude transviada,

são intensas mas ao mesmo tempo falsas, pois geralmente manifestam o inverso do

as ruínas astecas em Fora das grades, o esconderijo da gangue “do outro lado” da

que eles realmente sentem: Plato em Juventude transviada mata seus animais por-

cachoeira em Johnny Guitar: lugares onde os protagonistas buscam lar e abrigo,

que é incapaz de expressar seu amor por Jim (James Dean) e Judy (Natalie Wood); Dixon Steele quase mata um motorista descuidado porque ele não pode suportar a

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2. Literalmente, buscar refúgio, cobertura, abrigo. (N.E.)

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somente para descobrir que, no final, são prisões. A quebra com o ambiente habi-

ção mútua (Nick e Morton em O crime não compensa, Wes e Jeff [Robert Mitchum]

tual, a ruptura com a sociedade, em vez de representar um momento de autorre-

em Paixão de bravo, Thomas Farrell [Robert Taylor] e Rico Angelo [Lee J. Cobb]

conhecimento, torna-se a expressão da fraqueza: com medo de se perderem num

em A bela do bas-fond) ou de uma intensa e ambígua fascinação, como a rápi-

mundo hostil, eles fogem mais e mais para dentro de seus próprios mundos, para

da cena entre Jim Wilson e Davey em Cinzas que queimam, Jim e Buzz (Corey

além dos quais está um vazio: Danny, eventualmente conduzido para fora de sua

Allen) em Juventude transviada, capitão Leith (Richard Burton) e major Brand

cabana, pode apenas escalar um rochedo inóspito, do qual cai para a sua morte;

(Curd Jürgens) em Amargo triunfo (Bitter Victory, 1957), e, é claro, Walt Murdoch

Davey morre nas ruínas astecas, e em Johnny Guitar, a terra literamente se parte

(Christopher Plummer) e Cottonmouth (Burl Ives) em Jornada tétrica (Wind Across

ao meio e força Dancin’ Kid (Scott Brady) de volta para seu abrigo onde é final-

the Everglades, 1958).

mente morto por Emma (Mercedes McCambridge). Assim. o esconderijo, o recuo,

Com esses relacionamentos, Ray parece constantemente sublinhar a possibi-

trai o herói porque ele enganou a si próprio a respeito de sua autossuficiência.

lidade de uma escolha fundamental na vida; uma escolha, porém, que se articula

Em Juventude transviada, sua traição dupla é elevada a um símbolo metafísico:

nos filmes como um amplo espectro de atitudes específicas, variando da total

primeiro a gangue rival invade a casa deserta para retirar Plato de seu mundo

rebelião à total submissão. Amizade, dependência e fascinação são as formas hu-

encantado, e então ele é forçado a procurar refúgio no planetário, metáfora de um

manas em que essas opções são testadas. Nos primeiros filmes, a linha divisória é

universo indiferente, onde acaba sendo morto a tiros pela polícia.

muito mais cuidadosamente desenhada: por exemplo, em O crime não compensa,

É essa situação psicológica de “fugir” e “proteção” que organiza o uso cinema-

o advogado Morton (Humphrey Bogart) defende Nick por uma mistura de obriga-

tográfico de Ray de edifícios isolados (por exemplo, o saloon de Vienna “no meio

ção, interesse profissional e simpatia pessoal. Mas os dois homens nunca chegam

do nada”), de espaços fechados (o pátio em No silêncio da noite) e de salas, in-

a uma verdadeira compreensão do outro. A defesa de Morton se baseia numa

teriores, portas e janelas. Pois é característico do herói de Ray — e indicativo de

suposição falsa de inocência, e Nick acaba desprezando Morton por ele ter se

sua natureza dividida — que ele pareça nunca reconhecer-se num dado local,

aplicado ao establishment como um compromisso fácil. Em A bela do bas-fond,

e ainda assim tente incessantemente estabelecer um mundo privado, ou mapear

é o personagem de Morton que se torna o herói central, mas neste ponto o tema

um território que seja reconhecível e proprietariamente seu. As reações violentas

voltou ao início, de forma que a “opção fácil” acaba consistindo numa vida de

a um ambiente, como por exemplo o surto de violência de Jim na casa de seu pai,

violência e criminalidade.

em que ele acaba saindo de supetão da porta da varanda (Juventude transviada);

Há uma cena crucial em O crime não compensa que dramatiza as posições

ou Davey quebrando o espelho com a cadeira na qual ele deveria se apoiar (Fora

mutuamente irreconciliáveis: Morton e sua esposa levam Nick e Emma (Allene

das grades): estas cenas sempre assinalam a recusa do herói a reconhecer e aceitar

Roberts) para um restaurante. Enquanto eles brindam ao futuro do jovem casal,

a imagem de si mesmo que o cenário e a cenografia refletem.

a câmera se move por trás dos personagens, para enquadrar Morton e sua esposa olhando para Nick e Emma, que estão absortos um no outro, enquanto que no plano de fundo um garçom está servindo brandy sobre um filé e acendendo fogo sobre ele.

Amizade e maturidade

A cena é filmada de forma a sublinhar a divisão essencial. O casal está visualmente isolado; eles estão num mundo só deles, contrapostos às chamas de uma intensida-

Na medida em que a representação de Ray da sociedade se torna mais complexa

de ambígua, enquanto que a perspectiva do advogado é rigorosamente identificada

e diferenciada, a relação entre o protagonista e aqueles que o cercam também

com a nossa: meros espectadores de um destino que pode ser interpretado, mas do

evolui para a ambivalência central dos filmes. Nos melhores trabalhos de Ray,

qual tanto o advogado quanto o espectador estão igualmente removidos.

portanto, os violentos individualistas são invariavelmente contrabalançados por

Num filme como Fora das grades, por outro lado, as respectivas posições dos

personagens cuja maquiagem emocional e experiências similares permitem ainda

dois protagonistas aparecem como complementares: rebelião e aceitação têm uma

assim a evolução para uma direção diferente. O relacionamento entre tais figu-

função mutuamente educativa. O tema é o do adolescente que tem que crescer

ras complementares ou é de amizade e cumplicidade (Jim e Plato em Juventude

para se juntar a uma sociedade, o que é desprezível, devido à covardia moral e

transviada, Davey e Matt no começo de Fora das grades), de dependência e obriga-

ao conformismo, assim como à violência endêmica. Em Ray, a sociedade aparece

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sempre como o grupo, a gangue ou a quadrilha, caçando o indivíduo, seja ele

ao seu redor torna-se uma diferença de consciência moral e não simplesmente

culpado ou não. Ray sublinha esta divisão visualmente: um rio, uma tempestade

de sensibilidade. Jim é o primeiro herói a admitir explicitamente os valores da

de areia, a cerca de um curral, sempre parecem formar um abismo e forçar os

autorreflexão e da autodisciplina. O ideal de uma existência reconciliada é mais

personagens a encontrar suas respostas fora da sociedade. Até na cena final de

aparente num filme posterior, A bela do bas-fond, mas Johnny em Johnny Guitar

Fora das grades, Matt, tendo devolvido o dinheiro, tem que atravessar a multidão.

já é um rebelde que deseja “vir para casa”, e que aceita que, para isso, é necessário

Na medida em que a câmera sobe, ele cruza a barreira e vai embora com sua

que se reviva um passado enterrado. Desde a cena de abertura em que Johnny

mulher. O filme não advoga a submissão, embora que, no destino de Davey, Ray

assiste impassivelmente à diligência sendo assaltada, até o momento em que ele

afirme claramente a necessidade de “crescer”, para se alcançar uma identidade

corta a corda ao redor do pescoço de Vienna, sua trajetória é a de um envolvimen-

pessoal e chegar a um acordo com a sociedade, por mais que ela tenha lhe feito

to progressivo e — de acordo com as regras do gênero, embora cuidadosamente

injustiça. O herói deve sublimar a violência, que é a resposta natural para uma

preparada pelo unicamente particularizante retrato de Johnny feito pelo próprio

situação desumana. Ray reconhece o papel do rebelde somente na medida em

Ray — de assunção de responsabilidade pessoal.

que ele é capaz de “aprender”, em algum momento, a dominar seu temperamento

Esse desejo de encontrar um lugar para descansar é um elemento constante

e interiorizar sua revolta. Senão, a violência se torna a fraqueza, o sinal de auto-

em Ray, mas, dramaturgicamente, também é a fonte de uma tensão contínua:

compaixão e o resultado da hipersensibilidade. O liberalismo político de Ray se

a conjunção de violência e solidão no psicológico dos heróis os coloca numa re-

apresenta com muito mais clareza no endosso de um contrato social: nem mesmo

lação altamente ambivalente com a sociedade em que vivem. Pois a revolta dos

uma sociedade mal organizada é desculpa para uma postura inteiramente associal.

personagens de Ray contra o mundo à sua volta é fundamentalmente falha em

“Maturidade” em Fora das grades aparece como a moralidade do autointeresse

seu início. Como as aspirações que norteiam sua violência são contraditórias,

esclarecido, mas é importante também ver a crítica, que é implícita na apresen-

seu procedimento os empurra em duas direções ao mesmo tempo. Eles rejei-

tação de Matt, especialmente em seu papel como o “pai” de Davey. Sua tentativa

tam a sociedade em nome de um mundo interior obscuramente apreendido — daí

de moldar Davey à sua imagem, para impor-lhe uma existência ordenada, serena

sua hipersensibilidade, além de sua arrogância de forasteiro —, embora, devido à

e autocomplacente (um impulso recorrente nas figuras paternas de Ray), sim-

sua necessidade interior de comunicação e “abertura”, eles estejam ao mesmo tem-

plesmente empurra Davey mais para dentro do mundo onde ele aceita o bandido

po tentando desesperadamente integrar-se, adaptar-se e aceitar “a vida como ela

como seu verdadeiro pai. A questão sobre Matt é explicitada na confrontação final,

é”; por exemplo, submetendo-se aos mecanismos sociais existentes ao viver uma

em que Davey salva Matt ao matar o bandito. Mas, como ele já havia perdido a fé

vida “normal”. O comentário de Ray a respeito do que ele achava tanto fascinante

em Davey, Matt interpreta mal o gesto e atira em Davey. Recusando-se a permitir

quanto perturbador sobre James Dean confirmava isto: “Ele nunca poderia resolver

a “alteridade” de Davey e a dar espaço a ela, Matt — como, de certa forma, ele faz

o conflito entre a necessidade de se doar e o medo de ceder a seus próprios senti-

ao longo de todo o filme — impede que ele viva sob seu próprio código; assumindo,

mentos; ele tinha uma vulnerabilidade tão profunda que era quase perturbadora.”

desta forma, a responsabilidade. De uma forma menos direta, Matt prefigura Ed

Pode-se encontrar essa atração dupla em todos os individualistas revoltados

Avery (James Mason), o pai tirano de Delírio de loucura (Bigger Than Life, 1956).

nos filmes de Ray cujo objetivo último parece ser viver uma vida feliz em família, ou ao menos estabelecer um laço sólido. Este é o caso de Bowie (Farley Granger) e Keechie (Cathy O’Donnell) em Amarga esperança, de Wes em Paixão de bravo,

O rebelde e a sociedade

de Jim em Juventude transviada. Mas a fissura que encerra essas ambições modestas é mais clara em Quem foi Jesse James?. A carreira de Jesse James como

Após Fora das grades, os personagens centrais aparecem mais e mais como figuras

um fora da lei ironicamente culmina na compra de uma respeitável propriedade e

que buscam contemporização e reconciliação, contra a violenta autoafirmação dos

no ato de tornar-se um estimado membro da comunidade. Mas a aceitação da “vida

primeiros protagonistas. Em Juventude transviada, por exemplo, o sujeito violento

como ela é”, o retorno à normalidade implicada por este desaparecimento súbito,

e solitário é alguém à margem, enquanto o problema de Jim ultrapassa a simples

tem o efeito contrário: ela é extravagantemente alimentada pelo mito romântico

revolta. Para ele — e para outros heróis subsequentes —, a diferença do mundo

do fora da lei. Enquanto busca paz e integração na sociedade (“Lar doce lar”, diz

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o bordado), é a imagem negativa de sua própria revolta (sua “fama” como bandido)

em Juventude transviada, ou Johnny Guitar descarregando sua arma no saloon

que o alcança na figura de Bob Ford. O rebelde paga o preço — não por sua rebe-

de Vienna: estas são situações típicas de Ray; a ênfase é sempre colocada no mo-

lião, mas por seu desejo de viver, incógnito, uma vida normal e não espetacular.

mento de total impotência, de desespero interno que sucede tais explosões de

Neste caso, a aparente progressão em direção à reconciliação, à maturidade

intensidade. A razão é simples de se enxergar. Os heróis de Fuller, o que quer que

e à aceitação nos filmes de Ray deve ser compreendida como tranquila em contra-

eles experimentem, são invejavelmente livres do sentimento de culpa. Os heróis

posição à tendência contrária nos heróis de viver sua revolta até o seu paroxismo.

de Ray são tão obcecados por esse sentimento que sua violência tende a tornar-se

Em Delírio de loucura e Jornada tétrica, esta dicotomia básica na visão de Ray

masoquista, direcionada tanto para eles próprios quanto para outros.

tem máxima expressão. Pois nestes filmes, os heróis-vilões vivem seu isolamento

O fato de que há um elemento de culpa na rebelião dos heróis de Ray aju-

como uma revolta quase metafísica contra a própria criação, e sua violência se

da a compreender a posição particular de Delírio de loucura na obra do diretor.

torna elemental e dionisíaca: tanto Avery quanto Cottonmouth tentam impor uma

Ed Avery, o herói do filme e imbuído por Mason com uma “falha” verdadeiramente

order amoral, “natural” no mundo humano — não um “retorno” à natureza, mas

trágica, é o primeiro rebelde adulto a tentar confrontar sua culpa, ao questionar

um pacto desafiador e autodestrutivo com ela.

explicitamente as normas culturais, os mecanismos sociais e até os valores reli-

Geralmente, os heróis de Ray são inevitavelmente pegos em sua revolta contra

giosos que fomentam no indivíduo uma crença nas virtudes da maturidade e da

a sociedade. Ou eles tentam escapar da sociedade como um todo e recuam para um

aceitação de uma ordem mais elevada. Pois em Delírio de loucura as demandas

mundo de tranquilidade — neste caso eles próprios são condenados, e suas ações

ideológicas da ordem simbólica, como encarnadas na educação, na democracia e

tornam-se suicidas. Ou a revolta se revela como uma tentativa de revalidar ideais

na resolução negociada do conflito, as quais encontramos em boa parte dos filmes

degradados, ratificados (porém traídos) pelo próprio sistema social, e então sua

de Ray como o horizonte implícito, é aqui denunciada não por um rebelde jovial,

reconciliação é comprada a um preço exorbitante: Jess tem que morrer por Wes e

mas por um adulto completamente integrado, cuja visão é tanto justificada quanto

sua esposa em Paixão de bravo, da mesma forma que Plato morre para Jim e Judy

distorcida, cujo personagem é tanto heroico quanto desacreditado. Avery, para

em Juventude transviada. Esses rebeldes tentam viver os valores explícitos de sua

quem um vício gradual em cortisona revela a insuportável mesquinharia de sua

sociedade, enquanto que suas próprias naturezas — ou seus alteregos — ocultam

vida pessoal, inverte a dinâmica da habitual jornada moral de Ray. Sua revolta

qualquer possibilidade de reconciliação permanente. O segredo dos heróis de Ray

contra os ideais de educação, contra a instituição da família, contra os valores

é que eles são suspensos entre um individualismo inviável e um conformismo

democráticos da América liberal representa um espelho para os adultos recon-

igualmente inviável.

ciliados ou os adolescentes amadurecidos ao final de Paixão de bravo, Fora das

Essa tensão é mais óbvia se olhamos mais atentamente para a natureza da

grades ou Johnny Guitar. Aqui, o próprio processo de educação aparece como uma

violência nos filmes de Ray. Como já mencionado, a rebelião violenta é quase

forma de manipulação sinistra, unha e carne com o conformismo e a intolerância,

invariavelmente um sinal de fraqueza e de impotência nos personagens de Ray:

designadas para sufocar e suprimir todo impulso vital e para prevenir a mudança

através da violência, eles também buscam a punição, e portanto a submissão.

social. Avery, agora tão perigoso para si quanto para os outros, não é meramente

Contraste a violência do herói de Ray com aquela do herói de Fuller, e a diferença é

uma vítima de uma medicação cujos efeitos colaterais não são totalmente com-

surpreendente. Os personagens de Fuller, especialmente em filmes como Capacete

preendidos: a cortisona lhe dá uma “lucidez” mortal que faz com que adultos ajus-

de aço (The Steel Helmet, 1951), Renegando meu sangue (Run of the Arrow, 1957),

tados apareçam como o trágico produto de uma sociedade que acredita no valor

ou Paixões que alucinam (Shock Corridor, 1963), infringem a norma social, so-

absoluto da sublimação, e que admite a vitalidade somente na forma de objetivos

brepujam-se como os de Ray, mas eles experimentam o momento de transgressão

socialmente sancionados, como a procriação.

como um momento de liberdade, pois este permite a eles que vivam de forma não

Há uma cena, como aquela em Fora das grades já mencionada, em que Avery

ambígua as contradições inerentes numa situação objetiva, ao invés de representar

quebra o espelho do armário de seu banheiro para pegar a cortisona. Aqui, a droga

seus eus divididos.

não é só a promessa de alívio da dor física, mas também a certeza de uma visão

Em Ray, portanto, as contradições são dramatizadas psicologicamente — como

mais pura e lúcida. Desta forma, o espelho reflete uma imagem sua tanto verda-

subjetivas, internas. Os acessos de violência de Davey em Fora das grades, o racha

deira quanto falsa: verdadeira, na medida em que ele é um pater familias, tem um

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papel e uma responsabilidade social e é, portanto, moralmente capaz de responder

ambiguidade na oposição ou rejeição de seus heróis ao mundo: Jornada tétrica não

por seus atos; mas falsa porque sua idade adulta fez dele menor que seu verdadeiro

tem um herói central, mas examina a fascinação que dois homens de convicções

potencial, privando-o de sua paixão, de sua visão e de seu entusiasmo. Delírio de

completamente diferentes sentem um pelo outro, cada um protestando violenta-

loucura transporta esta temática nietzscheana para dentro de um contexto norte-

mente contra uma sociedade degradada, ao mesmo tempo em que são eles próprios

-americano bastante específico, o que também documenta sua historicidade. Feito

rebeldes falhos e degradados. Contra a revolta estética de Walt Murdoch, Ray

em 1956, ele reflete o dilema da inteligência liberal traumatizada pelo totalitarismo

estabelece a amoralidade de Cottonmouth. Cottonmouth, completamente des-

e agora temerosa não somente da destruição nuclear, mas também dos efeitos

denhoso da sociedade organizada, orgulhoso por estar vivendo pela dura lei da

corrosivos da caça às bruxas e do McCarthismo. Honesto em sua ambiguidade,

natureza, é implicado naquela sociedade pela mesma forma que sua revolta toma.

Ray admite que a revolta contra a sociedade, quando consequencial, pode se ma-

Um caçador que sobrevive matando pássaros exóticos por suas penas elegantes,

nifestar como a asserção imoral e violenta de uma individualidade cujas matizes

ele é o instrumento daquela decadência e frivolidade contra a qual Murdoch, um

fascistas espelham aquela da força a que se opõe. Assim, quando o herói de Ray

funcionário do ambiente selvagem e conservacionista, tenta tomar alguma atitude.

torna-se (demasiado) lúcido, sua vitalidade aparece tanto como louco ou crimino-

Ainda assim, a revolta instintiva de Murdoch é baseada parte na ignorância, parte

so, os dois lados da autodestruição. Um desejo (natural) pela mudança social se

na ingenuidade, ou pior: na concepção equivocada de que a natureza precisa ser

quebra nas falhas de um individualismo super-refinado, hipersensível que percebe

preservada como o belo jardim dos prazeres do homem. Penetrando mais fundo

o mundo não meramente como grosseiramente imperfeito, mas como totalmente

nos pântanos da Flórida, a violência e a crueldade do mundo natural o apavoram.

sem sentido e absurdo.

Não obstante, ele coloca a placa “Este é um santuário”; sua rebeldia é tocante no

Delírio de loucura leva o dilema de Ray ao seu impasse. Nele, o rebelde

seu idealismo impotente, pois ele arremete em nome dos valores humanistas ob-

atormentado pelo remorso se transforma num super-homem pseudofascista.

viamente inadequados. É apenas o real encontro com o mundo de Cottonmouth

Alternativamente, aceitar “a vida como ela é” significa encontrar-se na prisão de

(visto por ele pela primeira vez de cabeça para baixo no visor de sua câmera) que

um conformismo repressor. A cena final do filme é um dos momentos mais niilistas

gradualmente o torna consciente de que ele, também, está tentando impor uma

da obra de Ray: Ed Avery desperta do ataque de demência em que tentou matar o

falsa ordem no mundo natural.

próprio filho; inicialmente ele insiste em ver como o sol de sua visão enlouquecida

Durante uma longa sessão de bebedeira, Murdoch descobre como ele e

a luz de neon ofuscante sobre sua cama no hospital. Mas, finalmente, ele reconhece

Cottonmouth são parecidos: eles aspiram por uma libertação dionisíaca, a qual

sua esposa e filho. Ray primeiramente corta num contra-plongée do teto e então um

— no final das contas — lhes é negada tanto pela sociedade quanto pela natureza.

plongée da família aninhada ao redor da cama: duas tomadas que definem preci-

A jornada dos dois juntos simplesmente prova a ironia de sua revolta: a impossi-

samente — e equilibram precariamente — a claustrofóbica vida à frente e os limites

bilidade de eles algum dia se imporem na “vida”. O pantanal, simbolizando uma

estreitos de sua recém-recuperada sanidade, num final feliz hollywoodiano que

ecologia implacável além de elementos imprevisíveis, está ali para lembrá-los

é, de fato, um “amargo triunfo” e apropriadamente o título de outro filme de Ray.

da presunção de uma civilização tentando dominar o mundo natural, ou através

Entretanto, é em Jornada tétrica e Sangue sobre a neve que os limites proble-

de um Cottonmouth ou de um Murdoch. Mas Cottonmouth e Murdoch são os pri-

máticos da “natureza humana” são melhor explorados e ganham uma nova defi-

meiros heróis de Ray a se tornar conscientes de uma possível libertação da preo-

nição. Apesar das dificuldades de produção que fizeram com que Jornada tétrica

cupação social e dos ímpetos psíquicos que geralmente fazem a revolta dos heróis

se parecesse “com um corte tosco” — na afirmação apropriada de Charles Barr —,

tão dúbias. Embora Murdoch também persiga seu objetivo de um santuário até a

e apesar do extenso trabalho de segunda unidade em Sangue sobre a neve, pode-

beira da insanidade, ele acaba aceitando sua irrelevância enquanto vê Cottonmouth

-se ver Ray em seus trabalhos posteriores movendo-se numa direção diferente.

morrer, tornando-se tão parte da (des)ordem natural quanto os magníficos troncos

Como tentei mostrar, os filmes de Ray se tornaram mais e mais explícitos sobre a

de árvores a seu redor.

3. Charles Barr, “CinemaScope: Before and After”, Film Quarterly, vol. 16, nº 4 (verão de

guns dos primeiros filmes, notavelmente O crime não compensa. Comparando

1963), pp. 4-24.

os dois filmes, pode-se notar a distância que Ray atravessou no manejo de suas

3

Filmado no mesmo ano de Jornada tétrica, A bela do bas-fond recorda al-

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preocupações essenciais. Enquanto ainda relembra a vitória sobre um certo am-

habitual entre homens e mulheres, entre jovens e velhos, ainda constitui um ele-

biente (externo) como uma vitória sobre uma sensibilidade mórbida (interior),

mento essencial da visão de Ray da vida humana. Mas em Sangue sobre a neve

A bela do bas-fond reconhece — como o faz Jornada tétrica — a possibilidade de

tais conflitos são elementos numa ordem natural, embutidos num regime de ne-

liberdade somente no encontro ativo de parceiros de igual força e paixão. Mas a

cessidade que torna redundante a psicologia. Dramas de sobreviência encontram

verdadeira grandiosidade do filme está na forma através da qual o uso das cores

sua resolução num mundo sem escolha ou mudança e, portanto, sem tragédia.

de Ray traduz à perfeição os menores desenvolvimentos da ação numa presença

Uma das situações recorrentes em Ray, a morte sacrificial que permite a um casal

visual-sensual. Em mais de um sentido, ele conclui o período americano de estúdo

viver numa nova consciência de exposição e mortalidade (Fora das grades, Cinzas

de Ray: o mesmo tradicionalismo de seu conflito (um advogado corrupto dividido

que queimam, Juventude transviada) é iniciada em Sangues sobre a neve e provida

entre seu amor por uma cantora, que quer que ele deixe a vida criminal, e seu chefe

de uma significação natural: a mulher velha morre em paz e resignada, porque

do submundo que cobra o seu preço) e sua identidade de gênero (como um clássico

ela sabe que sua morte é necessária para a sobrevivência física do jovem casal.

filme de gângster, embora num Metrocolor ostensivamente cafona e um esplêndido

Embora seja em Jornada tétrica que a visão antropológica de Ray mais

Cinemascope) dão A bela do bas-fond a sua perfeição, a qual Jornada tétrica não

decisivamente se transforma em seus temas tradicionais, deve-se retornar até

possui. Um favorito dos partidários da “pura” mise-en-scène, 4 o relacionamento

Sangue ardente (Hot Blood, 1956) para traçar o contorno preciso dos interesses

central de A bela do bas-fond é uma lembrança atraente da delicadeza com a qual

de Ray pelo exótico, entre a genuína curiosidade antropológica pela “alteridade”

Ray pode representar duas pessoas, cujo laço mútuo não é (somente) atração físi-

de uma comunidade tradicional (aqui: uma extensa família de ciganos ou Roma,

ca, mas um reconhecimento de sua vulnerabilidade essencial, num mundo cujos

forçada a arranjar um casamento) e a desculpa que ela dá ao diretor para uma

riscos e perigos eles escolheram conscientemente.

desordem de cor em CinemaScope e um espetáculo de sensualidade voluptuosa

Se se quer saber como Ray desenvolve a visão mais existencial da condição

(Jane Russell como a bruxa ardente cuja doma é mais uma matéria de mise-en-scène

humana além da divisão natureza/cultura, que se anuncia em Jornada tétrica,

de Ray com alguns maravilhosos números de dança do que é devida ao noivo relu-

deve-se voltar o olhar para Sangue sobre a neve. Aqui, mais uma vez, as conotações

tante — Cornel Wilde —, impressionando ou a ela ou a nós com sua masculinidade).

tradicionais da temática de Ray do indivíduo solitário que não pode viver com

Foi necessária a saída da América, sendo ela empreendida ou por necessidade ou

ou sem a sociedade, encontram-se invertidas. Sangue sobre a neve, recontando

por escolha, para consolidar a perspectiva amplamente etnográfica ou multicul-

a vida de um casal esquimó (Anthony Quinn e Yoko Tani) e de seu contato com a

tural de Ray. O rei dos reis (King of Kings, 1961) e 55 dias em Pequim (55 Days at

civilização ocidental, é o espelho antropológico das obsessões americanas de Ray.

Peking, 1963) são ambos, e talvez por causa das interferências, ao invés de apesar

No pensée sauvage 5 dos Inuits, não somente vestuário, alimentação e rituais, mas

delas, confrontações com diferentes culturas pelo menos tão interessantes quanto

violência e solidão são fatos objetivos de existência. O sangue que colore o azul

Sangue sobre a neve. Utilizando a campanha do épico, e completamente consciente

do oceano ártico na cena de abertura é o de uma violência proposital, necessária

de que estes eram os últimos dias do sistema de som hollywoodiano clássico, Ray

ou para preservar a vida ou, como na matança do missionário, para preservar

parece estar procurando menos por uma afirmação grandiosa na loucura da ambi-

costumes e ritos que, sozinhos, tornam a vida suportável. Similarmente, o conflito

ção humana, na persistência da pobreza e injustiça, ou na arrogância de Impérios; e em vez disso se esforça por uma harmonia visual na qual os conflitos dramáticos dos indivíduos podem finalmente se inserir: a harmonia-em-diversidade que

4. Ensaios críticos celebrados de A bela do bas-fond são: Fereydoun Hoveyda, “Nicholas

sempre foi o princípio controlador de sua mise-en-scène.

Ray’s Reply: Party Girl” e “Sunspots”, na Cahiers du Cinéma, 1960-1968: New Wave, New Cinema, Reevaluating Hollywood, ed. Jim Hillier (Londres: Routledge, 1986), pp. 122-131 e pp. 135-145. Originalmente publicado como: “La Réponse de Nicholas Ray: Party Girl”, Cahiers du Cinéma, nº 107 (maio de 1960); e “Taches de soleil”, Cahiers du Cinéma, nº 110

A mise-en-scène de Ray

(agosto de 1960). 5. Ver também a descrição de Charles Barr de uma cena comparável em The James Brothers,

Nicholas Ray foi educado como um arquiteto. Ele estudou com Frank Lloyd Wright,

em Motion, nº 3, 1962.

e esta influência pode ser detectada em seus filmes de diversas formas. Uma das

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marcas de estilo de um filme de Ray, por exemplo, é a sutil porém altamente eficaz

calculados. Há uma cena, por exemplo, em Johnny Guitar, na qual num clímax

utilização de relações espaciais para estabelecer o significado dramático de uma

dramático (Johnny está tentando forçar um duelo com Dancin’ Kid por Vienna)

cena, ou para dar ênfase temática para uma situação. Em repetidas vezes, são as

os personagens são recortados de uma forma tal que — em aparente desafio à

marcantes linhas geométricas de um cenário que imprimem a imagem na mente,

verossimilitude espacial ou às regras de continuidade — todos os seus olhares

como a ponte levadiça de ferro em A bela do bas-fond, o galho esculpido dividindo o

individuais apontam para direções diferentes do enquadramento, como se seus

quarto de Ida Lupino em Cinzas que queimam, ou as grades de metal e as divisórias

próprios olhos estivessem se esforçando para explorar a difícil situação emocional

na delegacia na cena de abertura de Juventude transviada. A incerteza do propósito

em que eles estão encerrados.

e a insegurança do lugar, tão típicas do herói de Ray, são constantemente traduzidas

Em outros momentos, os efeitos da mise-en-scène são contrapontuais em

na complexa, até labiríntica disposição de distintos segmentos visuais. Isso também

relação ao argumento. Não inesperadamente para um diretor norte-americano

é evidente na forma como a mise-en-scène faz uso de portas, divisórias e escadarias:

trabalhando no sistema de estúdio dos anos 1950, a maioria dos filmes de Ray

elas atuam como os pivôs do mundo físico de Ray no qual elas traçam as linhas de

segue um padrão linear bastante clássico de estrutura de história (há um herói

uma sempre precária comunicação. Tais elementos arquiteturais invariavelmente

central, uma perseguição, missão ou jornada, levando para uma eventual reso-

enfatizam os laços emocionais que ocultam os antagonismos entre um persona-

lução). Ainda assim, um olhar mais atento para os padrões narrativos ou para

gem e outro, embora eles estruturem igualmente um mundo interno no qual os

o desenvolvimento de roteiros de Ray dá a impressão de que as linhas de força

protagonistas devem fazer suas escolhas. Em Johnny Guitar, Vienna se tranca em

autênticas nos seus filmes tendem a uma abordagem mais aberta à “ideologia” de

seu quarto no andar superior, enquando ordena que seus homens mantenham

progresso inerente à forma linear. Por exemplo, um final típico de Ray — a tera-

as roletas girando no saloon vazio: um gesto cuidadosamente simbólico do tipo de

pia de um casal através de uma morte expiatória — representa uma variação na

ordem e regularidade que ela tenta impor à sua existência. Eventualmente, ela é

resolução catártica do conflito, central a quase todos os gêneros do cinema norte-

forçada a descer as escadas para primeiramente encontrar Johnny, então Emma

-americano. A variação, entretanto, é de especial importância, porque ela tem de

— e com eles aquelas partes de seu eu, seu passado e suas emoções que ela esco-

ser vista contra os valores que a forma linear comumente implica: a subscrição

lhera negar. Em Juventude transviada, é na escada que Jim tem seu embate mais

da iniciação e da maturação, e a transformação do conflito externo em consciên-

violento com seu pai, confrontando seu próprio senso de humilhação e impotência,

cia interna e daí a contemporização; valores sobre os quais Ray — e não só desde

ao mesmo tempo em que os degraus dramatizam a urgência de sua fuga. A escada

Delírio de loucura — parece ter se tornado cada vez mais crítico. O que nós vemos

em Delírio de loucura tem uma função similar, e até mais central na história.

nos filmes posteriores é uma notável habilidade de reter a dinâmica da forma

Geralmente, o que é envolvido nestas e em numerosas outras instâncias

linear, ao mesmo tempo em que ele nunca deixa de sondá-la por meio de seu uso

de mise-en-scène arquitetural é não somente uma apreciação intuitiva da linha

desequilibrado da cor, de enquadramentos angulares, de gestos e de cenografia que

horizontal (fazendo de Ray um mestre do formato CinemaScope), mas também

sutilmente se chocam, o que faz com que seus filmes obedeçam a leis gravitacionais

um complexo e extremamente sutil uso dos princípios de equilíbrio, detectados

próprias — uma experiência física até mesmo antes que seja possível para alguém

pelo corpo do espectador até mais do que a vista capta. Frequentemente, é como

refletir sobre sua significação mais ampla.

se Ray estivesse expressando tensões emocionais ao transformá-las em sensações

Estruturalmente, os filmes de Ray frequentemente prosseguem ao modular

físicas, e a plateia estivesse ligada a um conflito pela forma como o equilíbrio está

um-dois-três padrões de relacionamentos humanos, cujos elementos temáticos

retido e manipulado para esclarecer um tema ou avançar a dinâmica da história.

são o indivíduo solitário, o casal, e o triângulo (este último normalmente feito de

Especialmente nos primeiros filmes, nota-se um tipo de uso precipitado ou preca-

até dois casais sobrepostos, resultado de afinidades naturais ou eletivas: homem/

riamente preparado do quadro cinematográfico para criar um universo psicológico

mulher, homem/homem, como em Paixão de bravo, Fora das grades, Sangue

de extrema instabilidade — de caráter, de motivo, de ação e reação. Ainda assim,

ardente ou Amargo triunfo). Caracteristicamente, Ray faz grande uso das possi-

a mise-en-scène pode ser tanto amplificadora quanto contrapontual. Ela sublinha

bilidades espaciais inerentes à organização “geométrica” dos laços emocionais

momentos de tensão com uma organização propositalmente assimétrica dos ele-

de seus protagonistas, para buscar uma dialética que finalmente — como tentarei

mentos visuais, o que pode ser chamado de mise-en-scène de desordem e tensão

demonstrar — tanto dissolve quanto valida a progressão linear do roteiro.

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Uma das formas favoritas de Ray de começar uma história é fazendo com

O efeito é frequentemente enfatizado pelo uso da cor, como em A bela do bas-fond,

que o herói solitário introduza, através de seus movimentos, gestos e ações, este

onde Thomas Farrell e Vickie (Cyd Charisse) estão nitidamente separados da

sentido de desajuste e desequilíbrio do qual flui o momento dramático inicial.

“atmosfera” geral da festa de Rico Angelo não só pela forma que eles parecem

Os dez minutos iniciais de Amarga esperança, seu primeiro longa-metragem, ilus-

constantemente colocados perto do canto do quadro, mas também pelas cores que

tram este princípio de forma exemplar. Para ressaltar a diferença de Bowie da

vestem — preto e vermelho (em um cenário predominantemente creme, amarelo e

gangue, e para marcar o começo de sua virada reflexiva, a câmera o isola, seja

dourado). Distinguidas umas das outras, as cores se combinam para dar a sensação

pela composição do quadro (Bowie atrás do outdoor, enquanto os outros seguem

de personalidades complementares.

seu caminho para a garagem), seja pela repetida justaposição de tomadas de gru-

Mais típico, porém, dos filmes de Ray é que os conflitos entre o indivíduo

po e de tomadas de média distância do jovem. Ao mesmo tempo, se é consciente

e o grupo, ou entre dois indivíduos, são comumente mediados por uma batida

de uma ausência, pois a discrepância numérica (um contra quatro) e a diferença

tripla ou por uma progressão triádica. Embora as qualidades emocionais precisas

de idade acentuam o isolamento de Bowie a um nível que se tornaria intolerável

variem de filme para filme, o triângulo de Ray é constante em seu dinamismo

caso não fosse contrabalançado. A cena de Bowie encontrando Keechie (com a

estrutural: em geral, ele indica tensão dentro da afinidade, ou mudança dentro

bomba como eixo visual) resolve este prolongado período de assimetria e tensão

da simetria. Nesses filmes, nos quais um relacionamento triangular desempenha

numa direta e simples harmonia visual, elevando temporariamente uma ambigui-

um importante papel (pelas minhas contas, oito, pelo menos), ele corresponde a

dade, a qual forçou-se na percepção que se tem do campo visual. Similarmente, há

uma síntese das aspirações dos personagens: segurança, equilíbrio, comunicação

diversas ocasiões na obra de Ray em que o protagonista está moralmente isolado

em dois sentidos, e espaço para a individualidade: todos além da polaridade e da

de um grupo, e invariavelmente este isolamento também é sentido como espacial,

autodivisão. Porém, esses triângulos, embora pareçam representar o ideal, são

como uma questão de escala e de proporções físicas. Uma oposição, um conflito

invariavelmente mostrados como não naturais, e fundamentalmente instáveis.

não resolvido, permanece, desta forma, após o momento do choque enquanto uma

Sob a pressão das circunstâncias, eles se dissolvem e se desintegram nas forças

atração ou fascinação emocional é frequentemente sentida antes por uma relação

que deram origem a eles: com suficiente frequência, a sensação de isolamento,

dinâmica de planos visuais; como na cena já discutida em que Walt Murdoch vê

medo, incompreensão e constrangimento. Onde o roteiro linear chega a ser as-

Cottonmouth de ponta-cabeça em sua câmera (Jornada tétrica).

sociado mais e mais com um mundo permeado pelo fluxo, pela correria e pela

Esta dinâmica abstrata e estereométrica entra em cena especialmente nos

efemeridade, o triângulo representa uma luta pela paz, pela trégua e pela ordem.

filmes que apresentam o típico casal de Ray, agressivo-defensivo, passional e tí-

Em alguns filmes, o triângulo é emblemático da vida, da ação, até da esperança,

mido, necessitado e orgulhoso, e assim sempre se movendo num tipo de campo

em oposição ao círculo indicativo de uma falsa harmonia. Por exemplo, o mundo

gravitacional que é dominado pela colisão e pela polaridade. Novamente, Ray

do rodeio em Paixão de bravo, no qual Jeff, Wes e Louise (Susan Hayward) inse-

sublinha como parceiros estão em “níveis” diferentes: note a complexa arquitetura

rem um triângulo complicado, embora dinâmico; ou o saloon em Johnny Guitar,

dramática do conjunto de apartamentos em No silêncio da noite, em que, adicio-

inicialmente dominado pelas roletas, e mais tarde “redimido” por um número

nalmente, Dixon Steele e Laurel Gray quase nunca aparecem na mesma altura

de relações triangulares. De certa forma, é possível sentir que esses triângulos

(visual), o que se torna parte essencial de sua tragédia. Ou pense na cozinha em

obsessivos e problemáticos se relacionam a uma situação-chave na obra de Ray,

O crime não compensa, com a caldeira e tubos de gás, um labirinto de tubulações

confrontado de forma mais transparente em Juventude transviada. Nele, nós vemos

e obstruções nas quais o casal está desesperadamente preso. Outro exemplo admi-

os protagonistas momentaneamente satisfazerem uma aspiração ao redor da qual

rável ocorre em Johnny Guitar: durante o famoso diálogo entre Vienna e Johnny

tantos protagonistas de Ray tendem a gravitar. Tão logo Jim, Judy e Plato escapam

(“Minta para mim, diga que você me esperou todos esses anos”), Vienna aparece

de suas casas e ganham uma liberdade quase surreal na casa abandonada, eles

na abertura da porta atrás de Johnny, como se colocada numa moldura. Próxima

imediatamente cristalizam seus sentimentos um em relação ao outro nos papéis de

e embora infinitamente removida, ela é uma presença conjurada pela meditação

pai, mãe e filho. O que é aqui a temática explícita (o “nuclear”, ou os laços primá-

solitária e desejosa de Johnny. É dentro de tais arquiteturas de anseios e desespe-

rios) reverbera através dos outros filmes de uma forma mais ou menos suavizada:

ros que Ray mais potentemente captura situações de conflitos humanos básicos.

o colapso da família burguesa como uma organização humana estável. Talvez seja

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a visão de Ray de uma espécie de “sagrada família” que faça com que ele retorne

harmonia além da aquiescência, pois ela inclui a dúvida de sua própria possibili-

tão constantemente para a mesma configuração.

dade. Seus heróis se rebelam contra as estruturas de um sistema social sem nunca

Pois mesmo onde essas implicações são menos aparentes, o padrão triádico é

romper completamente com ele. A mise-en-scène de Ray se distancia da subordi-

associado com a sobrevivência e a busca por algum valor permanente. Em 55 dias

nação ao roteiro-mecanismo sem nunca destruir totalmente a forma sobre a qual

em Pequim, os relacionamentos triangulares entre as diferentes forças estran-

tal distanciamento é aplicado. Em última instância, talvez seja essa habilidade de

geiras, representadas por Charlton Heston (Estados Unidos), Ava Gardner (Rússia)

articular, em termos especiais para o cinema, um ponto de vista ao mesmo tempo

e David Niven (Grã-Bretanha) vêm a representar a vontade de resistir e de sobrevi-

dentro (o sistema) e fora (seus limites numa expressão pessoal) que faz com que

ver ao cerco, justapostos às ainda mais frequentes imagens circulares — o moinho

o cinema de Ray seja tão amado e tão vitalmente importante.

d’água, o Palácio Imperial, seus ornamentos circulares, um prato que rola no chão — associadas com a Guerra dos Boxers, as ameaças mortais e o aprisionamento iminente. O uso mais delirante do triângulo ocorre sem dúvida em Johnny Guitar, em que todos os relacionamentos humanos importantes são triádicos: Johnny‑Vienna‑Dancin’ Kid, Johnny‑Vienna‑Turkey, Emma‑Vienna‑Dancin’ Kid. O confronto final do filme, como um balé louco, é inteiramente organizado em termos de uma rápida sucessão de posições triangulares, enfatizadas pela pirâmide topográfica formada pelo esconderijo, com a cachoeira como sua base. A primeira figura tem Johnny e Dancin’ Kid cada qual num dos lados de Vienna, que está esperando mais à frente na porta da casa. Isso é espelhado pela forma que Emma avança em direção a Vienna. A tomada subsequente mostra as duas mulheres aparecendo cada qual num dos dois lados da casa, enquanto Dancin’ Kid avança em direção a ela por trás de uma pedra. Ele é alvejado por Emma, e a bala o atinge no meio da testa. Enquanto vai ao chão, Ray o enquadra de cima, suas pernas abertas e seus pés formando um triângulo perfeito com os homens da quadrilha, alinhados logo abaixo. Esta estrutura geométrica é significativa para o desenvolvimento dos temas em Johnny Guitar, na medida em que ela valida os vários estágios da ação ao retomar as configurações emocionais e preparar o casal sobrevivente, Johnny e Vienna, para sua simbólica purificação sob a cachoeira. O uso da cor, especialmente nas roupas, indica a mudança de papéis e de posições. Johnny está vestindo as roupas de Dancin’ Kid, e Vienna está trajando a blusa amarela de Turkey — o legado das duas mortes sacrificiais, com as quais eles ingressam na sua nova vida. No final de Paixão de bravo, enquanto o casal caminha em direção ao horizonte, um novo peão aparece no rodeio. A introdução inesperada de um “terceiro termo” cria um momento no qual qualquer sensação de finalidade ou realização é mais uma vez suspensa. O mesmo é verdadeiro em relação ao “velho” andando para o planetário ao final de Juventude transviada (representado pelo próprio Ray). Em cada caso, o aparente repouso e resolução aparecem apenas como instantes transientes de um equilíbrio precário. Ray transmite nessas cenas uma

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Nicholas Ray, hoje

Sua cintura é o sustentáculo, balançando um estômago saliente e um largo peitoral em dois pés aparentemente leves. O efeito é como um pino de boliche ao contrário

Jeff Greenberg

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com um equilíbrio tão frágil quanto. Nick está dirigindo. O equipamento de câmera bate de uma parede da van à outra. Ninguém percebe; Nick somente acelera. “O primeiro filme que fiz em Hollywood se chamava Tuesday in November (1945), sobre o sistema bipartidário.

Binghamton, Nova York. A primeira terça-feira de novembro vem implorando

Não teremos um sistema bipartidário por mais alguns anos. Teremos um “ya, ya,

pela chuva. O jornal diz que a chuva vai diminuir o número da legião presidencial

nein”. A luz do sol está se esvaindo. Nick quer filmar os alunos Tom e Leslie

pisoteando seu caminho para as urnas. A faculdade de Harpur não foi afetada pela

votando.

eleição. A Universidade do Estado conseguiu esculpir um ninho de tijolos verme-

Quando Nicholas Ray veio ensinar no Harpur três semestres atrás, ele já

lhos dos graciosos montes nutridos pelo rio Susquehanna em sua jornada. Eles

sabia que cinema não podia ser ensinado. A solução dele era criar uma experi-

criaram crateras nos campos verdes com torres e dormitórios de tijolos vermelhos.

ência de fazer um filme para os alunos. Para fazer um filme, ele precisava de um

Ainda assim Nicholas Ray, professor de cinema, sairá para filmar mais do filme.

protagonista, e a única pessoa que Ray conhecia suficientemente era ele mesmo.

A equipe de hoje tem três membros. Já chegara a ter 12. Os alunos entram

Ele se tornou um personagem “para além da imagem do diretor-que-chegou-em-

e saem da equipe enquanto realizam o filme, e alguns poucos estiveram lá desde

-Harpur sabe-se lá por que motivo”. As cenas engendradas entorno desta imagem

o princípio, 14 meses atrás. Na realidade, o filme começou dez anos antes, quan-

que ele tentava repelir — de si mesmo como um diretor hollywoodiano — vieram

do Ray estava rodando seu último longa-metragem hollywoodiano, 55 dias em

lentamente de seus alunos. Uma foi uma cena de 14 páginas escrita por Tom. Ray

Pequim (55 Days at Peking, 1963), para Charles Bronson. Ele acordou no meio

tirou um único parágrafo da introdução de cinco páginas de Tom e incorporou no

da noite e disse para sua esposa: “Quero falar contigo. Algo aconteceu comigo

filme. Tornou-se um confidente para Tom, e o filme se aproximara dos alunos.

durante a noite. Algo que me disse que não farei outro filme. É uma premonição.”

O método do filme é descoberta e seu meio é o do confronto. O filme é uma

55 dias em Pequim o fez o diretor mais bem pago de Hollywood, mas por dez anos

cópia de trabalho e não um filme completo porque Ray ainda tem de fazer uma úl-

não temos outro filme do Nick Ray.

tima descoberta que irá amarrar tudo. O método funciona um pouco desta maneira:

Houve projetos — um filme jornalístico experimental sobre o julgamento de

Leslie tinha contado a Nick a história de como ela contraiu sífilis deliberadamente

conspiração em Chicago que Ray considera o julgamento mais importante desde

para conseguir uma prescrição para penincilina. Da próxima vez que Ray a viu

Sacco-Vanzeti —, mas nenhum deles foi concluído. O título de trabalho que Ray

no corredor da escola, ela estava chorando e lhe contou que, repentinamente,

deu a seu novo filme em Harpur é The Gun Under My Pillow [A arma sob meu

não conseguia enxergar. Nick começou a ver isto como uma cena e saiu para lhe

travesseiro].

arranjar umas vitaminas, que de alguma maneira ele achou que poderiam curá-la.

Nick Ray está com 61 anos. Seu rosto está bonito, talvez mais do que sempre

Quando ele voltou com as vitaminas e com a câmera, ela não estava mais lá. No dia

foi. As gordurinhas que preenchem a fisionomia de um rosto jovem deslizaram

seguinte, ela estava na enfermaria, e dois dias depois saiu novamente e deu um

para o seu estômago, deixando que seus traços lutem entre si em protuberâncias —

buquê de flores para Nick. Nick perguntou a ela se ele poderia fazer do incidente

o queixo, as papas, os cantos dos olhos, a testa. As pinturas e os esboços presos nas

uma sequência para o filme. Leslie sentou-se à frente da câmera e lhe contou a

paredes de sua casa de fazenda alugada são todos dele mesmo — todos com aquela

história inteira com muita franqueza. Ela se tornou muito confiável e carinhosa

tormenta interior borbulhando na superfície de seu rosto. Sua pose é calculada.

porque estavam prestando muita atenção a ela. Foi neste momento que Nick fez

Ele enfia as mãos nos bolsos, cruza as pernas longas, mantendo seus pés juntos.

com que dois rapazes ficassem atrás da câmera jogando tomates nela. Ela fugiu da câmera vociferando: “Seus filhos da puta, seus desgraçados nojentos!” A trilha sonora de Jimi Hendrix começa a tocar e o filme corta para a Guernica de Picasso.

1. Originalmente publicado em Filmmakers Newsletter, volume 6, nº 3, de janeiro de 1973.

Nick chama a cena de “seu massacre”: “É para lembrar as pessoas que elas não

Tradução de Pedro Henrique Ferreira.

devem confiar em qualquer um.”

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Leslie está encenando dois papéis — como ela mesma e como uma atriz.

o holocausto estava vindo e chamou seus amigos para dizer adeus. Ray conversou

O tomate escorregando em seu rosto faz com que os dois papéis se confrontem,

com outros alunos e todos responderam com a mesma veia ansiosa e abatida. Ray

trazendo-os juntos como um Picasso de dupla face. Por um momento, é notá-

colocou as reações no filme para formar a montagem de abertura. Este é o clássico

vel o insight que Nicholas Ray tem de seus personagens, ou melhor, das pessoas

Nicholas Ray, cujos personagens trazem respostas humanas para o filme, diferen-

que povoam seu filme. A cegueira temporária de Leslie foi sintomática da divisão

temente de um Belmondo quase desprendido em Acossado (À bout de soufle, 1960).

que estava acontecendo em sua personalidade. Num único golpe, Ray capturou os

O filme usa 35mm, 16mm e super-8, todas em suas próprias proporções. Ray

ataques esquizofrênicos no plano, trazendo a verdadeira Leslie em contato consigo

está usando um sintetizador de vídeo como uma impressora ótica para reunir a

mesma e com suas ações novamente.

montagem de cinco planos em um da sequência inicial e de outras porções de

O filme, se Ray terminá-lo algum dia, será mais corajoso e revolucionário que qualquer outro de seus filmes já feitos. Ele está criando um novo tipo de rea-

multitela. Ele também está experimentando usar vídeo para finalizar cenas que não foram inteiramente rodadas.

lidade neste filme; a cena que está sendo filmada e o gesto de se filmar não estão

Filmar Tom votando se torna um pouco mais complicado. Seu local de voto

mais separados. O entrecruzamento de ambos — seu confronto — cria uma nova

é uma garagem familiar e a urna fechará em meia hora. Nick fará ele mesmo a

realidade que a câmera sintetiza.

filmagem com sua velha Bolex. Ele arma três luzes, mas não faz nenhuma ten-

O método remete à cena em Juventude transviada (Rebel Without a Cause,

tativa de balanceá-las. Ele limpa com um lenço embebido em Windex a janela

1955) em que James Dean volta para casa depois da chicken run na qual seu rival

pela qual uma luz irá passar. Toda filmagem é feita com a câmera na mão. Nick

adolescente, Buzz, faleceu. Para fazer as coisas corretamente, Ray improvisou

opera a câmera rapidamente, mas é desleixado quanto a ela, deixando o cabo de

e ensaiou a cena com Dean em sua própria casa, e então remodelou o set para

eletricidade de uma das luzes enquadrado. O rolo de película de cem pés termina

ficar semelhante à sala de estar do ator. Em seu novo filme, o elemento narrativo

antes que ele consiga rodar tudo que quer. A urna fecha e a equipe permanece lá

permanece como o mínimo necessário, permitindo que o método saia por trás da

para ver um pouco de democracia. Os fundos das máquinas das urnas se abrem.

câmera e se torne inseparável ao próprio filme. Caracteristicamente, Ray aplica

Gritos de alegria surgem dos dois lados enquanto os nomes são anunciados. Nixon

a dialética do confronto para a briga contra a consciência individual, e a arena

venceu nesta garagem com cem dos quatrocentos votos. Nick diz: “Quero vomitar”,

política captura esta briga.

e sai para esperar na van.

De volta para o quartel do Corpo de Bombeiros onde Leslie deve votar. As auxi-

É perturbador ver Nicholas Ray filmar, com seu desinteresse por acabamen-

liares estão vendendo donuts e tortas. Nick filma Leslie indo para a urna sorrindo e

tos como follow focus ou balanceamento de luzes. E é perturbador vê-lo assistir

saindo também sorrindo. Do lado de fora do quartel, Leslie começa a ficar inquieta.

à letargia que por vezes infesta a equipe, assim como os longos instantes de si-

“Temos de fazer algo sobre este país.” Ninguém está prestando atenção.

lêncio que pontuam as conversas de Ray. Mas talvez seja tudo parte do processo

“O que você quer fazer, Leslie?” “Vamos para Washington. Pegar um avião e ir.

de “de-imagizar” o diretor hollywoodiano. E a filmagem acelerada e descuidada

Vamos fazer alguma coisa.” Agora é Leslie que está se inclinando para o confronto.

talvez seja mais uma parte do método.

Tendo aprendido de Nick Ray como confrontar a si mesma, ela pensa em como

Uma coisa, porém, está bem clara. Nick e também Tom, Leslie e Richie (um

aplicar isso em termos políticos. Só que Nick não entrou na onda dela quanto à

ator e o técnico principal) podem até votar ali, mas eles certamente não são do

ideia de Washington e Nick ainda é o diretor.

interior. Nunca poderão fazer parte da cena da roça norte-americana. Nick con-

Existem confrontos políticos no filme: imagens do “Chicago Seven”, imagens

siderou comprar a fazenda na qual ele vive, mas os donos não aceitaram vender

da Convenção Democrática em Miami, um rally Attica em Harpur, e um segurança

depois que ouviram as estórias sobre sessões de filmagem noite adentro, e sobre

negro, da universidade, expulsando a equipe durante uma sessão de filmagens.

pessoas vivendo na outra parte da casa. Nick e os outros podem ser, na melhor

Isto não era algo que Ray tinha antecipado.

das hipóteses, locatários perpétuos em carros emprestados, indo de bares e grills

Numa noite, ele perguntou a uma menina qual fora o evento mais traumático

ao estúdio, cautelosamente evitando o sonho americano.

que lhe tinha acontecido antes do filme. Ela disse que se lembrava da baía dos

Àquela noite, Nick assistiu às eleições na casa de um colega, não entendendo

Porcos e de John Kennedy com os olhos pendurados até o queixo. Ela pensava que

como Frank Mankiewicz, o chefe de campanha de McGovern, poderia ter calculado

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tudo tão mal. Nick disse que Herman Mankiewicz, o pai de Frank, ensinou-lhe

principalmente uma lente de 35mm mais a de 16mm em sua própria proporção, e

tudo o que ele sabe sobre escrever roteiros e que era um de seus grandes amigos

a super-8 em sua própria proporção, e também o sintetizador de vídeo.

em Hollywood. Nick adormeceu no chão, roncando e tossindo. No dia seguinte, JG: Já que você estava acostumado a ter todo o equipamento que você queria no

choveu bastante.

passado, as limitações do equipamento lhe incomodam? NR: Não, não me incomodam. Eu tenho limitações, é claro, em não ter um ***

kukaloris, um gobo, um filtro, maquiagem ou o equipamento de iluminação mais atual; no fato de que as lentes zoom estão reservadas somente para instrutores, que

JG: Você já trabalhou com uma 16mm antes? NR: Eu usei uma 16mm durante praticamente toda minha carreira em Hollywood. Eu usei uma câmera portátil no meu primeiro filme, Amarga esperança (They Live by Night, 1948), e usei câmeras portáteis na porra toda que eu fiz. Em Paixão de bravo (The Lusty Men, 1952), coloquei câmeras de 16mm em peões de rodeio, no topo de montanhas, em carros colidindo. Em Horizonte de glórias (Flying Leathernecks, 1951), usei duas 16mm para o processo de Technicolor. Nenhum técnico hollywoodiano acreditava que poderia ser feito. Eu fiz, apesar dos protestos de todos os laboratórios de Hollywood. Para mim, 16mm não era algo novo. Mesmo que eu tenha usado uma câmera de 35mm quando filmei as ruas de Paris em 1968, usei duas 16mm. JG: Como você vê a diferença entre uma 35mm e uma 16mm?

o equipamento é olhado como algo a ser preservado mais do que usado. Eu acredito que cinema não pode ser ensinado, mas que pode ser experienciado; pessoas têm que ter esta experiência, e se você não tem um filtro ou uma gelatina para suavizar a luz, então procure um coador na sua cozinha. Em relação a meu espírito e atitude, não existem limitações. Em geral, porém, o período de abundância — de três carros por família — afundou a inventividade, o senso de aventura, de pessoas tentando encontrar suas próprias formas de fazer as coisas. Eu visito várias outras salas de aula na universidade. E estou sempre ouvindo: “O que devo ler?” Não somente isto, mas também: “Onde irei encontrar este livro?” Não apenas onde, mas também: “Em que prateleira estará?” Se você está na praia brincando na areia, é como pedir para seus amigos trazerem maderia, pedra, uma pá para cavar, para que você possa fazer seu castelo de areia. Qual é a graça? Fazer filmes é divertido e tem de ser divertido para os alunos. Eu encontro uma outra limitação na preparação que meus alunos tiveram no sistema educacional. O sistema, penso eu, deveria

NR: Quando estou trabalhando com um operador de câmera de 16mm, percebo

provavelmente ser abolido. Com seis anos de idade, penso que deveríamos parar

que meu olhar ainda opera em widescreen, numa proporção que não dá para achar

o ensino tradicional.

muito bem em 16mm, que tem basicamente lentes de 40mm a 75mm. Em Paris, perdi uma câmera de 35mm que foi derrubada durante uma manifestação, e era obviamente mais barato usar 16mm. Quando cheguei em Harpur, nós tinhamos uma câmera de 16mm no departamento de cinema que estava embrulhada. Os alunos nem sabiam que ela existia — eles sabiam da Bolez, mas não da Arriflex. Todas as outras câmeras eram de 8mm. E a Synchronex tinha me mandado uma câmera de 8mm para testar antes de entrar no mercado. É preciso ajustar suas percepçôes dinâmicas para o formato e para a ferramenta que se está utilizando. Na câmera de

JG: Você mandaria as pessoas para os filmes, mais do que para a escola? NR: Eu as mandaria para a prática, já que a educação institucional não oferece experiências a elas. JG: Este é seu método de realização: para seus alunos, você tentou deliberadamente criar uma experiência.

35mm, a lente boa é a de 35mm; a lente de 20mm parece muito radical às vezes.

NR: Sim, certamente. Todo mundo teve de operar a câmera, ser assistente de dire-

Com a 16mm, você tenta achar a lente boa, que dá agudeza e uma composição

ção, ser peão, eletricista, mão de obra e revisor de roteiro. Também tem os atores,

inteira que você percebe que o olho normal vê. Eu ainda não achei a lente boa

que trouxeram material e que contribuíram. Eles me contaram histórias e cenas

na 16mm; talvez esteja na super-16, que nunca utilizei. Se não está, temos que

começaram a se formar para eles. É um dos lados da improvisação. São pessoas

desenvolver novas lentes para o meu gosto. Em nosso filme, estamos utilizando

rompendo com a imagem de diretor de Hollywood que fazem de mim e a imagem

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formal de Nova York. Sabe, pessoas pensam que improvisação é se levantar e fazer

Kazan ensinou. Kazan era um grande ator. Às vezes até atrapalhava a direção

sua própria coisa. Não é isso.

porque ele se tornava impaciente com os atores, mesmo que tenha muito mais paciência do que 98% dos diretores. Ele indicava para seis ou sete atores do elenco

JG: Com Tom, você criou uma cena com ele fazendo a barba. NR: Aquela cena com Tom é o desenvolvimento político de uma criança que estava saindo e queimando documentos de identidade, que falava constantemente de assassinatos, que era o único que eu conhecia no campus que tinha ido para o julgamento de Berrigan, que escrevera o único artigo bom sobre o julgamento no jornal da universidade, que tinha começado a pensar nas motivações que lhe levaram a deixar a barba crescer, que perguntava a si mesmo do que ele tinha de se esconder, que se transferira a um seminário carmelita, que perdera um olho, que um dia decidiu escrever uma sequência de 14 páginas que eu não considerei bem escrita ou significante, ou sequer reveladora em qualquer sentido, mas que escreveu um prefácio de cinco páginas que tinha um ótimo parágrafo que utilizei

como queria que algo fosse feito e todos logo o estariam imitando. Uma sequência pode não ter espontaneidade por causa disso, porque há uma uniformidade de sentimento. Você tem que receber um sentimento cinético do diretor. Caso contrário, os atores começam todos a andar da mesma maneira, ou falar todos com o mesmo ritmo, sem a intenção de que essas coisas sejam feitas dessa maneira. Kazan criticou meu primeiro filme, dizendo: “Porra, Nick, as pessoas não falam dessa maneira.” Eu respondi: “O que você quer dizer com isso?” Para os ouvidos dele, uma maneira diferente de falar teria sido correta. JG: Como você trabalha com Tom ou Richie? Você tem problemas com eles porque não são atores profissionais?

na abertura do filme. Nós fomos para a Convenção Democrata em Miami, e Tom

NR: Eu trabalho de forma diferente com cada pessoa. Se você sente falta de trei-

odiava ser considerado uma aberração, mas ele não queria ver quem ele era.

namento, você tem de treiná-los. Um pouco. E torcer para que os aspectos ainda

Enquanto íamos em direção ao parque Flamingo, ele começou a perguntar quem

não envernizados de suas atuações sejam vistos pelo que são, como reais e como

diabos eram aquelas pessoas e como iríamos ganhar a eleição. Foi aí que decidiu

representações de uma representação. A conquista absoluta de um ator é fazer

fazer a barba. E por três semanas depois que retornamos, eu não deixei ele fazer a

com que o espectador diga: “Sim, eu teria pegado aquele cinzeiro e o esvaziado da

barba até que estivesse inteiramente convencido de que era o que queria. Eu acho

mesma maneira” ou “Sim, eu teria cometido o mesmo erro”. Eu uso terminologias

uma cena muito significativa. Por quatro horas e meia depois que ele tirou a barba,

distintas com cada ator, mas tive de fazer isso desde criança porque dois atores

ele não parou de chorar, e a coisa toda de olhar para si mesmo novamente. Quem

nunca vêm da mesma escola. Se você está dirigindo em Birmingham, Alabama,

sou eu, o que sou eu, por que eu sou? Nossa sociedade faz as pessoas se sentirem

ou Hollywood, ou uma produção estrangeira em Madri, você tem de encontrar seu

como se fossem porra nenhuma.

próprio vocabulário para cada situação.

JG: Você trabalha com as crianças na escola como atores. Você os considera atores?

JG: É sempre uma questão de adaptar seu vocabulário para o dos atores?

NR: Todo mundo que trabalhou de alguma forma na equipe também é um ator.

NR: Sim, porque só há um centro no filme, e este é o diretor. E o que estou tentando fazer aqui é romper com isso.

JG: Uma vez você disse que o problema com a atuação de James Dean em Juventude transviada era que ele não tinha algo no que se agarrar como método

JG: Neste filme, você é o criador falando por si mesmo. E você está em seu filme

de trabalho.

falando você mesmo.

NR: Não é verdade. Eu achei que ajudei a consolidar o método de trabalho que Elia

NR: Isso é um acidente com o qual flertei, depois inventei, depois evitei, e acabei

Kazan realmente começou com James Dean — tanto quanto Elia Kazan ajudou a

deixando acontecer. É o seguinte: quando cheguei em Binghamton, olhei ao meu

consolidar o método de trabalho de Natalie Wood que eu comecei. Para usar o velho

redor, ouvi pessoas no corredor, fiz perguntas sobre como elas se relacionavam

ensinamento de Stanislavski, nada substitui a imaginação. Ainda assim, Jimmy

com o azul, o verde, o amarelo, e por aí vai. Não consegui me identificar com

não tinha começado a trabalhar o roteiro em termos de ritmo e ação da forma que

ninguém, com exceção do presidente da universidade, que era um bom homem

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com quem tinha trabalhado em Washington nos teatros federais. Fui para algumas

NR: Eu prometi a mim mesmo oito vezes em Hollywood que nunca faria um filme

aulas e vi as pessoas sentarem e ouvirem, apenas ouvirem, e tinha de arranjar

que eu não amasse. Eu comi o pão que o diabo amassou, e finalmente fiz dinheiro

uma maneira de fazê-las levantarem suas bundas das cadeiras. Estava pensando:

o suficiente para só fazer o que eu quero. Nunca trairei a mim mesmo novamente.

preciso ter um personagem principal. Mas sobre quem sei alguma coisa aqui além

É uma coisa muito difícil de se acreditar, mas nunca traí a mim mesmo e gastei

de mim? Sentava nos bares, olhava as salas de aula, tinha discussões teóricas com

850 mil dólares defendendo meu posicionamento. Os alunos da escola sabem que

as pessoas e, finalmente, disse a mim mesmo: “Diabo, tenho que escrever sobre

produtores vieram até aqui gastar seu tempo e viram contratos nos quais eu seria

mim mesmo. As crianças virão às aulas dizendo: ‘Então este é um diretor hollywoo-

dono de 50% de um filme de 2,5 milhões de dólares, uma adaptação de Victor Hugo,

diano.’” Tive logo de me fazer vulnerável. Então começamos comigo como um

e eles não conseguem entender por que eu rejeitei. Não me engajo em nenhuma

personagem — atividades normais, o que eu tinha observado nos primeiros dias de

relação de negócio novamente em minha vida. Posso fazer um puta filme dessa

aula, por aí. Nós improvisávamos momento a momento. As coisas estavam aconte-

forma, mas antes disso seriam três meses de negociações. E não estou mais disposto

cendo. O bagulho estava rolando. Um dia, saí de onde estava morando, logo abaixo

a fazer negócios. Ou faço filmes que amo, ou não faço.

de onde existia um pronto-socorro, e uma criança era carregada com overdose. Eu encenei algo sobre isso. Era o primeiro dia de filmagem quando rodamos essa cena. Fui falar com alguém na câmera e apertei as mãos de alguns alunos cujos nomes nem sabia. Eu disse para um dos garotos: “Bem, já que você está fazendo as luzes, eu levaria algumas luzes para lá se fosse você.” Então: “Olha, tenho que ir, vejo vocês depois.” E isso fez com que eles começassem a dizer, “Poxa, o cara não é tão certinho quanto imaginávamos. Ele é vulnerável.” JG: Esses garotos não sabiam nada sobre você, sabiam? NR: Não. JG: Eles sabiam que você tinha dirigido Juventude transviada? NR: Sim. Apesar de ser sobre uma geração anterior à deles, eles ainda se relacionavam com o filme. Eles tinham visto Juventude transviada na tevê e nas aulas. Isso é outra coisa desesperadora sobre ter alunos em seus segundo e terceiro anos de faculdade, que supostamente já passaram por aulas introdutórias de produção ou algo assim. Nenhum deles sabia carregar uma câmera de 16mm, exceto dois rapazes que tinham câmeras pessoais. Mas não estava reclamando disso. Frank Lloyd Wright disse que a arquitetura é a catedral das artes. Eu acho que o cinema é que é. Sei que durante um ano os alunos aprendem mais sobre sociologia, relações humanas, relações comunitárias, artesanato, senso de observação, tanto ver quanto ouvir, que em qualquer outro curso. Não há razão para que eu seja austero ou exigente. JG: Seus filmes são os últimos dignos a saírem de Hollywood antes que ela termi-

JG: Você tem planos para depois deste roteiro? NR: Tenho um roteiro que escrevi, mas não acho que agora seja o momento. Quando terminar este, pensarei sobre o outro. Tenho feito isso por nove anos. Cria uma apreensão entre os grandes donos de estúdio, mas não há um único escritório que não me diria “Pode vir” se eu ligasse e dissesse “Quero fazer negócios”. Mas não quero falar de negócios. Quero falar de filmes. JG: Você gostou de alguma coisa que saiu de Hollywood nos últimos anos? NR: Nada. Nem nos próximos vinte anos. E o underground... Pode me mostrar um único realizador do cenário underground que não quer chegar a Hollywood? JG: Morissey já foi para lá. NR: Mostre-me um único que não queria ir. Eu acho que filmes do Rohmer e outros mais autorais e pessoais vão crescer em valor e em acesso ao público via tevê a cabo. Se as pessoas sentirem que elas podem dar uma entrevista na rua e dizer que a coisa mais importante, em vez da guerra, é que tia Tilly teve gêmeos, então poderemos deslocar os sentimentos pessoais em direção aos eventos na vida das pessoas, que diriam o que acham importante. Os filmes pessoais eventualmente chegarão a um nível de experiência e comunicação no qual pessoas não terão mais medo de dizer “oi” umas às outras. JG: Você acha que os filmes pessoais mudarão?

nasse. Outros diretores continuaram trabalhando de uma forma um tanto quanto

NR: Sim. Espero que se tornem mais francos e menos exibicionistas, menos gla-

mecânica.

morosos. Se você vai inventar um herói, esse herói deve ser escrito de tal maneira

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que os espectadores saibam que ele é tão ferrado quanto eu ou você. Se ele comete

Círculo de dor: O cinema de Nicholas Ray

um erro, você pode dizer que teria cometido o mesmo erro. Se ele tem um ponto fraco, as pessoas não podem ter vergonha de admitir suas próprias vulnerabilida-

Jonathan Rosenbaum 1

des. E como consequência disto, quando o herói fizer algo de positivo, as pessoas dirão: “É, eu também poderia ter feito isso.” É isto que dá um senso maior aos espectadores quando veem o filme. É por isso que muitas das coisas de Morrisey e Warhol não têm preço. São mais francas e audaciosas, e descomprometidas, que

Lançado em Cannes na pior condição possível — não exatamente finalizado, sem

qualquer filme baseado em fórmulas. As pessoas se tornaram mais desinibidas

legendas, rangendo com problemas técnicos de diversas naturezas, e jogado no colo

quanto a fotografar o que gostam — estão indo para centros educacionais de tevê e

de uma imprensa já exausta, lutando para permanecer acordada na 15ª e última

aprendendo a usar o videotape, e então arranjando espaço na tevê a cabo, mesmo

tarde do festival —, We Can’t Go Home Again (1973), de Nicholas Ray, talvez tenha

que só para se comunicar com pessoas em seu próprio canto da cidade.

mandado alguns críticos para casa mais cedo; mas provavelmente não o fez sem estremecer algumas cabeças no processo. Claramente não se tratava do tipo de

JG: É possível ensinar às pessoas a usar câmeras de vídeo, e elas irão para as ruas

experiência possível de se dar, quanto menos de ser assimilada, num cenário

filmar suas próprias vidas, os acontecimentos corriqueiros, e é possível mostrar

tão desfavorável, embora as exigências que o filme faz ao espectador sejam des-

tudo isso a outras pessoas. Mas parece haver um limite aí, nem sempre há inteli-

gastantes em qualquer circunstância.

gência criativa trabalhando com esse material. Ir para a rua filmar qualquer coisa não é simplesmente criar mais ruído? NR: Deste ruído, algumas pessoas certamente irão atrair mais atenção. E terão uma assinatura, e serão vistas com mais frequência. Dar acesso público aos desenvolvimentos técnicos nos meios de expressão é algo para todos nós, poetas menores que normalmente guardamos nossa poesia nas gavetas de cabeceira onde ninguém mais poderá encontrá-las. O privilégio de expressar certos aspectos de nossas próprias vidas sem botar nossas neuroses (mesmo que isso seja inevitável) na tela é algo que é dado para não mais do que um punhado de pessoas por vez. JG: Você acha que é possível haver arte sem sofisticação técnica?

Criado em parceria com os alunos de Ray no curso de cinema da Universidade do Estado de Nova York, em Binghamton, e estrelando Ray e a própria turma, o filme tenta realizar ao menos cinco coisas diferentes de uma só vez: 1) descrever as condições e as implicações do ato de se fazer filmes, das observações na moviola a toda sorte de fatores periféricos (por exemplo, uma estudante de cinema que se prostitui em meio expediente para levantar dinheiro para seu filme); 2) explorar a alienação política sentida por vários jovens norte-americanos no final da década de 1960 e começo da de 1970; 3) desmistificar a imagem de Ray como um diretor de Hollywood, em relação tanto a seu grupo de alunos quanto a seu próprio público; 4) relacionar a vida particular dos alunos e do diretor com todos os pontos anteriores; e 5) amarrar essas questões de uma forma radical que permita que a plateia perceba esses vários aspectos de uma só vez. Por conta disso, ao longo de

NR: O que é interessante para mim é que os artistas tecnicamente profissionais

quase duas horas, seis imagens separadas são projetadas numa mesma tela, colo-

normalmente chegam a um ponto em que começam a buscar o primitivo e a simpli-

cando lado a lado material filmado em super-8 e 16mm contra um pano de fundo

cidade. O que acontecerá com a tevê a cabo é que as pessoas ao menos terão uma

de 35mm (com ajuda de um sintetizador de vídeo), criando um denso afresco.

escolha, um poder de seleção; pelo menos, poderão se expressar. Um homem comum

É, simplesmente, uma tentativa faustiana de realizar o impossível: como o pró-

finalmente terá a chance de ser chamado de artista ou de poeta. Eu vi trabalhos incrí-

prio Ray deu a entender em sua coletiva de imprensa, um esforço de criar o que “em

veis sendo feito por alunos, e são vistos uma única vez como projetos de formatura e

nossas cabeças seria um Guernica” a partir de ferramentas como “uma Bolex debi-

nunca mais serão projetados. É preciso que se comece onde as pessoas estão. Não me

litada”, “uma Mitchell de 25 dólares comprada num armazem da Marinha” e uma

importa se fizemos cassetes e os mostramos na pizzaria da esquina, mas deixe que

grande quantidade de energia selvagem e impaciente. A histeria que sublinha a

eles sejam vistos. Você começa com petelecos, mas no meio deles constrói uma obra frágil — então as pessoas começam a gostar relutantemente. A tevê expôs os roller

1. Originalmente publicado na revista inglesa Sight and Sound, no outono de 1973. Tradução

derby até que as pessoas os compraram. Por que não poderiam expôr a sinfonia?

de Fábio Andrade.

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maior parte do filme pode ser percebida pelo título original que Ray deu ao projeto:

Por trás dos créditos, quatro homens passam num carro em velocidade, fil-

The Gun Under My Pillow [A arma embaixo de meu travesseiro]; o grau de ambição

mado pelo ponto de vista cambiante de um helicóptero que segue sua trajetória.

pode ser percebido no anúncio de que o filme seria a primeira parte de uma trilogia.

Ao final dos créditos, voltamos à terra firme a tempo de vermos e ouvirmos um

Em seu “melhor” — uma sequência dolorosíssima em close de um aluno

pneu estourar: o carro derrapa e freia bruscamente. O motorista, que leva três pri-

arrancando selvagemente a própria barba —, o filme cria momentos poderosos de

sioneiros fugitivos (Chicamaw: Howard da Silva; T-Dub: Jay C. Flippen; e Bowie),

psicodrama. Em seu “pior”, revela-se uma luta desequilibrada em busca de coe-

é empurrado para fora do carro e, fora do alcance da câmera, é espancado: o som

rência que só chega ao caos, como a orgia de action-paiting coletivo que transforma

do primeiro soco coincide com um corte para a reação de Bowie enquanto ele

a sala de aula numa espécie de carnificina. O próprio Ray passa por pelo menos

assiste à cena de violência. Em seguida, voltamos ao ponto de vista do helicópte-

duas mortes simbólicas: uma como Papai Noel, atropelado por um motorista que

ro, que desce gradualmente enquanto os prisioneiros correm pelo campo aberto,

não para a fim de socorrê-lo (com a fantasia vermelha caindo poeticamente até

aproximando-se e passando por um gigantesco outdoor.

o asfalto, numa montagem delicada de planos em slow motion); e outra encarnando

O começo extraodinário do primeiro filme de Ray anuncia não só o restante

sua própria pessoa, próximo ao final do filme, quando, após preparar seu suicídio

do filme, mas também boa parte dos principais impulsos de seu trabalho sub-

e desistir no meio do processo (como Pierrot le fou), ele se enforca acidentalmen-

sequente. Uma visão romântica do casal é imediatamente confrontada com um

te ao tentar tirar a corda do pescoço. A mensagem de despedida que deixa para

movimento anárquico que explode em violência; uma ação desesperada é filmada

os alunos — “Cuidem uns dos outros, tudo o mais é vaidade. E deixem o resto de nós

como uma espetacular coreografia. Cada elemento é intensamente articulado, ao

balançando” — tem um toque de autodepreciação que Ray acredita ser apropriado

mesmo tempo em que é “afastado” numa espécie de abstração: a continuidade

para sua geração, descrita por ele na coletiva de imprensa como “uma geração

espaço-emocional do primeiro plano flui com tranquilidade com a montagem

com maior culpa por traição do que qualquer outra na história”.

verbal que a “explica”, o carro em velocidade se torna um inseto rastejante pela

We Can’t Go Home Again é, sem dúvida, o cinema em seu zênite; como o fatal

adoção do ponto de vista em plongée que circunscreve sua aparente liberdade,

teste de coragem em Juventude transviada (Rebel Without a Cause, 1955), é uma

e a violência é deslocada com o corte para Bowie, dando a volta completa para

“corrida cega” até, e talvez mesmo além, a beira do precipício. Mas o envolvimento

retornar ao herói romântico já condenado no plano de abertura — um círculo de

autobiográfico não é exatamente novo na obra de Ray: há um romancista ator-

dor definindo os limites do universo de Ray. E a vibrante plasticidade do voo sobre

mentado chamado Nick em Alma sem pudor (Born to Be Bad, 1950) e um policial

o campo, girando em torno do imponente outdoor, acorrenta os três personagens

afável de nome Ray em Juventude; Ray fez o papel do embaixador americano em

à iconografia pop de uma sociedade que os encurrala até poder esmagá-los, com

55 dias em Pequim (55 Days in Peking, 1963), e há ainda todo um conjunto de pe-

o reconhecimento social que molda suas identidades e os torna “reais” ao mesmo

quenas aparições em seus outros trabalhos. Acusar a si mesmo na primeira pessoa

tempo em que assina suas sentenças de morte. (Quando Chicamaw lê sobre sua

do plural também não é novidade alguma: o título original que Ray queria para

fuga no jornal, mais à frente, ele diz a Bowie: “Você tem sorte, garoto. Você está

Amarga esperança (They Live By Night, 1948) — o nome do romance de Edward

viajando com gente de verdade...”)

Anderson no qual o filme foi baseado — era Thieves Like Us [Ladrões como nós].

A segunda sequência começa com Bowie olhando pelos buracos de uma cerca de jardim feito um animal aprisionado, enquanto Keechie chega em seu carro. Uma série de trocas de olhares contidos dão início aos diálogos defensivos que inva-

***

riavelmente acontecem entre os casais de Ray pouco antes de eles chegarem a um equilíbrio — um meio-termo entre dueto e duelo que reaparece com algumas varia-

Antes de surgirem os créditos de Amarga esperança, vemos dois dos personagens

ções nas famosas cenas da cozinha em No silêncio da noite (In a Lonely Place, 1950),

principais, Bowie (Farley Granger) e Keechie (Cathy O’Donnell) se beijando, en-

com Humphrey Bogart desentortando uma faca enquanto conversa com Gloria

quanto uma legenda os apresenta por meio de sucessivas frases, ritmadas como

Grahame, e em Johnny Guitar (1954), com Sterling Hayden pedindo a Joan

os versos de uma música folclórica: “Este rapaz... e esta moça... nunca foram

Crawford que minta para ele, e ela o faz num ritmo cadenciado, como refrões

devidamente apresentados ao mundo em que vivemos...”

de uma balada; e também nos primeiros encontros comparáveis em Cinzas que

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queimam (On Dangerous Ground, 1949), Juventude transviada, Sangue ardente (Hot

de rodeio, delinquência juvenil, ciganos, gângsteres de Chicago, esquimós); uma

Blood, 1955), Amargo triunfo (Bitter Victory, 1957) e A bela do bas-fond (Party Girl,

mentalidade solitária que culminava numa frase de Johnny Guitar (“Eu mesmo

1958). Quando a desconfiança mútua começa a esfriar e Bowie entra no carro,

sou um estrangeiro aqui”); uma imaginação de elaborado romantismo, intensidade

o som de um trem que soa à distância, como uma prefiguração do trem bem mais

dramática e coragem visual que faria de Paixão de bravo (The Lusty Men, 1952)

alto que ouviremos pouco antes de Bowie levar um tiro na cena final. E assim que

prova de uma obsessão pela abstração tão grande quanto a de Bresson (Rivette);

Bowie se senta ao lado de Keechie, há um corte para um plano que os enquadra da

Johnny Guitar o A bela e a fera dos westerns (Truffaut); Juventude transviada e

parte traseira do carro, no qual os vemos novamente pelas frestas da treliça, apri-

Delírio de loucura (Bigger Than Life, 1956) evocações modernas da tragédia grega

sionados juntos no exato instante em que, visualmente, eles “compõem” um casal.

(Rohmer); e Amargo triunfo “o mais goetheano dos filmes” (Godard).

Estabelecer uma plataforma de futilidade romântica para em seguida mergulhar nela sem qualquer restrição é muito característico de Ray. Se adicionarmos a essa tendência uma forte empatia por adolescentes, um talento particular para

***

a cor e o CinemaScope, um desejo visivelmente recorrente (mas perpetuamente irrealizável) de filmar um musical, uma consciência social que busca firmar teste-

Diferente de Godard, Ray não pode ser considerado um grande inovador estilís-

munho sobre os problemas mais relevantes de sua época, e um gosto pela violência

tico, ao menos não ainda: é cedo demais para determinar se o uso de imagens

anárquica que se alterna entre obscurecer, complicar, e ajudar a iluminar suas

múltiplas em We Can’t Go Home Again renderá qualquer fruto. (Play Time [1967],

questões — culminando em fábulas grandiosas, parábolas, e “lições” pedagógicas se-

de Tati, que faz uso de pontos focais múltiplos dentro de uma mesma imagem,

guidas por um rompimento completo com o cinema comercial, e a criação gradual

foi lançado há seis anos, e suas inovações ainda não tiveram impacto visível em

de uma nova estética baseada num grau cada vez mais acentuado de engajamento

outros sentidos). Mas é igualmente evidente que, tanto em sua escolha de temas

político e numa nova ênfase na autoria coletiva — chegamos a uma descrição não

quanto no tratamento que os confere, Ray frequentemente esteve dez anos ou mais

só da carreira de Ray, mas também à porção considerável da de Godard.

à frente de seu tempo: pensemos em sua abordagem da cultura jovem em Juventude

É óbvio que não se deve levar esses paralelos longe demais: as “lições” de

transviada, drogas em Delírio de loucura, ecologia em Jornada tétrica (Wind Across

Weekend à francesa (Weekend, 1967) e Le Gai savoir (1969) não são as mesmas

the Everglades, 1958), e antropologia em Sangue sobre a neve. Desse ponto de vista,

das que aparecem em Sangue sobre a neve (The Savage Innocents, 1960), embora

O rei dos reis (King of Kings, 1961) é o Jesus Christ Superstar (1973) de Ray, não só

os três filmes ataquem radicalmente diversos conceitos centrais para a cultura

pelo tratamento avant la lettre próximo do pop (e da pop art) do evangelho, mas

ocidental); e se os dados herméticos de We Can’t Go Home Again lembram aqueles

mais especificamente pelas roupas vemelho berrante e pela postura rebelde de

de O vento do leste (Le Vent d’est, 1970) e de Vladmir et Rosa (1971), isso não quer

seu Jesus (Jeffrey Hunter) remeterem diretamente a James Dean e a sua jaqueta

dizer que eles sejam estrutural ou ideologicamente equivalentes. Mas quando

de zíper. (Como se para nos lembrar desse ícone — atualmente em exposição no

levamos em conta que Ray motivou e sustentou entusiasmo maior entre Godard e

museu do cinema de Henri Langlois — Ray aparece vestindo uma quase réplica

seus colegas da Cahiers du Cinéma do que qualquer outro diretor norte-americano

em We Can’t Go Home.)

na década de 1950, e foi mencionado com maior frequência nos filmes de Godard

Paradoxalmente, é o repertório de imagens pop de Juventude transviada que

do que qualquer outro diretor, fica claro que muitas dessas relações vão bem além

faz o filme parecer de alguma forma datado em relação a Vidas amargas (East

das coincidências.

of Eden, 1954), um trabalho quase anacronista, menos associável ao zeitgeist de

É de se suspeitar que, para vários dos críticos mais jovens da Cahiers, Ray

qualquer período específico. Mas ele datou de maneira interessante. Se os trejeitos

representasse o triunfo de um cinema marcadamente pessoal e autobiográfico,

e humores dos adolescentes da metade da década de 1950 são encapsulados com

criado a partir das prerrogativas de estúdios como RKO, Republic, Paramount,

um tratamento de história em quadrinho e um lirismo inflamado a ponto de beirar

Warner, Columbia, Fox e MGM; uma natureza incansavelmente curiosa que tenta-

o surrealismo para os olhos de hoje, isso permite que se apreenda ainda mais da

va encarar cada projeto como uma aventura existencial e uma missão de pesquisa

mitologia daquele momento e daquela cultura. Até por conta de toda a concretude

nas profundezas de um assunto determinado (brutalidade policial, frequentadores

de suas observações, ele é provavelmente, atrás apenas de Amargo triunfo, o filme

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mais esquemático e abstrato de Ray. Jim (James Dean), Judy (Natalie Wood), Plato

Além de seu sistema de igualdade de personagens, Juventude tem diversos

(Sal Mineo) e Buzz (Corey Allen) são cuidadosamente diferenciados por suas

outros elementos deliberadamente abstratos: a condensação de toda a ação num

origens, de maneira a sugerir uma interseção social, mas ao mesmo tempo repre-

duvidoso período de 24 horas; a ligação entre a destruição global “numa explosão

sentam variações dos mesmos dilemas, e podem até ser pensados como facetas

de gás e fogo” encenada no planetário, na qual o astrônomo anuncia que “a Terra

diferentes de uma mesma personalidade.

não fará falta”, e a explosão do carro de Buzz no fim da “chicken run” (e o dado

O primeiro plano nos apresenta a Jim; o segundo e o terceiro o conectam a

implícito de que a ausência de Buzz também não é realmente sentida); a chegada

Judy e a Plato na delegacia, cada elemento colaborando com lisura para o “equilí-

de Plato a Dawson High, com o corte seco do estrondo do motor de sua scooter

brio” da composição em CinemaScope. Mais à frente, numa cena tocante à beira de

(horizontal) para o hasteamento da bandeira norte-americana (vertical); a curio-

um precipício, Jim e Buzz de repente se reconhecem como amigos e iguais antes

sa reincidência das referências a animais (o macaco de brinquedo no primeiro

de competirem na “chicken run”, na qual o último mergulha para a morte; Jim

plano e a piada de Jim para Judy quando lhe entrega seu espelho de maquiagem:

imediatamente assume o papel de Buzz como namorado de Judy, e percebemos

“Você quer ver um macaco?”; a expressão “franguinho” [covarde] e a resposta

que a morte de Buzz podia bem ter sido a de Jim, assim como a loucura e morte

de Jim na casa abandonada, quando Plato pergunta “Quem está aí?”: “Ninguém,

de Plato também poderiam ser de Jim — de fato, a aparência e postura de Dean

só nós, os franguinhos”; Jim mugindo em referência à constelação de Touro no

e Mineo evocam aspectos diferentes de Farley Granger em Amarga esperança.

planetário, e depois sendo ameaçado na briga de canivetes como se fosse um touro

Em outro sentido, a raiva de Jim o identifica com a de sua mãe: os dois são ligados

numa tourada); a estilização “musical” do lento crescendo que culmina na briga em

por um extraordinário plano subjetivo (depois reverberado em Sangue ardente e

frente ao planetário, com uma coreografia posada dos atores em torno do carro de

Jornada tétrica) envolvendo um tilt de câmera de 360º quando ele a vê de cabeça

Jim que parece uma versão superior de Amor, sublime amor (West Side Story, 1961).

para baixo, depois com o lado direito voltado para cima, descendo uma escada;

A tendência ocasional de Ray em gravitar para o estilo dos musicais — a função

e mais tarde ele assume o papel do pai ao formar um núcleo familiar com Judy

das cores, sua maneira um tanto teatral de iluminar os cenários, a inclinação em

e Plato na mansão abandonada.

ver todo movimento físico como um espetáculo, e o uso de baladas folclóricas

Essa sensação de igualdade semimística entre indivíduos é central para

(de fato ou sugeridas), além de outras passagens musicais — pode ser vista com

o trabalho de Ray. A descoberta de uma equivalência moral entre naturezas su-

maior destaque em A bela do bas-fond ou na primeira cena no saloon de Vienna

postamente antitéticas e heróis antagônicos em Amargo triunfo e Jornada tétrica

em Johnny Guitar, quando Johnny se apresenta dedilhando as cordas de seu violão

produz o clímax dramático de ambos os filmes: em O rei dos reis, a encenação

e Dancing Kid responde tirando Emma para dançar pelo salão. Mas o passo mais

do Sermão da Montanha como uma série de trocas de olhares reflete a mesma

decidido de Ray nessa direção continua sendo Sangue ardente, um filme desigual

preocupação. Entre os casais de Ray, normalmente encontramos um conjunto

que explode em vibração em todas as suas sequências “musicais”: a dança de

preciso de antíteses e equilíbrios. Em A bela do bas-fond, o herói (Robert Taylor)

Cornell Wilde quando lhe negam um emprego como professor de dança (numa

é manco e a heroína (Cyd Charisse) é uma dançarina; ambos se “prostituem” — ele

sarcástica exibição do estereótipo cigano que lhe haviam taxado), sua “dança

é advogado de um gângster, ela é uma showgirl — e se restabelecem com a ajuda

do chicote” com Jane Russel, e a canção triunfal dos ciganos que comemora seu

do outro. Em Cinzas que queimam, a cegueira literal de Ida Lupino equilibra — e

casamento e reconciliação.

ajuda a superar — a cegueira emocional de Robert Ryan, e seu sadismo incontrolável é transformado de forma parecida pelo problema mental do irmão de Lupino. Por outro lado, vale notar que, com as possíveis exceções de Gloria Grahame em No silêncio da noite e Chana Eden em Jornada tétrica — ambas performances extre-

***

mamente originais e injustamente negligenciadas —, as heroínas de Ray raramente

Levando em conta as pinceladas de estilo abordadas até aqui — do romantismo à

apresentam uma identidade clara fora de seus relacionamentos com os homens;

mais anárquica violência, do imaginário pop à abstração “cósmica”, da simetria

em Delírio de loucura, a dificuldade de Lou Avery (Barbara Rush) em se colocar

à coreografia —, chegamos com alguma clareza a um conjunto de temas, procedi-

contra as loucuras de seu marido é uma das camadas trágicas do roteiro.

mentos e posturas que poderiam legitimamente ser chamados de maiores do que

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a vida, um impulso que se manifesta em detalhes tão fugidios quanto a palavra

incurável e de sua necessidade de tomar cortisona, carregando na composição

“Deus” riscada na casca de uma árvore em Johnny Guitar, ou tão centrais quanto

promessas de morte e de sobrevida, é agir sobre a vida de anúncios de revista

o desprezo de Richard Burton às ruínas de Berber no século X em Amargo triunfo

que ele e sua família tentam levar, da mesma maneira que o raio X de seu torso

como “modernas demais para mim”. É um olhar que sugere e exige uma tela

ilumina sua doença terminal: uma aparência de normalidade é subvertida diante

sempre mais ampla — algo mais próximo da projeção monumental do planetário

de nossos olhos, pouco a pouco, até atingir dimensões góticas de uma história de

em Juventude transviada do que dos limites de uma tela de televisão bem menor

horror que sempre existiu sob a superfície de sua vida.

do que a vida, onde os filmes de Ray são condenados a lutar por reconhecimento hoje em dia.

2

Voltando do hospital para a escola, Ed diz a sua esposa, Lou, que ele se sente “com três metros de altura”, e um plano em grotesco contra-plongée de ele cami-

Uma ambição sem limites combinada a uma profunda alienação, é essa do-

nhando em direção à escola reverbera e parodia essa percepção; mas à medida

ença que acomete o herói de Delírio de loucura, o filme mais forte de Ray; e se

em que ele se afasta da câmera, seu corpo é progressivamente “achatado” pelo

a deterioração angustiante tem lugar especial em sua obra, é muito porque ela

prédio — que, em toda sua aparente irrelevância, tem bem mais do que três metros

o obriga a ir às raízes do problema, em vez de ficar na epiderme de seus vários

de altura. De maneira parecida, uma cena em que Ed tenta passar uma imagem de

sintomas. No silêncio da noite, trazendo vários dos elementos de uma autocrítica,

poder, forçando Lou a comprar roupas extravagantes que eles não têm dinheiro

é uma tentativa anterior de investigação semelhante: situada numa Hollywood

para pagar, subverte as imagens hollywoodianas que inspiram tal gesto ao ponto

extremamente desglamourizada, o filme lida com a violência descontrolada de um

de elas se tornarem repugnantes, loucas e obscenas. E a preocupação monomaní-

roteirista (Humphrey Bogart) e suas trágicas consequências, com a alienação gradu-

aca de Ed pela “melhora” de seu filho, uma consequência direta de seu desespero

al de todos de quem ele se sentia próximo. Delírio de loucura, que trata dos efeitos

silenciado, chega ao ápice quando, após ouvir um sermão na igreja, ele decide

da cortisona num professor (James Mason) que havia contraído uma dolorosa e

“sacrificar” seu filho por seus ideais, matando-o com uma tesoura. Quando Lou

incurável inflamação das artérias — uma representação equivalente, talvez, ao olhar

o lembra de que Deus havia dito a Abraão que poupasse Isaac, ele só consegue

do próprio Ray? — é claramente menos “pessoal” em qualquer sentido autobiográ-

responder com o reductio ad absurdum de sua desproporcional egolatria: “Deus

fico, mas suas implicações são muito mais universais. Seu verdadeiro tema não é

estava errado.”

a droga em si, mas o que ela revela sobre Ed Avery; e, além disso, o que Ed Avery revela da sociedade da qual faz parte e — em maior ou menor grau — representa.

Uma sensação geral de que, considerando que de fato exista, “Deus estava errado” infiltra os filmes de Ray, da instabilidade nervosa de suas composições até

Delírio de loucura é um retrato profundamente perturbador das aspirações

os tormentos sem solução de seus heróis. Num momento raro e sem precedentes

da classe média, porque ele praticamente define a seriedade de seus valores como

de rebeldia com as exigências de Ed, Lou bate a porta de um armário de remédio e

loucura — com a psicose que surge como efeito colateral da droga tomada por

o espelho se quebra. Ed se vê fragmentado e duplicado na superfície rachada — uma

Avery. Cada símbolo do sonho americano implicitamente respeitado por Avery

multidão de imagens alienadas umas das outras que oferecem a mentira de sua

nas cenas de abertura (seus ideais sobre educação, seu respeito pela estrutura de

fantasia de que ele conseguia manter uma identidade consistente, lógica e contínua.

classes e pelo status social, seu desejo em “se tornar melhor”) é sistematicamente invertido em sua cabeça, transformado de sonho em pesadelo, tornando-se apenas mais explícito em seu comportamento. A função dramática de sua doença

*** Se a loucura de Ed Avery é, implicitamente, a loucura dos Estados Unidos e de

2. Ainda mais triste é a perecibilidade do sistema Deluxe Color, usado pela 20th Century Fox, que condena a integridade de Delírio de loucura e de Quem foi Jesse James? praticamente à extinção. Não deixa de ser irônico que o econômico formato Trucolor, da Republic, sobreviva intacto em Johnny Guitar hoje, enquanto os filmes coloridos da Fox do mesmo

Hollywood, talvez a intenção radical de We Can’t Go Home Again, 17 anos mais tarde, seja a de oferecer um equivalente estrutural ao gesto rebelde de Lou. Espatifando a imagem em diversas variáveis independentes que a negam coe-

período estão se deteriorando pouco a pouco rumo a um rosa cadavérico enquanto as outras

rência acerca de um mesmo ponto, Ray e seus alunos parecem querer dizer que o

cores desaparecem.

estado dos Estados Unidos hoje se tornou igualmente fragmentado e descontínuo.

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Nós não podemos voltar para casa novamente, porque “casa” não é mais apenas

Juventude transviada: Nicholas Ray nos anos 1950

um único lugar e “nós” não é mais uma coisa só: Peter Biskind 1 Tudo esboroa; o centro não segura; Mera anarquia avança sobre o mundo, Maré escura de sangue avança e afoga Os ritos da inocência em toda parte

Críticos autorais de inclinações liberais têm o hábito de reconstruir seus diretores

Os melhores vacilam, e os piores

de estimação como radicais políticos e culturais, fazendo-os parecer mais subver-

Andam cheios de irada intensidade

sivos do que são na verdade. Assim, um crítico compara repetitivamente Samuel

(Yeats, The Second Coming) 3 Neste contexto de alienação, é infrutífero e mais do que um tanto prematuro falar em sucesso ou fracasso. Após uma década de seu afastamento do cinema comercial, Ray voltou ao debate público para assumir sua posição de áspera fera.

Fuller a Brecht e Mailer, e escreve que Fuller “ataca as preconcepções sociais de seu público”. 2 Outro crítico vê Delírio de loucura (Bigger Than Life, 1956), de Nicholas Ray, como “uma exposição profundamente perturbadora de aspirações da classe média (…) cada símbolo do sonho americano (…) é sistematicamente virado de cabeça para baixo”. 3 Enquanto tanto Fuller quanto Ray são críticos em relação a certos aspectos da América dos anos 1950, vê-los como fundamentalmente subversivos quanto a suas instituições centrais é o reverso da verdade. Tal leitura de seus filmes é encorajada pela postura independente, e até rebelde, adotada por Fuller, Ray e outros diretores do período, e é lisonjeador tanto para eles quanto para seus admiradores (nos sentimos melhor quanto a passar tanto tempo com o submundo dos Estados Unidos se o vemos como crítica social), mas no final é ilusória, obscura, em vez de reveladora, a relação entre filme, talento individual e ideologia. Um momento de reflexão vai revelar, por exemplo, que Delírio de loucura de modo algum faz uma crítica radical dos valores da classe média norte-americana. Ed Avery (James Mason), demente em razão de um tratamento com cortisona, torna-se porta-voz de valores elitistas e antidemocráticos, totalmente em desacordo com o progressismo dominante de Dewey-Spock das teorias pedagógicas e educativas dos anos 1950. Se a doença de Avery é expressa por seus delírios de grandeza (ele se sente “com 3 metros de altura”), seu comportamento constitui um aviso para manter seu lugar, suas aspirações alinhadas, não balançar o barco, ser como todo mundo — que era, na verdade, um impulso característico dos anos 1950, examinado no The Organization Man, de Whyte; questionado em Must We

1. Originalmente publicado no jornal acadêmico norte-americano Film Quaterly, no outono de 1974. Tradução de Bruno Marson. 2. Nicholas Granham, Samuel Fuller. Nova York: Viking Press, 1972, p.37. 3. Jonathan Rosenbaum, “Circle of Pain: The Cinema of Nicholas Ray”, Sight and Sound, 3. Tradução por Paulo Vizioli. (N.T.)

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outono de 1973, p. 221.

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Conform?, de Lindner; e recomendado no Individualism Reconsidered, de Reisman.

dos anos 1950 era o herdeiro espiritual do herói adolescente dos filmes noir.

O ego inflado de Avery ameaça a integridade da família, que formava a coluna

Filmes como Vidas amargas (East of Eden, 1954), O selvagem (The Wild One,

dorsal do consenso dos anos 1950.

1953), Juventude em perigo (Crime in the Streets, 1956), Sementes de violência

A carreira de Nicholas Ray começou promissora no final dos anos 1940 com

(Blackboard Jungle, 1955) e Rumble on the Docks (1956) lidaram com o vexatório

Amarga esperança (They Live by Night, 1948), atravessou os anos 1950 e definhou

problema da juventude associal que permanecia teimosamente irreconciliada

ingloriamente no início dos anos 1960 com O Rei dos reis (King of Kings, 1961)

com o consenso dos anos 1950. Ray tinha lidado anteriormente com o assunto

e 55 dias em Pequim (55 Days at Peking, 1963). Foi uma carreira prolífica: ele con-

da delinquência em duas oportunidades, em O crime não compensa (Knock on

tribuiu com distinção em quase todos os gêneros, exceto na música, e serve como

Any Door, 1949) e ainda antes em Amarga esperança. Ambos os filmes emprega-

um barômetro sensível às mudanças culturais em Hollywood durante a guerra

vam uma atenuada perspectiva dos anos 1930 com relação ao problema, embora

fria. Ademais, como diretor sério e preocupado com problemas sociais, o corpo de

Amarga esperança, com seu forte senso de domesticidade, antecipasse os anos 1950.

seu trabalho permite alguma compreensão da natureza e das limitações da crítica

Delinquência e crime eram produtos da pobreza, que por sua vez tinha um efeito

social hollywoodiana.

catastrófico sobre a família. Mas até 1948 esta abordagem havia sido superada pela

Os filmes de Ray compartilham com outros filmes dos anos 1950 um apre-

prosperidade do pós-guerra. Amarga esperança era tido como um filme anacrô-

ço pelo viés psicológico e por vezes místico, que substitui o político-social dos

nico sobre a Depressão; seu lançamento foi adiado por dois anos até que Howard

anos 1930 e 1940. Johnny Guitar (1954) mostra esta tendência. No início do filme,

Hughes, o novo dono da RKO, decidisse o que fazer com ele. A prosperidade dos

o conflito entre Vienna (Joan Crawford) e Emma (Mercedes McCambridge) é

anos 1950 parecia tão penetrante em 1955 que um filme sobre delinquência poderia

retratado como sendo político e psicológico. A dimensão política no que tange

focar somente na classe média alta. Além disso, a rebeldia jovem nos anos 1950,

o antagonismo econômico entre o velho e arraigado dinheiro (os grandes fazendei-

como em Vidas amargas, de Kazan, era vista como resultado da falta de amor e de

ros e o banco) de um lado, e, do outro, o novo dinheiro (as ferrovias e o entusiasmo

contato significativo entre as pessoas. A estrutura de integração central da socie-

empreendedor de Vienna). Reforçando o conflito de interesses está a tradicional

dade, a família, estava em apuros. A maior parte dos filmes da década continham

resistência dos latifundiários ao movimento da civilização para o oeste, com a

fortes elementos domésticos, especialmente em comparação com os grupos mas-

maldade de colonos e arame farpado presentes. O conflito psicológico é centrado

culinos nos filmes de guerra do início dos anos 1940 e com os machos solitários

em Emma. Ela tem ciúmes de Vienna e de Dancing Kid (Scott Brady), odiando Kid

dos filmes noir do fim da década: Ray, em particular, frequentemente lidava com

porque, como Vienna sugere, “ele a faz se sentir como uma mulher”. Mais tarde,

o problema da reconstrução da família após a Segunda Guerra Mundial, que levou

durante o climático confronto entre uma milícia e Vienna, Johnny Guitar (Sterling

os homens para a frente de guerra e as mulheres para as fábricas. A ênfase na

Hayden) e a gangue de Kid, a motivação política é posta de lado, deixando apenas

domesticidade servia bem a uma era pós-guerra afetada pelo problema do excesso

a psicológica. Um dos homens da milícia quer acabar com o confronto por não

de mão de obra e exercia duas funções. Servia para lembrar às mulheres que seu

querer mais derramamento de sangue. MacIver, o grande latifundiário e líder

lugar era em casa, e fornecia um curativo emocional para as feridas psicológicas

da milícia, concorda. Não era mesmo a batalha deles, diz ele, apenas de Emma.

e ideológicas dos anos 1940.

Não se fala de economia. A esta altura já sabemos que Vienna, uma mulher forte

Jim (James Dean), um rebelde do colegial vindo de uma família em boa si-

como Emma, periga se tornar como Emma, dura e fanática. Ela é punida por sua

tuação financeira (o que eles faziam era mantido em segundo plano: ninguém nos

independência de homens com a perda de seu saloon (incendiado pela milícia),

filmes dos anos 1950 era mostrado trabalhando; a prosperidade é tida como certa,

e precisa subjugar Emma, sua metade perversa e dessexuada, para que possa

e aparentemente não requer trabalho), é desafiado para um duelo automobilístico

aceitar o abraço amoroso de Johnny Guitar ante uma jorrante cachoeira na cena

por um valentão da escola chamado Buzz (Corey Allen). Buzz vence, ou melhor,

final. O conflito maior é reduzido ao confronto psicossexual de Vienna consigo

perde; sem conseguir sair de seu carro a tempo, ele cai de um precipício para a

mesma, trazido como um enfrentamento com sua contraparte.

morte. (Para os delinquentes, ganhar era perder.) Jim tenta ir à polícia, mas após

Em Juventude transviada (Rebel Without a Cause, 1955), um ano mais tar-

não conseguir encontrar seu amigo Ray (um policial na divisão juvenil e possivel-

de, os temas sociais e políticos haviam sido afastados. O delinquente juvenil

mente uma representação de Nicholas Ray), ele se refugia com sua namorada Judy

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(Natalie Wood) numa mansão deserta nas colinas de Los Angeles, e logo é segui-

polícia fornece isso. Ainda assim, Ray não é o pai de Jim e, quando Jim mais precisa

do até lá por um admirador delinquente, seu colega de classe Plato (Sal Mineo).

dele, ele não está disponível. Nenhuma outra instituição pode substituir a família.

Plato tem consigo uma .45 niquelada. Quando a gangue de Buzz chega ao local,

Plato, diferentemente de Jim e Judy, é um autêntico rebelde. Embora a fonte

procurando por Jim, que eles acham que os entregou para a polícia, Plato atira

de sua desafeição seja a mesma deles (ele vem de um lar destruído e precisa de

em um e foge para o planetário do parque Griffith, com a polícia perseguindo-o.

amor), ela tem um desespero emocional que falta à deles. Além disso, sendo mais

Jim e Judy seguem Plato com a intenção de desarmá-lo e de evitar uma tragédia,

jovem que Jim, ele não consegue satisfazer sua necessidade de amor por meio

um tiroteio com a polícia.

de uma mulher, como Jim pode. Em vez disso, ele se relaciona com Jim como um

Jim convence Plato a entregar sua arma por um momento; ele sorrateira-

filho com o pai. Jim deliberadamente retribui, vendo Plato como um filho. A visão

mente remove o pente, e então entrega a arma para seu amigo. Plato concorda em

doméstica do filme é tão forte que todas as relações são vistas em termos familiares.

se render. Enquanto procede para fora, ele entra em pânico com um refletor, e é

Mas, na realidade, a família nuclear é excludente. A relação de Plato com Jim é

morto a tiros por um policial afoito. Depois da mostra obrigatória de pesar, Jim

extrafamiliar, e não há espaço para ela na emergente família de Jim e Judy. Plato

e July se reconciliam com os pais de Jim, e vão embora juntos em carros de polícia.

é, em última análise, supérfluo.

Esta breve recapitulação da trama não faz justiça ao filme, mas serve para

A verdadeira razão para a morte de Plato, entretanto, é que a rebeldia incon-

enfatizar a temática da reconciliação que emerge fortemente no final. A razão pela

ciliável não pode ser tolerada: ela é igualada, no filme, à insanidade. A gangue de

qual Jim consegue se reintegrar tão facilmente à sociedade é que sua desafeição

Buzz é similarmente desacreditada. A rebeldia deles não é sentimentalizada como

não tinha sido muito profunda em primeiro lugar. O afastamento de Jim e Judy

a de Jim. Eles são vistos como protocriminosos. Eles são perigosos porque formam

vai pouco mais fundo que o de Bowie e Keechie em Amarga esperança, que só

um grupo autônomo de iguais que foge ao controle adulto. Como o enlouquecido

querem ser como todo mundo. Jim e Judy sofrem de aflição adolescente; eles estão

Plato, eles são inacessíveis, opacos. Da perspectiva do controle social pela qual,

solitários. Eles só querem amor. Judy diz a Ray: “Eu provavelmente nunca vou

afinal, pauta-se Juventude transviada, como outros filmes dos anos 1950, o pro-

me aproximar de ninguém.” Quando Jim e Judy se encontram, eles ficam felizes.

blema é evitar que Jim assuma a liderança da gangue, agora que Buzz está morto.

Uma vez que o abismo do isolamento pessoal é atravessado, a rebeldia deles cessa.

Como em Sindicato de ladrões (On the Waterfront, 1954), em que Terry Malloy

E diferentemente do casal de Amarga esperança, um filme mais sombrio de uma

deve testemunhar contra John Friendly, espera-se que Jim denuncie a gangue de

década mais sombria, eles agora podem retornar à sociedade.

Buzz à polícia.

O problema de Judy é inteiramente edipiano. Seu bem-apessoado pai prefere

Uma diferença importante entre Ray e Kazan fica evidente no fato de que

o filho despenteado a suas catequizadas expressões de afeto. O problema de Jim

é consideravelmente mais fácil fazer Jim testemunhar contra a gangue do que

é que seu pai não é suficientemente forte. Ele é um pai permissivo que tenta ser

per-suadir Terry Malloy a testemunhar contra a máfia. Isto se dá porque Jim já

amigo de Jim, que se recusa a discipliná-lo e que se esquiva dos aflitos questio-

havia se socializado. No mundo sentimental e romântico de Nicholas Ray, Jim

namentos de Jim. Pior, ele é um macho fraco, dominado por sua esposa. Como

é um nobre selvagem; são seus pais que desencorajam-no a agir de acordo com

Jim explica a Ray: “Ela o come vivo e ele aguenta (...) Se ele tivesse coragem de

seus próprios impulsos de decência. São eles quem precisam mudar. É a sociedade

enfrentar mamãe uma vez, então talvez ela ficasse feliz e deixasse de implicar com

que impõe limites à bondade natural. Isto não é dizer que os pais de Jim precisam

ele (...) Eu não quero nunca ser como ele.” Numa cena famosa, Jim se aproxima

mudar muito; Ray não está nem perto de oferecer uma crítica radical à sociedade.

do pai, vestido com um avental, e equivocadamente o chama de “mãe”. Quando

Na verdade, culpar a família pela delinquência, como Daniel Moynihan uma dé-

os pais de Jim finalmente tomam uma atitude, é uma sem princípios. A mãe de Jim

cada mais tarde culpou a família negra matriarcal pela falta de mobilidade social

tenta desencorajá-lo a ir à polícia quanto à morte de Buzz. Jim espera que seu pai

entre negros, meramente serve para livrar a cara da sociedade.

a confronte: “Pai, me ajude.” Seu pai, como de costume, falha no teste.

O papel do informante nos filmes dos anos 1950 é ilustre; não apenas delatar é

Ray dá a Jim tudo que seu pai não oferece. Ele se mostra um duro, porém

interpretado como ato de coragem, mas é definido como a escolha moral que separa

compreensivo disciplinador. Jim precisa de uma figura masculina forte e justa com

Jim tanto do interesse pessoal estrábico de seus pais covardes quanto do niilismo

quem possa se identificar e, como era costumeiro nos anos 1950, o departamento de

dos delinquentes. O jogo do duelo automobilístico na beira do precipício imita o

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mundo apocalíptico dos adultos, o mundo apresentando por um guia do planetário

enquanto o priva de qualquer defesa, sob a impressão de que o real potencial

que mostra aos adolescentes uma visão de um holocausto flamejante: Nós “somos

de violência reside em Plato, e não na polícia que o cercou. O filme encoraja e

destruídos, como quando começamos, numa erupção de fogo”. Face ao apocalipse,

disfarça essa reviravolta primeiro por retratar Plato como perigoso (ele havia

o homem é reduzido a um átomo indefeso e isolado: “O homem existindo sozinho

apenas disparado contra um da gangue de Buzz), e, segundo, por retratar os tiros

parece um episódio de pouca consequência.” Contra a imagem da conflagração em

da polícia como acidentais. Além do mais, o filme firmemente se recusa a ver o

chamas, contra a angústia do homem solitário encarando o abismo, os filhos de

comportamento de Jim como traição, mas tenta justificá-lo como a única tática

Juventude transviada invocam uma ética de responsabilidade mútua. “Nós estamos

disponível naquelas circunstâncias. Afinal, Plato era louco, e ele é confrontado com

todos envolvidos”, grita Jim com seus pais quando eles negam sua cumplicidade

o esmagador poder da polícia. A única alternativa para Jim era salvar Plato de si

na morte de Buzz.

próprio. Mas, como o resultado de suas ações demonstra, o paternalismo mani-

Apenas Plato realmente entende essa visão do fim, sentindo a profundidade da

pulativo de Jim falha. Plato, com sua arma mas sem balas, com forma de rebeldia

doença. Ele sabe que pessoalmente será consumido pelas chamas: “Você acha que

mas sem seu conteúdo, é morto a tiros. Retratado como acidente, sua morte com

o fim do mundo virá de noite?”, pergunta ele, ansiosamente. Ele sabe que, apesar

relação tanto à lógica reconciliadora que a exige quanto com a traição de Jim, que

do que Jim diz, as pessoas do lado de fora do planetário, pais e polícia, não são

provê os meios, passa sem registro.

seus amigos. Sua suspeita de que Jim e Judy o haviam traído quando o deixaram

O comportamento de Jim somente pode ser explicado concluindo-se que, uma

dormindo enquanto saíram para explorar a mansão, é um indício da real traição

vez que sua própria alienação terminou (ele encontrou Judy), ele adota a visão da

que virá, e isso o enlouquece. Como o vaso estilhaçado da real sabedoria, ele se

sociedade quanto ao rebelde, e portanto não está mais certo de que as pessoas fora

torna perigoso. Da mesma forma que Vienna tem que exorcizar sua réplica sexu-

do planetário não são suas amigas. Além disso, Ray, o amigo de Jim, encarrega-se

almente reprimida antes que possa libertar suas próprias emoções mal contidas e

da operação policial: como a única pessoa numa posição de autoridade em quem

aceitar o amor de Johnny Guitar, Plato, a réplica irreconciliável, associal de Jim,

Jim confia, Jim acredita que pode confiar nele para restringir seus homens e lidar

precisa ser exorcizado antes que Jim possa ser readmitido na sociedade. Como que

com o enlouquecido Plato com cuidado e compreensão. Jim confunde a integridade

para sublinhar essa temática de sósias, Plato está vestido com a jaqueta vermelha

de alguns poucos indivíduos decentes no sistema com a integridade do próprio

de Jim quando morre.

sistema. Na verdade, é a instituição e os papéis que ela reforça que se mostram

Embora Plato tenha uma abordagem emocional mais clara do vazio no cora-

decisivos no final. O papel do policial sendo o que é, e o papel do rebelde sendo o

ção da sociedade do que tinham Jim e Judy, e embora ele sentisse a traição deles,

que é, deixa inevitável o fato de que um destrua o outro, apesar das boas intenções

ele não podia ver quão profunda e perigosa essa traição poderia ser — que ele seria

dos indivíduos colocados nesses papéis. É inevitável que haja um policial belicoso

enviado à morte por seu melhor amigo em nome de seu próprio bem-estar, e que

no cordão que cerca o planetário. Jim permitiu-se ser enganado por Ray, a pessoa

sua morte se tornaria condição para a reconciliação dos sobreviventes, literalmente

que oferece a ele compreensão, disciplina e um exemplo para admirar, porque,

sobre seu cadáver.

como Nicholas Ray, ele busca soluções morais para problemas políticos. Ele busca

Jim trai Plato por abusar da ética da confiança e da responsabilidade mútua

o único bom homem para acertar as coisas.

que é o núcleo de sua posição moral. Ele convence Plato a deixá-lo ver sua arma

Embora Ray ache ressonância cósmica para a falha da família na visão apo-

porque ele se preocupa com Plato. Pedindo a arma, Jim diz: “Você não confia em

calíptica do idoso guia do planetário, este é um gesto meramente retórico, muito

mim, Plato?” Plato: “Você prometeu que devolveria.” Jim, entregando a arma sem

parecido com a inclusão casual de Kazan em Sindicato de ladrões, na cena do

o pente: “Amigos sempre cumprem suas promessas.” Agindo como pai para Plato,

Mandachuva assistindo à comissão de crime na televisão, sugerindo ramifica-

Jim precisa reconciliar os papéis contraditórios do pai autoritário e do amigo com-

ções de venalidade maiores do que ele está disposto a especificar. A visão do fim

placente. Isso se faz impossível: é apenas por meio da manipulação que a situação

do mundo tem suas raízes na ameaça de aniquilação nuclear, legado dos pais dos

é resolvida, e tragicamente. Em vez de manter a arma que Plato o tinha dado sem

anos 1950 para seus filhos, mas é aqui transformada numa afirmação existencial

rodeios, e convencê-lo a se entregar (a solução autoritária), ou de ficar ao lado de

sobre a condição humana, uma condição de desamparo na qual o indivíduo não

Plato e ajudá-lo a escapar (a solução fraterna), Jim convence Plato a se entregar

tem controle sobre o mundo de objetos. Então ele se volta para dentro, para o reino

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privativo de amigos, família e personalidade, no qual ainda espera controlar seu

seu casaco para Plato mais cedo. Jim aceita a jaqueta de seu pai, apresenta Judy

destino. Jim se vê como livre, como agente moral fazendo escolhas voluntárias,

a seus pais, e todos entram em carros policiais e vão embora. Até a babá negra de

mas o filme revela, apesar de si próprio, que isso é uma ilusão. No nível em que

Plato sorri benevolentemente à partida dos casais, cujas união e reunião foram

essas escolhas são feitas, Jim permanece, como Plato, um objeto de forças que ele

alcançadas às custas de Plato. A velha família é reconstituída, e a nova família,

mal compreende.

Jim e Judy, nasce. As crianças rebeldes agora podem ser aceitas no rebanho por

Que esta revelação surpreendente seja inadvertida, quase incidental, é uma consequência da perspectiva limitada do filme quanto aos problemas sociais que

causa da forma assumida pelo rompimento com seus pais, uma nova família, não ameaçam, mas perpetuam os valores dos pais.

tenta abordar. De acordo com a postura geral do liberalismo dos anos 1950, Ray

Deveria ser claro a esta altura que, apesar das aparências contrárias,

está tentando definir um meio-termo sensível que evite soluções extremas para a

Juventude transviada é um filme profundamente conservador. Embora exale com-

crise familiar — nem a frágil permissividade feminina representada pelo pai de Jim,

paixão pelo rebelde incompreendido, embora ele veja pais fracos e venais atra-

nem o rígido autoritarismo masculino representado pela gangue de Buzz, com sua

vés do hiato entre gerações, não obstante entrega-o às mãos destes mesmos pais.

ampla ordem hierárquica. Sua solução é uma mistura instável do melhor dos dois

Verdade, os pais mudaram, mas numa direção regressiva: o pai de Jim aprendeu

mundos que tenta excluir o pior — a covardia moral evasiva de um, e a opressivida-

a agir segundo o papel de macho ortodoxo e sua mãe aprendeu a se subordinar a

de tirânica do outro. Mas desde que Ray veja o fracasso da família primariamente

isso. O filme critica a família apenas para reafirmar sua vitalidade.

como moral, o resultado das ações de indivíduos egoístas e covardes, desde que

O processo agonizante que surge com o amadurecimento de Jim presumivel-

veja suas consequências como feridas psicológicas nas crianças engajadas num

mente garante que ele vai evitar os erros do pai. Mas o prospecto não é encorajador.

comportamento associal, seus gestos de comiseração pelos rebeldes precisam

Como em tantos outros filmes dos anos 1950, o crescimento da maturidade e o de-

manter-se apenas como gestos. Desde que seus rebeldes não tenham causa —

senvolvimento da capacidade de liderança têm implicações sinistras. Em Sindicato

verdadeiras mágoas concretas enraizadas nas contradições sociais da sociedade

de ladrões, por exemplo, maturidade implica na traição voluntária de velhos ami-

—, sua busca por um compromisso sensato e humano deve terminar em fracas-

gos, rompimento de laços de intimidade com vizinhos com o objetivo de subscrever

so. Na melhor das hipóteses, será como a de Jim: a retórica da responsabilidade

valores maiores e presumivelmente mais nobres. Lealdade pessoal é tida como

mútua servirá para acobertar a manipulação autoritária que por fim entrega suas

uma virtude da adolescência. Em Mortos que caminham (Merrill’s Marauders,

vítimas aos propósitos do Estado. O equilíbrio atingido entre a força e a compre-

1962), de Fuller, Merril conta a um oficial subalterno que “quando você lidera você

ensão, a justiça e a misericórdia, que Ray gostaria que seu pai ideal encarnasse,

tem que machucar pessoas, os inimigos e às vezes seus próprios”. Em Horizonte de

está fadado na prática a pender para a autoridade, porque a crítica social de Ray é

glórias (Flying Leathernecks, 1951), Ray confronta esses temas diretamente. Griff

tão superficial. Sua solução para o problema da família fracassada é meramente

(Robert Ryan), um liberal enjoado exageradamente preocupado com os problemas

começar de novo, com cada membro da família, mais triste porém mais sábio,

de seus homens, finalmente prova-se para seu rígido comandante de esquadrilha,

fazendo pequenos ajustes em seus papéis. Um reexame radical do modelo familiar

Major Kirby (John Wayne), sacrificando a vida de seu cunhado para o sucesso de

é impensável, porque a família é essencialmente saudável.

uma missão. Ele é recompensado com a promoção que o havia sido negada por

O que é mais fascinante sobre Juventude transviada, no entanto, é que o

muito tempo, e ele sabe que atingiu a maturidade. Ele agora é um líder. O líder ideal

filme debocha da tentativa dos anos 1950 de esculpir um centro vital, e faz uma

(pai), mais do que integrar compreensão e força, integra capacidade de resposta

crônica, apesar de si próprio, do fracasso dos esforços para fortalecer a família.

às necessidades de seus homens e à responsabilidade com o sucesso da missão,

Esta subversão interna é evidente na ironia que forma um sentimento dissonante

sacrificando uma pela outra e, ao fazer isso, deixa claro o que Juventude transviada

menor no orquestramento final da reconciliação. O pai de Jim é transformado

obscurece. Todos esses filmes, de uma forma ou de outra, lidam com o preço da

pela catástrofe da morte de Plato na figura forte e corajosa que Jim sempre quis.

maturidade, e todos consideram o preço aceitável, ou mesmo necessário.

Ele diz a Jim que tomará partido com ele (uma parceria), pede que Jim “confie”

É difícil não ver nessa preocupação um reflexo do papel dos Estados Unidos

nele, ironicamente ecoando as palavras de Jim para Plato, minutos antes, enquanto

como líderes do “mundo livre”, e é igualmente difícil não ver traços de má cons-

portentosamente veste Jim com seu casaco, da mesma forma que Jim havia dado

ciência nessa preocupação obsessiva. Os principais intelectuais norte-americanos

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dos anos 1950 gostavam de se congratular por terem alcançado a “maturidade”,

A violência de uma juventude rebelde

por terem emergido da infância esquerdista dos anos 1930. Leslie Fiedler reuniu seus notórios ensaios sobre McCarthy, Hiss, e os Rosenberg sob o título An End to

Carlos Armando 1

Innocence [Um fim para a inocência], e era em nome da maturidade que liberais da guerra fria racionalizavam sua cumplicidade na caça às bruxas do pós-guerra. A liderança necessitava de uma visão clara e de mão firme, de liberdade em relação ao sentimento e de uma prontidão para sacrificar dependências locais e laços

A tensão familiar, a revolta da juventude, o conflito de gerações. Nicholas Ray lança

pessoais por um bem maior. Mas fica claro pela atitude evasiva de Juventude

um olhar crítico sobre a sociedade e a condena nesse único filme que dirigiu com

transviada que havia uma expressão com a qual Ray, diferente de Fuller, não

argumento de sua própria autoria e com liberdade total. Mas ele não reprova essa

estava inteiramente contente.

sociedade falsa e desequilibrada à maneira de um analista cético, que se desespera

Não seria razoável esperar que um diretor de Hollywood produzisse filmes

com a humanidade. Apenas toma o partido dos jovens contra os mecanismos da

radicalmente incisivos e críticos, e quero deixar claro que esta análise de Juventude

pressão do american way of life, e abandona seu grito de revolta. Seu filme afigura-

transviada não deve ser interpretada como uma crítica a Ray por não ter alcança-

-se ao lado de O selvagem (The Wild One, 1954), de Laszo Benedeck, e Sementes

do o impossível. Ela é, no entanto, uma tentativa de demonstrar que os filmes de

de violência (The Blackboard Jungle, 1955), de Richard Brooks, como os melhores

Ray não são nem de longe tão subversivos quanto admiradores do auteur fazem

já realizados sobre a juventude norte-americana. Mas, em vez de olhar os jovens

parecer. Dadas as limitações institucionais, culturais e econômicas da produção

pelo lado dos habitantes mais velhos de uma cidade, da polícia e dos professores,

de Hollywood, eles não podem ser, e é ingênuo pensar de outra forma 4.

como nas fitas acima citadas, Ray faz justamente o contrário: coloca os jovens olhando para uma sociedade que os hostiliza. Mostra sobretudo que os Estados Unidos dos anos 1950 haviam perdido o sentido natural da família. Esta surge representada por um pai dócil e medíocre e uma mãe abusiva e autoritária. A família é, assim, uma pálida reunião de indivíduos sem o menor contato afetivo (o caso de Jimmy). Sentados numa mesa de jantar, os pais indiferentes e as crianças amedrontadas coabitam o mesmo lar (o caso de Judy). A família é, enfim, o caso de Plato, fruto de um casal separado, que contribui para levar ao paroxismo a sua solidão e o seu desespero. Uma cena capital do filme nos permite ver claramente como os três protagonistas — Jimmy, Judy e Plato — deploram suas famílias e sonham com um futuro menos atroz. Numa casa abandonada, Jimmy e Judy se fazem adultos e refazem a sociedade sobre bases mais sadias. Jimmy se torna o pai, Judy descobre enternecida seu papel de mãe e Plato se coloca entre os dois na qualidade de um filho que busca carinho e proteção. Tudo isso pode parecer uma solução estranha, um excesso de lirismo, mas é sublimando esses momentos de sonhos adolescentes que Nicholas Ray vai ao cerne da questão, provando que as causas da revolta dos jovens é a doença dos adultos que submetem os jovens aos vícios específicos de um ambiente familiar

4. Estou em dívida com Mary P. Ryan por várias das ideias expressas neste artigo. (N.A.) 1. Originalmente publicado no Diário do Comércio, em 3 de setembro de 1975.

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desajustado, carente de amor e de compreensão. Os evasivos momentos de isola-

para o abismo nas montanhas de Millestown e a morte absurda de Plato após o

mento dos três protagonistas serão bruscamente rompidos pelo trágico episódio

cerco da casa —, Juventude transviada é a comovente romantização de um mundo

final: a intervenção da polícia que cerca a casa, o despertar alucinado de Plato e

secreto, particular e mágico: o mundo da adolescência insatisfeita, que também

sua morte súbita. Evidentemente Jimmy e Judy voltam para os lares depois da

sabe ser um universo terrível e desesperado.

tragédia, mas resta precisamente saber o que os dois jovens farão no futuro — “no mundo da idade atômica”, como diz o pequeno irmão de Judy. Mas essa é uma outra história, uma também trágica, mas que foge aos interesses desta análise. Juventude transviada nos coloca também diante dos outros temas de reflexão mais exatamente orientados na direção do regime social que fez nascer esses jovens revoltados. No decorrer do filme vemos o papel determinante das famílias de cada um dos protagonistas. Nelas, todos os valores naturais são invertidos ou simplesmente ignorados. A respeitabilidade de fachada dessas famílias burguesas, tão honradas à primeira vista, esconde uma imensa desordem interior. Nos exemplos citados no filme, Nicholas Ray visa a estrutura do american way of life dominado pelo nivelamento progressivo dos sexos e pela debilitação total dos valores. O drama dos Estados Unidos de vinte anos atrás era a sua fina e transparente carapaça, insuficiente para cobrir seu falso otimismo. A revolta de Jimmy, o desequilíbrio de Plato e a insegurança de Judy revelam toda sua morbidez. A direção de Nicholas Ray é rigorosamente clássica, eliminando os artifícios fáceis de imagens convencionais, aproveitando com inteligência o CinemaScope como um catalisador estético da narrativa, utilizando bem as cores nas evocações líricas e na composição de uma atmosfera intimista. Ray também dirige com habilidade os atores, extraindo de Natalie Wood e de Sal Mineo todos os sentimentos dos personagens que encarnam: a bela e terna Judy, e Plato, o adolescente torturado em sua solidão. No caso de James Dean, não se pode esquecer de assinalar sua valiosa contribuição no papel de Jimmy, personagem que ele parece viver e não representar. Sabemos de sua morte estúpida num acidente de automóvel e nos espantamos diante da prefiguração dessa tragédia, quando o vemos dentro de um automóvel em disparada rumo a um precipício. James Dean, revisto por nós recentemente como o amargurado Cal de Vidas amargas (East of Eden, 1954), ressurge também mais próximo dele mesmo, na vida real, como Jimmy de Juventude transviada, filme definido por seu próprio diretor como “a corrida de um adolescente que deseja se tornar adulto depressa”. E saliente-se que, inicialmente, a fita se intitulava The Blind Run [A corrida cega]. Desde a primeira cena, em que James Dean, embriagado, abraça um boneco, passando por sequências de intenso lirismo e perturbadora realidade — como a luta de facas à saída do planetário do parque Griffith, a corrida de dois automóveis

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Nicholas Ray: a última entrevista Katheryn Bigelow e Sarah Fatima Parsons 1

P: Para que não vire literatura? NR: Sim, isso. Quer dizer, é outro tipo de literatura. Eles têm uma tendência a ficar animados com uma frase, visualizam-na, e aí fica monótono. Você nunca deve falar sobre algo que pode mostrar, e nunca deve mostrar algo sobre o qual pode falar. P: Isso não tem a ver com o que os atores trazem ao filme?

Uma conversa com Nicholas Ray, pouco antes de sua morte, que associa lembranças de sua vida e de seus filmes.

Nicholas Ray: Eu odeio assistir a Johnny Guitar (1954) na televisão. Mas eu realmente gosto do que Andrew Sarris escreveu no Village Voice: “Com Johnny Guitar Nick Ray alcança o grau maior da teoria do autor.” Pergunta: O que você pensou quando foi para a Europa e percebeu como cine-

NR: Claro. Um ator pode ser tão talentoso quanto outro, mas se ele não se foca nas intenções do diretor, tudo vai abaixo. Eu adoro trabalhar com atores. P: Você vem do teatro. Imagino que você tenha um método específico de trabalho. NR: Sim, eu tenho meu método, assim como outros diretores. P: O que você acha dos diferentes estilos de interpretação?

astas, especialmente franceses, foram influenciados pelo seu trabalho? Truffaut,

NR: É uma das belezas do cinema, ou de qualquer outro tipo de arte. Uma espé-

por exemplo.

cie de contradição. Eu não tento manipular pessoas. Você está ciente. Faça o que

NR: E também Godard, Rohmer. Sim, eu tive uma forte influência em seus trabalhos. Eu não tenho certeza se ela foi sempre positiva. Lembro que uma noite eu estava voltando para casa durante a filmagem de Juventude transviada (Rebel Without a Cause, 1955). Tínhamos acabado de filmar uma cena entre Jim e Plato. Eu estava assobiando. Estava realmente empolgado, pensando: “Meu Deus, os

quiser. Algumas interpretações me chocam por serem ridículas, mas, por outro lado, por que não? Eu entrei no reino da contradição, mas tudo bem. Isso se soma à reflexão, mesmo que às vezes me enlouqueça. P: Você tem pintado esses dias?

franceses vão adorar essa cena.”

NR: Há muito tempo que não.

P: Seus filmes também influenciaram o Novo Cinema Alemão e Americano.

P: Que tipo de pintura lhe interessa?

NR: Eu soube que Wim Wenders vai filmar um novo filme, Hammett. Ele é um

NR: Eu sempre fui fã do expressionismo alemão e sueco. Edvard Munch e arte

cara ótimo. Eu acho que ele teve muita dificuldade com o roteiro.

medieval também. Eu acho que meus filmes expressam esse gosto.

P: Originalmente, ele queria coescrever com o autor do livro, Joe Gores.

P: Sim, as cores e o cenário do bar em Johnny Guitar.

NR: Ele tentou, mas não deu certo. Raramente dá, com o autor do livro. Muitos cineastas não conseguiram. Eu mesmo pensei que seria capaz, mas foi um fracasso. Escritores se apaixonam por suas próprias palavras e, como cineasta ou roteirista, você não pode ter pena.

NR: Eu o construí do lado de uma montanha no deserto, porque eu adorava o formato e as cores das rochas de lá. É uma espécie de Frank Lloyd Wright medieval. P: Por quanto tempo você trabalhou com Frank Lloyd Wright? NR: Um ano. Eu estudava teatro em Nova York, mas, como venho de Wisconsin,

1. Entrevista realizada em maio de 1979 e publicada na revista parisiense Cinematographe

eu ia para a casa dele de vez em quando. Ele veio para uma conferência na

Magazine em julho do mesmo ano. Tradução de Daniel Pech

Uni-versidade de Columbia. Eu compareci a ela e o parabenizei ao fim. Fomos

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caminhar, e ele me perguntou se eu gostaria de ser um de seus primeiros alunos.

NR: Não é uma questão de ser capaz de lutar para trabalhar. Todas as possibili-

Ingressei na Universidade de Columbia e obtive meu diploma de mestrado em

dades lhes são dadas. Eles podem falar sobre qualquer assunto que desejam. Mas

teatro.

essa é a questão. Esses assuntos são tão triviais.

P: Quando você pensou o cenário de Johnny Guitar, você pensou as cores inspi-

P: Que projetos você gostaria de realizar agora?

rando-se em algum pintor específico? NR: Não me inspirei em outros pintores, mas, claro, eu segui princípios da pintura.

NR: Eu tento imaginar algo novo. É muito decepcionante não estar totalmente animado com algo. Eu preciso disso.

Eu mantive a gangue em preto e branco durante todo o filme. Herb Yates, o dono do estúdio, que estava na Europa durante as filmagens, viu o material quando

P: Em seu filme No silêncio da noite (In a Lonely Place, 1950), Humphrey Bogart

voltou. E ele disse: “Nick, eu adoro o que vejo, mas é um filme em Technicolor e

pela primeira vez em sua carreira interpretou um personagem frágil.

tudo está em preto e branco.” P: Você fez uso de estereótipos, preto para o mau, branco para o bem, com muito humor. NR: Mas o preto e branco são mesclados na gangue. Eles são pinguins.

NR: Sim, eu acho que Bogie foi fantástico, e nos dois filmes que fiz com ele não coloquei uma arma em suas mãos. A arma era um objeto constante para ele. Para nós dois. No silêncio da noite foi um filme muito pessoal. P: Você quer dizer em relação ao seu casamento com Gloria Grahame? Ela não abandonou você para casar com seu filho?

P: A mesma combinação quando Joan Crawford veste um vestido branco com uma espingarda preta.

NR: Ah, sim, isso é bom para revistas, mas não é nada interessante. Aconteceu há muitos anos.

NR: Isso é barroco. P: Édipo? P: James Dean, que foi uma figura-chave dos anos 1950, está na moda de novo nos anos 1970. O que você acha desse culto à juventude? Das aspirações frustradas dos adolescentes?

NR: Não, não tem nada de Édipo nisso. É o que as pessoas pensam, mas na verdade não é tão trágico. O destino de Édipo é matar seu pai. Mas eles nunca tiveram uma relação de verdade. Eles estão divorciados. Só dois ou três amigos próximos trataram

NR: Isso tudo se deve à negligência de uma sociedade opulenta, ao não envolvi-

a situação com tranquilidade. Os outros acharam que era algo sombrio, e isso me fez

mento, à falta de progresso.

querer desaparecer. E eu não acho que isso tenha sido saudável para o meu filho.

P: Tudo isso também caracterizava os anos 1950?

P: Durante as filmagens de No silêncio da noite você estava tão ciente do cinismo

NR: Claro. Era um momento de opulência. É fácil rotular tudo, mas não deveria

de Hollywood quanto o personagem de Humphrey Bogart?

ser. Eu não conheço todas as forças que existem atualmente. Esse período de busca

NR: Não, eu não acho que isso apareça no filme. Eu tentei retratar Hollywood

que estamos vivendo agora é positivo, mas ao mesmo tempo é uma grande perda

da forma que faria com uma pequena cidade da Pennsylvania. Em Beaver, na

de tempo, uma grande irresponsabilidade. Todas as crianças ricas [estudantes de

Pennsylvania, acontecem as mesmas coisas que em Hollywood. Só não é tão no-

cinema] gastando cinco ou seis mil dólares por ano para fazer seus filmes.

ticiado.

P: Você acha que uma pessoa rica, ou bancada pelos pais, não tem a energia ne-

P: A verdadeira força de No silêncio da noite está no fato de que não há como aquele

cessária para lutar por trabalho ou a necessidade de se esforçar?

casal ter um recomeço. A desconfiança triunfa.

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NR: Sim, não sabemos nada sobre eles. Na primeira versão do roteiro, que eu es-

NR: Você acha? Você acha que meus filmes influenciam a cultura de hoje?

crevi com Bundy Solt, o final era mais fechado e claro. Ele a matou e Frank Lovejoy o prende. Mas eu não gostava do fim. Então eu expulsei todos do set, exceto os atores, e nós improvisamos o final. Não sabemos bem o que ele significa. É o fim do amor deles, com certeza. Mas ele pode pegar seu carro e cair num penhasco, parar num bar e ficar bêbado, ou ir para sua casa ou para a casa de sua mãe. Tudo é possível. Cabe à imaginação da plateia.

P: Sim. NR: Como assim? P: A mídia projeta uma certa imagem. NR: Eles a estão refletindo.

P: Wim Wenders em O amigo americano (Der Amerikanische Freund, 1977) parece usar a narração como uma desculpa para deslocar personagens complexos em cenários belos e elaborados. A história se torna superficial.

P: Os dois. NR: Isso não é influência.

NR: E obscura. P: Não é uma via de mão dupla? P: É importante quebrar a estrutura linear da narrativa?

NR: O importante são as pessoas.

NR: É a forma que escolhi para meu projeto autobiográfico. Não é cronológico, e sim baseado na espontaneidade. Porque algo que é de seu interesse, que você escreve no presente, você pode ter escutado há meia hora ou quando você tinha nove anos. P: Você gostou de trabalhar em O amigo americano?

P: Você não está falando sobre conformismo? NR: Até onde vai o conformismo? Poucas mulheres passaram pela síndrome “Annie Hall”. Você vê poucas delas em cidades de até 50 mil pessoas.

NR: Adorei. Eu gosto de atuar de vez em quando. Isso me permite juntar as peças, e

P: Mas Juventude transviada influenciou a cultura jovem sobre a qual estamos

dizer a mim mesmo que a minha forma de trabalhar ainda é a correta. No primeiro

falando.

dia, eu me peguei fazendo o que sempre grito para os atores não fazerem. Nós desmembramos o roteiro e começamos a escrever meu papel enquanto filmávamos. Wim é muito paciente, e eu me senti muito bem, o que não é sempre o melhor para o ator, sentir-se à vontade. Às vezes é bom assustá-los. P: Durantes as filmagens de Johnny Guitar, eu li que você trazia flores para Mercedes McCambridge, mas não para Joan Crawford, ou vice-versa, apenas para criar uma tensão entre elas. É verdade? NR: Uma noite, Joan Crawford ficou bêbada e jogou as roupas de Mercedes McCambridge na estrada. Ela era uma ótima atriz, mas às vezes a raiva tomava conta de seu temperamento. Elas eram muito diferentes e Crawford odiava McCambridge.

NR: Muitas pessoas ficaram animadas por terem redescoberto alguém. Depois desse ressurgimento vamos precisar de mais vinte anos para o redescobrir numa caverna. P: De qualquer forma, James Dean não simboliza algo fora da ordem social, uma espécie de ruptura que o fascina? O filme mostra os símbolos que a sociedade criou para si mesma. NR: O personagem realmente interessante do filme é Plato, interpretado por Sal Mineo. As pessoas queriam acreditar numa história. Não há história. Eu só queria influenciar os pais. P: Fazê-los entender o que estão fazendo a seus filhos?

P: Seus filmes vêm de um período cultural muito específico, e, ainda assim, pos-

NR: Não, o que estão fazendo a eles mesmos. Os pais daquela época viraram uma

suem uma forte influência hoje.

geração perdida, e eu sempre ouço as mesmas coisas sobre o assunto, as mesmas palavras. É tão datado.

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P: Em Juventude transviada, os pais representam a lei e a ordem. NR: Sim, eu os caracterizei assim de propósito. Eu sou preconceituoso demais para os jovens. Mas foi difícil atingir os adultos.

Lightning Over Water Kathe Geist 1

P: É um filme político? NR: Sim, Abbie Hoffman disse isso. Foda-se a política. A política é a vida.

Nicholas Ray morreu em 1979 enquanto produzia um filme com Wim Wenders. O filme autobiográfico, Um filme para Nick (Lightning Over Water, 1980), conta a

P: Mas em Juventude, Jim e Judy parecem se rebelar contra a lei e a ordem, para

história do diretor mais velho encarando a morte e do mais novo se entendendo

retornar a elas no fim... O filme trabalha no espaço dessa elipse.

com a mortalidade. É a afirmação mais completa de Wenders sobre o assunto da

NR: É aí que terremotos acontecem.

morte, uma temática recorrente na maioria de seus filmes.

P: O que James Dean trouxe ao filme?

fundido de um prédio na baixa Manhattan, na trilha acordes tão dissonantes que

O filme começa com um táxi amarelo parando em frente à estrutura em ferro

NR: Ele não escreveu os diálogos. Stewart Stern e eu fizemos muita improvisação. Jimmy era muito talentoso por conta de sua imaginação aberta. P: Ele o imitou?

fazem você morder os lábios. Poderia ser a tomada que abre o sétimo filme de Wenders, O amigo americano (Der amerikanische Freund, 1977), de cuja trilha sonora o acorde também deriva. Mas em vez de Dennis Hopper, Wim Wenders sai do carro. Wenders segue o mesmo trajeto que Hopper percorreu no filme anterior e sobe ao sobrado de Nicholas Ray. Em O amigo americano, Ray interpretou o envelhecido

NR: Ah, ele copiava minha afetação, mas eu não acho que ele me imitava porque

pintor Derwatt, que, supostamente morto, forja as próprias pinturas. Neste filme

existe um aspecto da direção que eu odeio. Eu nunca tento mostrar a um ator o

ele atua como ele mesmo: um outrora grande diretor passando por dificuldades,

que fazer ou o que dizer. Ele tem que descobrir. O papel do diretor é guiá-lo para

morrendo de câncer. Wenders veio fazer um filme com Ray, para dar ao moribundo

esse estado, e aí aprimorá-lo. Se não, todos vão tentar imitar o diretor, e não existe

uma última oportunidade de trabalho, uma última chance de “pôr-se inteiro antes

diretor suficientemente talentoso para ser capaz de interpretar todos os papéis.

de morrer”. Wenders e Ray discutem o filme: a história, os atores, o título, que Ray escolhe ser Um filme para Nick. Eles decidem começar a filmar pela próxima palestra

P: Enquanto dirige, você se vê confrontado com as fraquezas de atores? NR: Sim, é uma experiência catártica para eles, e eles ficam mais fortes, mais cientes de suas limitações. P: Werner Herzog em Coração de cristal (Herz aus Glas, 1976) hipnotizou os atores, o que tende a aumentar a hierarquia.

de Ray em Vassar, que sucederá uma exibição de um filme seu, Paixão de bravo (The Lusty Men, 1952). Após a palestra Wim olha para uma fita com o discurso que Tom Farrel, antigo aluno de Ray que o segue com uma câmera de vídeo, tinha feito. Os dois homens assistem à forma fantasmagórica de Ray no monitor enquanto a luz vermelha de um letreiro em neon do lado de fora pulsa como um batimento cardíaco. Mais tarde Ray mostra seu experimento inacabado com técnica de ecrã fracionado, We Can’t Go Home Again (1973/76). Durante a exibição ele se levanta e,

NR: Hipnotizar um ator é dizê-lo quando acordar, ou para andar para a esquerda ou

curvado e magro, permanece observando sua imagem, ainda forte e vibrante, na

descer as escadas. Um ator deve contribuir para a direção. Devemos confiar em sua

tela. Diretor e equipe são assombrados pelo sofrimento de Ray. Wenders sonha

espontaneidade, para que eles a coloquem em ação. Devemos ajudá-los a chegar lá.

que Tom Farrel tenta estrangulá-lo. Wim é chamado novamente a Los Angeles, onde está envolvido com trabalho

P: O personagem de James Dean é uma espécie de síntese de sua própria catarse,

de pré-produção de Hammett (1982), que está dirigindo para Francis Coppola. Antes

e seu conceito sobre como um personagem deve ser. NR: Sim, sobre minha própria vontade de aceitar ou descartar o personagem. 176

1. Originalmente publicado na revista Film Quarterly, em 1981. Tradução de Bruno Marson.

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de ele ir embora, Ray dá entrada no hospital. Wenders o visita e Tom registra a

indo com o filme em grande parte porque Ray estava muito fraco e poderia morrer

sequência em vídeo. Wenders parte para Los Angeles levando o diário de Ray dos

a qualquer momento. Uma grande diversidade de material foi filmada que varia-

últimos dois anos com ele. Palavras do diário aparecem pela tela enquanto Wenders

va em técnica do cinéma vérité ao documentário encenado e à ficção encenada.

pondera sobre a sabedoria e coragem do moribundo. Quando Wim retorna, Ray

A montagem desse material resultou menos num documentário do que num tes-

esta ensaiando o ator Gerry Bamman em Um relatório para a Academia, de Kafka,

temunho pessoal funcionando num princípio de níveis de realidade cambiantes.

um monólogo satírico no qual um símio conta sobre sua decisão de unir-se à raça

As tomadas da equipe trabalhando são a “realidade” mais pura, um lembrete

humana. Mais tarde, a esposa de Wenders, Ronee Blakley, e Ray ensaiam uma

constante de que estamos “no processo de produção de um filme”, como Ray conta

cena escrita por Ray numa adaptação de Rei Lear. Fortemente simbólico, o cenário

à plateia de Vassar. A conversa entre Ray e Wenders, que forma o núcleo do filme,

e roupas são brancos enquanto gatos pretos sentam-se ao redor do leito hospita-

foi em sua maior parte escrita, e Wenders deixa o público ciente disso quando ele

lar de Ray. Wenders os observa e sonha uma vez mais que ele está na cama. Ray

erra uma fala e recomeça.

senta-se ao seu lado e reclama. Finalmente ele encara a câmera e grita: “Corta!”

Em adição à “realidade” encenada dentro e ao redor do sobrado de Ray e às

O filme corta para seu epílogo, o velório de Ray, filmado e celebrado pela

sequências nas quais ele fala em Vassar e ensaia Gerry Bamman, há sequências

equipe a bordo de uma barcaça chinesa que havia sido adquirida por um capri-

puramente ficcionais nas quais Ray e Ronee Blakley imitam Rei Lear e Cordélia,

cho de Ray. No convés assenta-se uma urna chinesa contendo as cinzas de Ray.

e Wenders encontra-se no leito hospitalar. Essas cenas ficcionais sobressaltam

“A morte de Nick foi seu último ato de direção”, diz um dos membros da equipe.

porque extraem tão diretamente da realidade da situação e das fantasias dos en-

O filme termina com um freeze frame: uma longa tomada de helicóptero da bar-

volvidos, e por isso retratam a “realidade” subjetiva.

caça navegando no porto de Nova York, Manhattan em segundo plano, e sobre ela escritos do diário de Ray. Eu olhei para meu rosto e o que é que eu vi Nenhum granito empedrado de identidade — azul desvanecido Pele esticada e lábios enrugados e tristeza E um impulso selvagem de reconhecer e aceitar o rosto de minha Mãe

As sequências de vídeo de Tom Farrell pontuam o filme, que corta das filmagens de Farrell para as próprias sequências filmadas, uma mudança das sequências roteirizadas para o vídeo puramente espontâneo. (Não havia intenção inicialmente de usar o vídeo no filme final.) Os cortes do filme para o vídeo enfatizam a tensão do confronto entre objetivo e subjetivo subjacente ao filme, o conflito entre a programação objetiva e planejada de filmagem e o drama pessoal ao vivo, que nenhuma programação de filmagem poderia conter ou controlar. Quando Wenders visita um Ray cadavérico no hospital, a sequência filmada apenas no

Mais do que muitos, Um filme para Nick é um filme criado na sala de mon-

vídeo, o filme explora mais perto esse drama subjetivo. Ainda assim, as sequências

tagem. Durante as filmagens, os diretores tinham pouca ideia de onde eles estavam

de vídeo levemente bizarras e fantasmagóricas, em certo sentido mais “reais” que

2

as sequências do filme, têm uma característica transcendental que evoca a ideia 2. Uma primeira versão do filme foi editada por Peter Przygodda, editor de todos os longas-metragens anteriores de Wenders, e mostrado em 1980 no Festival de Cannes, onde recebeu considerável aclamação. Uma edição extremamente disjuntiva e falas mais longas, que

de uma batalha contra a morte. Esses níveis variáveis de realidade atropelam-se no decorrer do filme. Por exemplo, um grupo de tomadas muda do sonho de Wenders no qual Tom Farrell

tendiam à obscuridade, caracterizavam essa versão e deram a ela uma qualidade altamente

o está estrangulando, filmado em película, para uma tomada em vídeo da equipe

pessoal, fundamentalmente mórbida. Ao ver o filme, Wenders, que não tinha ajudado na

observando, não mais tão “real” quanto aparentam no filme mas parecendo flu-

edição, sentiu que não era o que ele queria e começou a reeditá-lo com o diretor de produção

tuar como fantasmas acusadores. A próxima tomada, em filme, é uma lustrosa

Chris Sievernich no verão de 1980. Mantendo-se fiel à cronologia e à escolha de imagens de

e brilhante manhã numa rua de Manhattan com Wim e Tom, inteiramente amigos,

Przygodda, Wenders e Sievernich compararam as sequências com suas essências e portanto encurtaram e clarificaram o filme. Eles adicionaram a explicação narrada de Wenders a cada sequência, incluindo as passagens em que ele cita o diário de Ray. Grande ênfase foi

no caminho para o café da manhã. Esta sequência de tomadas ilustra os níveis objetivos e subjetivos do filme assim como o papel do vídeo em retratar, pelo

colocada na esposa de Ray, Susan, e a sequência indicando as dificuldades que Wenders teve

efeito desmaterializador das ondas eletrônicas, os sujeitos como mais e menos

em aceitá-la foi deixada de lado. (N.A.)

reais do que as sequências em película. Os comentários de Wenders servem para

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orientar o espectador, que também precisa constantemente reajustar seu senso

deixou Hollywood. Passou a maior parte dos anos 1960 na Europa, onde críticos

de realidade. Esses níveis de realidade cambiantes também preparam o especta-

franceses haviam louvado a maestria de seus filmes em Hollywood. Ele criou um

dor para a realidade não encenada que finalmente determina a forma e o caráter

projeto após o outro, mas não terminou nenhum deles. Em 1971, foi ao Harpur

do filme, a morte de Ray. Morte: objetivamente a mais intransigente realidade,

College em Binghamton, Nova York, para ensinar cinema. Lá ele iniciou We Can’t

subjetivamente irreal enquanto totalmente desconhecida.

Go Home Again (1973-76) como um projeto com seus alunos. Sempre um rebelde

Ray não viveu para ver a barcaça, embora ele tenha escrito as cenas para ela.

e inovador, Ray comenta em Um filme para Nick sobre seu filme ainda inacabado:

Uma lembrança de seu último filme de Hollywood, 55 dias em Pequim (55 Days

“Eu fotografei e refotografei — em espelhos, chapas de estanho, em acrílico... 23,

at Peking, 1963), o barco aparece em intervalos por todo o filme. Como uma barca

16, super-16, super-8, 8, sintetizador de vídeo...” Na versão original de Um filme

funerária, ele sugere a passagem para outro mundo. Fitas de filme 35mm descem

para Nick ele comenta que por anos sonhou com a capacidade de destruir a for-

de sua proa e sugerem a imortalidade de Ray por seus filmes e por este filme. Ainda

ma retangular: “Eu não aguentava a formalidade dela.” Em 1974 ele se mudou

em sua fina fragilidade, o filme soprado pelo vento mostra imagens da debilidade

para o sobrado no SoHo no qual Um filme para Nick se passa e desenvolveu uma

da jornada humana como vida humana.

oficina para atores e diretores na Universidade de Nova York. Em 1978 ele soube

Há três cortes maiores para a barcaça durante o filme, e cada um estende

que tinha câncer. No mesmo ano, Wenders foi para os Estados Unidos trabalhar

nossa visão para a morte de Ray e para a concepção de Wenders dela. Antes do

em Hammett. Ray queria começar um novo filme e conversou com Wenders so-

primeiro corte Ray pergunta a Wenders por que ele veio, e Wenders responde que

bre seus vários projetos, mas Wenders duvidou que Ray tivesse força para tal

queria falar com Ray. “Sobre o quê?”, pergunta Ray, “Morrer?” Uma tomada bas-

empreendimento. Eventualmente os dois decidiram fazer um filme juntos, mas

tante longa da barcaça, que se torna um acompanhamento bastante rápido e uma

em vez da história de ficção original, ele tornou-se a história da luta deles para

tomada em zoom, segue de imediato, visualmente reiterando a sensação de apro-

fazer um filme em face da morte iminente de Ray. Foi a natureza tragicamente

ximação da morte ou de confrontá-la diretamente que as palavras de Ray evocam.

inconsequente de Ray nas duas décadas anteriores que fizeram esse filme tão

O segundo corte ocorre enquanto Gerry Bamman interpreta Kafka. Embaixo

imperativo para ele e Wenders, que, como os críticos-tornados-diretores franceses

de uma escada de forma a representar uma jaula, o símio-tornado-homem expli-

antes dele, endeusava Ray.

ca: “Liberdade não era o que eu queria, mas uma saída... saída... saída... saída!”,

Wenders conheceu Ray em 1976, antes de começar a filmar locações em

seu volume aumentando enquanto ele sacode a escada violentamente. A barcaça

Nova York para O amigo americano, e eles se tornaram amigos. O personagem

aparece navegando sob uma ponte numa tomada bastante longa. A tomada é tran-

de Derwatt foi ideia de Ray, e ele ajudou Wenders a colocá-lo no filme. Mesmo

quila, sem zoom; a ponte intensifica a ideia de passagem. Como o símio adentra

antes desse encontro, a influência de Ray podia ser vista nos filmes de Wenders.

a humanidade como forma de saída, Ray adentra a morte. A comparação entre Ray

Em No decurso do tempo (Im Lauf der Zeit, 1976) a velha casa na ilha Rhine na

e o símio humanizado, juntamente com a imagem do barco e da ponte, também

qual Bruno cresceu lembra a mansão abandonada de Juventude transviada, seu

indica que a morte não é o fim, que Ray transcende a mortalidade como o símio

uso ditado menos pela lógica da história do que pela fascinação de Wenders por

transcendeu o simianismo.

mansões em deterioração e por lugares desertos — uma fascinação compartilhada

O terceiro corte inicia no Epílogo e ocorre após Ray encarar a câmera e dizer:

por Ray. A sequência em que Bruno solta um degrau da varanda e puxa uma lata

“Corta!” Uma vez mais a barcaça aparece num ponto de confronto. Novamente a

de gibis antigos é remanescente de uma cena de Paixão de bravo na qual Robert

ideia de passagem é reforçada quando a barcaça, fotografada diretamente de cima,

Mitchum retorna à sua velha casa, desliza por baixo dela e, alcançando as tábuas

um ponto de vista onisciente, navega sob uma ponte.

do piso, puxa uma arma e um velho gibi.

A amizade entre Ray e Wenders proporciona a raison d’être do filme. Mais

A dúbia volta de Mitchum para casa (na verdade ele, como Bruno, não tem

lembrado por Johnny Guitar (1954) e Juventude transviada (Rebel Without a Cause,

mais uma casa) é incluída em Um filme para Nick, e Wenders comenta com Ray:

1955), Nicholas Ray dirigiu vinte filmes em Hollywood no fim da década de 1940 e

“A cena quando Mitchum volta pra casa — é mais sobre ir para casa do que qual-

na de 1950. Talentoso, inovador e bem-sucedido, Ray ainda assim continuou um

quer coisa que já vi.” Wenders compartilha seu ceticismo sobre o lar com Ray.

forasteiro em Hollywood. A tensão resultante transformou-se em alcoolismo, e ele

“Identidade [significa] não ter que ter um lar”, ele diz a Jan Dawson, enquanto

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o lema pessoal de Ray (uma frase de Johnny Guitar) era: “Eu também sou um

Wenders escalou diretores de cinema em todos os papéis de gângster em

estranho aqui.” Ao mesmo tempo, uma busca pelo lar se dá nos filmes de Ray

O amigo americano porque, segundo ele, eles se aproximavam de gângsteres dentre

assim como nos de Wenders, e sua essência é expressa no diário de Ray quando

os praticantes de profissões legítimas. A conexão está precisamente no elemento

ele escreve sobre “a mais selvagem necessidade de reconhecer e aceitar o rosto

da manipulação. Jonathan é manipulado na tela por homens pagos para manipu-

de minha mãe.”

lar pessoas “por grandes tomadas” fora da tela. Wenders não consegue esquecer

A busca pelo lar para esses dois está conectada à busca por identidade que

que ele também é um diretor e que, como Ripley, está dividido entre o interesse

constitui a base de todos os longas-metragens de Wenders e que dominou a vida

próprio e uma crescente afeição por Jonathan. Wenders está dividido entre ser um

de Ray. Quando James Dean morreu, Ray escreveu: “Por uma ironia trágica, a

diretor e ser um amigo. “Eu estava mais e mais sob a pressão de fazer ‘um filme’

fuga que James Dean encontrou foi total e absoluta. Mas ele lamentou através

(...) preocupado com o trabalho em si (...) em vez de me preocupar com Nick.”

da imagem de Jim Stark [seu personagem em Juventude transviada], cuja fuga

Durante a sequência de Kafka, Wenders realça o perigo que ele representava para

era a que ele realmente esperava, constantemente buscava — uma total, completa

Ray repetindo os acordes dissonantes de O amigo americano quando Ray o nota

compreensão de si.” Logicamente a busca por identidade, por compreensão de si,

na plateia e se vira para saudá-lo.

3

é uma temática importante em Um filme para Nick. A transcendencia que a visua-

Os acordes também surgem enquanto Wenders está lendo o diário de Ray. 4

lização indica está ligada não apenas ao confronto de Ray com a morte, mas à sua

“Desde que idade precoce eu quero morrer?”, diz ele citando Ray. “Talvez não

busca por compreensão própria.

morrer, mas experimentar a morte? Experimentar a morte sem morrer parecia

“Eu tenho uma ação, que é recuperar minha imagem de mim”, Ray diz a Wenders. “Você tem que selecionar sua própria ação.”

um objetivo natural para mim.” Jonathan em O amigo americano compartilha a fascinação de Ray pela morte, sua própria, a princípio, e tal fascinação eventual-

“Minha ação será definida pela sua”, responde Wenders, que deixa sua iden-

mente desenvolve-se em assassinato, que dá a ele o único poder que conseguirá

tidade aberta como os personagens de seus primeiros filmes, que descobrem suas

ter sobre a vida e a morte. Como em Orfeu (Orphée, 1950), de Cocteau, a morte é

identidades no fluxo de viagens ou as definem em termos das necessidades e das

buscada por seu poder e mistério.

ações de suas companhias. Por todo o filme a resposta de Wenders contrapõe

Wenders compartilha essa fascinação: morte acidental, assassinato, tentativa

a ação de Ray. Enquanto Ray luta para atingir as demandas de fazer um filme,

de assassinato, suicídio e tentativa de suicídio apimentam seus filmes. Seu curta

Wenders agoniza. “Tudo que eu sabia era que Nick estava com uma imensa dor,

experimental, Same Player Shoots Again (1967) repete uma cena com travelling

que talvez fosse melhor parar de filmar mas que nada seria mais doloroso para

de um gângster baleado cinco vezes. A ideia é expandida em Alabama (1968), a

ele do que isso”, diz ele na narração em off que acompanha o filme. A dor física e

narrativa altamente estilizada de um jovem arruaceiro mandado por sua gangue

a vulnerabilidade de Ray estão espelhadas na dor e na vulnerabilidade psíquicas

para matar um inimigo. Ferido, o homem retorna para a sede da gangue para

de Wenders. Ele nunca se livra do temor de estar ajudando a matar Ray.

encontrar seus amigos mortos pelo chão. Ele se atrapalha com o jukebox e, pres-

A primeira tomada de Um filme para Nick é quase uma réplica exata da pri-

sionando sua ferida, move-se entre os corpos de seus amigos chacinados numa

meira de O amigo americano, e assim indica uma conexão com o personagem de

espécie de dança ritualística da morte enquanto o canto de Jimi Hendrix ressoa do

Dennis Hopper, Tom Ripley e Wenders. Suas ações confirmam isto. Ripley envol-

aparelho. Enquanto o homem dirige para um destino desconhecido, vemos de seu

ve Jonathan, sofrendo com leucemia, em façanhas que aceleram sua morte mas

ponto de vista através do para-brisa. A abertura na camera se fecha até que a tela

que ao mesmo tempo o retiram de uma domesticidade burguesa mortificadora,

esteja preta, com exceção de algumas luzes oscilantes. Ela se abre novamente, e

em direção a um novo nível de autoconsciência. Assim como Wenders incita um

então se fecha completamente, indicando que o homem está morto.

moribundo numa aventura de autodescoberta. A última fala audível no epílogo é de Tom Farrell: “Você mataria alguém por uma grande tomada?” Ripley manipula Jonathan, e Wenders é assombrado pelo temor de poder estar usando Ray.

4. Esta sequência também inclui tomadas que são particularmente Wendersianas, como a silhueta de um homem (Wenders) na parte de trás de um carro e uma asa de avião fotografada de dentro do avião, como se Wenders estivesse combinando sua assinatura com a

3. John Francis Kreidl, Nicholas Ray (Boston, 1977), p. 73.

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de Ray. (N.A.)

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A morte deste herói anônimo contrasta com os frequentes suicídios nos filmes

O Paroxismo da interpretação

de Wenders, que estão frequentemente ligados à sufocação. Em Movimento em falso (Falsche Bewegung, 1975), o industrial, oprimido por sua solidão, enforca-se.

Bernardo Carvalho 1

Supostamente por estar redecorando, tudo em sua casa está embrulhado em plástico, uma imagem visual de sufocamento. Em No decurso do tempo, uma mulher que nunca vemos comete suicídio batendo seu carro contra uma árvore, uma imagem que indica um ponto final em vez de uma saída. Ela também sofria de

Sob a direção de Wim Wenders, Nicholas Ray anula a representação tradicional

um insuportável senso de sufocamento. Seu marido explica: “Nós estávamos nesse

ao interpretar a morte, morrendo.

hotel por alguns dias — uma pequena vila. Ela disse: “Fede, a cama fede, a pia fede,

Qualquer coisa da traição. Reforçada ainda mais por deixar-se entre-

a cozinha fede, o abajur fede.” Então, de repente, o cheiro da cozinha, e ela não quis

ver no que aparece como homenagem. É nessa dubiedade que se desenrola

seguir em frente.” Quando Jonathan reflete sobre suicídio em O amigo americano,

Um filme para Nick (Lightning Over Water, 1980), de Wim Wenders e Nicholas

ele coloca a arma contra sua cabeça mas primeiro a cobre com um travesseiro,

Ray, em torno de Ray. Mais do que uma louvação ao mestre, ao grande cineasta à

outra imagem visual de sufocamento. A ligação entre suicídio e sufocamento sugere

beira da morte, e à realização de seu último desejo (obviamente, voltar a filmar),

que esses personagens se matam porque não conseguem transcender as circuns-

o que está em jogo aqui é uma espécie (é preciso tentar maquiar ao máximo o

tâncias sufocantes de suas vidas. Não há passagem sugerida aqui porque não há

sentido de certas palavras) de vampirização, em que a admiração do realizador

compreensão de si mesmo, apenas derrota.

pelo velho cineasta pode transformar este último também em vítima. Entre vam-

Em contraste, tanto Jonathan quanto o herói de Alabama morrem dirigindo.

piros, entretanto, a sedução é sempre o trunfo principal, a armadilha, e se há algo

(A mulher em No decurso do tempo morre depois e porque seu carro bate numa

evidente nesse filme é que o ato de traição vem empacotado numa sedução capaz

árvore.) Dirigir é a imagem recorrente de Wenders para o que é mais sagrado para

de fazer de sua presa uma obra de arte.

ele: viajar, mudança, movimento e a possibilidade de autodescobrimento. Esses

Não foram poucos os que se horrorizaram com esse vampirismo, essa “mor-

heróis morrem, mas seus carros seguem em movimento, pelo menos por um breve

bidez”, que se resumia em tomar um dos grandes nomes da tradição cinemato-

período, o que sugere um momento em que a morte não para, um confrontamento

gráfica norte-americana, decadente em seus últimos dias de vida, para fazê-lo

em vez de uma capitulação, e, como a barcaça, uma passagem — reforçada no caso

representar sua própria morte. Não foram poucos os que, mais próximos da pessoa

de Jonathan pelo fato de que ele morre perto do mar. Suas mortes são compará-

do cineasta, escandalizaram-se com a falta de escrúpulos com que o jovem levou o

veis à de Ray, que confronta a morte, cujas cinzas são carregadas para o mar pela

velho, já frágil e entregue, pelos caminhos perversos da representação, enquanto

barcaça, e que havia sido implicitamente comparado com Jonathan por causa do

sua vida se mantinha intacta ao lado, alimentada de certa forma pelo jogo que

papel de Wenders como Ripley.

propunha ao outro. Houve quem se espantasse ante a visão primária de uma

Cada uma dessas mortes caracterizadas pelo confronto e pela passagem

aparente metalinguagem (a narração em primeira pessoa e em off, falando inces-

é acompanhada pela referência dramática à luz. Em O amigo americano, há

santemente de cinema). Para não citar os que condenaram o filme por transformar

uma explosão flamejante na praia imediatamente anterior à morte de Jonathan.

tudo em representação. Algo bastante compreensível quando se vê que Um filme

Em Alabama, algumas luzes continuam a queimar na escuridão até que a abertu-

para Nick eleva-a a seu mais alto grau, a ponto de fazer com que a própria morte,

ra seja completamente fechada enquanto a trilha sonora toca “Carry the Lantern

radicalmente real, seja interpretada como falsa, através de uma cena do Rei Lear

High” dos Rolling Stones. No epílogo de Um filme para Nick, um membro da

numa simulação de quarto de hospital.

equipe sugere queimar a barcaça, e outro, em resposta, segura um fósforo aceso

Tudo isso serve para colocar a figura do ator (aqui através do corpo de Nicholas

em frente à câmera, que registra a trêmula luz se esvair ao consumir o palito de

Ray) numa extremidade que a anula, numa exacerbação no limite do kitsch,

fósforo. A luz sugere autocompreensão, transcendência, e uma qualidade imortal no espírito humano. 1. Originalmente publicado no jornal A Folha de São Paulo, 1 de Janeiro, de 1988.

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tentando trapacear com a vida e a morte num dispositivo frágil (a interpretação

anos antes, de O amigo americano. Fica claro, então, que o filme que veremos trata

jamais conseguirá abolir a morte), mas ao mesmo tempo eficaz (se nada acontece

mais do problema e do lugar do ator que do do diretor. Está claro, portanto, que

com a morte, a representação por sua vez se destrói ao coincidir com o que repre-

esta não é uma homenagem, mas um jogo com a representação proposto entre

senta, ao se duplicar, ao se tornar redundância). É essa a grande contribuição de

dois cineastas. “O papel não estava no roteiro; nós o escrevemos juntos. Também

Nicholas Ray, ainda que pelas mãos de Wenders, no que se refere à interpretação

jogamos muito gamão. E nos tornamos bons amigos”, diz Wenders, ainda subindo

no cinema. Algo tão importante para a questão do ator quanto Verdades e mentiras

as escadas, a propósito de seu filme anterior.

(F For Fake, 1973), de Orson Welles, foi para a do documentário.

Ao chegar ao apartamento, é recebido por Tom Farrel, assistente de Nick que

Não é à toa que Ray tenha participado em O amigo americano (Der

ficará encarregado das gravações em vídeo durante as filmagens, papel cuja fina-

amerikanische Freund, 1977), de Wenders, interpretando um falsário. É ainda o

lidade única parece ser a de tornar ainda mais transparentes as imagens cinema-

falso que impregna esse simulacro de documentário afetivo que é Um filme para

tográficas, como se realmente viessem de lugar nenhum, já que, por comparação,

Nick. E aí se estabelece o primeiro traço de traição, impressão que permanece e

a origem das eventuais imagens eletrônicas se torna bem mais definida: é visível.

cresce por não se saber ao certo até onde vai a colaboração entre Wenders e Ray,

A recepção de Wenders é de um naturalismo caricatural. Todos representam a

até onde o filme é de um ou de outro, até onde o homenageado é homenageado

ausência da representação, como se não o esperassem, como se nada estivesse

e até onde vai sua consciência de presa e cumplicidade no ato de vampirização.

montado para captar os movimentos de sua chegada, e isso só não destrói por completo o filme porque a presença inicial dessa caricatura da representação naturalista terá como único objetivo fazê-la voltar-se em seguida contra si mesma

Transparência

através de sua própria afirmação. Há, é verdade — mas isso apenas por razões pouco mensuráveis de talento

O primeiro fotograma estampa à altura das legendas uma data (8 de abril de 1979)

e habilidade do diretor —, um certo fascínio nesse naturalismo, uma beleza típica

e, ao fundo, as duas torres do World Trade Center iluminadas pelo sol do início

dos diários filmados, uma delicadeza afetiva, mas que se revelará mera armadilha

da manhã e vistas de um cruzamento de ruas no SoHo. Um táxi entra pelo canto

com o decorrer das imagens mais singelas e verossímeis até a interpretação da

da tela, para, e dele salta um homem vestido com um sobretudo e uma mala na

morte e a própria morte do velho cineasta, momento indiscernível, elipse entre seu

mão. Sua voz em off conta o voo que acabou de fazer de Los Angeles a Nova York

corpo morrendo-fingindo-morrer e a alegoria indisfarçada da morte já consumada.

e a razão pela qual veio: para ver Nick. Até aí nada define ainda se o que se verá em seguida será um filme policial ou um diário filmado. Mais próximas do último, as imagens apresentam, entretanto, desde esta primeira cena, um enigma: quem filma? Estamos diante de uma simulação barata — uma ficção querendo se passar

Incômodo

por documentário —, análoga à representação tradicional do ator no cinema. A ve-

As primeiras sequências fazem Wenders adentrar, não sem certo incômodo estam-

rossimilhança, no entanto, esse costume nem sempre mau que o espectador firmou

pado no rosto (algo da realidade emerge na ausência de método que é o ator ama-

com as imagens cinematográficas, encobre nessa primeira sequência o processo

dor, esse pobre-diabo que pretende desafiar com sua “sinceridade” a interpretação

que o filme desenvolverá. Wenders faz o papel do ator; salta do táxi naturalmente,

profissional), o loft sombrio de Nick Ray. Ao fundo, enquanto conversa com Tom,

como se realmente acabasse de chegar, como se ninguém o esperasse, como se

Wenders entrevê o corpo doente do diretor de Johnny Guitar solitário sobre uma

uma câmera não estivesse ali para registrar seus passos até o loft de Nicholas Ray,

cama. Em seguida, ajeita-se sobre um sofá e dorme, enquanto a câmera solitária,

e sua voz em off ratifica a simulação: “O voo noturno de Los Angeles num dia frio

absolutamente autônoma, percorre o espaço até a cama de Nick, que acorda com

e claro.” Nada mais tradicional se não fosse a intenção de levar esse mecanismo

o som de um despertador. Seu corpo velho, acabado pelos tratamentos do câncer,

de interpretação a um ponto sem retorno.

surge com uma crueza documentária, enquanto Wenders continua no sofá, numa

Em seguida, o táxi vai embora, Wenders atravessa a rua e sobe as escadas de

espécie de simulação (a realidade ou não da situação pouco importa; são seus

um edifício, explicando sempre em off como Ray havia aceitado participar, dois

efeitos nas imagens que contam) de sono. Segundos depois, toda a casa despertará

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e Nick, à distância, tomará consciência da presença de Wenders. O vídeo surge,

Paixão de bravo (The Lusty Men, 1952); uma conferência de Nick após a projeção,

então, pela primeira vez, nas mãos de Tom, registrando cada canto e personagem

em que comenta o trabalho dos atores; os dilemas de Wenders vendo a câmera

do loft e fazendo esquecer as possíveis perguntas sobre a origem das imagens

registrar a deterioração de Nick; cenas caseiras no loft do cineasta; planos gerais

anteriores, cinematográficas, que dão a linha mestra de todo o filme. As imagens

de Nova York; a projeção de We Can’t Go Home Again; diálogos sobre a morte;

eletrônicas surgem encobrindo qualquer dúvida a esse respeito; o espectador sabe

cenas da equipe; Nick internado no Memorial Hospital; novamente a insegurança

e vê quem as produz, ao contrário do que se passava antes com as sequências em

e a culpa de Wenders em relação à vampirização e, por outro lado, o medo de não

35mm — a atenção é desviada. Nick fala de seus sonhos e da disposição de retomar

ter coragem de levar a cabo o desafio inicial, de preferir realizar um filme assép-

o projeto que tinham juntos, de realizar um filme, como se o que ali se desse não o

tico e anódino em lugar de prosseguir com seu jogo radical com a representação

fosse, simples realidade registrada por uma câmera de vídeo. A passagem de volta

e a morte.

à película 35mm pode ser feita agora, já que sua neutralidade de transparência,

Wenders parte de volta para Los Angeles, onde a produção de Hammett

pelo menos por certo tempo, estão garantidas. Wenders comenta o orçamento de

havia sido interrompida, com o diário de Nick nas mãos, e quando retorna

Hammett (1982) e Nick pode falar de seu projeto de rodar Um filme para Nick, como

a Nova York encontra o velho cineasta num teatro, ensaiando a adaptação de

se não fosse o que estivessem fazendo ali, como se não o soubessem.

Um relatório para uma academia, de Kafka. A interpretação tradicional de um

Wenders não desperdiça a poética dessa ambiguidade e, logo adiante, estampa

ator sobre o palco parece mais uma vez ter como finalidade atenuar a força dessa

sobre a imagem de um barco chinês deslizando sobre a baía de Nova York o título

outra situada na plateia (Nick dirige de uma das primeiras filas) e que, pouco mais

do que estamos vendo — Lightning Over Water — e os créditos. Os diálogos que os

tarde, alcançará seu clímax. O sentido cômico da encenação e a alegria da equipe

dois cineastas travam a partir daí giram em torno da morte e do medo, assumido

em torno de Nick servem apenas como contraponto que precede a sequência má-

ao menos verbalmente por Wenders, de sentir-se atraído pela fraqueza de Ray,

xima, em que à interpretação da morte sucederá a contestação de sua concretitude,

de abusar dessa condição, de trair o mestre. De certa maneira, a denegação ape-

através do exagero da representação, porém.

nas confirma a atração e propõe, de forma velada, ao velho cineasta, o desafio de

A cena se passa numa simulação de quarto de hospital em estúdio. Uma cama

que somente sua doença lhe permite se endereçar à representação. Ao responder

metálica, uma cadeira branca e um suporte de soro, tudo envolvido por cortinas

que a traição não ocorrerá, Nick coloca seu corpo e imagem nas mãos de Wenders,

brancas. A voz de Wenders em off diz que Nick interpretará, ao lado da cantora

entrega-se, aceita o desafio: interpretará a morte, morrendo.

Ronee Blakley, uma passagem de Rei Lear; que mais uma vez a realidade será mais

É nisto que foi um ator como poucos, ou melhor, como nenhum. O que torna

forte que a ficção; e que esta será a última vez. Subitamente, Nick é visto sobre a

sua “interpretação” singular, única, deslumbrante, é que nela um homem falsifica a

cama, com uma luz vermelha iluminando seu rosto e tendo um gato preto ao lado,

morte no limite da morte. Não se trata da morte real documentada por uma câmera

no chão completamente branco. Ronee Blakley se aproxima, vestida de branco,

jornalística; não se trata da própria câmera caindo, sugerindo a morte também

como Cordélia, e o texto de Shakespeare é reproduzido: a visão de um cineasta que

real e inesperada do “cameraman”. O que está em jogo é uma proposta consciente,

morre realmente ao pronunciar as falas do rei morrendo. De repente, os papéis

um desafio impávido em seu desespero de brincar com a morte quando esta está

se invertem e Wenders aparece deitado sobre a cama, enquanto Nick o observa

mais próxima e usá-la, como poucos têm a chance, de forma a transformá-la em

sentado na cadeira ao lado. O que poderia ser mero desvio da culpa, mostra sua

obra de arte, a anulá-la, a convertê-la à vida.

verdadeira face com o breve diálogo que se segue. Nick diz que está mal, que não pode mais continuar e pergunta a Wenders o que este vai fazer. “Diga ‘corte’”, diz Wenders. Nesse instante, a estranheza já se instalou e não se compreende

Extremo

mais que tipo de afetividade ou relação pode existir entre os dois tal é a frieza das frases que trocam. A face desfalecida de Nick, despida de qualquer horror em

As sequências, intercaladas de imagens eletrônicas que alimentam, por oposição,

relação à morte, esvaziada, destruída, também já não parece mais compreender.

a verossimilhança naturalista da transparência cinematográfica, prosseguem com

Hesita e diz: “Corta! Corta! Corta!” Wenders retruca: “Não corta!” E Nick já não se

a ida de Nick, a mulher Susan, Wenders e Tom ao Vassar College para assistirem a

importa mais se é sim ou não: seu corpo tomado pela morte, mas representando-a,

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no paradoxo de representá-la, diz “Não corta! Corta!”, ao mesmo tempo, como se já não fizesse a menor diferença. Porque o que parece ser e o que é se fizeram um e nada mais faz diferença. A cena final, logo depois, após a morte de Nick eclipsada na passagem da sequência anterior, mostra o barco chinês que navega pelo East River com toda a equipe em seu interior e funciona como uma tentativa de Wenders de se redimir do que acabou de fazer, tornando simplesmente belas as imagens que antes, entre o caráter inescrupuloso e a força do desafio, destruíam através da figura de um único ator qualquer fronteira entre ficção e realidade. Agora, no barco, há uma doce alegria, entremeada de comentários sobre as filmagens, em torno de uma urna funerária. No convés, uma câmera gira sozinha (a intenção naturalista inicial acaba

3

representada por uma alegoria) e pedaços de filme voam com o vento. O excesso alegórico dessas imagens pode parecer inicialmente contraditório com o que até aqui foi afirmado. Mas apenas o confirma. Em Um filme para Nick são sempre dois aspectos antagônicos quase que simultâneos que dirigem o olhar do espectador à compreensão do rompimento da representação na figura do ator: o “natural” e sua simulação. No final, com a câmera rodando sozinha (representação da representação e, portanto, vácuo de significação, redundância vazia) e, ao lado, a marca seca da morte real através da urna, registro das cinzas, é ainda esse dispositivo que confunde os dois elementos aparentemente díspares (o símbolo e aquilo que ele simboliza), que os associa, fazendo a representação surgir como inexistência, ora como alegoria vazia de si mesma (aparente metalinguagem), ora colada ao fato, confundindo-se com a vida. Dentro de seu projeto maior (que percorre toda a sua obra) de fazer coincidir a representação com o que representa, dissolvendo-a, Wenders recorre à representação tradicional (através do naturalismo, de sua própria pessoa e do jeito “gauche” verificados no início do filme) ou exacerbada (a encenação de Rei Lear e a câmera girando no final) apenas para levá-la à sua própria contradição, ao seu paroxismo, ao paradoxo de representar a morte usando um corpo à beira da morte. Se existe traição nesse filme, trata-se da traição da representação, a afirmação ao mesmo tempo inocente e perversa de sua inexistência através de si mesma. A figura de Nicholas Ray teve o papel de — dentro desse projeto maior, ao mostrar no extremo da morte (por vezes, só nos extremos podem ser avistadas as obviedades) a coincidência do corpo do ator com o que representa — deixar vislumbrar também, por analogia, que o mesmo acontece quando a morte é substituída pela vida. É essa a beleza, o romantismo e a inocência do projeto de Wenders, que Nicholas Ray compreendeu tão bem ao entregar-se à “traição”: que no cinema é a própria vida que precisa se dar a ver.

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1990 – 2011


Garoto de Wisconsin Bernard Eisenschitz 1

Seu avô caiu morto na Main Street enquanto carregava o primeiro veado da estação de caça em seus ombros (o primeiro Kienzle a causar um tumulto no coração da cidade, construída parcialmente por ele), do lado de fora do consultório de um médico chamado de White Beaver [castor branco] pelos indígenas, perto da catedral na 6th com Main Street (construtor: Raymond Nicholas Kienzle, seu pai), perto da loja de vestuário Continental na 4th com a Pearl (construtor: Raymond Nicholas Kienzle), perto do cinema Casino, um edifício estreito e sombrio na Main Street entre a 3rd e a 4th, onde Ruth Kienzle levou seu irmão, Raymond Nicholas Kienzle Jr., para ver seu primeiro filme (O nascimento de uma nação [The Birth of a Nation, 1914]), na 4th e Main, onde ele tentou atropelar o doutor Rhodes — o médico que cuidou de seu pai no final de sua vida — perto do hotel Stoddard, que, como os quatro outros estabelecimentos da cidade em 1932, recusou a fornecer um quarto a James Ford, um negro, candidato comunista à vice-presidência dos Estados Unidos, fazendo com que Raymond Nicholas Jr. o convidasse para passar a noite na casa de sua família — dita ter tido 12 ou 17 ou 22 quartos (e quatro garagens) —, anteriormente a residência de um homem chamado MacDonald, um madeireiro milionário, e decorada por Raymond Nicholas Sr. com um paredão de tijolo vermelho que a separava da rua West Avenue North 226, paralela ao Lousy Boulevard, que delimitava a cidade a leste sob os quase 180 metros do Grandad Bluff, que depois Nicholas Ray iria apontar para sua terceira esposa, explicando como, nas apresentações de aviões acrobáticos, ele tirou raspões desses penhascos, que impediam qualquer propagação dessa aglomeração, nascida no tempo e espaço, para o oeste, na junção do rio Black e do Mississippi — um acampado onde colonos franceses haviam avistado os índios Winnebago jogando um jogo similar ao que eles chamavam de lacrosse, e onde, em 1842, Nathan Myrick, um nova-iorquino, estabeleceu o primeiro casebre e o primeiro posto comercial no lugar onde hoje é a cidade. La Crosse foi um produto do rio, e o rio forneceu a sua fortuna: na chegada dos colonos, troncos de árvores desciam pelo rio Black, eram separados e orga1. Originalmente publicado no livro Roman Américain: Les vies de Nicholas Ray. Wincester, Mass: Farber and Farber, 1993, cap. 1, Wisconsin Boy. Tradução de Alessandra Luz.

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nizados em jangadas de madeira e eram mandados rio abaixo até St. Louis. Edna

Raymond Nicholas Kienzle foi excomungado depois de seu divórcio e se

Ferber e Howard Hawks, ambos criados em Wisconsin, contaram a história dessas

juntou à Igreja Congregacional. Para completar a ruptura com sua comunidade,

fortunas em Come and Get It, o livro de Ferber filmado por Hawks em 1936. Os anos

ele também se juntou aos maçons, que eram vistos naquela época como braço

entre 1850 e 1900 viram a criação de serrarias, que depois se arruinaram nos sete

armado do protestantismo (assim como os Cavaleiros de Colombo eram para

anos seguintes por causa da diminuição das florestas. Ao longo do tempo vieram

o catolicismo). Raymond filho lembra de seu pai boiando de barriga para cima

cervejarias e fábricas de cimento, e sempre havia o rio.

no Mississippi, com um charuto na boca. Ele adorava cavalos e presenteou um

Entre 1840 e 1860, muitos imigrantes, alguns vindos da Europa por conta do

magnífico para sua mulher, com uma carruagem de dois lugares; acreditava na

fracasso das revoluções de 1848, vieram até a planície de La Crosse, que estava

educação artística e decidiu que ela deveria aprender a tocar violino. Ele parece

se desenvolvendo rapidamente e se tornou uma cidade de três mil habitantes em

ter tido um papel político na comunidade, mas vestígios escritos sobre a família

1856. Os alemães, grupo principal, eram católicos ou luteranos; os noruegueses

Kienzle são tão raros quanto os da família Losey de La Crosse são abundantes —

eram luteranos; os boêmios e irlandeses, católicos; os sírios e gregos, ortodoxos;

pré-revolucionários norte-americanos e benfeitores públicos.

entre outros. Em 1890, metade da população havia nascido no exterior; em 1900,

Kienzle morava em Galesville com duas filhas de seu primeiro casamento,

um terço. Os alemães católicos estabeleceram uma diocese em 1868, e, no ano se-

que casaram cedo e continuaram morando por perto. Ele teve outras três filhas:

guinte, estabeleceram a Cathedral of St. Joseph the Workman, uma das primeiras

Alice, Ruth e Helen. Finalmente teve um filho, Raymond Nicholas, que nasceu às

ao norte do Mississippi. O construtor foi um deles, Kienzle, o caçador de veados.

cinco da manhã do dia 7 de agosto de 1911 (os pais tinham 48 e 37 anos na época).

Seu filho, Raymond Nicholas Sr., tinha seis anos. Ele tinha vinte anos quando seu

O parto foi feito pelo dr. K.E. Berquist.

pai morreu, e continuou o seu trabalho, construindo desembarcadouros para as barcaças, barreiras contra inundações, bordéis, cervejarias e catedrais.

Galesville (altitude de 215 metros, população de 1.069 pessoas em 1940), localizada acima de um morro com vista para o lago Marinuka, construída em

O primeiro Kienzle era do sul da Alemanha. O Kinzig é um rio na parte inferior

volta de uma pracinha escura do vilarejo. “La Crosse era a cidade na qual sempre

da Floresta Negra, com suas serrarias, seus famosos relojoeiros e realejos; Kienzle

íamos fazer compras”, relembra Alice Kienzle-Williams, irmã de Nicholas Ray.

(o radical Kien significa pinhal) era provavelmente parente de Jakob Kienzle,

“Um belo passeio de carro pela areia que chegava até aqui, tínhamos que levar

o filho do moleiro que fundou a fábrica de relógios com o mesmo nome. Ele havia

palha e pás para desatolar as rodas da areia. Alguns índios moravam bem perto da

originalmente chegado ao Milwaukee junto com a primeira onda de exilados libe-

gente, num lugar chamado Rio Negro, onde você cruzava a ponte antes de chegar

rais que incluía um futuro Secretário de Estado de Assuntos Indígenas, Carl Schurz

no Mississippi. Perto de Rio Negro, sempre havia índios morando em suas tocas,

—representado por Edward G. Robinson em Crepúsculo de uma raça (Cheyenne

trançando cestos e tecendo cobertores, e eles foram nossos amigos durante anos e

Autumn, 1964), de Ford. Ele se casou com a senhorita Mueller, com quem ele teve

anos. Naquele tempo os índios ainda carregavam seus filhos nas costas. Meu pai

sete filhos, cinco meninos e duas meninas; os dois mais novos, Raymond e Joe,

sempre cuidava deles. Se ele achasse que o inverno estava muito rigoroso, ele ia

cresceram depois de sua mudança para La Crosse, numa casa de tijolos vermelhos

ver se eles tinham comida suficiente, e ele levava água e açúcar e se assegurava

na South Third Street, 1313. A casa ainda está de pé, mas os edifícios públicos e

de que os cachorros estavam sendo alimentados.”

privados, dos quais seu filho foi o mestre de obras, fornecendo tijolos e blocos de cimento, foram todos destruídos ou reconstruídos.

Kienzle construiu — ou reconstruiu — a Faculdade de Gale, além de inúmeras outras igrejas naquela área, incluindo a Synod Luteriana que ele presenteou à

Raymond Nicholas se casou (um casamento de igreja) e teve duas filhas.

cidade, e onde sua esposa levava as crianças, vestidas de sapatos sociais de couro

Ele foi contratado para construir uma escola em Galesville, uma cidade a quarenta

preto e meias brancas, à catequese. Alice foi crismada e Ruth, Helen e Raymond Jr.

quilômetros de La Crosse onde nomes europeus, particularmente noruegueses,

foram batizados lá. De acordo com Alice: “Ele foi o primeiro homem que mandou

estavam substituindo os nomes indígenas, e ele conheceu Olene Toppen, 11 anos

a equipe construir calçadas e casas de cimento e coisas para os fazendeiros. Fomos

mais nova do que ele, divorciou-se e se casou com ela. Lena, como viria a ser co-

os primeiros ou segundos daquela cidade a ter um carro. A maioria das pessoas se

nhecida, nasceu de pais noruegueses num casebre de madeira no centro-oeste de

locomoviam de charrete ou de carruagens com uma franja em cima. Nós tínhamos

Wisconsin, lugar que os índios Menominee ainda saqueavam de vez em quando.

uma assim. O primeiro carro que tivemos foi um Imperial. Papai nem o dirigia; ele

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chamava um dos homens da fábrica nos sábados ou domingos para levar-nos até

e à intolerância foi construída sobre uma base sólida. Tendo feito isso, meu

o campo ou até a fazenda onde vovô e vovó moravam. E aquilo era uma grande

pai desapareceu.

aventura; era uma paisagem linda, os córregos de truta e os castores...”

A Primeira Guerra Mundial começou quando eu tinha três anos, eu não era o

A casa dos Kienzle, numa esquina, era bege, rodeada de todos os lados por

maior conhecedor do assunto. Levaram outros três anos para eu saber ainda

uma varanda. Lena saía de madrugada para cuidar do jardim, descalça na lama.

menos. Minha ignorância continua progredindo.

Ela era descrita como uma “costureira magnífica, sagaz, com uma inteligência

Ouvi dizer que meu pai tinha ido para o sul, onde quer que isso seja. O sul

afiada”, ela também era “da velha guarda; ele era o chefe da família, a palavra dele

poderia ser as planícies inferiores da cidade, onde sempre havia enchentes.

era lei”, de acordo com a irmã mais nova de Ray, Helen Kienzle-Hiegel. Alice, no

Naturalmente, morávamos no nível superior da cidade. Mas ele foi um pouco

entanto, ressaltou que ele também era o patriarca que se preocupava sem parar

mais ao sul. Ele foi até a Carolina do Norte. Eu acho que o pai de Eugene Gant

com a saúde de seus filhos, “muito mais do que nossa mãe”.

cortava pedra para ele. Ele era um rapaz e tanto. Não conseguiu renovar seu

Wisconsin, com 120 mil pessoas mobilizadas, fez sua parte ao lado dos outros estados na Primeira Guerra Mundial. Só os socialistas de Milwaukee e o senador

contrato, pois ele recusou a não deixar crianças negras brincarem em seus bancos de areia.

La Follette eram contrários à guerra; o governador anterior, eleito pela democracia direta, foi denunciado como um traidor e queimado em efígie. Em Galesville e

Eugene Gant, filho de um cortador de pedras que bebia muito, é o herói dos

La Crosse existem lembranças de pedras atiradas em janelas, de nomes alemães

dois primeiros livros de Thomas Wolfe (Look Homeward, Angel e Of Time and the

sendo americanizados: o que aconteceu com os Burgermeisters, os Doerres, os

River), nativo da Carolina do Norte e cujas afinidades com Nicholas Ray vão além

Tausches, os Grunds — que ainda podem ser vistos nas fachadas de prédios hoje

de um título em comum, You (We, no caso do filme de Ray) Can’t Go Home Again.

em dia —, com os Lieberts, os Hackners, os Liebigs? Ray conta a história ele mesmo, num pequeno livro vermelho, datilografado por seu filho Tim, em 1968:

Kienzle tentou se alistar no Exército, mas foi recusado por conta de seu coração fraco (o mesmo aconteceria depois com seu filho), e ofereceu seus serviços e os de seus empregados ao Estado, para a construção de bases aéreas. Sua filha

A primeira canção que aprendi no bandolim foi a “Balada de Sam Hall”. Oh my name it is Sam Hall, it is Sam Hall. Well my name it is Sam Hall, it is Sam Hall. Well my name it is Sam Hall. And I hate you one and all. Yes I hate you one and all. Goddamn your eyes! 2 (Vinte anos depois eu cantei a balada a Carl Sandburg.) Aos três anos mudei meu nome para Sam Hall. No início da Primeira Guerra Mundial, nomes alemães se tornaram pouco populares nos Estados Unidos, mais tarde eu mudei meu nome de volta para Raymond Nicholas Kienzle

mais nova, Helen, foi visitá-lo: “Eu estava zangada, pois os homens negros sempre desciam da calçada, andavam nos bueiros, e falavam ‘Bom dia, Capitão!’. Eu achava isso terrível. Ele tentou explicar, mas não me convenceu.” Do livro vermelho de novo: Jogávamos um jogo no colégio chamado “Fazendeiro está no fosso”. Conhece a melodia? Eles mudaram a letra também: The Hun is in the dell The Hun is in the dell. Hi ho the merry ho The Hun is in the dell. 3

Jr., decisão aprovada por meu pai, já que era o nome na certidão de nasci-

Eu era sempre o Huno.

mento. Com isso, minha visão presente e futura com relação a preconceitos

Desde o nascimento e da caxumba, o único momento que eu me lembro de ter chorado antes de ir para Hollywood foi aquele. Eu chorava com tanta

2. “Oh, meu nome ele é Sam Hall, é Sam Hall./ Bem, meu nome ele é Sam Hall, é Sam Hall./ Bem, meu nome ele é Sam Hall./ E eu odeio todos vocês./ Sim, eu odeio todos vocês./ Malditos sejam seus olhos!” (N.T.)

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3. “O huno está no fosso/ O huno está no fosso/ Hi ho o alegre ho/ O huno está no fosso.”

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raiva, libertava-me daquele círculo, corria até o ponto mais alto do terreno

a amarrar sua própria gravata, novamente se transformava, como Helen colocou,

do colégio e gritava: “Vamos brincar de Rei da Montanha! Eu sou o Rei da

“numa manteiga nas mãos de nossa mãe”, antes que todos pudessem sentar à mesa.

Montanha!”, e qualquer um daqueles filhos da puta que se aproximassem

“Sentávamos sempre no mesmo lugar na mesa de jantar”, disse Helen, “uma

de mim primeiro recebia bem no meio da fuça um chute do meu pé direito.

toalha de mesa branca e guardanapos de pano. Ele nunca comeria numa mesa

Não me fez muito popular aos sete anos. Os cinquenta anos seguintes também

coberta por uma toalha colorida. Agora, meu pai tinha suas preferências. Uma delas

não ajudaram muito. Eu ainda me sinto do mesmo jeito, ainda quero ser rei

era a salada de batata alemã. E minha mãe passou a vida inteira tentando fazer a

da montanha. E eu ainda chuto.

salada de batata alemã do jeito que a mãe dele fazia, mas nunca era... igual.

Em 1918, tínhamos um Cadillac de dois cilindros e um Imperial. O Cadillac

“Ele era um.... como eles eram chamados naquela época? ‘Alemão alto.’

estava no conserto. Então usamos o Imperial com aqueles belos cintos de

Ele tinha um porte muito ereto, media 1,56 metro, mas parecia mais alto por sua

couro e fechaduras douradas (bronze), que se encaixavam diretamente aos

postura. Ombros para trás, cabeça reta e não deixava nenhum de nós andar cor-

faróis. Alice, minha irmã mais velha, levou minha irmã mais nova, eu e o

cunda. Ele era o disciplinador. Ele tentava não nos mimar — exceto pela minha

resto das mulheres para passear de carro pela cidade de Galesville na noite

irmã mais velha e meu irmão. Mas ele fez um trabalho excelente. Devemos ler:

do dia 8 de novembro de 1918. Nós ficamos martelando em potes e panelas

ele amava ler, todos nós gostávamos de ler. E ele amava música. Então todos nós

e acendemos tochas vermelhas, buzinando sem parar e gritando: “paz, paz,

tivemos que aprender música. Quando comecei a mostrar certa habilidade em

paz! armistício, armistício, paz, paz!”

oratória — debate, declamações —, comecei a fazer aulas de voz.

Na manhã seguinte, minha irmã mais velha entrou no meu quarto com um

“E quando eu voltava para casa, eu sentava com Nick, que era seis anos

olhar triste para me falar que havia sido um armistício falso. Eu ainda não

mais novo, e fazia ele aprender. Sempre fazíamos pegadinhas com meu pai, ele

tinha percebido que assim era a vida, então me subiu uma fúria norueguesa

nunca achava graça. Na verdade, ele detestava. Mas não me lembro de ter sido

e eu corri, batendo portas pela casa inteira até a entrada. As paredes estavam

castigada alguma vez. Aí, quando Alice saiu de casa, ele se tornou um grande

cobertas de chifres de animais, o chão estava coberto com lágrimas de minha

amigo.” Em 1923, Alice se casou com um contador da General Motors e foi morar

mãe e dos Beizers, as pessoas velhas e de cabelo branco que tinham sido nos-

em Oshkosh, no leste do estado. Helen tinha 18 anos, Ruth, 19. Ambas gozaram

sos vizinhos desde sempre, hoje chamados de Beezer, da mesma forma que

de um relacionamento próximo, mesmo que bastante diferentes, com o irmão

Koehler mudou para Koller, e nós, os Kienzle, éramos chamados de Kenzel.

mais novo. Ruth, em rebeldia contra o pai, protegeu os dois mais novos; Helen se

A casa deles havia sido pintada de amarelo durante a noite para mostrar que

reconciliou com o senhor Raymond, continuou aliada ao irmão.

eles ainda eram hunos sujos e amarelos.

1924. “Fighting Bob” [Bob lutador] La Follette, o governador que havia feito com que o Wisconsin se tornasse o estado mais bem governado na união, com

Depois da guerra, o senhor Kienzle resolveu se aposentar e voltar para La

um dos melhores sistemas educacionais, elegeu-se à presidência pelo partido

Crosse, onde sua mãe morava. A nova residência familiar não tinha mais a obri-

progressista, e recebeu cinco milhões de votos, incluindo a maioria em Wisconsin.

gação de ser no centro da cidade. O edifício cinza na West Avenue, perto da State

O automóvel. O rádio. No livro de Sinclair Lewis, Main Street, publicado em 1920,

Street, abrigava a família inteira, incluindo umas primas de Galesville, que estu-

as ruas da cidade — uma pequena cidade em Minnesota com o dobro do tamanho

davam no Teachers’ College. No meio, havia uma sala de jantar de 50m², piso de

de Galesville — tinham sido cimentadas, campos de golfe surgiram e aviões oca-

tábua corrida e uma lareira em mármore italiano e uma sala de música. A casa

sionais em suas margens, meninas aprenderam a vantagem de escutar o rádio

tinha duas entradas, e Kienzle geralmente entrava pela de serviço, atrasado para o

em vez de cantarolar musicas folclóricas tchecas... cuidavam de seus tornozelos

jantar (era fora de questão começar o jantar em sua ausência), subindo as escadas

bonitos, compravam suas meias de seda e descobriam trejeitos alegres... Falavam

dos fundos até o primeiro andar. Sua esposa já teria enchido a banheira para seu

de Leopold e Loeb, Kid McCoy, dos voos ao redor do mundo, da batalha de Tommy

banho e separado seus sapatos, meias, roupas íntimas, camisa, gravata e terno, e aí

Gibbons na Inglaterra, sobre seus carros e seus rádios.

ele se vestia e descia as escadas da frente até o hall de entrada, onde ele chamava:

Anos da infância: Raymond, o devorador de livros. A influência duradoura

“Leena” — que estava na cozinha, com a empregada —, pois, nunca tendo aprendido

da poesia norte-americana, Thomas Hardy, traduções de literatura estrangeira,

198

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principalmente Jean-Christophe, a versão fictícia de Romain Rolland sobre a vida

“Tinha bebida lá em casa durante toda a minha infância e Lei Seca — e nas

de Beethoven, com um heroísmo humanitário e a crença na missão do artista:

ruas. Na minha casa era para ser roubada — primeira dose às dez. Na rua, era

“O homem deve se dedicar àquilo que gosta de fazer.” O descobrimento do teatro,

para ser comprada com dinheiro roubado de casa. Álcool de grão misturado com

como ele explicou ao La Crosse Tribune em 1954, quando “Guy Beach tinha uma

açúcar e água quente. Um dia um colega virou uma garrafa de álcool de madeira

empresa de ações por aqui” (Beach está presente em três dos filmes mais antigos

e morreu — fizemos um ritual bêbado.

de Ray). Primeira ambição: ser um condutor de orquestra. O guia de Wisconsin pu-

“Durante a Lei Seca, havia 21 estabelecimentos que vendiam bebida numa rua

blicado em 1940 pelo Federal Writers’ Project descreve La Crosse como um centro

e, aos 16 anos eu já era conhecido em todos. Eu aprendi a dirigir aos 13 e conseguia

musical: “barcos e trens frequentemente levavam grandes grupos dos arredores

levar meu pai para casa depois de suas escapadas noturnas aos bares. Aos 14 eu

para festivais de música.” Um capítulo intitulado “Runaway to Jazzdom” [Fuga à

descobri que ele tinha uma amante. Aos 15 eu tentei dar em cima dela. Aos 16

liberdade do jazz], sobre uma outra experiência com música, seria inserida por

fui atrás dela numa noite — não conseguia encontrar o meu pai. Encontrei-a num

Ray no projeto de sua autobiografia. Helen tinha visto negros na Carolina do Norte.

bar do outro lado da rua de uma cervejaria que meu pai tinha construído e ela me

Mas não havia nenhum em La Crosse; Alice se lembra apenas de uma lavadeira

levou até um quarto de hotel onde ele estava deitado em cima de suor e vômito e

que vinha às vezes até a casa.

com baldes de vômito no chão ao lado da cama. Eu o levei para casa e cuidei dele

“Runaway to Jazzdom”, Nicholas Ray escreveu em 1968, “a primeira vez que

a noite inteira. O médico veio de manhã e antes de eu ir para o colégio eu o vi

vi um negro foi aos nove anos. Eu fugi de casa, uns 15 quarteirões até a beira do rio

encher uma agulha com uma substância que ele aqueceu numa colher. Durante

Mississippi e subi num barco da Streckfus Line. Naquela tarde eu ouvi a música mais

a aula de latim eu alternava entre o sono e hipertensão. Eu pedi para sair de sala.

linda desde Dardanella Blues. Estava sendo tocada por um grupo de negros; uma mu-

Fui até um salão de jogos e fiquei jogando sinuca. Uma ligação. Minha mãe tinha

lher tocava piano, seu nome era Lil Hardin. No trompete estava Louis Armstrong, as-

me achado — meu pai estava morrendo. Ele estava morto quando eu cheguei. Eu

sim que ele saiu do reformatório etc.” (Este encontro deve ter acontecido em 1920-21.)

nunca havia estado numa igreja católica mas eu ajoelhei do lado dele, dei um beijo

Helen ganhou um carro de seu pai. “Então, toda noite depois do jantar minha

nele e passei uma noite num banho turco.

tarefa era: ‘Fala para a sua mãe que estamos esperando por ela no carro, para um

Minha mãe e eu levamos o médico para a justiça, mas eu estava tão bêbado

passeio até o rio.’ E eu podia dirigir. Ele me ensinou a dirigir aos 14 anos. Eles sen-

de álcool caseiro no dia que não pude testemunhar, aí perdemos. No dia seguinte

tavam no banco de trás; ele fumava o charuto mais lindo, que entranhava na casa

eu tentei atropelar o dr. Rhodes. Um engraxate correu na frente do carro, eu desviei

inteira, sempre, mamãe estava sempre arejando os cômodos... um El Producto.”

e bati num hidrante para não acertar o menino. Dr. Rhodes foi embora da cidade.

Helen também usava o carro para levar seu irmão ao rio, onde a correnteza os

Eu recebi minha primeira multa.”

carregava por um ou dois quarteirões. Quando instalaram calefação central na casa da West Avenue, ambos a batizaram: “Pegamos uma garrafa de conhaque

La Crosse Tribune, Sábado, 12 de novembro de 1927:

do papai e batizamos a calefação como Leão, porque ela consumia muita energia.

Raymond Nicholas Kienzle, 64 anos, morreu na sexta-feira em sua residên-

(Raymond nasceu no signo de Leão, então dava um certo peso ao significado.)

cia, West Avenue North, 226. Ele deixou uma esposa, cinco filhas, sra. Louis

A presença da garrafa dentro de casa não era apenas um acaso. Durante anos,

Rall e sra. Carl Anderson de Galesville, sra. Porter A. Williams de Oshkosh,

o vinho foi proibido à mesa. De repente, talvez os negócios não estivessem indo

srta. Ruth e srta. Helen de La Crosse; um filho, Raymond, de La Crosse; e um

muito bem, ele entrou numa bebedeira e ficou muito muito doente, e a minha mãe

irmão, Joe Kienzle, La Crosse. O velório será conduzido em sua residência na

se preocupava, nossa como ela se preocupava.”

segunda-feira, 14 de novembro, às 14 horas, com serviços maçônicos oficiados

“Eu estive sob o olhar do alcoolismo desde o meu nascimento”, escreveu

pelo reverendo Charles Leon Mears.

Nicholas Ray perto do final de sua vida. “Minha mãe adorava dizer: ‘Lábios que tocarem em licor nunca tocarão os meus.’ Quem se importava quando havia tantos

Ray Kienzle passou a ser o chefe da família. Num episódio chamado

lábios mais jovens? Em todas as minhas lembranças do relacionamento deles, eles

Autobiografia, de um dos seus últimos projetos (New York After Midnight), ele

dormiam em quartos separados.

relembra a relutância que teve de sentar na cadeira do pai durante a refeição

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com todos os seus familiares depois do enterro. Sua irmã Helen lembra apenas

Lane (cujos estudantes incluíram Don Ameche, Don Ewell e Uta Hagen). Ray se

que ele “sentia muita falta do pai” e que “passou os dois anos seguintes terminan-

encontraria de novo com ele em Hollywood em 1956.

do o segundo grau e destruindo alguns automóveis”. O período depois disso foi

Ray relembrou seu prêmio como uma “bolsa de estudos para qualquer uni-

conturbado; ele desistiu do colégio depois de apenas um ano, em junho de 1929.

versidade do mundo”, e sua escolha foi a universidade de Chicago, onde ele já

Booster, o anuário da escola, lista a sua participação nas seguintes atividades: fu-

assistia a aulas esporadicamente como ouvinte. É mais provável que o prêmio

tebol americano e basquete na liga júnior; Falstaff (grupo de dramaturgia). Além

(como descrito por uma nota biográfica emitida pela cbs em 1940) envolvesse uma

dessas atividades, o anuário também continha uma frase de cada aluno. A dele:

bolsa de um ano para ser locutor na estação de rádio de La Crosse, durante o qual

“Eu tirei um A- — [menos duplo] uma vez — em distração.” A despeito de seu sor-

ele estudou, com resultados medíocres, no Teachers’ College.

riso simpático na foto, nem todos gostavam dele. Joseph Losey, dois anos mais

No verão seguinte, Ray foi contratado por uma trupe de acrobatas. “Eu acha-

velho, falou um tempo depois que sua irmã Mary era amiga de Ray no colégio.

va que conseguiria aprender a voar. Não ganhei muito dinheiro, mas consegui

Mas naquele momento Losey já tinha ido para Dartmouth, e sua irmã insistiu em

instruções grátis de venda de ingressos.” Depois, de acordo com a biografia da

negar o fato, descrevendo Ray Kinzel como “um menino pouco atraente a quem

cbs, “ele se juntou a uma expedição fotográfica e gravou a arquitetura “Steamboat

eu nunca tive desejo de conhecer”. Questionada a ser mais específica, ela usou o

Gothick” ao longo dos rios Ohio e Mississippi. “Steamboat Gothick” é uma coisa

adjetivo pestilento.

estritamente americana. Quando os construtores de barco a vapor [steamboat em

Helen disse: “A morte do pai não mudou nada no início. Não mudou que podíamos estar todos em casa, sempre. Tínhamos tudo de que precisávamos. Depois

inglês] resolveram construir casas ao longo do rio, eles as modelaram de acordo com o desenho de barcos à vapor e obtiveram um resultado magnífico.”

da crise de 1929, La Crosse sofreu muito, e papai tinha dinheiro em dois bancos

Na sua partida inevitável de casa, no verão de 1931, ele foi para Chicago, um

em vez de um. Ele tinha alguns terrenos e, é claro, algumas ações num banco e a

ímã para todo o Meio-Oeste, um símbolo da metrópole do século XX para o mundo

mamãe era a responsável. Minha mãe não entendia nada de finanças. Eu pensava:

inteiro. Mesmo que Ray Kienzle — que começou a pedir para sua irmã chamá-lo

“Agora eu sei como é perder tudo e ser pobre.” Mamãe não. Ela administrou muito

de Nick — voltasse sempre para La Crosse, as reuniões familiares, de acordo com

bem, nunca hipotecou a casa, nunca pegou um centavo emprestado, vendeu as

terceiros, eram marcadas com tensões “visíveis a olho nu” e com temperamentos

ações... e arcou com todos os custos. Nós sobrevivemos.”

exacerbados pelos reencontros.

Durante esse tempo, Ruth se alienou da família, cruzou Wisconsin de ônibus

Foi depois dos anos 1930 que Nick escreveu: “Eu falei com minha mãe pela

até chegar em Chicago. Ela se casou com um químico. Helen tinha ambições ar-

primeira vez. Eu gosto dela.” Era lá que o Nick Ray taciturno, impenetrável a

tísticas. Enquanto seu pai ainda estava vivo, ela tinha sido convidada a se juntar

todos com exceção de flashes de trabalho ou de intimidade, tinha suas raízes.

a um grupo de músicos viajantes — “Papai os expulsou tão rápido que não foi

Connie Bessie, uma amiga, lembra de ele contar de sua mãe, sentada ao lado da

nem engraçado”, relembra Alice. Mas por algum tempo ela conseguiu trabalhar

janela, esperando-o chegar em casa: “Eu achava as mulheres daquela família

num programa de rádio para criança na estação local, wkbh. Acompanhada por

extraordinariamente fortes”; e sua terceira mulher, Betty Utey, filha de imigrantes

uma de suas professoras, ela lia Maupassant, Poe, A.A. Milne e também um pouco

finlandeses: “Isso também é a geração, e vir de onde ele veio, a neve dura e fria

de teatro. Seguindo seus passos, o primeiro emprego de Ray foi na rádio. “Ele tinha

do Wisconsin, o povo duro e frio que, quando ele era só cinza dentro de uma caixa

uma voz ótima”, Helen disse, “bem articulada e se espalhava pelo auditório intei-

de filme, dizia: ‘Não traz ele para cá, ninguém quer ele aqui!’ Eles não queriam que

ro, expandia para o alto”. Ele logo ganhou um prêmio de rádio numa competição

ele fosse enterrado lá. Eu o tinha acompanhado ao enterro de sua mãe; foi muito

organizada por três estados (Iowa, Minnesota e Wisconsin). Com o amigo, Russ

germânico, muito frio, muito austero, muito formal... muito conflito. Aquilo era

Huber (que depois trabalharia profissionalmente na rádio local e na televisão), ele

de onde ele veio.”

produziu uma adaptação para rádio de Cândida, de Bernard Shaw, a queridinha

Alice foi morar na Califórnia e encontrava Nick frequentemente, principal-

de grupos pequenos de teatro. Helen Dyson, uma professora de inglês de faculdade

mente durante seu casamento com Gloria Grahame e o nascimento de Tim. O filho

e uma “apoiadora” de Nick e Helen, fez o papel de Cândida. Um dos membros do

de Alice, Sumner Williams, seria associado a Nick ao longo de toda a sua carreira,

júri era um professor de artes dramáticas da universidade de Wisconsin, Rusty

de Hollywood até Madri. Helen desistiu de tentar ser atriz e virou professora,

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casando-se com um pedreiro de Iowa em 1933, Ernest Hiegel. Ambas, ela e Alice,

Trauerarbeit

achavam que Hollywood foi a ruína do irmão: “Um pouco de talento, mas não o suficiente para chegar ao topo, sensível demais para se adaptar à vida medíocre

Bernard Eisenschitz 1

de um cidadão comum, você sempre tem que fazer alguma coisa diferente... É um lugar horrível para se estar.” Ruth, a mais sofisticada das três irmãs, foi provavelmente a que ficou mais próxima de Nick, a mais problemática, com surpreendentes picos de energia alternados com períodos de depressão. Ela morreu num incêndio

No dia seguinte à morte de Ray, Jim Jarmusch começou a produção de seu pri-

em 1965.

meiro filme, Permanent Vacation (1980), que é dedicado extraoficialmente a Ray. Ele havia discutido o roteiro com Ray e acabou fazendo o oposto do recomendado, tirando as tensões sugeridas. Durante as filmagens ele também se rebelou contra seu estado de aprendiz; tentou ganhar a confiança dos atores, em vez de manipulálos, como suspeitava ser o método usado por Ray. Somente depois de seu segundo filme, Estranhos no paraíso (Stranger Than Paradise, 1983), é que Jarmusch acreditou ter entendido melhor a metodologia. “Ele nunca falava a mesma coisa para dois atores, mesmo se ambos estivessem na mesma cena. Ele nunca confrontava de frente, ele era bem desonesto. Falando coisas diferentes para cada protagonista, ele tinha mais controle sobre a cena. Mas ele também corria enormes riscos. Ele estava sobre uma corda bamba, com grandes chances de as coisas desequilibrarem, o que não funcionaria. Por isso os filmes de Ray são os melhores de Hollywood, mas também os mais desiguais.” A equipe de Wenders, que se dispersou quando as filmagens pararam, encontrou-se num velório feito num dos auditórios do Lincoln Center. Alan Lomax presidiu; Will Lee, Harry Bromley-Davenport, Tom Farrell, Michael Miller (decano da escola de cinema da NYU), Gerry Bamman, Luke McVay (amigo de Ray há quatro ou cinco anos), Nikka e Julie Ray e Chris Siervenich discursaram. Gloria Grahame, Betty Utey, Elia Kazan e amigos, alguns que vieram de longe, assistiram a uma sessão de extratos de We Can’t Go Home Again (1973-76) e do filme que veio a ser conhecido como Um filme para Nick (Lightning Over Water, 1980). Depois disso, Susan e Tim, acompanhados por Cottrell, levaram as cinzas ao cemitério em La Crosse. “Nós nos encontramos de novo em seu velório”, disse Wenders. “A equipe toda estava lá, e todo mundo sentia uma frustração, uma necessidade de fazer algo a mais, de fazer algo que desse o ponto final da experiência para eles. Nenhum deles considerava o filme terminado. Então, fizemos os planos com o helicóptero e o funeral; depois todos ficaram bêbados para concluir seu enterro, e filmamos isso também.” 1. Originalmente publicado no livro Roman Américain: Les vies de Nicholas Ray, Wincester, Mass: Farber anda Farber, 1993, cap. 41. Tradução de Alessandra Luz.

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Village Voice, 9 de julho. Um obituário apareceu abaixo de uma dedicatória de Terry Curtis Fox, que havia trabalhado com Ray, sem dúvida expressando

situação esquizofrênica. E começou a ser muito duro, vir de um trabalho e tentar me submergir num outro, que, para completar, era extremamente pessoal.

mais do que só uma opinião pessoal. O título mostra o tom do texto: Nicholas Ray,

“Depois de um tempo, Peter falou: ‘Eu também não posso continuar assim.

sem causa. Antes de afirmar que nenhum dos rebeldes de Hollywood (ele citou

Este filme é seu, muito mais do que todos os outros que já editamos juntos; você de-

Orson Welles, Samuel Fuller e Budd Boetticher) havia provado a “capacidade de

veria fazê-lo, mas você não está aqui. E mesmo eu sabendo que é por causa de outro

produzir obras tão reconhecidas fora do sistema quanto dentro dele”, e antes de

filme, não consigo parar de pensar que é apenas uma desculpa para você fugir

acusar Ray (baseado numa interpretação errônea de uma cena de We Can’t Go

dele. Ou você deixa o projeto comigo e eu me responsabilizo por ele, o que estou

Home Again em que Leslie anuncia o plano de se prostituir) do mesmo tipo de

preparado para fazer, ou vou arrumar minhas malas agora mesmo e você faz, como

exploração que Jon Jost atribuiria a Wenders em Um filme para Nick, Fox escre-

deveria. Se você não conseguir fazer, eu faço, mas do meu jeito.’ E ele tinha razão.

veu: “Nicholas Ray morreu de causas naturais há duas semanas. Ele não morreu

Eu ainda tinha quatro semanas de filmagem do Hammett. Peter já estava bastante

depois de terminar um filme do qual se orgulhava, como ele esperava (...) Não

avançado e nós não tínhamos dinheiro para mantê-lo por mais muito tempo. ‘Faça

foi um fim satisfatório. Não houve nenhuma obra-prima final, nenhum retorno à

do seu jeito’, eu falei. Peter não me mostrou mais o filme, recusou-se a me mostrar,

excelência.” Evidentemente, Fox não sabia que Ray morreu durante a filmagem de

e eu não fui vê-lo. Ele enlouqueceu, nunca saía da sala de montagem, até dormia

um longa-metragem; vindo de alguém que o conhecia, e com uma certa malícia, o

lá. Ele estava tão afetado por sua responsabilidade (que geralmente não é papel do

artigo deixou claro quão Um filme para Nick foi importante para Ray, cuja própria

editor), não somente pelo filme mas por seus personagens e pelo fato de o filme não

ausência ditou sua finalização.

ser dele e de ele estar fazendo o que chamava de Trauerarbeit (o termo freudiano,

O filme então veio a ser finalizado e, contra a opinião de muitos, foi exibido

“trabalho de luto”) de outra pessoa, que ele virou esquizofrênico, paranoico, insu-

(Myron Meisel: “Foi um ato em homenagem a Nick. Ele foi feito para ser feito, não

portável — e eu sabia que este era o preço desse tipo de trabalho. Ele me mostrou

foi feito para ser visto.”). Wenders, preso mais uma vez na “máquina” Coppola,

o resultado só depois da mixagem. Quando foi embora de Los Angeles e da sala de

não teve tempo para suas discussões usuais com seu editor, Peter Przygodda (ele

montagem, estava num estado aterrorizante, transformado fisicamente. Havia sido

mesmo um diretor: Als Diesel geboren [1979]). Depois de ter organizado o material

um inferno para ele terminar tudo sozinho. Ele foi muito heroico. Não sei como

em Nova York, ele instalou uma moviola em seu apartamento em São Francisco:

sobreviveu. Ele levou duas semanas para se recuperar.

“Nós trabalhamos por três meses; Peter editava de dia enquanto eu trabalhava

“Eu vi o filme depois de sua mixagem em Los Angeles (nem chequei o bole-

no Hammett — Um mistério em Chinatown (Hammett, 1982). De noite eu chegava

tim de comentários). Algumas horas depois dessa sessão, Peter foi embora de Los

em casa e olhava o que ele tinha feito. Mas ele não conseguia fazer muito sem

Angeles. Conversamos durante algumas horas num bar e falei para ele que estava

mim, então depois de três meses só tínhamos um corte bruto. Hammett tornava-se

bastante decepcionado. Não estava decepcionado com o filme, pois ele havia feito

urgente e a Zoetrope se mudou de São Francisco para Los Angeles, levando-me

um impressionante e completo trabalho, mas pelo fato de que — o que era absurdo

com eles. Tivemos que abandonar essa segunda moviola em São Francisco. Peter

e apavorante — eu não reconhecera uma única imagem. Achei que não refletia mais

teve que ir para a Alemanha e, quando ele voltou, Chris [Sievernich] montou uma

o trabalho de Nick e meu. Tinha virado um documentário, porém nós queríamos

moviola em Los Angeles. Nesse momento, a filmagem de Hammett começou.

montar como um trabalho de ficção. Eu achava, mesmo assim, que o filme deveria

Enquanto a filmagem durou, eu só estava lá nos fins de semana. O que não foi

ser exibido como estava, que eu devia isso a Peter e a todo o seu esforço, tinha que

uma coisa boa, pois Peter ficou tanto tempo a sós com o filme que se aproximou

aceitar que este era o filme.

muito dele — apesar de o material ser sobre um relacionamento íntimo entre Nick e

“Então essa versão foi exibida em Cannes. E depois de alguns meses, em

eu. Em outras palavras, ele era mais próximo ao material do que eu, mas ao mesmo

Veneza. Em Cannes, eu vi o filme pela segunda vez. O fato de ver com uma plateia...

tempo bem mais distante. Quanto mais ele progredia, menos eu reconhecia o que

Não teve nada a ver com as reações, não houve nenhuma, houve só constrangimen-

estava vendo. Porém, decisões tinham que ser feitas; toda vez que eu aparecia, ele

to, e eu sabia que qualquer outra versão continuaria causando constrangimento...

me mostrava alguma coisa, e o fato de ver Nick, de me ver, mas quase sob o ponto

Mas eu percebi que, se deixasse assim, o fato de que eu não o havia terminado

de vista de um turista, dificultou muito que eu expressasse uma opinião. Foi uma

sempre iria me assombrar. Havíamos chegado tão longe, Nick e eu, nas nossas

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lutas diárias, e eu não tinha persistido até o final amargo. Num trabalho tão ex-

A autobiografia de Nicholas Ray

tremo quanto esse, eu não havia chegado aos mesmos extremos para terminá-lo. Falei para Peter e para Chris que não poderíamos trabalhar em mais nada antes

Susan Ray 1

de resolver o problema de Um filme para Nick, até obtermos uma versão do filme que refletia o que eu havia experimentado. “Alugamos um outro estúdio de edição em Hollywood, de uns produtores de pornografia softcore, e acabamos trabalhando na mesma Steenbeck que Peter havia usado. Em dois meses, havíamos terminado a edição de imagens. Depois disso, não tinha mais razão para ficar lá: Hammett seria interrompido por alguns meses, pois Coppola estava começando O fundo do coração (One from the Heart, 1982). Como Chris morava em Nova York, terminamos o filme lá, num outro estúdio de edição, onde preparamos a mixagem. Depois disso, passamos mais uma semana num quinto estúdio. Foi um total de três meses, durante os quais nós, Chris e eu, trabalhamos dia e noite. Não tínhamos dinheiro para pagar assistentes então fizemos tudo nós mesmos. Eu nunca tinha editado nada fisicamente. Chris teve treinamento como assistente de edição. Nós terminamos, eu acho, em novembro de 1980.” “Tínhamos falado muitas vezes com Peter sobre a possibilidade de usar o diário de Nick. Peter tinha o diário, mas disse que era impossível para ele filmá-lo. Então fizemos essas inserções enquanto preparávamos a versão final. Eu também fiz as tomadas do avião partindo de Nova York e aterrissando em Los Angeles, para ter um pouco de espaço para a narração em off. A narração que fiz foi estilo filme noir. Isso, é claro, acentuou o aspecto ficcional; mas também esta versão foi um filme contado na primeira pessoa, e para isso a narração era conveniente. “Quando o assisto agora, o filme parece ter virado uma entidade. Na primeira versão, ele estava muito disperso, e era isso que me machucava mais, fisicamente. A experiência, ou a memória daquela experiência com Nick, era afinal uma ocor-

Após a sessão de A trama (Parallax view), no Festival de Cinema de San Sebastián, de 1974, eu me lembro de Alan Pakula — o diretor do filme — vir apertar a mão de Nick, aquiescer o rosto e dizer: “Maître.” Foi um gesto respeitoso que deixou Nick tão tocado quanto confuso. Como testemunha deste momento maravilhoso, eu me coloquei algumas questões: o que é um mestre e o que faz de Nick um? E o que essa sua maestria significa para mim? Maestria para mim, quando era jovem, significava um tipo de perfeição, um controle absoluto sobre a técnica e suas circunstâncias. Era um tipo de qualidade presente numa obra ou numa vida, que, a meu ver, não poderia ser confundida ou tomada por qualquer outra, e que se daria a ver de maneira ordenada, ou harmônica, e com uma calma estonteante. Eu achava que os filmes de Nick eram inconfundíveis, mas não por causa de sua ordem ou calma. Mas, naquele momento, o próprio Nick estava se dissolvendo no alcoolismo e travando batalhas para sustentar a finalização de We Can’t Go Home Again (1973-76), sem mencionar sua básica tentativa de sobrevivência. Sua vida e obra estavam fora de controle. Eu me perguntei se o sr. Pakula havia sido demasiadamente gentil ou se talvez ele tivesse feito um erro de julgamento. Assim, guardei essas questões comigo — e ainda as guardo — por muito anos, particularmente enquanto trabalhava com o material do qual este livro foi feito.

rência única. Não era toda fragmentada, a despeito das interrupções durante a filmagem. Eu acho que o filme tinha que mostrar isso, e agora mostra. É um bloco.”

Em setembro de 1969, eu peguei um trem no oeste de Connecticut, onde cresci,

Como muitos, Terry Fox comparou Ray a Ahab: “Uma figura verdadeira-

para ingressar na universidade de Chicago. Eu queria ir para Chicago para estudar,

mente trágica, ele se rebelou contra as restrições e viveu totalmente dedicado ao

porque era uma cidade onde as coisas aconteciam, o que quer que isso significasse,

código que ele mesmo formulou. A única coisa que lhe faltou foi uma apoteose.”

e porque a faculdade dizia se importar menos em ensinar as respostas certas do

Num hospital, depois de uma de suas últimas operações, empurrado de volta para

que saber colocar questões. Eu havia escutado também que essa universidade tinha

sua infância, sem conseguir nem amarrar seus cadarços, as palavras que ele entre-

a maior taxa de abandono de estudantes e de suicídios no país.

gou como resposta vieram de Moby Dick: “Mas mesmo assim, imerso no Atlântico assaltado pelos furacões de meu ser, faço-me ainda para sempre intimamente agraciado numa calma silenciosa. E enquanto ponderosos planetas de interminá-

1. Originalmente publicado como introdução ao livro I Was Interrupted: Nicholas Ray on

veis aflições giram em torno de mim, lá no fundo e encravado no interior ainda

Making Movies, organizado por Susan Ray. Berkeley/Los Angeles/Londres: University of

me banho numa doçura eterna de alegria.”

California Press, 1993. Tradução de Thiago Brito. (N.E.)

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Eu era uma garota curiosa que queria saber o que fazia as coisas serem o que eram, mas não tinha aprendido muito sabendo as respostas corretas. Eu não

Ele listou alguns filmes, todos desconhecidos para mim. Seus filmes, eu pensei, não deviam ser muito bons.

conseguia achar a chave para a minha mente, enquanto que por trás de suas portas

Mas aquele homem parecia nobre — essa foi a palavra que eu falei para mim —,

fechadas havia vagas ideias agitadas e uma fome desenfreada de entrar em con-

como um rei que havia perdido seu reinado ou um Ulisses depois das guerras.

tato com o mundo, e desligar-me de qualquer coisa que me segurasse. A pressão

Eu estava estudando mitologia, então arquétipos correram soltos em minha mente,

aumentava. Eu queria experiência, e rápido. Por mais confusa que estivesse, temia

mas não presumia que algum herói pudesse ter tempo para mim, nem esperava

que a nebulosa maneira de pensar, formada na escola, seria apenas mais uma

reencontrar com este novamente. Por outro lado, em seu olhar, de um abissal azul

pedra em meu caminho. Então, antes mesmo de chegar, já planejava ir embora,

ártico, havia tanto espaço para eu me mover que poderia dar piruetas por suas

mesmo que não tivesse ainda ideia para onde ir.

pedras de gelo abaixo, de tão maravilhada. Mas, ao contrário, dei um pulinho para

No entanto, a ideia de ter um professor me agradava — um tutor particular, talvez, ou alguém com quem pudesse aprender. Mas o quê? Eu não podia admitir

a frente, querendo sincronizar meu pé direito com o dele e, no próximo passo, ele deu um pulinho em retorno.

que a habilidade que eu queria aprender era viver, então na falta de uma ideia me-

O processo durou mais dois meses, e eu continuei matando aula para ir ao

lhor eu decidi escrever. E quem eu queria que me instruísse? Para dizer a verdade,

tribunal assisti-lo. Era o melhor espetáculo da cidade, de vários pontos de vista,

Norman Mailer. Norman Mailer sabia como escrever, frequentemente enlouquecia,

mas o mais impressionante para mim era assistir às ações de três gerações de

e o mais importante era que ele sabia agir. Eu não conhecia Norman Mailer, não

judeus — juiz, advogados de defesa, e vários outros réus — voltadas umas contras

planejava conhecê-lo, então guardei essa ideia para mim e me inscrevi na escola

as outras, cada uma reclamando de traição. Embora a causa do conflito fosse cla-

por um ano.

ra e, em mais de um sentido familiar para mim, o resultado não foi. Não foi uma

Dois meses depois, numa manhã clara e com frias rajadas de vento, conheci

obviedade para mim saber qual geração poderia ganhar.

Nick. Nós fomos apresentados por Bill Kunstler, advogado dos sete de Chicago, 2 em

Quando chegou a hora de os advogados apresentarem os argumentos finais,

uma faixa de pedestres perto do Federal Building, onde iríamos para o julgamento.

os principais repórteres do país chegaram à cidade e eu tive que abrir mão do meu

Antes, eu havia visto Nick na sala do tribunal, no pequeno espaço onde a imprensa

lugar na seção da imprensa. Não presenciar a resolução do processo era uma der-

ficava, ou mesmo rondando pelos corredores, sempre rodeado de jovens. Era di-

rota, o que deixou algo perigosamente pendente em mim. Eu voltei para o campus

fícil não percebê-lo, pois sua áurea se espraiava até as paredes e faiscava em alta

sentindo-me estrangeira à vida estudantil e muito atrasada em minhas aulas, nunca

voltagem. Alto e branco, um cara legal, ia e vinha como queria. Nick, contou-me

as tendo realmente começado. Eu não sabia o que fazer comigo.

Kunstler, estava fazendo um filme sobre o processo e eu, disse Kunstler a Nick, era

Numa manhã, enquanto o júri estava deliberando, uma repórter do processo

uma estudante que estava no tribunal fazendo uma pesquisa. Era o mês do meu

que eu mal conhecia mandou um táxi para meu dormitório e me levou para a casa

18º aniversário, e três meses após o 58º de Nick.

de Nick, na rua Orchand — e eu até hoje não sei por quê. Mas entrei no carro e, como acontece numa boa história, fui levada para um novo mundo.

“É isso o que você faz, filmes?” — perguntei a ele.

A casa de Nick era só correria, um zumbido denso de pessoas com coisas para

Ele assentiu, e me estendeu um cigarro.

fazer. A sala de estar era a sala de trabalho, com sofá, projetor e, acumulados no

“Que filmes?” — Eu peguei o cigarro.

chão, pilhas ordenadas de baterias, gravadores, caixas, lâmpadas, géis, bobinas, pratos e copos, ao redor dos quais pés e cabeças se encontravam para conversar. Olhando para a cena, com a majestade de um réptil solar, uma câmera preta assentava num tripé. E grogue, mas perfeitamente adequado com um tapa-olho

2. Foi um processo em que sete jovens (Abbie Hoffman, Jerry Rubin, David Delinger, Tom Hayden, Rennie Davis, John Froines e Lee Weiner) foram acusados de conspiração e dis-

e um biquíni de estampa de leopardo, estava Nick. Esgueirando-se pelo quarto, balbuciava ordens através de um cigarro francês que pendia de sua boca. Eu não

túrbio público, na ocasião dos protestos que ocorreram em Illinois, quando da Convenção

conseguia escutar suas palavras, mas sua voz ribombava de alguma profundeza

Nacional Democrata de 1968. (N.T.)

surpreendente, como um ronronar que vem das entranhas de um grande gato.

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Sim, era uma selva maravilhosa, cheia de exotismo. Como é que eu acabaria

meia-noite. Compartilhávamos as refeições. O trabalho e nossas vidas se unifica-

entrando nessa vida? Bem, aqui você tinha que simplesmente mergulhar. Então, eu

ram. Éramos uma família. Parecia-me não haver limites para o que esta família

peguei algumas louças sujas e as levei para a cozinha. Depois, Nick chegou para

poderia realizar.

conversar enquanto eu lavava louça. Ele disse que sairia com uma equipe naquela tarde. Eu ficaria para atender aos telefonemas? Sim, eu adoraria.

E, claro, no centro desta grande família, e ampliando meus horizontes, estava Nick. Se, com o tempo, aprendi como ele usou o gosto de Frank Lloyd Wright

Mais tarde, quando voltou, Nick colocou uma pilha de transcrições do tribu-

pelas linhas horizontais, para, em seus filmes, esgarçar as margens dos quadros

nal na minha frente e me pediu para editá-las e transformá-las num roteiro cine-

de suas imagens, foram naqueles dias que eu experienciei esse mesmo tipo de

matográfico. Eu disse a ele que eu nunca tinha visto um roteiro para cinema. Ele

esgarçamento, por meio de Nick. Com ele, era uma coisa celular e profundamente

me disse que eu eventualmente sacaria, e me deu uma dica, como quem mostrasse

esperançosa. Num lugar tão generoso, quem, como e o que eu era — em qualquer

um truque de como abrir um pote de biscoitos: eu deveria buscar as situações que

momento do dia — eram aceitos. Num lugar tão generoso, eu sentia que podia me

fizessem a ação avançar. Algumas horas depois, enquanto eu saía pra pegar um

dissolver de minhas amarras, deixar minha natureza interna relaxar e entrar,

táxi, Nick veio até a porta de sua casa, botou uma grana em minhas mãos e disse:

finalmente, em contato com o mundo.

“Toma aí, um salário para a semana e para o táxi. Esteja aqui amanhã às dez.”

No final do dia, quando a maior parte das pessoas — cuja maioria tinha metade de sua idade — estava exausta, Nick perdurava elétrico, capaz de realizar basicamente qualquer função necessária, às vezes realizando determinadas tarefas até

Certa feita, fui a um circo itinerante, no último dia em que estaria na cidade.

melhor do que as pessoas que havia contratado. (Claro, suas habilidades eram

O pessoal do circo, tinha que guardar todos os equipamentos entre meia-noite e

de outra ordem. Até hoje creio que ele nunca compreendeu a mecânica por trás

quatro da manhã. Eu tinha me apaixonado por suas roletas gigantes, uma estrutura

de uma câmera, mas ele ia e chutava aquela droga, punha seu tapa-olho, e con-

enorme e elegante que tinha o formato do símbolo do infinito e que era construída

seguia o plano que queria.) Ele saía da construção de um cenário para ir escrever

apenas de pneus de caminhões, luzes coloridas, cordas e barras de metal. Todos

um roteiro, para filmar uma demonstração para a equipe, para ir conversar com

esses elementos iam juntos numa pequena picape. Eu assisti a eles desmontarem

advogados, para discutir o que seria bom para comer no jantar, para assistir ao

a roleta gigante, pedaço por pedaço. Sob luzes esparramadas sobre árvores e postes

que foi filmado no dia, para aconselhar um assistente enrolado, para ir ver a nova

de eletricidade, parecia a mais bela e perfeita coreografia de balé do mundo. Cada

peça que entrou em cartaz, e de lá voltava para escrever o roteiro — tudo isso num

um sabia exatamente onde tinha que estar e como cada parte entraria na picape.

mesmo dia, realizando tudo com extrema atenção e carinho. Mas persistência,

Cada um tinha a força de um levantador de pesos, a destreza de um malabarista,

habilidade e concentração, pensava na época, eram os pré-requisitos mínimos

o equilíbrio de um equilibrista, e suficiente graça para que, quando um homem

para se tornar um diretor.

caía de uma altura de vinte e poucos metros, antes mesmo que eu pudesse suspi-

Era estranho deparar com outras manias de Nick, principalmente vindas de

rar, antes que ele atingisse o solo, dois homens apareciam para agarrá-lo. Há um

alguém acostumado com toda a pompa de Hollywood. Sua casa parecia o apar-

detalhe sobre essas trupes circenses que, na época, não dei tanta atenção: todas

tamento de um estudante: roupas largadas no chão, lâmpadas sem lustre, copos

carregavam um canivete em seus bolsos.

por todos os lados, cinzeiros, revistas, livros e papéis jogados em cima de equi-

As pessoas da equipe de filmagem de Nick eram exatamente assim, uma tru-

pamentos de filmagem. Nick tinha escolhido uma equipe de pessoas jovens, eu

pe circense, mas sem os canivetes. Todas tinham o mesmo objetivo, trabalhavam

inclusa, pessoas que eram desconhecidas e não treinadas, mas ele falava conosco

para o grande espetáculo, e assim ajudavam umas às outras — me ajudavam. Cada

com muito respeito, sempre muito curioso com relação ao que pudesse aprender,

dia era diferente do anterior. Cada novo dia demandava um tipo de habilidade

e com uma expectativa de que conseguiríamos realizar qualquer coisa que ele

que eu nunca imaginava que colocaria em prática, e, assim, minhas habilidades

viesse a nos pedir.

eram úteis para os outros. O dia não terminava com a noite, mas sobrevivia sob

Após um dia na rua Orchard, a escolha era fácil: no final do semestre eu

novas luzes. Não existia um cronograma estipulado, as coisas simplesmente

abandonaria a faculdade e aceitaria a aventura, seja lá o que isso fosse. E, seja o

ganhavam destaque e aconteciam. A equipe ficava junta da manhã até depois da

que foi, era exatamente aquilo que eu estava esperando.

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Nick não era muito afeito a etiquetas ou a aparências, seja com relação a sua pes-

O momento foi revelador: a vida de cineasta podia ser bem cruel, existiam os

soa, hábitos ou história — então, eu não criei ilusões. Desde o princípio, eu sabia

canivetes, e “atrição” era realmente a melhor palavra para isso. As “famílias”

que ele era monstruoso. Certo dia, explodiu publicamente de raiva em cima de

cinematográficas eram tão instáveis quanto as outras, e do outro lado das luzes dos

um rapaz bem-comportado e extremamente dedicado, que era, na verdade, seu

postos existiam sombras tão densas quanto as deste lado. Foi a primeira vez que

filho, Tim. (A explosão não se deu por causa de um desentendimento, ou mesmo

compreendi que não podia viver se não a partir de mim mesma, não importando

um desrespeito, entre ambos, mas porque, de acordo com Ray, Tim havia desres-

como. Se eu tivesse tido a ideia de que, no meio de seus desvarios criativos, Nick

peitado a fita de celuloide. 3 Bom, pelo menos era isso o que Nick dizia.) Nick nunca

pudesse me carregar para além de meus próprios limites, eu estaria realmente

abria sua caixa de correios, parecia que não tinha contas para pagar; ele simples-

embarcando numa aventura sem volta. Mas existiam muitas facetas para este

mente jogava um bando de cartas fechadas em minha direção e me pedia pra

entendimento que levaria ainda algum tempo para que compreendesse.

sumir com aquilo. Ele bebia vinho no café da manhã — “É uma fonte de vitamina

E quanto a Nick, ele continuava esparramando suas tintas, mas elas começa-

C”, ele me dizia. E ainda tinha os remédios, uma maleta cheia que ele carregava

ram a se tornar mais densas. Eu ainda nada sabia sobre o passado de Nick, e muito

para todos os lugares: agulhas, ampolas de metanfetamina e complexo B, pílulas

menos de quando um velho e famoso fantasma começaria a bater suas correntes

misteriosas, saquinhos de maconha, blocos de haxixe, e tapa-olhos limpos para seu

e fechar a porta na cara dos outros. Mesmo assim, o pouco era o suficiente para

olho direito, cuja visão perdeu em decorrência de um coágulo sanguíneo. Quando

notar que, para Nick, a perda de um filme era como um fantasma. Uma forte

a hora era certa, não importando muito onde estivesse, ou mesmo com quem es-

necessidade cresceu em mim para capturar e botar esse fantasma para dormir,

tivesse, ele abaixava as calças e aplicava em si mesmo, diretamente nas costelas,

tanto por mim, quanto para Nick. E este virou meu grande propósito. Como ter

uma dose extraída de uma das pequenas ampolas. Ele precisava dessas doses para

um propósito era algo novo em minha vida, eu prontamente não julguei sua

poder continuar sua vida, já que seus médicos haviam lhe dado apenas mais um

legitimidade ou origem.

ano de vida. Ele me disse isso praticamente todos os anos dos quase dez em que

Nick continuou a agrupar um grande número de pessoas em sua volta, mas

convivemos. Seu corpo nasceu para viver até seus cem anos, mas ele se acabou

agora apenas alguns ficavam para trabalhar. É claro que eu continuei, não imagi-

completamente. Mais adiante, ele explicou: “The attrition has been tremendous”

nava fazer outra coisa. Então, por que fiquei?

[A atrição tem sido tremenda].

Ele tinha um dom para lidar com as criaturas delicadas. Ele ria de minhas

Eu não conhecia essa palavra, atrição. Eu olhei no dicionário: “atrição: 1.

piadas. Nós abandonamos a mesma faculdade. Ele sabia como se aventurar. Como

arrependimento de haver ofendido a Deus, suscitado mais pelo temor de culpa do

a esposa de um mestre zen certa vez colocou: “Comparados a ele, todos os outros

que pelo amor e pela fé; 2. desgaste ou destruição resultante de atrito.

são uns idiotas.” Se em algum momento pensei que ele poderia me ajudar com

Aquilo me soou bem romântico e tudo, mas, pelo menos do meu ponto de

meus problemas, eu agora achava que nós sofríamos dos mesmos problemas,

vista, não existia lá muita coisa aparentemente desgastada ou destruída em Nick.

com a diferença de que os dele eram maiores e melhores — então, eu o ajudava

Não importava o que ele tomava, sua energia nunca sumia.

com seus problemas e, no processo, resolvia também os meus. Para mim, ele era

Mas o dinheiro, sim. E da noite para o dia. Por questões políticas, os investidores do filme sobre o tribunal de Chicago desistiram. Da noite para o dia, o circo acabou, foi-se embora da cidade e a casa da rua Orchard fechou.

sempre interessante. Eu me sentia em casa com ele. E por que ele queria que eu ficasse? Eu era nova. Ele precisava de alguém que cuidasse das coisas para ele. Nós tínhamos os mesmos problemas. Eu dizia para ele que suas piadas eram péssimas. Eu estava tão perdida que precisava me procurar, e ele respeitava essa busca. Eu o entendia. Ele gostava de minhas manias. Ele se sentia em casa comigo. Eu simplesmente não iria embora. Em breve, abandonamos todos os bons modos, e adotamos uma forma de

3. Celluloid strip, no original. Para Ray, mais do que um conceito, era um misto de visão

comunicação mais afinada com ambas as nossas naturezas. Era uma harmonia

artística e espiritual. A fita de celuloide era a base para tudo, a maior invenção do homem,

baseada na dissonância, ou como colocou um observador: “Vocês se gostam, vocês

e era onde, possivelmente, sua redenção estava guardada. (N.T)

se entendem, mas são incapazes de dizer uma frase civilizada para o outro.” Outros

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***

tomavam nossas conversas como uma nova forma de entretenimento. Imagino que deveria ser engraçado ver Nick calmamente direcionar nossa conversa até me transformar numa besta raivosa, mesmo que na época eu errasse, aqui e ali, o timing certo da piada. Em retrospecto, acho que Nick sentia, às vezes, um pouco de inveja, como acontece quando nos sentimos envelhecer e estamos diante de alguém novo, cheio de promessas e sem um pingo de frustração ou perda. Eu também sentia inveja, de seu comprometimento, força, realizações, então eu não consigo entender o que o irritava, mas, seja lá o que fosse, isso o deixava bem mal-humorado. “Nunca entre numa batalha com uma arma inferior à de seu oponente”, implicava ele quando discutíamos. Eu sabia que minha arma não aguentaria até o fim, e nada me deixava mais irritada do que isso. Mas, ao mesmo tempo, ninguém nunca havia me deixado externar minha raiva desse jeito, e sair de mim era o que eu estava buscando. Finalmente, fui com um amigo assistir a um dos filmes do Nick. Quando seu nome apareceu na telona, dei uma cotovelada nas costelas dele, mas, 15 minutos depois que o filme começou, estava me levantando da cadeira e me dirigindo à saída do cinema. Eu disse francamente a Nick que eu não fiquei nada impressionada. “Que filme você foi assistir?”, perguntou-me ele. “Alma sem pudor.” “É, realmente...”, disse ele, rindo.

No verão, já estávamos morando em Nova York. Nick me alojou na casa de seu velho amigo, Alan Lomax. 4 Às vezes, ele ficava comigo, na casa do Alan, e às vezes ficava na casa de Connie Bessie 5 — dependendo de quem estava menos irritadiço. De volta a Nova York, depois de um exílio de dez anos, Nick estava recuperando um vínculo com uma parte de sua vida que havia abandonado décadas atrás, na época da Grande Depressão e da Segunda Guerra Mundial. Ele restabeleceu amizades antigas, como as com Alan e Connie, mas também com Jean Evans, John Houseman, Gadge Kazan, Les Farber, 6 Max Gordon, 7 Will Lee 8 e Perry Bruskin. 9 Ao lado deles, Nick era como uma criança malcriada, indulgente, esquisita, pródiga; mas, ao mesmo tempo, ele me parecia estar mais puro deste modo, como que grato por ter reencontrado seus velhos amigos e poder ser visto a partir de seus olhos novamente. Eu tive a impressão de que os anos da Depressão foram bons para ele, e ele concordou comigo. Como ninguém tinha dinheiro, as pessoas tiveram que se ajudar e trabalhar juntas, e, assim, a criatividade reinava e os valores mantiveram-se simples e claros. Em geral, Nick não gostava de sua geração. Ele os considerava um bando de traidores, cujo ato de traição assemelhava-se, como ele mesmo colocava, “a um pai que diz a seu filho que ele pode pular em seus braços e, no momento que a criança pula, o pai tira os braços”. Ele se sentia melhor com minha geração, enquanto eu não; e ele parecia compreendê-la muito melhor do que eu.

Em abril de 1970, fui com Nick para Nova York a fim de buscar fundos para o filme de Chicago. De dia, trabalhávamos na mesa de edição, montando uma apresen-

Naquele verão, ele saía muito na rua e, tal qual um gato, fazia suas caminhadas

tação do filme, ou íamos a museus e visitávamos seus “velhos amigos”. À noite,

à noite. Do escritório que havia alugado no Palace Theatre — onde Lauren Bacall,

íamos jantar, e então ao teatro. As expectativas para o filme estavam baixas. Nick estava sem dinheiro e queria voltar para a Europa, para a ilha de Sylt, no mar do Norte, onde tinha uma casa e planejava construir um estúdio de som. Lá, ele

4. Etnologista e colega de Nick do tempo em que trabalhou como pesquisador para a

me disse, eu poderia escrever e trabalhar com ele como sua aprendiz nos filmes

Biblioteca do Congresso, colecionando músicas populares, e produziu um show de rádio na

que rodaria no estúdio. Não existia plano mais perfeito. Eu conseguia sentir o gosto salgado do vento. Primeiro, planejávamos pegar um avião direto para Chicago, mas todas as companhias estavam em greve, então acabamos comprando passagens econômicas de trem. Viajar país adentro ao lado de Nick fez com que eu me sentisse uma

CBS chamado Back Where I Come From [Lá na minha terra]. (N.A.) 5. Connie Ernst. Nick trabalhou com ela quando era funcionário do Departamento de Informação de Guerra, na década de 1940. Eles noivaram por um breve momento. (N.A.) 6. Psiquiatra e autor do livro The Ways of the Will [Os caminhos da vontade], o qual Nick cita em suas aulas. (N.A.) 7. Dono da Village Vanguard, que foi centro de referências jazzístico em Nova York por

mulher da época dos pioneiros, as fronteiras se alargando diante de meus olhos,

décadas. O rosto de Max foi o primeiro que Nick viu quando chegou em Nova York, e foi o

sempre vastas e próximas. Quando finalmente chegamos na Union Station — sujos,

que fez com que se sentisse em casa. (N.A.)

depois de termos passado a noite bebendo um péssimo gim, quando eu aprendi

8. Trabalhou com Nick no Theatre of Action (teatro de esquerda da década de 1930). (N.A.)

a jogar pôquer —, parecia que a coisa certa a fazer era permanecermos juntos.

9. Também do Theatre of Action. (N.A.)

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viúva de Humphrey Bogart, um dos homens que Ray mais amou na vida, estava

coisas pelo chão, seguido pelo acender de um isqueiro, uma longa e profunda as-

atuando numa peça —, ele olhava para a praça da Time Square, esperando as

piração, e então tosses e mais grunhidos. Então, tampando seu rosto contra a luz,

limusines irem embora e o espaço cair na penumbra. E, então, ele emergia com

ele balbuciava: “Pés.” Os pés de Nick — eu sabia disso porque ele me contou — não

as sombras da noite — cafetões com roupas de couro, prostitutas com roupas em

suportavam caminhar por todo um dia caso não fossem massageados pela manhã.

tom pastel — enquanto elas desciam a Broadway estrondosamente com seus carros

Assim que isso terminasse, ele poderia se sentar direito.

T-Birds brancos e enchiam as avenidas, com os rádios a toda altura. Nick rondava

E assim fazia, jogando cotovelos e joelhos para o lado da cama, cabeça depen-

por ali, monitorando os humores, as entradas e saídas, altercando com bêbados,

durada para o outro lado, com um cigarro na boca. Ele ficava parado, sentado como

bebendo em bares locais, jogando canastra, sinuca, pôquer, e, ainda, longuíssimos

uma pedra, por um longo tempo, num silêncio irreprimível, exceto pelo barulho

jogos de bingo no Fascination da 48th Street. (As portas do Fascination eram ilumi-

das cinzas caindo ao chão. Como eu ainda não havia explorado os segredos por

nadas como se fossem máquinas de pinball. Quando eu passava por ali, o promoter

trás do silêncio, esse denso momento de pausa era particularmente difícil para

do lugar me cumprimentava pelo microfone: “Está procurando o Wiley Post?” 10,

mim, mas eu tentava não me irritar com isso. E minhas primeiras investidas eram

e apontava em direção ao lugar onde estava Nick. Conhecido ou desconhecido,

sempre calmas, delicadas: “O que está incomodando você?”, perguntava. O silêncio

Nick nunca passava despercebido.)

se intensificava na espera da resposta. “Não pode ser algo tão ruim assim, pode?”

Enquanto Nick ia e vinha, eu me perguntava por que um homem se negaria

Na verdade, podia, e era ruim demais até mesmo discutir sobre isso. “Responde,

aos instintos básicos de conforto que todo ser humano necessita para sobreviver:

vai!” Ele simplesmente continuava fumando, levando o cigarro à boca. “Nicholas,

ele não dormia, ele não se refugiava do frio, calor, ou de qualquer outra caracte-

você vai se atrasar.” E tirando o cigarro. “Nick!”

rística de uma dada estação, e, se alguém não lhe oferecesse um prato de comida,

Finalmente, ele se virava para mim e começávamos uma nova, e mais verbal,

ele sobreviveria à base de vinho branco, tabaco, cerveja, gim, barras de cereais,

forma de comunicação. Geralmente, eu conseguia entender algumas palavras

e mais aquelas altas doses de octano, que aplicava em si mesmo. É um tipo de

que ele balbuciava, como “traição”, “atrição” ou “filho da puta”. Eu sentava a seu

comportamento que eu considero perverso. Ia completamente contra a natureza,

lado e aguardava seu descanso, mas eu não tinha muita paciência para o silêncio,

e reforçava minha impressão de que a casa de Nick era assombrada, e de que ele

então eu o preenchia com conversa fiada: o dia ia ser ótimo, ele tinha muito o

era o fantasma. Parecia que ele acreditava que, caso se entregasse ao sono, o sono

que fazer, tanta gente o amava, a sorte ia finalmente chegar para ele — e cortando

o seduziria e o guardaria de tal modo que ele nunca mais encontraria o caminho

minhas frases apareciam palavras dele que completavam alguma outra coisa que

de volta à lucidez. Assim, ele meio que ficava sempre rondando, carregando atrás

ele dissera anteriormente (e que eu já tinha esquecido), e então ele finalmente se

de si suas invisíveis e silenciosas correntes. Assim como um espectro atravessa as

levantava. Eu gosto de detalhar bem essa nossa rotina porque, nos quase dez anos

paredes, Nick atravessava o dia até a noite, a noite até o dia, indo do lado de fora

em que moramos juntos, ele nunca fez algo tão previsível. 11

para o lado de dentro, entre o sono e a lucidez, entre a vida e a morte, desafiante, ignorante, dissolvendo as divisórias existentes entre oposições. Eu não o acompanhava nessas aventuras (eu precisava dormir, eu precisava achar um trabalho), mas eu aguardava até a hora em que ele se cansasse de seus

Certo dia, neste verão, Nick estava olhando para seu pés quando me disse que, na produção de 55 dias em Pequim (55 Days at Peking, 1963), ele teve um pesadelo e, quando acordou, sabia que nunca mais conseguiria completar outro filme em sua vida.

companheiros, ou até mesmo quando seu corpo não suportasse mais, até o momento em que ele finalmente precisasse voltar para casa para se reabilitar. Depois de comer, ele desmaiava em sua cama até o meio-dia, quando ele gostaria de ser acordado para fazermos uma reunião. Seu acordar era um evento desgastante, e não apenas para ele. Começava

*** As estações mudaram e Nick se infiltrava pela cidade como um vasto organismo: ele foi ao Factory e ao Eletric Circus, de Andy Warhol, ao bares do Village e ao

com grunhidos profundos, depois uma busca às cegas por cigarros, derrubando 11. Aparentemente esse tipo de comportamento não é tão incomum. Ver o livro de François 10. Um personagem encarnado por John Wayne que usava tapa-olho. (N.T.)

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Gilot, Life with Picasso (Nova York: Bantam Books, 1984, pp. 154-156). (N.A.)

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Vanguard, ao Max’s Kansas City, aos teatros fora da Broadway, a Time Square,

fim, eu quase não consegui respirar, a tensão era enorme. Após assistir a Sangue

a embaixadas e salões do East Side, e aos obscuros quartos onde sujeitos excên-

ardente (Hot Blood, 1955), dei graças a Deus por só ter conhecido Nick depois que

tricos experimentavam drogas em busca de expansão da consciência. Ele queria

seu fogo começou a arrefecer. Quando vi Delírio de loucura (Bigger Than Life,

saber o que estava acontecendo pela cidade, mas não iria aceitar o papel de um

1956), lembrei que já tinha visto este filme, anos antes, em algum final de semana

observador; não importava muito qual fosse a cena, ele precisava fazer parte, par-

solitário, e me lembro de ter ficado impressionada com a visão da loucura assim

ticipar, e não aceitaria ser um coadjuvante. Ele se fazia em casa em qualquer lugar

tão próxima de casa, não tendo forças para desligar a televisão ou desligar o filme

(exceto em alguns círculos mais selvagens, onde se transformava numa criança

da minha cabeça. Compartilhando minhas lembranças com Nick, eu lhe disse:

travessa, ou imitava um sotaque inglês que era rejeitado com um pequeno despre-

“Esta é sua vida antes mesmo de você tê-la vivido.” Mas cada filme era um pedaço

zo). Em todos os lugares existiam aqueles que estavam prontos para acompanhá-lo

de sua vida, desnudada, e cada história era diferente, e, assim, eu ficava embas-

e segui-lo pela vida. Eles davam a Nick seus talismãs, seu dinheiro, seu tempo, mas,

bacada com a grandiosidade de sua vida e com sua determinação de deixar com

quando a maré puxava, muitos morriam pelo mar, enquanto Nick estava a prumo,

que outros pudessem vê-la (na época, não me veio à cabeça pensar nisso como

em cima de uma nova onda. Não importa quão rápido tenham sido os contatos,

um ato de coragem). Eu não queria gostar de Juventude transviada (Rebel Without a Cause, 1955)

muitos parecem se arrepender de não tê-lo mais. Nick desejava uma chance para seu filme — se não era o filme de Chicago,

— porque todo mundo gostava de Juventude, o que era quase uma contradição —,

então que fosse qualquer outro filme que pudesse animá-lo —, e a chance para um

mas como é que Nick sabia como era a vida numa cidade do interior, como a vida

novo filme significa sempre dinheiro. Muitos jovens, e velhos, roteiristas queriam

era para pessoas que, como eu, cresceram nesse tipo de ambiente? E o que era toda

a ajuda de Nick Ray para o desenvolvimento de seus projetos, então, com a con-

aquela balbúrdia em torno de Dean, já que era claro — para mim, pelo menos — que

dição de que poderia dirigir, Ray os ajudava. Eles o pagavam em alimentação e

Dean estava imitando Nick?

mais alguma ajuda de custo até o momento em que os projetos eram abortados.

Como é que Nick sabia de toda a mágoa que uma mulher pode guardar, até o

No inverno de 1970, Nick conheceu Bob Glaudini, Terry Ork e Sam Shepard

momento em que ela explode, como Emma de Johnny Guitar? Ou como a atmosfera

— todos trabalhando na peça de Sam, Cowboy Mouth. Nick ia e dava conselhos nos

parece se transformar quando duas pessoas se apaixonam, como Charisse e Taylor

ensaios. Ele ajudou também na pesquisa de um livro sobre o teatro de esquerda,

12

em A bela do bas-fond (Party Girl, 1958), ou Mitchum e Hayward em Paixão de

além de ter participado em mais de meia dúzia de outras empreitadas simulta-

bravo (The Lusty Men, 1952)? Como é que ele aprendeu a respeitar pessoas sim-

neamente (ele sempre foi um poço de ótimas ideias — o maior, e mais generoso,

ples, com seus pequenos problemas, sonhos, amores e reflexões, quando vivia um

que conheci em toda a minha vida).

vida tão complexa e incomum? Mas, fosse como fosse, eu esperava que Nick fosse

Enquanto isso, aproveitei para ir assistir a seus filmes. Quando nasci, o cine-

além de todas as minhas expectativas, que colocasse tudo de cabeça para baixo,

ma ainda era visto como uma arte bastarda, em que se admitia o entretenimento,

que acrescentasse alguma coisa, que amputasse alguma coisa, mas não em nome

mas não se reconhecia um coeficiente artístico. Eu amava ir ao cinema, mas não

do risco ou pelo prazer da contorção, ou mesmo por querer provocar aquilo que

era uma cinéfila. Tirando o que absorvi em meus anos trabalhando ao lado de Nick,

se entendia como a verdade, pois a verdade de Nick era nua e crua. Se Delírio de

eu não sabia nada da técnica ou da história cinematográfica. Eu não acreditava

loucura era sua vida, então Sangue sobre a neve (The Savage Innocents, 1960) era

em unanimidades, ou no que as pessoas me diziam, então tudo aquilo que eu ou-

sua alma — o título diz tudo.

via sobre os filmes de Nick significava de pouco a nada para mim. Mesmo assim, eu queria saber o que os filmes poderiam me dizer sobre o homem que os fez.

Certa noite, assistimos a Amarga esperança (They Live by Night, 1948) na televisão. Eu achei Bowie extremamente parecido com Nick, de algumas fotos

Os filmes de Nick eram perturbadores demais para serem divertidos. Não

que eu tinha visto dele quando era mais jovem — e eu lhe disse isso. Nick assentiu

ofereciam qualquer tipo de paz. Eles me faziam trabalhar, e eu não me encontra-

e começou a balbuciar qualquer coisa sobre como seu filme tem o primeiro plano

va muito ansiosa para assisti-los. Assistindo a Johnny Guitar (1954) do início ao

feito em cima de um helicóptero, mas no final do filme ele estava lacrimejante. Que Nick soubesse mais do que eu jamais pudesse acreditar não me sur-

12. Jay Williams, Stage Left (Nova York: Scribner, 1974). (N.A.)

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preendeu tanto, mas até assistir a seus filmes eu não sabia o quanto ele sentia.

221


Naquela época, para mim, que era muito jovem e não conseguia lidar com minha

Nick estava desempregado, chegando na casa dos sessenta, e a metanfeta-

própria natureza, era simplesmente demais. Mas os filmes, eu tive que admitir,

mina tinha acabado de se tornar ilegal. Era um bom momento para que saísse da

não eram lá muito ruins.

cidade grande. Em Taos, Dennis nos deu um teto, comida, bebida, entretenimento, novas amizades, espaço, armas, cavalos: o esconderijo sofisticado de um fora da lei, um lugar onde Nick poderia se soltar o quanto quisesse. Ele era como que

Estávamos ambos bem perdidos, mas de maneiras opostas. Ele pelo menos tinha

a caricatura de si mesmo, um satírico zarolho, e pela primeira vez parecia sentir

seu dom e um grande número de pessoas para ver, coisas para fazer, em suas pe-

o peso da idade.

rambulações noturnas, enquanto eu era ainda bastante insegura comigo mesma

Deixou sua barba crescer, ao mesmo tempo em que começou a alimentar um

para conseguir achar minhas próprias ocupações e amigos, e não estava pronta

traço de paranoia, o que o levou a começar a usar uma arma presa a um coldre.

para seguir atrás de sua sombra. Certo dia, desenhei um autorretrato sem face.

Eu não gostava da barba, e achava que a arma era um pouco demais, principal-

Nick escreveu em seu diário: “Ela já é aquilo que deseja se tornar.” Quem era ela?

mente considerando-se seu estado de julgamento e sua péssima visão. Então, ele

Eu queria muito, mas eu não a conhecia, e foi extremamente tocante, calorosa-

raspou a barba e atirou numa cobra que estava presa um bloco de pedras. Existem

mente reconfortante, tê-la exposto à luz do dia.

aqueles que testemunharam o tiro, e dizem ter visto Nick puxar a pele da cobra

Eu não podia, por outro lado, contar com Nick para consolo e conforto.

(embora ninguém tenha visto seu corpo) por dentre as pedras; outros dizem que

Eu li o ensaio de Norman Mailer, “The Prisoner of Sex”, 13 na revista Harper,

não era uma cobra, mas sim uma planta — de todo modo, creio que ele tenha feito

e eu dei, emocionada, a revista para Nick dar uma lida. Ele era um professor, eu

aquilo que ele queria.

disse a ele, e, talvez se Nick encontrasse com Norman, ele poderia falar alguma

Quando ele não estava praticando tiro ao alvo, ou fazendo qualquer outra

coisa para ele sobre mim? Na manhã seguinte, Nick me entregou de volta a revista,

coisa com os meninos, ele mexia em seu roteiro — Mister Mister —, um faroeste

mas o ensaio em questão havia desaparecido sob um amontoado de cortes, fitas e

sobre um grupo de crianças que tomam controle de uma cidade. Ele também

comentários que ele colou em cima. Quando chegou a hora de encontrar Norman,

ficava observando enquanto Dennis montava The Last Movie (1971), um filme

eu estava sozinha.

de que Ray gostava muito. Um vendedor apareceu pelo sítio para apresentar seus

Numa manhã, poucas horas antes da aurora, Nick me acordou dizendo que

produtos, entre eles havia um videocassete e uma máquina que fazia com que

trouxe algumas pessoas para eu conhecer. Saí do quarto toda amassada, mas quan-

funcionasse em casa, e Nick, observando, sentenciou: “Em dez anos, as pessoas

do vi o casal que me esperava não tive mais certeza de que estava acordada. Diante

não mais irão ao cinema.”

de mim estava uma mulher ruiva, vestida como a deusa Kali, usando um hot

Nick estava parando de usar anfetaminas, ou mesmo algumas outras substân-

pants. Eu puxei a mulher para um canto, porque eu queria saber a razão que a

cias, e, à noite, ele sofria terrivelmente, necessitando de cuidado a todo momento.

levou, às quatro da manhã, a aparecer em minha casa. Ela entendeu logo o que eu

Numa noite, entre grunhidos e dores, ele me pediu em casamento. Como, naquela

queria e me olhou diretamente nos olhos: “Você não entendeu ainda? Ele quer que

época, eu já sabia que ia ficar com ele até o momento em que pelo menos um de

você tenha um amigo.” Nick conheceu essa mulher num show lotado do Grateful

nós estivesse morto, respondi que considerasse como feito. Nick me deu uma

Dead, em sua última noite em Filmore (nós duas ainda somos bastante amigas

aliança, eu lhe entreguei uma pérola, ele voltou a grunhir, eu voltei a massagear

e, inclusive, descobrimos depois que somos parentes, por parte de nossas mães).

seus pés. No próximo dia, ele já estava de pé e enérgico como sempre, enquanto

No mesmo show, Nick esbarrou em Dennis Hopper, que há muito tempo tinha lhe convidado para ir a seu sítio em Taos, Novo México. Fiquei de terminar algumas coisas de meu trabalho e encontrá-los por lá.

eu aproveitei para descansar. A visita a Taos nos forneceu aventuras diárias, belezas estonteantes e muito espaço — eu nunca tinha visto um rolo de feno ou mesmo o rio Grande —, mas Nick estava se debatendo demais com algumas questões. Ele estava preso em alguma transação e eu me pegava imaginando se algum dia ele conseguiria se libertar.

13. Norman Mailer, “The Prisioner of Sex”, Harper’s Magazine, março de 1971, vol. 242, pp. 41-46. (N.A.)

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*** A história de Nick 14 já foi muito bem contada; portanto, é suficiente dizer que, no outono de 1971, ele aceitou um emprego como professor de cinema na Harpur College, campus da State University of New York, em Binghamton. Nick se mudou para lá no final do verão. Eu planejava trabalhar quatro dias na semana, em Nova York, e encontrar com Nick em Binghamton, aproveitando os finais de semana prolongados. Binghamton era uma cidade alojada no meio de um vale, e carregava um ar denso e inepto que podia pesar na cabeça de qualquer um, mesmo que você não estivesse pensando em nada. Mesmo assim, Nick foi trabalhar feliz e cheio de ideias. Ele comprou um caminhão branco e uma jaqueta vermelha, fez uma lista de equipamentos, entrou com um pedido para ser subsidiado pelo governo, e delineou a estrutura de suas aulas. Os estudantes trabalhariam num esquema de rotatividade — fariam de atuação à câmera, roteiro, fotografia, efeitos especiais e figurino —, para poder estudar questões envolvendo técnica, ofício e como trabalhar em grupo. Eles aprenderiam a fazer cinema fazendo cinema. Mas o filme era sobre o quê? Eu sugeri que fosse sobre o fantasma, a “premonição”, que, há uma década, impossibilita Nick de completar um filme. Ao tratar de seu fantasma, Nick poderia espantá-lo de vez, ou, pelo menos, era isso que eu acreditava e assim argumentei. Nick começou a escrever um roteiro chamado The Gun Under My Pillow [A arma sob meu travesseiro]. Uma noite, enquanto ele escrevia, uma ambulância passou perto de nosso quarto, direcionando-se para a enfermaria que existia ao nosso lado. Um corpo — nunca conseguimos descobrir quem era, ou mesmo em qual condição se encontrava — desceu do caminhão numa maca. Nick jogou fora suas primeiras páginas e começou tudo de novo, com a chegada de uma sirene, as luzes vermelhas cintilando. Nick notou que uma era de atuação e de consciência social estava terminada, os jovens estavam recuando cada vez mais para dentro si, buscando fazer “suas próprias coisas”. Os alunos traziam suas histórias para Nick, e suas histórias eram sempre sobre o que Nick chamou de “a procura por uma imagem de si próprio”. Com o tempo, as histórias começaram a se sobrepor e — como foi colocado a um certo diretor — “por tanto tempo descontentes com a vida na capital dos comerciantes dos sonhos”, mas preocupados com a natureza da imagem e de si próprios, elas viraram a base para o filme chamado We Can’t Go Home Again.

Embora ele nunca deixasse de ser introspectivo, Nick também começou a se interiorizar. Como um sábio chinês que, depois de ter feito o suficiente no mundo, muda-se para uma vida nômade, entregando-se à natureza e ao paradoxo de seu próprio espírito. Só que, novamente, no caso de Nick a transição não era suave. Eu podia apenas observar. De alguma forma, tinha saído do meu papel de aprendiz, boba da corte e sócia, os quais achava que me caíam muito bem, e entrei no papel da secretária, da ranzinza, ocasionalmente do refúgio e do consolo, para os quais eu não nutria o menor respeito. Eu continuava não tendo nenhum foco; este era meu maior problema. Não tinha desculpas: Nick era tão grande e próximo que qualquer outra alternativa se bloqueava à minha vista; e a mulher de um grande homem, não importa quem ela seja, raramente é vista inteiramente e com bons olhos, mas sempre como um ornamento, uma obstrução, ou simplesmente como um grande erro. Então, eu continuava emperrada, e trespassada de inveja, enquanto Nick cuidava e estimulava seus alunos — que tinham, além de tudo, a minha idade — a se tornarem uma equipe de filmagem e uma família. Ele deu a eles o seu tempo, pressionava-os a descobrirem quem eles eram, extraía deles suas poesias e venenos, e esperava que eu fosse resolver sozinha meus próprios problemas, enquanto cuidava de seus papéis, ideias, orçamentos e pés. O que eu acabei fazendo, embora não de forma tão carinhosa. Pelo menos eu continuei com meu trabalho na cidade, e mantive minhas visitas de forma estrita e curta. E as câmeras continuaram rodando. Nos dois anos em que lecionou em Harpur, Nick filmou um longa-metragem quase todo. No entanto, ele também se opunha à maioria de seus colegas e à administração da escola. O que não era uma grande surpresa: eles desejavam criar ou manter regras, e Nick não. “Em terra de cegos, quem tem um olho é rei”, explicou. Ele tinha certeza de que iriam sabotar seu projeto — eu posso apenas imaginar o que deviam pensar do que ele estava fazendo — e suas suspeitas poderiam até não estar tão erradas. Mas eu nunca o vi se dar bem com nenhum tipo de autoridade, pelo menos não sem resmungar alguma coisa por entre os dentes. Em 1973, levamos uma versão incompleta de We Can’t Go Home Again para o Festival de Cannes, onde recebeu uma salva de palmas. Algumas pessoas ofereceram dinheiro a Nick para que pudesse completar seu filme, mas ou as somas não eram suficientes, ou os investidores desejavam controle sobre a obra. Depois de uma pequena estadia em Amsterdã, Nick levou o filme de volta à costa oeste para tratamentos num laboratório, mas grande parte da cópia de trabalho acabou ou

14. Ver a biografia escrita por Bernard Eisenshitz, Roman Américain: Les Vies de Nicholas

danificando-se no trajeto, ou simplesmente se perdendo, e, assim, de acordo com

Ray (Paris: Christian Bourgois Editeur, 1990), publicado em inglês como Nicholas Ray: An

Nick, as pessoas que deveriam estar ajudando estavam, na verdade, arruinando

American Life, tradução de Tom Milne (Wincester, Mass: Farber and Farber, 1993). (N.A.)

tudo. Com este filme as coisas davam errado com uma consistência perturbadora.

224

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Mais de uma vez, Nick me ligou no meio da noite para anunciar: “Vou jogar a porra toda no oceano!” Nos próximos dois anos, enquanto eu ficava em Nova York, Nick viajava de leste a oeste carregando caixas e mais caixas de material de trabalho. Seu propósito central era assustar grande parte de seus investidores, de modo que ele pudesse terminar o filme da forma como desejava, ou até mesmo encontrar outro para começar a fazer. Mas nada dava certo e, mais uma vez, eu comecei a pensar. Inúmeros montadores me disseram que eles montavam uma determinada sequência exatamente do jeito como Nick os instruiu — e a sequência ficava ótima —, mas, logo no próximo dia, quando voltavam para trabalhar, descobriam que a sequência tinha sido remontada durante a noite. Seria isto como Penélope no tear? Francis Ford Coppola ofereceu a Nick uma sala de edição na Zoetrope, mas teve que enxotá-lo de lá, porque Nick e sua equipe ficavam acionando os alarmes da Zoetrope quando decidiam sair à noite para se acabar. Nick cansou todos os seus convidados. Denúncias de suas loucuras chegavam até mim de todos os cantos, já que sua estrada de destruição incluía tanto novos quanto velhos amigos. Aqueles que tinham me repreendido por ser rabugenta começaram a mudar seu tom: “Ele realmente é monstruoso.” Eu poderia ter extraído satisfação no velho “eu te disse”, ou mesmo me divertir com as loucuras de Nick — tão originais, tão engraçadas, tão bem concatenadas —, mas ele estava se afundando rapidamente. Ele não conseguia mais beber sem cair de bêbado. Cada vez que vinha para a Costa Leste, ele chegava mais destruído e frágil. Ele continuou tentando parar com as drogas e a bebida, mas não conseguia. Eu o levava para médicos, alimentava-o, colocava-o para dormir, mas ele não aceitava descansar. Seu desespero se tornava cada vez mais e mais denso, como um buraco negro que sugasse tudo para dentro de si.

PARA: Ms. Schwartz 217 East 12th Street Manhattan ASSUNTO: Biografia de Nicholas Ray Veio à minha atenção que, desde que o assunto de minha biografia ou “autobiografia” transformou-se num tópico de nossas discussões, você seria a única pessoa que conheço que teria a capacidade, o talento e o senso de humor necessários para escrever este tipo de coisa, por mais desnecessário que seja... No entanto, se você se decidir por fazer isso, que seja logo. Externamente, eu ainda me encontro na posição de rir de mim mesmo e reconciliar comigo mesmo através da raiva; internamente, apenas você e, em raras ocasiões, Tim conseguem fazer minha barriga ronronar, minhas lágrimas aparecerem e com que a crueza de meus pensamentos se tornem expressos, mesmo que não sejam compreensíveis... Que outra pessoa no mundo sabe mais de meus absurdos do que você? Talvez algumas das pessoas que conheci tenham visto seus fragmentos, mas ninguém os viu por inteiro... Na mesma hora, e num espírito cooperativo, eu desenhei um esboço e comecei a juntar alguns apontamentos. Mas eu não fazia ideia de como uma vida se construía, nem tinha interesse em contar uma história factual, mesmo que esta história fosse a de Nick. A empreitada era grande demais para mim; eu tinha problemas suficientes com o próprio homem. Então, guardei essa carta entre meus apontamentos, e assisti a Nick se tornar laranja com mais uma frustração. Mas o desafio foi colocado e, se eu ainda não o tinha compreendido, eu também não conseguia esquecê-lo.

E então, quando finalmente parecia que ele estava nas últimas, ele se reergueu e rápidamente assumiu espaço e chão, como um lastro de fogo. Ele voltou a trabalhar em We Can’t Go Home Again e fez apontamentos para sua autobiografia. Ele filmou um festival de música country em Turlingua, no Texas, realizou palestras em colégios, e viajou para a Espanha, para ser o presidente do júri no Festival de Cinema de San Sebastián — onde o tradutor local não conseguiu traduzir seu inglês quase demente, e onde Pakula lhe chamou de mestre. Foi nessa época, também, que ele me escreveu esta carta:

226

*** Na primavera de 1976, em Nova York, Nick começou a trabalhar num filme chamado Murphy’s Law, sobre uma prostituta de Nova York e um advogado de fachada, ambos passando por maus bocados e bastante solitários. O produtor do projeto arranjou para Nick um bom escritório e estúdio, e me pediu para participar da equipe de produção. O orçamento, quando captado, daria para contratar uma equipe de atores profissionais, equipamentos e salários para todo mundo. Rapidamente, as pessoas ouviram falar sobre o novo filme de Nick. Rip Torn e, o que era ainda mais

(São Francisco, 1973)

especial para mim, Norman Mailer, iam participar. A grana parecia que ia rolar.

DE: Nicholas Ray

Com as leis de incentivo fiscal em voga, tínhamos certeza de que conseguiríamos.

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Com alguns trocados no bolso, rapidamente Nick encontrou toda erva, bebida e pó que ele tanto dizia querer parar, e voltou com tudo; mas ele continuou traba-

se drogava. Ela disse: “Se ele não parar agora de beber e usar drogas, ou ele vai morrer ou vai virar um vegetal —garanto a você.”

lhando, reescrevendo o roteiro em três dias, procurando locações, conversando com os atores, cheio de visões e ideias. No caminhar das coisas, a loira, que ia ser a protagonista, confessou para Nick

A beleza do dom de Nick, como uma flor de lótus, brotava do lamaçal de sua raiva

que ela só conseguia sair bonita se usasse azul. Azul, disse-se Nick, poderia causar

e desesperança; mas poderia não brotar, caso ele não tivesse encarado sua própria

problemas no filme, já que até uma pequena xícara de chá azul tenderia a sangrar

escuridão. Mas um equilíbrio fundamental, na trajetória de Nick, perdeu-se: o que

na imagem. Ele discutiu esse dilema com o figurinista e, como que acordando de um

antes fora um terreno fértil agora tornava-se uma areia movediça. Que Nick tenha

transe, na hora do almoço, anunciou: “Vamos filmar tudo em azul e mudar o título

escolhido não ser sugado, que tenha decidido parar de beber e se drogar, e entrar

para City Blues.” Uma solução aparentemente simples, mas para a qual ele teve que

para um programa de desintoxicação, foi, até onde sei, a decisão mais difícil que

pensar e abarcar um grande número de variantes, como, por exemplo, unir o canto

tomou em toda a sua vida. Ele estacou no meio de sua trajetória, deu meia-volta,

lamuriento da cidade, naquele verão, com a tristeza que açoita o protagonista e as

e olhou dentro dos olhos do fantasma que o perseguia por 65 anos. Ele estava

limitações do figurino da estrela principal. Naquela época, pareceu-me que a forma

com medo, sentia dor e dizia isso aberta e estrondosamente para todos. Um tipo

como ele pensava não seguia linhas de raciocínios, mas explodiam em esferas,

de honestidade como aquela sempre me pareceu meio boba, arriscada e aberta

como mundos paralelos, e que sua técnica de unir imagens múltiplas não partia de

demais para o meu gosto, mas, quando eu a vi no rosto de Nick, foi como uma

uma noção estritamente cinematográfica, mas que, na verdade, espelhava a maneira

revelação — era heroico, era algo ao qual eu aspirava. Eu sabia que esse sentimento

como ele via as coisas e, de certo modo, a forma como as coisas deveriam ser vistas.

tinha algo a ver com o tal soltar das amarras (cortá-las por dentro) que eu sempre

Também notei que, sob essa maneira com que Nick abraçava tantas variantes,

acreditei que faria da vida uma coisa nova e mais livre.

e em sua vontade de deixar que estas encontrassem por si próprias uma harmo-

Em novembro, Nick saiu da clínica e voltou para o mundo. Encontramos

nia entre si, que fizesse com que sua verdadeira face emergisse, tinha que existir

uma nova casa — finalmente um lugar grande o suficiente para caber nós dois.

um substrato de fé. Este homem, que manipulava de maneira tão escancarada,

Procuramos emprego e saímos com outros casais, para jogar cartas e aproveitar

que contava as mentiras mais escabrosas, e sofria, sofria, tinha um respeito mais

calmas tardes em casa. Nick trabalhou tão firme para melhorar, e de uma maneira

do que profundo pela vida, por mais crua, vagabunda e mundana que ela fosse.

tão consciente, que eu não conseguia não me influenciar. Eu comecei a estudar

O primeiro dia de filmagem de City Blues foi adiado, e, depois, adiado novamente. Ainda não tínhamos conseguido fechar um contrato e as leis de incentivo

maneiras para me acalmar, o que ajudou para que os dias fluíssem de forma mais suave. Nick me disse: “Quem me dera ter aprendido essas coisas na sua idade.”

tinham acabado de ser revogadas. Toda noite eu dizia para Nick: “Acho que vai

Todos os dias, Nick ia aos encontros do Alcoólicos Anônimos. Às vezes, eu o

dar tudo certo.” Ele me respondia: “Ah, é? Você acha?” O produtor continuava

acompanhava. Ele gostava desses encontros, nos quais se discutiam coisas difíceis,

a proferir promessas, mas, com o verão já praticamente terminando, Nick sacu-

talvez por ser ele mesmo uma pessoa difícil, ou por se tratar das dificuldades de

diu a cabeça: “Sinto um cheiro familiar no ar.” Não tínhamos dinheiro, nem casa

homens e mulheres que perderam suas vidas e as tinham reencontrado — logo,

— vivíamos da bondade alheia. Nick bebia noite e dia. Victor Perkins, visitando

eles sabiam o que significava ter valores. Eles tinham ótimas histórias para contar,

a cidade por uma semana, incentivou Nick a escrever o esboço de um roteiro de

e tempo nenhum para brincadeiras. A verdade assoprava por aqueles encontros

filme de terror. Mas o terror não estava apenas numa folha de papel e, assim, eu

como o vento numa alta montanha: certeiro, claro e frio, e nós nos sentíamos como

finalmente tive que ir embora.

que revigorados por ele.

Uma semana depois, em setembro de 1976, depois de cair escada abaixo,

Nick sabia que recebeu uma rara segunda chance, e sua gratidão era tanta

Nick resolveu se inscrever no programa de desintoxicação do hospital Roosevelt.

que o tornou mais paciente e gentil, mais do que jamais tinha sido. Assim como

Um dia fui até lá visitá-lo. Uma assistente social me puxou pra conversar. “Sabe,

ele havia descrito James Dean, que possuía uma “vulnerabilidade diante da qual

ele está muito doente”, disse-me ela. Eu respondi que sabia, sim. Confessei a ela

não se tinha outra escolha a não ser se sentir tocado por ela... ou mesmo impres-

que ele tem estado triste há muitos anos, e era essa a razão por que ele bebia e

sionado”, assim era a vulnerabilidade de Nick.

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Naquele inverno, apoiado por Elia Kazan e John Houseman, os quais, três

Nick já passou por tantas situações difíceis que eu já tinha perdido a conta

décadas antes, iniciaram-no no cinema, Nick começou a lecionar na universidade

— não sabia se estávamos na quinta, sexta ou na sétima vida do gato. Por um mo-

de Nova York e no Lee Strasberg Institute.

mento, eu acreditei que, se lutássemos e quiséssemos muito, então Nick conseguiria

Acredito que Nick amava ensinar, principalmente nesta época. Dar aulas lhe

melhorar e voltar à sua vida normal.

dava a oportunidade de aperfeiçoar-se em seu ofício e de estar próximo de seus

Ninguém me falou, nem eu poderia imaginar, que tipo de beleza terrível se

queridos seres humanos. Ensinar ajudava-o a esmerar suas ideias e a chegar a

perde quando alguém como Nick está morrendo. Evidentemente, em nossa cultura

algumas conclusões. Ensinar deu-lhe a oportunidade de guiar e cuidar de jovens,

não sobra lugar para a morte, então não temos a tradição de estudar o que signi-

tal como ele foi guiado e cuidado, tal como ele sentia falta de ser guiado e cuidado.

ficam esses outros 50% de nossa existência. Afinal, para que comprar um mapa

Nick doava-se completamente a seus alunos, assim como eles se doavam comple-

de um lugar que queremos evitar? O que mostra como tudo isso é ignorante, já

tamente a ele. Acredito que ele tenha encontrado um novo tipo de paz nesta época,

que a morte de Nick era uma aventura e, como a morte não pode ser evitada, um

que tinha o frescor de uma plântula momentos antes de germinar.

mapa certamente teria nos ajudado no caminho. Mas não adianta chorar pelo leite

Um dia, em novembro de 1977, eu tive um sonho. Meu sonho foi assim: Nick

derramado. A morte de Nick abriu novos horizontes para todos que conviveram

estava arrumando suas malas. De costas para mim, disse-me: “Estou indo embora,

com ele — assim como para ele mesmo, acredito —, já que seu maravilhamento e

você não precisa mais de mim.” Eu acordei no momento em que meus punhos

consciência para com as pequenas mudanças em seu mundo serviram para deixá-

acertaram a cara de Nick. Debulhando em lágrimas, notei que ele já estava acor-

lo ainda mais perspicaz.

dado, assistindo televisão e segurando um sacola de chocolates. Meu soco parecia não ter lhe assustado. Ele apenas me abraçava, enquanto eu chorava. Duas semanas depois, Nick foi ao médico para fazer alguns testes. O raio X e a ressonância indicaram a presença de um tumor em seu pulmão direito.

Eu sofria imaginando sua cabeleira cair e seu corpo definhar até o osso, mas seu cabelo caiu e seu corpo definhou e todo o resto foi consumido pela doença. O que restou foi a essência da vida, que, no rosto de Nick, quase tomou um estado de pura e doce tristeza, algo mesmerizador. Com dor e exaustão, ele conseguia digerir apenas aquilo que era mais simples, básico, direto e verdadeiro. Oferecer-lhe menos do que isso seria um golpe e uma ameaça a sua vitalidade, mas eu era

Nenhuma mulher jovem se junta com um homem quarenta anos mais velho do que ela sem considerar a morte. Eu já tinha pensado bastante sobre a morte — a morte dos meus pais, a morte de Nick, a morte pelos nazistas, a morte pela bomba atômica. Morrer, para mim, não significava outra coisa a não ser dor, horror, decadência e a privação da vida àquele que está morrendo. A morte me preocupava — minha própria morte, não —, mas nada me parecia pior do que o ilimitado bloco acimentado de dor que eu sentiria com a morte de alguém que amei. Nunca presenciei a morte de perto, e sabia que teria que experienciar isso muito antes de compreendê-la — mas, se eu tivesse que escolher, eu deixaria para compreendê-la bem mais tarde em minha vida. Se a compreensão pode ser postergada, a morte não. Logo após o diagnóstico, seguiu-se a cirurgia, que conseguiu extrair nada além de nossas esperanças. O câncer se infiltrou pela aorta de Nick e provavelmente já se alastrara para as correntes sanguíneas. Os médicos tiveram que emendá-lo de volta, com o tumor intacto. Com seu apreço por números e estimativas, disseram-me que ele teria, no máximo, mais dois anos de vida, e que esses anos seriam bem difíceis.

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jovem, indisciplinada, e ainda completamente estranha a mim mesma. Planejando ou não, a verdade é que, mais uma vez, Nick encontrava-se diante de um obstáculo. Nos momentos em que eu conseguia vê-lo plena e claramente, nada mais importava, tudo se completava. Para mim, esses pequenos momentos se tornaram o verdadeiro tesouro de sua obra. A verdade é que a maneira como Nick estava morrendo me acordou para a minha vida. Pela primeira vez, perguntei a Nick minhas verdadeiras questões, sempre uma ou duas semanas espaçadas, já que era tão tímida. P: Quando você está apostando e está ganhando, como você sabe qual o próximo número em que apostar? R: Às vezes sinto a música dos dados e pressinto qual vai ser a próxima nota. Mas aí eu abuso. P: Se você pudesse me dar pelo menos um conselho, qual seria? R: Não se preocupe tanto com o que os outros pensam de você. P: E qual outro? R: Procure entender seu medo da violência. P: Por que você não me ajudou a começar, como fez com todos os outros?

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Nesta última pergunta, ele permaneceu calado.

Wim achava que o filme deveria ser sobre um homem que sofre de câncer

Uma vez, quando estava assistindo a um programa sobre policiais na tele-

e que queria, como último ato em vida, “reencontrar-se consigo mesmo” antes

visão, Nick se virou para mim e disse, com certo orgulho de nós dois: “Você se

de morrer. Já que era exatamente isso o que Nick queria fazer naquele momento,

tornou uma mulher experiente.”

e como ele tinha decidido dedicar seu tempo a este filme — e como seu tempo era

É claro que um homem consegue mudar só até certo ponto durante o curso de sua vida, e, bem, as dores que sentia eram horrorosas, então Nick gemia muito e empregava suas maiores e mais criativas táticas para manter pessoas a sua volta, cuidando dele. Passou a usar uma enorme bolsa elétrica de água quente nas costas, enquanto tentava caminhar pelos extensos corredores de nosso apartamento. Como não tínhamos muitas tomadas, basicamente vivíamos de extensões, e, assim, um amigo nosso gastou praticamente toda a sua visita de Londres acompanhando Nick, para um lado e para o outro de nosso apartamento, desligando e ligando nossos acessórios, como a televisão e a bolsa elétrica de Nick. Quando estava no hospital, Nick insistia em fumar dentro dos quartos servidos por uma rede de oxigênio, e então, para evitar uma explosão, as enfermeiras me treinaram para que eu pudesse cuidar dele de casa mesmo, suplicando-me que não o deixasse sair de lá a não ser que sua saúde estivesse severamente comprometida. Tim Ray e mais um grupo de amigos vieram nos visitar. Tim ensinou a Nick algumas meditações para ajudá-lo a mitigar a dor, e para fortalecer seu espírito em combate ao câncer. Todos se juntaram para manter a casa de pé, fazendo comida, comprando coisas, levando Nick a todas as suas consultas de radioterapia, massageando seus pés, copiando suas anotações, obrigando-o a tomar seus remédios — tudo o que fosse necessário para ajudá-lo. Deitado em sua cama, localizada no final do apartamento, grunhindo e reclamando, Nick dirigia essa cena cômica e agitada que, sem que ninguém tivesse dado conta, tornava-se um ato de celebração.

escasso —, fazia sentido unir o útil ao agradável. Além dessa primeira intenção, não tínhamos nem roteiro nem nada. Como você tem dois grandes improvisadores como Nick Ray e Wim Wenders, você acaba achando que trabalhar sem roteiro não é problema algum. No entanto, problemas apareceram logo no início, talvez porque as leis da criação só permitem um visionário por obra, ou talvez porque existia um certo medo que estava se alastrando. O medo tomou conta de todos nós — mas não de forma violenta, como quando uma aranha aparece à nossa frente. Não tenho muita certeza do que agitou esse medo, mas posso dizer que nunca tinha sentido isso a respeito da morte de Nick. Como sempre é o caso quando o medo está envolvido, ficamos não apenas apavorados, como o medo distorceu nossas percepções e instintos, e o filme começou a correr como uma criança aterrorizada por estar sozinha na escuridão. Queria Nick fazer Um filme para Nick (Lightning Over Water, 1980)? Ele nunca disse nada a respeito, mesmo quando eu lhe perguntava diretamente. Ele não queria desapontar Wim e seus investidores, mas ele não gostava do que via nos copiões — isso ele disse. Mas estava fraco demais para trabalhar do jeito que queria, além disso, percebia que Wim estava perdido — tanto atrás quanto à frente das câmeras. Eu sabia que Nick não ia sobreviver por muito mais, então meu tempo com ele era extremamente precioso, mas eu não conseguia chegar até ele, já que um diretor, equipe e seus equipamentos bloqueavam minha passagem. Parecia-me que Nick não ia conseguir “reencontrar-se consigo mesmo”; para dizer a verdade, as coisas estavam saindo do controle. Eu sentia como se o ritual do momento mais sagrado na vida estivesse sendo violentado, enquanto as necessidades que

Assim, no início da primavera de 1979, e pela última vez, o circo voltou à cidade:

tínhamos um pelo outro — eu por Nick, Nick por mim — eram preteridas como algo

Wim Wenders apareceu em nossa porta com filme, equipe e equipamento. Várias

de segunda ordem. Quem era o culpado? Se eu tivesse que apontar o dedo para a

pessoas, incluindo o próprio Nick, tiveram ideias para o último filme de Nick Ray,

cara de alguém, apontaria para o medo.

mas a melhor, e mais direta, oferta veio de Wim Wenders, que queria começar logo as coisas.

Não existiam lá tantas boas razões assim para se querer terminar este filme, mas mesmo assim eu não conseguia encontrar forças para interrompê-lo. Acredito

Tropeçando em luzes e fios para conseguir chegar até a cama de Nick, eu

que, tendo a chance de filmar sua própria morte, Nick não ia deixar essa opor-

não tinha muita certeza se fazer este filme era uma boa ideia. Era um pouco como

tunidade passar, não importando os porquês, quando e por quem. Que eu saiba,

refletir se um raio deveria ou não ter caído. Mesmo assim, deparar-me com essas

não existe uma pequena parcela de sua vida que ele não tivesse tentado expressar

questões levantou algumas dúvidas que, de certa forma, relacionam-se com os

por meio de um filme. Filmar era a sua maneira de digerir e liberar tudo aquilo

temas da vida de Nick e deste livro.

que o mantinha vivo, tão essencial para a sua sobrevivência quanto seus rins e

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fígado. Se o filme acabasse não sendo lá muito agradável, bem, esse era o risco,

Enquanto eu transcrevia umas cento e tantas horas de fitas pessimamente gravadas, e sem qualquer tipo de identificação, e tentava ler o que ele escreveu

que assim seja. Ao mesmo tempo, nasceu em mim (“como uma dança”, diria Lenny Bruce,

à mão em cartas, cadernos, cartões ou guardanapos, eu fiquei impressionada com

“tão simples que me escapou”) a noção de que Nick odiava fazer filmes. Fazer um

a falta de cuidado de Nick com suas gravações, com seus obscurantismos e incom-

filme como ele queria — como “uma coisa viva, respirando continuamente” — era,

pletude. “Nunca deixe um rastro de palavras”, dizia ele para mim, a aspirante a

para ele, talvez um ato de criação muito próximo do de Deus. Nessa terrível con-

escritora, enquanto ele mesmo deixou milhões de rastros, só que todos me jogavam,

fusão, os dons e sucessos de Nick recaíam sobre ele como agentes de tormento e

abruptamente, num ou nutro lugar selvagem. A questão perdurava: como podem

culpa. Acredito que, embora Nick nunca tenha dito isso, que ele concordava muito

tantos fragmentos formar um todo compreensível? Ou, em suas próprias palavras:

com Welles: “Talvez exista alguma verdade na dificuldade.”

“Mas o que eu vou fazer com todas as frases e páginas transitórias e necessárias

Fiel a sua premonição, Nick não viveu para concluir seu filme.

para fazer com que o que se segue seja compreensível para você?” Eu já vi como Nick resolvia esse tipo de questão, e a solução sempre apare-

***

cia na maneira como ele se sentia em relação à integridade de seu assunto, pois o assunto é intrinsecamente completo, sem erros ou acertos — voltamos ao velho

As aulas de atuação e direção que Nick deu em seus últimos anos de vida foram,

tema, novamente. O fardo cai no observador, que deve perseguir os padrões dentro

em alguma medida, a culminação de sua obra. Ele sabia disso e teve o bom senso

da onda. Assim, juntei todas as peças que conhecia da vida de Nick e, mais uma

de gravar suas aulas, de querer que seu conteúdo fosse conhecido. Eu sabia que ia

vez, coloquei-me a questão: Teria sido Nick um mestre? O que era um mestre?

acabar fazendo o que ele havia me pedido, mas, naquela época, essa ideia, assim

Como se pode contar a história da vida de Nick, de modo que tanto eu quanto

como a da “autobiografia”, soava mais como um dever do que necessariamente

ele terminássemos satisfeitos? O que Nick estava ensinando? O que Nick estava

uma oportunidade.

realmente ensinando?

Eu voltei a trabalhar logo depois da morte de Nick, por uma mixórdia de pés-

Fatos e história até hoje não me estimulam, pelo menos não enquanto tais,

simos motivos, nenhum realmente muito claro para mim, e acabei sendo despedida

mas a emoção genuína, sim, me estimulou, nutriu e libertou, assim como o es-

algumas semanas depois. É claro que eu ainda não havia expurgado a minha perda,

paço no qual ela apareceu e se dissolveu, e também a sabedoria que ela deixou.

ou mesmo conseguido me libertar do gigantesco, embora amigável, fantasma de

Finalmente, eu conhecia uma parte de mim, e, de certa forma, de Nick. Indo atrás

Nick — ou mesmo do meu próprio —, pelo menos não de uma forma em que eu

daquilo que ele tinha e que mexia comigo, confiei que a forma de sua vida emer-

pudesse caminhar sozinha. Todas essas questões eram extremamente pessoais,

giria de si mesma, como uma fênix a partir de suas cinzas, pois eu aprendi direito:

tanto assustadoras quanto inconvenientes, e não iam embora até eu lhes dedicar

o conteúdo determina a forma; a forma condiciona o conteúdo.

minha mais completa atenção. Na época, eu não tinha entendido ainda que essa

As transcrições das aulas formam o esqueleto deste livro. Formam um conjun-

questão de sofrer e lutar, lutar e sofrer, era exatamente aquilo a que Ray se refe-

to, composto pela combinação de três aulas, feitas com três grupos de estudantes,

ria como “a busca por si próprio”, aquilo que era a essência de sua vida, filmes

unificado numa única turma, num grupo. A ênfase de cada aula recai na discus-

e aulas; então, posterguei o sofrimento e a luta que eu via diante de mim por meio

são acerca de termos e/ou técnicas (ação, monólogo, pano de fundo, memória

de um longo, e péssimo, desvio. Mas segui meu instinto, ou ele me carregou, até

sensorial, saber entrar e sair). As aulas são interligadas pelo desenvolvimento

o momento em que compreendi, pelo menos duas ou três vezes na minha vida,

dos temas (a festa de caracterização, o roteiro de The Forger) 15 e a evolução dos

que, quando a questão é a maneira como uma vida se estrutura, não existem erros

questionamentos dos alunos.

ou acertos — então, desvios nunca são um problema. É claro que faz sentido: eu

Mas o que Nick ensinava não era bem termos ou técnicas; Nick ensinava

só comecei a compreender a busca de Nick quando comecei a minha — mas isso

experiência. Ele ensinava a partir da experiência, por meio da experiência, sobre

eu só pude dizer agora, depois que todo o processo acabou. Enfim, eu notei que já era hora de voltar a trabalhar no livro sobre as aulas de Nick, ou na história

15. Filme que Nicholas Ray nunca conseguiu realizar. Foi a inspiração para seu papel em

de sua vida, não importa.

O amigo americano (Der Amerikanische Freund, 1977), de Wim Wenders. (N.T.)

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a natureza da experiência, analisando, integrando e sintetizando a experiência

chassídico nos descreve a lenda de um estudante que vai até seu mestre, não

num tipo de presente que se doa ao outro. Por isso, as transcrições das aulas

para aprender as escrituras, mas para observá-lo amarrar seus cadarços. Nesta

não se convertem num tipo de material didático, já que precisam continuamente

perspectiva, talvez Nick tenha sido um mestre, já que ele fazia tudo com tanto

se reportar às experiências — de Nick — pelas quais se estruturam. Os trabalhos

carinho e propriedade que era quase impossível não observá-lo. Era impossível

em sala de aula de “ir até o essencial” e o roteiro de The Forger — um homem

não observá-lo porque o que ele fazia era novo e porque, enquanto eu o observa-

que deve “roubar” a identidade de outro homem — tinham a mesma natureza dos

va, sentia meu próprio ser acendendo dentro de mim — e não por conta de uma

textos que Nick escrevia em casa sobre bebida, amor e morte. O trabalho em casa

projeção, mas por uma geração de luz.

alimentava o trabalho na sala de aula, e vice-versa. Separar um do outro seria

Para dizer a verdade, não me sinto muito na posição de julgar se Nick foi

uma falácia em dimensão e perspectiva, um ato tão equivocado quanto acreditar

ou não um mestre — e a questão não me parece agora tão interessante. Eu tenho

que o mundo é plano.

certeza de que ele era um pesquisador. Ele sabia quais perguntas fazer, ele sabia

Nick ensinava como vivia: ele mergulhava dentro do caos e se retirava de lá,

o que procurava, o que quer que tenha sido, não importando a distância que ele se

esperando que seus alunos fizessem o mesmo. Muitos fizeram isso, e se transfor-

encontrava de seu objetivo. Eu sei que não vou precisar de mais do que os dedos

maram em ótimos diretores, produtores, montadores, roteiristas e atores, de cinema

de minhas mãos para contar o número de pessoas que conheci que realmente

e teatro. Para um homem tão impaciente, ele se transformava no professor mais

foram pesquisadores, que procuravam. E o fato de eu ter tido a sorte de conhecer

paciente. O que ele ensinava era simples, mas não era fácil, e ele sabia como re-

um é um raro e grande privilégio.

petir a mesma coisa sob diferentes contextos e formas, de modo que pudesse ser inteiramente absorvida. Ele fazia mais perguntas do que dava respostas, pois, como ele mesmo dizia, buscava ensinar e acordar seus alunos a seus conhecimentos intrínsecos, e não afogá-los com seu próprio conhecimento.

Seja de que maneira for que este livro será lido, eu gostaria de apresentá-lo como a história de uma travessia. Nem todo mundo faz filmes, ou trabalha com teatro, mas todos fazemos uma travessia, e me parece que não importa muito o estilo da travessia — as marcas são similares. Sendo este o caso, até mesmo o mais tortuoso

E o que aconteceu com minhas velhas questões? Quase duas décadas já se passaram desde que as coloquei pela primeira vez. Desde então, conheci muitas pessoas

dos mapas serve como conforto e um ótimo guia.

que passaram apenas uma ou duas horas com o Nick, e é interessante notar a quantidade delas que me dizem que Nick mudou completamente o curso de suas vidas. Não creio que esta tenha sido a sua intenção, são coisas que simplesmente aconteciam enquanto ele seguia com sua própria vida. Por outro lado, o negócio dele era a atuação. Não importando se diante, atrás ou do lado da câmera, Nick era um ator, o tipo de homem que “em três horas viaja a lugares que o homem comum, sentado na plateia, demoraria uma vida toda para cruzar”. 16 Como um ator, ele não podia não carregar com ele todos os que estivessem em volta direto para o precipício onde morava, e então empurrá-los — e que surpresa!, você não caía do precipício, o mundo não era plano e, claro, quem poderia esquecer da beleza da vista. Nick sempre atuava. Nick sempre ensinava. Ele ensinava a partir de suas ações, querendo ou não, sendo suas ações inteligentes ou insanas. Um conto

16. Albert Camus, The Myth of Sisyphus and Other Essays (Nova York: Random House, 1991). (N.A.)

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O filme de Nick 11 e a transcendência do cinema-verdade

Para quem não sabe, Um filme para Nick é o resultado da ida de Wenders com uma equipe de filmagem para conviver com o mestre do cinema Nicholas

Eduardo Valente

2

Ray, quando este se encontrava extremamente debilitado por um câncer. A ideia surgiu naturalmente numa conversa entre Ray e Wenders enquanto este estava na pré-produção de Hammett. Nenhum dos dois sabia bem o que queria com isso, ou o que aconteceria. Ainda bem, pois o que sai dessa experiência não se explica.

Existem filmes que dão panos para manga e horas de discussão em mesas de bar.

O filme ultrapassa e acaba com todas as fronteiras e definições do que são gêneros

Existem as discussões estéticas, as discussões ideológicas, as discussões éticas.

de cinema, do que é documentário, do que é ficção, do que é narrativa cinemato-

Por outro lado, existe Um filme para Nick (Lightning Over Water, 1980), que não

gráfica. Pega as polêmicas ancestrais de Kracauer e Arnheim, de Deren e Bazin,

se deve discutir.

amassa-as bem, e joga no lixo com a brutal força que emana do fenômeno da

O crítico brasileiro Francisco Luiz de Almeida Salles, um dos poetas da

filmagem-montagem, este tal de cinema.

crítica cinematográfica, escreveu em 1965 que o cinema-verdade, diferente

Desde Nanook, o esquimó (Nanook of the North, 1922), de Flaherty, que o

do cinema verité de Jean Rouch, era uma categoria que ultrapassava questões

documentário já não era um gênero puro, e que ninguém mais entendia o que

relacionadas ao estilo, à forma de filmar, a dogmas. Para Salles, o cinema realista

era realismo em cinema. Ainda assim, o antipático Kracauer, em plena entrada

ingênuo de Lumière era como a filosofia de Parmênides, segundo a qual o mundo

na década de 1960, postulava que o cinema só é cinema quando capta a realidade.

é uma realidade fora de nós, física. Já a mágica de Méliès indicaria a apreensão

Reproduzir o real era a missão sagrada do cinema para ele, e não havia outra forma

da realidade pelo espírito, como Heráclito, sem a necessidade do físico. Salles es-

de se ser “cinemático”. Mas o antipático alemão, quando lido nas entrelinhas, nada

creveu que “o cinema não é nem parmenídico nem heracliteano, é a inclusão do

mais era que uma criança fascinada impondo, irascível, a força da sua fascinação

instante na duração, a valorização do estático pelo dinâmico, a recuperação, pela

sobre os outros. Sim, porque se Kracauer tentava argumentar que o Expressionismo

fusão, do mundo e da consciência”. Ou seja, ele era por um cinema que, ao mesmo

levou ao nazismo pelo seu incentivo à fuga da realidade, não era por maldade ou

tempo que respeitasse o mundo como espetáculo e o mundo como consciência,

ingenuidade pura e simples. Era porque para Kracauer a realidade era fascinan-

oferecesse um campo novo em que o espetáculo fosse conscientizado e a consci-

te demais. E ele construiu uma teoria para poder viver ao máximo seu fascínio

ência fosse um elemento do próprio espetáculo. Assim, o cinema seria um espelho

com o movimento das folhas, o vento nos cabelos, o inesperado e o incontrolável

da existência, entendendo-se esta não só como o mundo visto pelo espírito nem só

do ambiente natural. E dentro dessa sua visão, algo que ousasse desprezar toda

o espírito refletindo o mundo, mas sim o mundo mais o espírito. O bom cinema

essa beleza era impuro. Há no fundo uma grande beleza e poesia no estoicismo

seria então aquele que aliasse isso tudo, o cinema seria a vida (não custa lembrar

de Kracauer. Só que, é claro, como teoria suas ideias iam pouco longe dentro da

que a analogia data das origens do cinema, já que junto com o cinematographo e

complexidade do que é ou não é o real no cinema. Ele mesmo chega a admitir que,

o kinetoscópio, surgiu o vitascópio, o bioscópio e também a Biograph).

muitas vezes, uma encenação bem feita do real era mais crível que o próprio fato.

Pois bem, de quanto em quanto tempo nós podemos dizer que passamos por uma experiência da magnitude e beleza que Salles almejava? Segundo ele, isso

Então, a encenação não era o problema, desde que fosse para “encenar o real”. Não é fabuloso o poder desta expressão?

estava em Rouch, em Reichenbach, em Fellini, em Godard, em Antonioni, em

A visionária americana Maya Deren tinha uma visão mais bela ainda.

Chris Marker, em Leacock e Rosi, entre outros. Pois eu o afirmo, isso está no Wim

Ela também acreditava no realismo da imagem fotográfica/cinematográfica, mas

Wenders de Um filme para Nick, talvez a mais visceral expeiência cinematográfica

não nas encenações do real como o cinema narrativo faz ou no próprio docu-

de todos os tempos.

mentário. Deren argumenta que a força do cinema está na câmera poder captar a realidade, mas, no entanto, na montagem esta realidade poder ser completamente subvertida em algo etéreo, num sonho, num pesadelo, numa viagem. Sua van-

1. Título brasileiro anterior de Um filme para Nick. (N.E)

guarda tinha base sempre na imagem realista, pois só esta fora de contexto real

2. Originalmente publicado na edição nº 9 da revista eletrônica Contracampo, 1999.

poderia causar estranheza. Assim, ela dizia que o slow motion, a projeção de trás

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para frente, entre outros efeitos, só podem ser inovadores porque pegam a realidade

verossímil”, que é a encenação romanesca do real; e do cinema real, que bus-

e subvertem a noção do real, do tempo.

ca mostrar a verdade, seja em ficção ou documentário (neorrealismo incluído).

É claro que em plenos anos 1990 nossos olhos cinematográficos já se encon-

O cinema-verdade era maior do que ambos por ser uma expressão completa do

tram em outro grau de apreensão, com os limites do abstrato e do onírico, do docu-

que é a passagem dos seres humanos pela terra: não só carne, nem só espírito,

mentário e da ficção sendo rompidos nas mais hollywoodianas produções. É uma

mas uma luta constante pelo equilíbrio entre ambos.

época que já viu tudo, já absorveu tudo, já usou tudo, e por isso mesmo parece

“Quanto mais chegamos ao fim, mais perto estamos de reescrever o começo”,

insensível a tudo. Como chocar esta nova subjetividade, como fazê-la balançar?

diz Ray, referindo-se ao seu processo de filmar sem roteiro pronto. Que metáfora

Somente voltando ao mais básico instinto humano: o medo da morte. Mas a morte

melhor para a vida dele, para qualquer vida? A realidade é fantasia, segundo ele,

já não faz parte do banal?

e por isso não há o que temer. Ainda assim ele teme morrer. “Morrer e não mais

Pois Wenders e Ray chacoalham isso tudo, e sem precisar teorizar tanto.

respirar.” Sim, porque segundo ele todos nós desejamos experimentar a morte,

Poderia se esperar que o filme fosse acusado de oportunista e aproveitador por

desde que possamos continuar respirando e vivendo. Só frente a frente com ela

mostrar o espetáculo de uma morte. Mas ele não se negar a discutir esta questão

passamos a temer não a morte, mas o fim da respiração.

seguidamente. Ray era quem mais queria ser filmado. Isso porque sua vida era o

Quanto mais se pensa então, mais o cinema transcende explicações. Mas

cinema. Estar cercado por aquela equipe, estar filmando era de fato uma terapia.

Maya Deren está certa. O realismo da imagem é o que conta, mesmo que para

Mas, ao mesmo tempo, como se filma alguém morrendo? No início vemos Ray

subvertê-lo sempre. Quando em Romance (Romance X, 1999, Catherine Breillat)

acordando com fortes dores. Wenders dorme no sofá. A reação natural é: mas isso

um ramerrame psicologizante e feminista tenta compreender a grandeza trans-

é claramente encenado! Como a câmera poderia estar lá ao lado de Ray, com a luz

cendental do sexo a partir de racionalismos, nada disso importa, pois há um pau

perfeita, o movimento exato, se Wenders estava dormindo? E como filmaria ele

duro em cena que desafia o discurso. Há uma penetração e o sublime que não

nessa montagem pararela se só havia uma câmera? Não há problema, no plano

consegue ser expresso. Qualquer filme pornô é rasteiro e falso até certo ponto,

seguinte fica claro que, sim, aquilo era encenado, não há por que esconder isso

mas por um milésimo de segundo aqueles rostos serão tomados pelo verdadeiro

(como tantos documentários “inocentes” o fazem). Sacrilégio? Pegar um homem

sublime-patético do gozo. A vida é maior. Da mesma forma, o discurso autoritário

à beira da morte e fazê-lo encenar a sua dor para nós? Pois daí em diante é assim

e pretensamente inteligente, a forma “ousada”, a música catártica (quase Faustão)

que o filme segue: na fronteira do que é encenado e do que é verdade. Mas afinal,

e a limpeza ideológica de um Nós que aqui estamos por vós esperamos não con-

o que é a verdade?

segue apagar a força de um homem que se joga da torre Eiffel para voar, nem de

Não importa. O que importa mesmo é que há algo de maior, de fora de con-

um rosto insano na guerra. O filme conta a história do século somente “através

trole acontecendo em cada take: o câncer de Nick. E este não se encena. O filme

de imagens”, conforme nos revela a divulgação. Então para que tantas letrinhas

vive sob este dilema, como diz Wenders. É confuso, irregular, sem ritmo. Não se

na tela? Para que a música catártica? Nada contra a apreensão pessoal do real,

decide por um caminho, é caótico. Ou seja, o filme está de frente com a morte.

pois só existe o real pelos olhos de alguém. Mas para que manipular o espectador?

Não a morte morta, mas sim a morte viva, a morte que dá sentido à vida. E o caos

Jafar Panahi consegue juntar a complexidade do real e do encenado em O espelho

e a confusão não podem ser escondidos, pois não é assim que somos perante

(Ayneh, 1997), usando dos meios mais desconcertantes para cruzar fronteiras,

a morte? Wim Wenders encena cenas oníricas, filma cenas reais, lê o diário de

seja pela combinação de som e imagem, ou pela sua metalinguagem que se finge

Nick. “É um filme sobre morrer. Não é um filme sobre morrer”, reafirmam os

de ingênua. Ao tematizar, acima de tudo, a situação da mulher no islamismo, ele

envolvidos. É a grandeza do cinema-verdade, a junção do espetáculo da vida com

o faz com artifícios e a junção necessária de humildade (não comando a verdade,

a consciência, espírito + corpo, a lente orgânica que joga o espectador na grande

só finjo) e arrogância (eu manipulo o que você vê, mas quem sente é você...).

aventura sem nexo que é viver e morrer. Deliciosa e aterradora.

Realidade ou encenação? Arte ou reprodução técnica? Cinema ou vida? Pois

Acima de tudo Um filme para Nick é também um filme impregnado pelo

tudo isso vai por água abaixo quando surge na tela o rosto de Ray no seu último

amor ao cinema, e por isso mesmo ele ama a vida. O cinema deve ser a vida, mas

plano, filmado pouco antes de sua crise final. Dor, desespero, ironia, medo, con-

não pelo realismo. Almeida Salles diferenciava seu cinema-verdade do “cinema

fusão, compreensão, tranquilidade. Tudo num rosto. O cinema vira vida. E por

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um segundo tudo isso que os Lumière começaram se justifica. Com a fugacidade

O plano ausente: a poética de Nicholas Ray

do acender e do apagar de um fósforo, com a beleza de um navio chinês pelo rio Hudson, com a complexidade de uma vida inteira num olhar. E viva o cinema-

Jacques Rancière 1

-verdade, ainda hoje a única e melhor expressão artística de uma vida humana.

Por muito tempo um plano me perseguiu: ao início de Amarga esperança (They Live By Night, 1949), de Nicholas Ray, o fugitivo Bowie, ao entrar num posto de gasolina, vê aparecer diante de si um corpo como nunca antes havíamos visto: revestido com um macacão de mecânico, um ser que não é nem adulto nem criança, nem masculino nem feminino, inteiramente adaptado ao espaço em que aparece, inteiramente estrangeiro aos ocupantes deste espaço, dotado de uma beleza singular feita da impossibilidade de ser subscrita a qualquer tipo de beleza repertoriado em usos cinematográficos. Como se, de repente, um ser subtraído da semelhança, um ser real, se pusesse a existir no cinema, causa evidente de um amor sem modelos. O amor avassalador de Bowie por Keechie seria então exatamente semelhante ao nosso amor pelo poder do cinema de inventar um corpo. E, mais ainda do que os peitos e o olhar provocantes de Harriet Andersson em Monika e o desejo (Sommaren med Monika, 1953), os olhos abaixados e o corpo andrógino de Cathy O’Donnel seriam próprios a emblematizar esta independência feroz característica do cinema de autor celebrado pela Nouvelle Vague. Por muito tempo, pois, sonhei em escrever sobre esse plano fulgurante que, por fim, seria no cinema o que é na literatura a aparição das moças em flor na praia de Balbec: a construção de uma individuação inédita, de um objeto de amor que é como é por ser aliviado das propriedades sexuais identificáveis do objeto desejável. Foi preciso, no entanto, um dia me render à razão: este plano não existe. Bowie e o espectador foram apresentados a Keechie bem antes da sequência da oficina. Tê-la visto há tanto tempo provoca, porém, algo diferente que os ornamentos da memória. E foi sem muita surpresa que encontrei em outro observador o mesmo erro. Este plano inencontrável era necessário para acolher a impressão deixada por este corpo. Porque a aparição deste corpo singular, desta beleza inédita, acontece de fato cinematograficamente. Somente uma aparição; não este surgimento milagroso cuja imagem foi instituída por uma certa fenomenologia. Uma aparição é feita de muitas aparições e desaparições, de adições e subtrações; e o cinema não

1. Publicado originalmente sob o titulo Le Plan Absent:poétique de Nicholas Ray no livro Collection La Librairie du XXIe siècle, sous la direction de Maurice Olender. Paris: Seuil, 2001. pg.127 – 141. Tradução de Tatiana Monassa.

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é a arte da evidência visual que os estetas dos anos 1960 celebraram. Assim como

Era uma visão ordinária, uma visão verossímil do objeto de desejo. E não se deve

a moça das bochechas rosadas na praia do livro nascia de um tecido de metáforas,

atribuí-la ao gosto comum do romancista. Edward Anderson estava sem dúvida

seria necessário mais de um tropo cinematográfico para fazer constar diante de

determinado a fixar o olhar do jovem e rústico fugitivo sobre esta imagem padrão

nós o corpo sem semelhança de Keechie.

de corpo feminino em processo de afirmação. E Nicholas Ray provavelmente não

Antes de mais nada, uma sinédoque. No início, há apenas um ruído de motor

tem objeção alguma à imagem que o romancista faz dos sonhos ordinários desta

e dois faróis na noite. No romance de Edward Anderson que deu origem ao filme,

América profunda dos tempos da Depressão, que ele próprio percorreu quando

o carro de Keechie passa ao largo sem encontrar o ferido que ela tinha ido buscar:

das grandes empreitadas culturais ligadas à política agrícola do New Deal. Mas a

Bowie, ele próprio perdido em seu monólogo interior. No filme, Bowie sai lenta-

invenção cinematográfica precisa de um outro corpo do desejo. O cineasta o havia

mente detrás do painel publicitário que lhe serve de esconderijo. Acompanhado

anunciado nas imagens anteriores aos créditos, que nos mostram duas cabeças,

de um cachorro saído sabe-se lá de onde, ele caminha na noite em direção à luz.

uma contra a outra: “Esses dois nunca foram verdadeiramente introduzidos no

A luz que ilumina violentamente o para-brisa e o retrovisor deixa na sombra um

mundo em que vivemos.” Isso quer dizer também que eles não podem ser apre-

rosto que parece coberto com um chapéu até os olhos e nos apresenta apenas duas

sentados (introduced) — nem a nós, nem um ao outro — como sujeitos ou objetos

bochechas iluminadas de forma desigual. Aparentemente, o ponto de certeza deste

de desejo da América profunda. Nada de transparência à porta da loja, portanto.

corpo está nas mãos firmemente colocadas ao volante. “Any trouble?” [Algum

O cineasta de saída separou as imagens. O objeto ordinário do desejo, uma silhueta

problema?], pergunta o jovem que vemos de costas à esquerda da tela. “Could be”

de perfil com os seios apontados para a frente, ficou para trás, pendurado lá no alto,

[Talvez], responde uma voz inexpressiva, na qual a indiferença codificada das

na placa publicitária que servia de abrigo a Bowie. O jovem, por sua vez, avançou

senhas de duplo sentido se matiza de outra coisa: uma ligeira insolência, algo

em terreno desconhecido, em direção a este corpo fragmentado que por enquanto

como um dar de ombros secreto: “Poderia ser. Isso ou outra coisa. Pela diferença

só existe através de um reflexo de luz sobre as bochechas, mãos sobre um volante

que faria.”

e uma voz inexpressiva.

Em alguns campos e contracampos, trocam-se na noite informações sobre

Algo essencial se passa, assim, no intervalo entre dois tipos de plano: os pla-

diversas coisas que “poderiam ser”. O jovem foi para o outro lado do carro para

nos de conjunto, de helicóptero, da fuga dos três bandidos, e os planos aproximados

entrar pela porta do carona. É apenas aí que o rosto da jovem aparece por completo

do encontro entre Bowie e Keechie. O que foi tragado neste intervalo é a forma

na luz para nós, mas não ainda para ele. A sombra se reinstala em torno dos dois

de intimidade que o romance realista constrói entre os estereótipos sociais e as

corpos sentados lado a lado. Mal parte, o carro já chega a seu destino. De costas,

minguadas percepções e sensações dos indivíduos. Entre o objetivismo da fuga

na sombra, a motorista, que tem mais o que fazer, encaminha o jovem ao acam-

e o subjetivismo do olhar na noite, entre a silhueta do painel publicitário e o meio-

pamento onde ele encontrará seus cúmplices.

rosto no carro, o cineasta desfez a forma literária pela qual Bowie era “apresentado”

No que diz respeito à aparição fulgurante, é preciso, paradoxalmente, que

ao mundo dela e pela qual a própria Keechie podia se apresentar sem problemas:

os traços sejam desenhados um a um; que, como o sorriso do gato ou os trinta

a forma do que podemos chamar de cinematografismo literário. O romance de

véus de Rodrigue, uma voz, bochechas e mãos, flutuem previamente na noite

Edward Anderson atuava sobre a zona de indecisão entre a narração objetiva e o

sem corpo de suporte. É preciso que o cinema desarticule o realismo natural da

monólogo interior que se apropria dos dados, o stream of consciousness que captura

reprodução mecânica. E uma relação singular de subtração opõe então o cinema

numa mesma camada os acontecimentos do mundo e as percepções do protago-

ao romance que ele transpõe. É desta forma que, no romance, Keechie aparece aos

nista, os estereótipos do eu e os da sociedade. Essa forma de intimidade do dentro

olhos de Bowie, que finalmente aporta em local seguro: “Ele avistou a jovem que

e do fora, do monólogo e do estereótipo, convém à literatura. Ela pertence aos meios

estava de pé atrás da portinhola transparente da loja. Ela era morena e pequena,

pelos quais esta compensa o fraco poder sensível de seu meio e dá às palavras do

seus pequenos seios altos e pontudos distendiam o algodão de sua camisa azul.” 2

relato inventado a carne da experiência comum. Entre a linguagem das emoções íntimas e aquela das insígnias luminosas da via pública, ela instaura essa conti-

2. Edward Anderson, Tous des voleurs. Tradução. E. de Lesseps. Paris: UGE, coll. “10/18”,

nuidade que permite capturar a história de destinos individuais no mesmo estofo

1985, p.30.

da pintura de uma sociedade. Mas a invenção cinematográfica deve ser construída

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contra este cinematografismo literário. O cinema deve inserir uma estranheza nos

distendida em torno das ancas, ela mostrava a T. Dubb como impedir a mecha de

corpos que apresenta, uma distância entre aqueles que aproxima. É preciso que o

soltar fumaça.” 3 Do calor do quarto, passando pela cócega da voz, o trajeto da sen-

corpo encontrado na noite seja totalmente estrangeiro à “consciência” de Bowie,

sação se dirigia uma vez mais à figuração ordinária do objeto do desejo: um tecido

inassimilável ao fluxo de suas percepções. E é preciso que, no mesmo golpe, ele

distendido pelas proeminências de um corpo. O relacionamento dos dois jovens se

seja subtraído de nossos poderes de identificação, que haja de início apenas esses

inscrevia assim na mesma lógica sensível que a cumplicidade dos três fugitivos.

reflexos de luz e essa voz indiferente, para que, pouco a pouco, a intimidade sem

É esta continuidade que é quebrada pelo trabalho do cineasta ao alterar o trajeto

familiaridade de uma relação amorosa pura se construa.

das percepções. É Keechie, é o corpo devotado à percepção das pequenas ações

Essa abstração primeira que separa o corpo de Keechie do fluxo de consci-

eficazes, quem comanda agora este trajeto. Enquanto ela aguenta as brincadeiras

ência de Bowie, ou seja, a figura cinematográfica do cinematografismo literário,

de seu tio Chicamaw, seu olhar é atraído por uma leve perturbação da ordem das

é necessária para que se opere um segundo processo de subtração, que isola, no

coisas: seguindo este olhar, é Bowie que descobrimos, ocupado em vão diante

esconderijo dos bandidos, os dois parceiros da relação amorosa. Na barraca onde o

do aquecedor. Fazer um aquecedor funcionar é tarefa desta Cinderela autoritária

pai de Keechie negocia a um preço alto seus serviços com o trio de fugitivos, uma

com as bochechas marcadas de fuligem. No plano seguinte, é ela, portanto, que

porta se abre. Keechie aparece, enfim, de frente e em pé, com seu ar de menino, os

está ajoelhada diante do aquecedor sob o olhar dos três bandidos e de uma câmera

cabelos puxados para trás, seu macacão unissex de gola gari e pacotes nos braços,

que mergulha em sua direção, vinda da esquerda. Mas não temos tempo de prestar

o que faz esvanecer qualquer peito empinado distendendo o tecido de uma cami-

atenção às brincadeiras de Chicamaw que visam agora a incapacidade de Bowie.

seta. Mas o contracampo brutal sobre o olhar de Bowie não seria suficiente para

Porque no plano seguinte não há mais Chicamaw nem T. Dubb. Melhor ainda,

constituir a intimidade dos dois jovens. A troca de olhares é um meio um pouco

é como se eles nunca tivessem estado ali, como se nunca houvesse tido lugar

grosseiro demais para representar o amor que nasce. Keechie e Bowie, portanto,

para que eles viessem se alojar neste espaço. Diante da câmera, que passou pela

não ficam muito tempo se olhando. Sobretudo Keechie, que sempre tem algo a

direita e rente ao chão, há apenas Bowie e Keechie. Mas isto ainda é dizer muito,

fazer. Esta é, na verdade, sua maneira de ser inteiramente presente e inteiramente

porque de Bowie mal vemos a parte de cima do corpo, as costas como moldura do

estrangeira ao mundo de seu pai e de seu tio. E sua presença ausente perturba de

quadro, e o braço que estende uma toalha. “Here” [Aqui], ele diz apenas. “Thanks”

saída a bela oposição deleuziana entre a funcionalidade da imagem-ação e a potên-

[Obrigada], responde Keechie ajoelhada, olhando para ele no alto, sem que cru-

cia expressiva da imagem-afecção. As diferenças de intensidade da sensação serão

zemos seu olhar. Este instante no qual os dois estão sozinhos não dura nem cinco

sempre captadas no movimento de pequenas ações — fazer a manutenção de um

segundos. No plano seguinte, uma câmera novamente afastada nos mostra os dois

aquecedor, levantar um macaco, desmontar uma roda, massagear um ferido: ações

enquadrados pelos dois cúmplices, antes que a câmera se centre novamente em

que fazemos juntos ou que observamos o outro fazer, ações cujos gestos e tempos

Keechie, que responde às brincadeiras dos escroques sobre a “cabeça” do galante

próprios se prestam, melhor que a troca extasiada de olhares ou a aproximação

Bowie: “His head is all right to me” [Não vejo nada de errado com a cabeça dele].

combinada dos corpos, a marcar o acontecimento do amor nascente entre dois seres que não sabem, nem um nem o outro, o que é o amor.

No contínuo narrativo e linguístico do relato realista, a mise en scène operou, desta forma, uma quebra. No espaço único deste quarto atravancado, ela alojou

Mas também é preciso, para constituir o drama, isolar os dois jovens no meio

dois espaços e duas relações incompatíveis. E a estrutura narrativa do filme não

daqueles mesmos que não lhes permitem essa intimidade. E é preciso para isso

será nada além do desenvolvimento desta coexistência dos incompatíveis, cons-

uma nova operação que construa esses dois espaços, imbricados e incompatíveis,

truída a contrassenso do livro fielmente adaptado, em seis planos cuja duração

no sensório homogêneo desenvolvido pela prosa “cinematográfica” do romance.

total não ultrapassa trinta segundos. Segundo a mesma lógica das pequenas ações,

A questão toda gira em torno do tratamento de uma pequena ação, do problema de

é uma patrulha de polícia a ser evitada, seguida de uma roda a ser substituída,

um aquecedor que está soltando fumaça. Segundo a lógica realista, o romance cons-

o que vai agora aprofundar a separação inicial e construir a intimidade dos dois

truía este episódio como uma modificação naturalmente orientada das sensações

jovens. Esta é apenas a sequência da garagem. Numa fusão apressada, a jovem

do jovem: “A voz da moça, Keechie, fazia cócegas em Bowie ao longo de sua coluna vertebral. Agachada ao lado do aquecedor a querosene, sua saia de flanela marrom

246

3. Ibid. (N.E.)

247


virgem de macacão mandou seu pai embriagado para a cama e colocou o macaco

encontra (para não mais abandoná-lo) um Bowie ferido. Entregando sem uma

em funcionamento para que o antigo aprendiz de mecânico Bowie mostre seus

palavra a seu pai, que irá usá-lo para beber, o dinheiro deixado por Chicamaw

talentos. Sentada no para-lama frontal do carro, ela supervisiona ao mesmo tempo

para os cuidados do ferido, Keechie tomou sua decisão. De costas, diante de um

o reparo e este ser de uma espécie desconhecida neste lugar, que conta sua sinistra

espelho que não nos remete seu rosto, ela solta e penteia os cabelos que caem agora

história de família enquanto afrouxa os parafusos da roda. Ou então, ela se levanta

sobre seus ombros. Quando a vermos novamente, aparecendo por detrás da cama

e vai mexer no volante, assumindo o tom da irmã mais velha sentenciosa, para

do ferido, ela terá abandonado o uniforme de mecânico em favor de uma camisa,

repreender este jovem sonhador que pensa poder obter sua reabilitação e montar

um blusão e uma saia de moça. E ela poderá sempre, é claro, retomar as palavras

sua pequena oficina permanecendo sob a órbita de seus dois cúmplices, que crê

ferozes do livro, responder a Bowie que ela ignora o que desejam “as meninas”

poder desejar ao mesmo tempo a vida intensa e a quietude da pequena empresa.

em geral ou dizer a ele, massageando escrupulosamente suas costas, que ela faria

Ela o domina do alto de seu saber, este saber de criança que nada viu do mundo

“o mesmo por um cachorro”. Essas insolências não têm força contra a confissão

e dele tudo adivinhou, passando do conserto do aquecedor enfumaçado àquele

de seus cabelos soltos, que não comunicam apenas o sentimento partilhado, mas

do pai embriagado, comparando a retidão das pequenas ações que o cotidiano

o valor com o qual ele deve ser pago. O amor se ganha pelo valor daquilo que ele

do local impõe e a confusão das operações tortuosas que ali fazem escala. Neste

causou: a certeza tranquila e a beleza inatribuível deste corpo de criança sem sexo,

momento, este saber reina soberano. Mas ele reina apenas precisamente do fun-

mestre das pequenas ações benfeitas que negam a loucura do mundo. Ao aceitar

do das certezas desta infância selvagem que conhece o mundo apenas ao preço

o relógio que ele coloca em seu braço, ela aceita desejar dali em diante o que ele

de se subtrair dele, de negar sua presença no encadeamento das pequenas ações

deseja, ele que não deseja nada além de desejar. Ela aceita a lei daqueles que de-

bem-realizadas e das palavras sensatas. E, mesmo Keechie estando pronta para

sejam, a lei do mundo que eles vão enfrentar, mas que, neste instante, já venceu.

partilhar da esperança da reintegração social de Bowie, o saber que se encarna por

A pequena divindade protetora do local a partir de então jogada na estrada: uma

ora na autoridade de seu corpo pensativo nos permite prever algo bem diferente:

criatura a ser protegida para ele, uma apaixonada ordinária para nós.

que não há nada a esperar além deste pequeno quadrado de noite no qual duas

É isto o que torna este filme tão pungente. Não é apenas a história do esforço

crianças fiéis brincam de mecânico. É um momento de utopia puro este plano

vão de dois ternos amantes para escapar do trio de bandidos e o absurdo trágico

conclusivo, no qual, tendo o reparo terminado e o sentimento feito seu caminho,

dessa obstinação das forças da ordem de perseguir “Bowie the Kid”, este assassino

Keechie retorna como em sonho do fundo da oficina para vir pegar com um braço

louco nascido da imaginação deles. É que a derrota já se deu de antemão, quando a

o macaco que Bowie puxa com o outro braço. Este momento puro de felicidade

única que podia resistir à lei do mundo abdicou de seus poderes. É que ela é apenas

em torno de um macaco transmite todo o idílio à sombra das palmeiras. Mas, an-

o outro nome deste amor. Pois não se pode nem mesmo acusar, como em Vive-se

tes mesmo que os outros reocupem o espaço, antes que as mãos dos dois jovens

uma só vez (You Only Live Once, 1937), as injustiças da lei social e as crueldades do

se unam apenas para se separar, a voz zombeteira de Keechie denuncia o mal

acaso. A decisão da fuga amorosa é em si mesma idêntica à perseguição da morte.

que corrompe o sonho compartilhado, o inimigo invisível que sempre arruinou

Os dois protagonistas do filme de Lang eram vítimas de uma sucessão implacável

de antemão a felicidade cúmplice das crianças que sabem: o desejo pueril de ser

de circunstâncias que poderiam ter sido outras: os preconceitos de um empregador

um adulto. “You think you are quite a man now, don’t you?” [Você está se achando

ou de um senhorio, que não querem ter consigo um ex-detento, uma troca de cha-

um grande homem agora, não é?].

péus, um carro tragado, um reflexo absurdo de defesa no momento da salvação...

Aí está o drama secreto encenado por Nicholas Ray, mais profundo que o

A caçada dos amantes da noite não pertence à esfera desta bela maquinaria lógica,

cerco das duas crianças pela lei do mundo sem piedade: o conflito das duas infân-

combinando os efeitos da lógica social com aqueles do acaso, em que Fritz Lang

cias, a batalha sempre perdida da maturidade infantil contra a puerilidade adulta.

triunfava. É que falta a Ray a crueldade de seu veterano, o prazer que este sentia

A criança que pensa ser verdadeiramente um homem apenas poderá se juntar

em fazer coincidir a objetiva da câmera com a mira do fuzil, e seu sólido desprezo

à criança que aceita ser verdadeiramente uma mulher, renunciar-se ao macacão

machista por essas jovens mulheres de boa vontade que se engajam, por seu amor,

do pequeno trabalhador andrógino e à sabedoria da criança que sabe. E é esta

a resgatar os párias da sociedade. A beleza de Vive-se uma só vez diz respeito ao

renúncia que faz a simples e estupeficante beleza dessas cenas nas quais Keechie

domínio clássico da arte, aquela que constrói a felicidade a partir da desgraça

248

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do outro, a perfeição do agenciamento das dores de suas criaturas. A encenação

onde eles se encontram ajustados, porém, seus gestos de apaixonados felizes se

romântica de Ray é totalmente outra. Mas que não entendamos por romantismo

tornaram emprestados. Com seu permanente e seu tailleur, Keechie é daqui em

a simples sentimentalidade por aqueles que sofrem. Certamente, Keechie, a filha

diante uma jovem mulher como as outras. E são exatamente esses sentimentos

do bêbado, está muito próxima do adolescente que saía na noite para buscar seu

que perderam seu mistério. Seu ronronar de gata feliz ou suas revoltas de mulher

pai embriagado nos bares do Wisconsin, muito próxima também da jovem esposa

ciumenta pertencem ao repertório ordinário. Ela flutua em seu corpo de jovem

dos dias de miséria e de entusiasmo nova-iorquino, para que Raymond Nicholas

casada em lua de mel como se fossem roupas novas, tão emprestadas quanto a

Kienzle, aliás Nicholas Ray, tenha prazer em olhá-la pela mira do fuzil. E ele sente

vestimenta de abotoadura dupla que ele traja. Mas é esta própria falta de jeito, esta

pelas duas crianças perdidas a ternura daquele para quem as únicas rachaduras

perda que faz a força paradoxal do filme. O saber do inelutável dá a beleza do luto

íntimas do sonho americano se deram na Primeira Guerra Mundial, na República

ao acanhamento dos interioranos e à tolice dos jovens casados. Mas esta beleza

de Weimar e no exílio. Mas o romantismo contra o classicismo não é o transborda-

é também o luto de uma outra. Foi preciso antes queimar uma Keechie, a criança

mento do sentimento contra o frio rigor, é uma beleza contra a outra: contra o belo

invulnerável da oficina, para construir o corpo frágil e um pouco desengonçado

agenciamento aristotélico que transforma a felicidade em desgraça e a ignorância

desta apaixonada destinada à morte. E este ícone queimado assombra o rosto que,

em saber, a perda baudelairiana daquilo que de nada serve saber, a perda primeira

no último plano, vira-se em nossa direção, lendo as últimas palavras, as palavras

“daquilo que não se encontra jamais, jamais”.

íntimas e banais (eu te amo) da carta de um Bowie estendido ao chão.

Não é, portanto, de forma alguma apenas seu bom coração ou sua própria

Tal seria a dupla lei romântica da beleza, da qual este filme é a ilustração

fragilidade o que impede Ray de construir de acordo com uma sábia gradação as

exemplar; uma lei de composição: uma imagem é feita de muitas imagens; e uma

etapas e as peripécias da perseguição, os cálculos dos caçadores e as passos erran-

lei de subtração: uma imagem é feita do luto de uma outra imagem. Encontraremos

tes dos caçados. É que a perda é inicial. Daí um relativo distanciamento a respeito

a verificação disto num remake de Amarga esperança chamado Acossado (À bout

dos episódios da fuga. O diretor renunciou sem muita dificuldade àqueles assaltos

de souffle, 1960). Sabemos que o olhar derradeiro de Jean Seberg transpõe o famoso

de bancos que a censura recusava. Estas elisões impostas servem por fim à lógica

“olhar da câmera” com o qual terminava Monika e o desejo. Mas esta composi-

do filme. E ele não tem motivos por que se deter em construir, em montagem para-

ção que acrescenta à imagem se duplica em outra que efetua o trabalho inverso

lela, a perseguição e a fuga. Motivo algum para se aprimorar no cerco que se fecha.

da subtração. Ao rosto composto de Patricia/Monika se sobrepõe o rosto dolorido

Para capturar Bowie, Mattie, a doadora, apenas precisa lançar mão de seu ponto

de Keechie. Esta Keechie acrescentou seu papel aqui ao de Mattie, a doadora, mas

fraco revelado: a ignorância daquilo que “as mulheres” desejam. De todo modo,

ela deixa transparecer, sobretudo, aquém de qualquer transação ficcional, o rosto

faz muito tempo que tudo foi lançado: desde o exato momento em que eles tiveram

daquilo que já havia sido perdido desde sempre.

que abandonar o reino da noite, em que se jogaram neste mundo no qual não foram introduzidos. Portanto, mais do que ao grande enfrentamento da ordem social e dos fugitivos, a mise-en-scène se interessa à leve falta de jeito daqueles que não sabem se portar. O primeiro plano da fuga nos mostra Bowie, na caminhonete, atravancado com um bebê cuja mãe, que sabe, esta sim, tomar parte nas coisas, deixa-o alegremente chorar de fome para preservar seu próprio sono. Um pouco mais tarde, um plano do alto os mostrará de costas, como que esmagados de antemão pelo comprimento da rua a ser atravessada para atingir a casa do casamenteiro. E ao longo de todo seu percurso, à ternura por seu idílio e à dor compartilhada do destino que o aguarda, mescla-se o mal-estar que experimentamos diante daqueles que não estão em seu lugar: os apaixonados malditos, que não cessamos de ver com o sentimento de incômodo provocado por interioranos desembarcando, com seus trajes de domingo, num mundo do qual ignoram os costumes. Mesmo

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251


We Can’t Go Home Again

embora não tivesse indicações precisas de Nick sobre o modo pelo qual todo o material se devia articular.

João Bernard da Costa

1

Mas nesta cópia, incompleta, imperfeita, com múltiplas deficiências técnicas, som frequentemente dessincronizado, mutilado e multiforme, é que We Can’t Go Home Again prefigura a trágica carreira de seu autor e sua luta por uma expressão derradeira, só aproximativamente conseguida. Como em muitas outras obras de

Em 1963, depois do estrondoso fracasso de 55 dias em Pequim (55 Days at Peking,

arte, podemos admitir a hipótese de que o filme, acabado e perfeito, não tivesse a

1963), Nick Ray nunca mais conseguiu voltar ao cinema dito comercial, apesar

imensa força deste material. Sobre ele se ergue a velha questão da diferença entre

de inúmeras tentativas. Anos e anos calcorreou a Europa à espera de um projecto

o “incompleto” e o “inacabado”, que se pode pôr também para o Réquiem de Mozart,

que se lograsse. Nessa altura — e particularmente na Tchecoslováquia, onde esteve

para a sinfonia de Schubert, para a Turandot de Puccini, para a Recherche de Proust,

em 1967-68 — iniciou a sua experiência com os multimedia de que pouco se sabe e

para O homem sem qualidades de Musil, para a Pieta Rondanini de Michelangelo

talvez nada se conserve. Em 1969, regressou aos Estados Unidos, para se dedicar

ou para o último autorretrato de Ticiano etc. etc. O que é atribuível (e tem sido

ao ensino. Dois anos depois iniciava com seus alunos do Harpur College esta ex-

atribuído) ao fato de essas obras, como muitas outras, terem ficado incompletas

periência (que para ele não era radicalmente diferente do cinema que antes fizera).

pode fazer parte do inacabamento necessário às grandes obras, cujas audácias se

O primeiro título foi Gun Under My Pillow, mas em 1973 já Nick escolhera We Can’t

não sabe deveram-se a uma falta de apuramento final, ou a uma impossibilidade

Go Home Again (1973-76). Apresentou-o, numa primeira versão (de 110 minutos)

de ir mais além.

em Cannes, nesse ano, à margem do Festival. Propalou-se então que o filme se tinha perdido, algures entre idas e vindas.

We Can’t Go Home Again é uma “capela imperfeita”, no rigoroso sentido em que o objetivo não era a perfeição, mas um tamanho rasgar de horizontes que lhes

O que parece certo é que Nick não estava satisfeito com essa versão, e que

não consente o fecho. Diz-se que o topus ilumina a opus. Mas há obras que não po-

recusou sempre a classificação do filme underground (“I don’t know what the fuck

dem ser iluminadas, senão pela luz que dentro de si.trazem, uterinamente, intrinse-

that means”). “Para que usar a palavra underground? Só se for para dar um toque

camente. Que melhor sequência o pode ilustrar do que a do encontro de Ray (profes-

de distinção a filmes péssimos, feitos por gente inapta.” Nessa altura disse também

sor) comum de seus alunos — “É o novo professor?” “Acho que sim.” “Acha?” “Sou,

ter rodado mais de nove horas de filme e sabe-se que, até à morte, montou e remon-

sim.” “Não é velho demais para ser um professor novo?” (As vozes misturam-se,

tou esse material que nunca deu por terminado, que nunca considerou ter versão

outras intervêm.) Depois, um lembrou-se: “Você não foi diretor em Hollywood? Não

definitiva. Ainda em 1978 — um ano antes de morrer —, disse a Wim Wenders que o

foi quem dirigiu Juventude transviada?” “Fui.” “E Amarga esperança?” “Também.”

que queria, acima de tudo, era terminar We Can’t Go Home Again. Não o conseguiu.

“E não fez aquele filme sobre os esquimós com Anthony Quinn?” “Fiz.” “E não

Foi o seu réquiem, até como o de Mozart, no sentido da incompletitude.

fez aquele filme com Bogart?” “Fiz.” “Então o que você faz aqui?” “O que você faz

Depois da morte de Nick, Susan Ray, a viúva, resolveu montar o que o ci-

aqui?”, essa é a pergunta que pergunta pelo filme e que pergunta pelo realizador.

neasta já tinha alinhado. De nove horas de filme, fez uma versão de 93 minutos

We Can’t Go Home Again é a resposta possível. Mais tarde a pergunta reforça-se em

que estreou em 1980 no Festival de Roterdã e no fim desse ano foi distribuída

agressividade, na “cena” com a menina: “Pensa que sabe tudo porque fez filmes e

comercialmente em alguns países. Depois, a cópia de Roterdã ardeu e salvaram-se

é velho.” “Quem deu a você o direito de ensinar?” “Só quer falar, não quer ouvir.”

algumas (raras) entre as quais a que existe em Portugal, adquirida pela Fundação

“Don’t knock at any door.” E Ray só sabe que nada sabe, Ray é de todos o mais

Calouste Gulbenkian. Desde essa altura, Susan Ray, que detém o resto do negativo,

jovem, o único jovem; Ray nada ensina; Ray quase não fala; Ray não bate às portas.

tenta obter os fundos necessários para a reconstituição da versão de nove horas,

Escuta, no negro e no encarnado da noite mais funda, sua solidão e a dos outros, Édipo e Tirésias, como eles cego do muito que viu. Só encena a desintegração.

1. Originalmente publicado para uma sessão da cópia restaurada de We Can’t Go Home Again, na mostra Cenário: o postiço como protagonista, na Cinemateca Portuguesa, em 28 de novembro de 2005.

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Mas vamos por partes. E começo pela mais óbvia: a novidade formal deste filme, rodado em 35mm, 16mm, super-8 e 8mm e também em vídeo de ½, 1 e 2 polegadas. “Uma parte do

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material foi filmado em vídeo, ou em 16 transposto para vídeo, retrabalhado por um

Krohn insiste falando-lhe de uma sequência em que se fixou na “história cen-

sintetizador óptico. Todas as sequências em vídeo foram depois transferidas para

tral” e por isso não viu o que se passava nos outros écrans. E Ray replicou: “Ver ou

16mm até a transposição final para um écran formado por vários écrans, écran que

não ver, não é isso que é importante. O importante é dar uma impressão compósita.”

em si mesmo é um prodígio de trabalho técnico. As sequências que deviam ser mon-

Abrir a “quarta dimensão” no cinema (a dimensão do absoluto imaginário); disper-

tadas juntas eram projetadas em transparência, por cinco projetores funcionando

sar as linhas retas em linhas curvas, cruzando temas centrais com laterais, sem se

simultaneamente que, depois, eram filmadas por uma câmara de 35mm. A foto-

decidir pela centralidade ou pela lateralidade (cada qual é livre de ver o que quer);

grafia arqueada (em forma de ventre), que serve de quadro e de pano de fundo às

criar impressões compósitas e simultaneamente afirmar que a narratividade é tão

múltiplas imagens assim produzidas, foram uma ideia de último minuto de Nick,

clara (ou tão óbvia) como nos seus filmes mais clássicos (Juventude transviada [Rebel

tanto no âmbito das filmagens como no do laboratório. O número de écrans varia

Without a Cause, 1955]). O processo permite sair para além da narratividade, para

durante o filme, mas o formato básico utiliza, em geral, quatro: um grande para os

além do espaço e do tempo, para além da integração do espectador, tão dividido e tão

16mm, embaixo e à esquerda, dois mais pequenos, ao alto à esquerda e embaixo à

traído (ou tão divisor e tão traidor) como Nick cineasta e ator se pretende assumir.

direita, e outro (8mm) ao alto à direita. Por vezes, uma quarta imagem, em 35mm,

Permanente autocitação (nas imagens “laterais” veem-se, às vezes, bocados

sobrepõe-se a todas as outras. E apesar da inicial complexidade da concepção, o fil-

de filmes antigos de Ray, como Johnny Guitar [1954], Juventude transviada, Paixão

me é linear e narrativo, com o grande écran embaixo e à esquerda a contar a história

de bravo [The Lusty Men, 1952], Delírio de loucura [Bigger Than Life, 1956], e o

e os mais pequenos a terem, como Nick disse, um papel suplementar.” (Serge Daney.)

plano final é idêntico ao plano inicial de Amarga esperança [They Live by Night,

Se tivessem subsistido — ou algum dia se encontrassem — as experiências que

1948]), este filme é a recapitulação fundamental do sentido de uma obra.

Nick fez na Tchecoslováquia nos anos 1960 com a split screen technique, ou se tives-

Se as imagens se fragmentam, se quebram, se interpenetram, se separam, se

sem subsistido — ou se um dia se encontrassem — os milhões de metros que filmou

reúnem, é porque não há lugar (como nunca nas obras de Nick houve) para um

em 1969 e 1970, quando do processo de Chicago, talvez se pudesse compreender

espaço comum e habitável. go home. Esse sonho americano é exatamente o que

melhor o gênero de revolução que culmina em We Can’t Go Home Again. Assim,

o cinema, projetando-o para o isolamento, tornou impossível. Mesmo quando, para

resta a surpreendente e bruta novidade desse filme, sobretudo há trinta e tal anos,

levar à máxima comunhão, há máxima solidão. Era possível ir ao fim de uma e de

quando ainda ninguém tinha multifacetado assim a tela.

outra como Nick foi (de Amarga esperança a Amargo triunfo [Bitter Victory, 1957]),

Depois, o processo foi repetido, sobretudo nos vídeos de Godard e em Numéro

para se perceber como, para aqueles que vivem sem casa, na noite, esses termos

Deux (1975). Nick Ray sustentou sempre que o futuro autor de Je vous salue, Marie

não são antônimos, mas indigitam o mesmo impossível uno. Por isso, o écran só

(1985) lhe tinha roubado a ideia, depois de ter visto a primeira versão do filme em

abre todo quando Nick conta a história do sábio ao filho do policial que também

Cannes em 1973. Mas a inovação não se limita à técnica, como é óbvio. Baseia-

perdeu um filho. De casaco encarnado, cabelos brancos, calças brancas, Nick

se também, para usar suas palavras, “no conceito de que a utilização da fita de

com a mão sobre o ombro do rapaz, fala-lhe (sem os citar) de Édipo e de Tirésias.

celuloide não tem limites de tempo ou de espaço. Só os da imaginação humana.”

Os que viram demais, os que decifraram os enigmas ou desafiaram os deuses e por

A Bill Krohn, quando este lhe pergunta qual a utilidade dramática de ter

isso perderam a possibilidade de olhar. Mas até nesse mito (ou no mito cinema-

coisas a passarem-se simultaneamente em diferentes zonas do écran e por que

tograficamente subjacente) pode haver uma astúcia: por isso o rapaz vai ouvindo

escolheu vários écrans para obter esse efeito, quando podia dividir a imagem

a história e dando socos no ar, para ver se de fato Nick Ray é cego do olho que diz

de outros modos, responde:

ter perdido. Nessa grande escala (som completamente dessincronizado, em que a

“É evidente que podia. Mas assim há uma informação suplementar, que mui-

voz on e a voz off se interpenetram), mesmo o mito do demoníaco conhecimento da

tas vezes é periférica ao nosso pensamento. Nosso pensamento não avança só em

maldição, do wise men, pode ser armadilha. E é por isso que nessa altura é preciso

linha reta. Existem outras associações que se fazem ao mesmo tempo e foi por isso

ver tudo. Simultaneamente, nada mais vemos. We Can’t Go Home Again. A única

que me servi dos écrans múltiplos. Utilizei muitas vezes uma dada cor para uma

possibilidade de ver, de filmar, só existe no sonho.

dada zona do écran, sem qualquer incidência na história, apenas para enriquecer o sentimento que tenho da cena.”

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Por isso, no fim, na “morte” de Ray — Pai Natal — os jovens decidem deixá-lo dormir algum tempo. “Not a long time. Long enough to get back to his dream.”

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E é já do lado desse sonho, ou do lado de onde não pode trazer esse sonho, que

Juventude transviada

Nick dita em off o testamento final: “Take care of each other. It’s your only chance of survival. All the rest is vanity.” E quando a imagem obscurece, muito, muito tempo,

Ruy Gardnier 1

ouvimos a canção em que se pede a Deus que abençoe a família, e se apela para ficarmos together. No negro, no escuro, nas vogais ardentes de que falava Rimbaud, o poeta, sobre o qual toda a vida Nick sonhou fazer um filme. Primeiramente, para além de todo julgamento estético, Juventude transviada (Rebel Without a Cause, 1955) é um marco na arte contemporânea. É a primeira vez na história das formas sensíveis de expressão em que existe uma fissura irremediável entre os filhos e seus pais, entre jovens e velhos, de forma que é completamente impossível a um compreender o outro. É possível fazer toda uma história dos desenvolvimentos culturais da segunda metade do século XX baseada apenas nessa fissura: foi ela que deu o rock ‘n’ roll, os movimentos de Maio de 1968 na França, a luta contra o Vietnã nos Estados Unidos, toda espécie de organização de contracultura e, ainda com reflexos hoje, a liberalização dos costumes sexuais e de comportamento. Juventude transviada, é certo, prefigura muito pouco disso: trata apenas da história de três adolescentes frágeis — mas que são fortes o suficiente para saber que não podem suportar o mundo em que vivem — que tentam, em conjunto, suprir as necessidades um do outro. Necessidades estas — inclusive a necessidade de paternidade — que não poderiam ser supridas pelo cuidado ou pelo amor dos próprios pais. Juventude transviada é o primeiro documento artístico de uma época que problematiza o fim do elo que ligava uma geração à outra, e talvez o primeiro objeto que mereça ser procurado quando tentamos entender o porquê de hoje o “mundo jovem” ter se transformado não só numa idade privilegiada no meio das outras, mas por ser hoje “a” idade propriamente dita, a idade que movimenta a economia por meio do consumo de música, de cinema, da indústria de fitness etc. No entanto, Juventude transviada não é apenas um documento, mas também um filme que caminha estilisticamente com suas próprias pernas, realizado por um dos poetas mais intensos de sua geração: Nicholas Ray. Nascido em 1911 mas só tendo começado a fazer cinema depois do término da Segunda Grande Guerra — seu primeiro filme data de 1948 —, Nicholas Ray se torna rápido um diretor com marcas distintivas fortes. É um mundo de heróis frágeis, palpáveis, que tentam sobreviver num mundo cuja chave

1. Texto escrito para o folder da sessão cineclube da revista eletrônica Contracampo, realizado no dia 6 de julho de 2006. A sessão Cineclube existiu entre março de 2003 e abril de 2007, primeiramente aos sábados, mas logo consolidando-se às quartas-feiras à noite, no cinema Odeon, localizado na Cinelândia, centro do Rio de Janeiro.

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de decifração eles não detêm. Nesse mundo, a onipresente violência física e

de Juventude transviada fogem. Em Johnny Guitar e Juventude transviada, ainda

mental convive com a possibilidade de uma paixão arrebatadora e irrestri-

se acrescenta outra camada expressiva: a cor. Cineasta famoso por trabalhar com

ta. Em Cinzas que queimam (On Dangerous Ground, 1951), a estrutura básica

baixos orçamentos, Nicholas Ray pôde em seu melhor período filmar poucos fil-

de Juventude transviada está montada: um policial citadino, nitidamente afetado

mes em cor. E seu uso é primoroso: cores aberrantes que rimam com os estados

pelo desencanto e pelo ambiente em que vive, passa a agredir violentamente os

de espírito de seus personagens, seja as tonalidades da face de Joan Crawford

criminosos que persegue. Depois do enésimo caso de violência acima do aceitá-

(ainda e sempre Johnny Guitar) ou a jaqueta vermelha de James Dean nes-

vel, ele é conduzido a uma investigação no campo onde encontrará uma mulher

se Juventude transviada. Nicholas Ray nunca primou por meios-termos em seus

por quem se apaixonará, mesmo que isso implique reconsiderar sua relação com

filmes. Sorte nossa: sentimos a emoção por inteiro.

a violência e seu poder autodestrutivo. O talento e a fluência de Nicholas Ray para filmar essas cenas extremas, tanto os arroubos de violência quanto os delicados momentos da paixão nascente, não fascinou de primeira a crítica norte-americana, mas encantou os então jovens críticos da revista Cahiers du Cinéma, que trataram de classificá-lo como o mais importante cineasta do pós-guerra (Éric Rohmer, em sua crítica de Juventude transviada, Cahiers nº 59). Godard acreditava ser Ray a expressão pura do cinema: “Depois de assistir a Johnny Guitar ou a Juventude transviada, impossível não dizer que trata-se de algo feito exclusivamente pelo cinema, algo que seria inútil no romance, no teatro, mas que na tela grande resulta em algo fantasticamente belo” (Cahiers nº 68). Em Juventude transviada, Nicholas Ray encontra um ator perfeito para designar todos os estados de espírito com os quais mais gosta de trabalhar: James Dean é ao mesmo tempo um rosto de bebê abandonado pela vida e, inversamente, a possibilidade de uma explosão de violência quando menos se espera. A passagem da faixa etária de seus protagonistas de adultos para adolescentes também ajuda a problematizar melhor alguns problemas dramáticos que sempre estiveram no escopo de Ray. Mal ou bem, os protagonistas mais importantes de Nicholas Ray, de 1949 a 1955, são adultos abandonados, Sterling Hayden, Humphrey Bogart ou Robert Ryan. Juventude transviada observa a origem desse abandono, o momento que separa seus heróis solitários e trágicos do resto dos “homens de bem”, e o motivo: uma sensibilidade diferente, uma dificuldade em aceitar o ritmo e os jogos dessa sociedade, uma instabilidade quase química que impede a vida sedentária e assentada da idade adulta. Outro aspecto decisivo no estilo de Nicholas Ray é a força suprema que os ambientes exercem nas cenas. Numa cinematografia como a norte-americana, acostumada com um estilo de cenografia neutro e com uma direção de arte naturalista (Wyler, Huston), Ray explode toda a verossimilhança dos lugares e das vestimentas servindo-se deles mais para conotar a situação dos personagens do que para mostrar semelhança com o mundo real. As locações são evocativas e não saem da cabeça fácil: a neve e a casa solitária em Cinzas que queimam, a casa de Joan Crawford em Johnny Guitar, a mansão para onde os três heróis

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WE CAN´T GO HOME AGAIN: SAINDO DA CAIXA

conta, estávamos no [Museu do] Prado, observando os Goyas do Período Negro, os Brueghels, os Bosch, os Velázquez. Nick pegou uma lupa que ele carregava no bolso de trás e me mostrou as pinceladas em Voo das bruxas [de Goya] e o detalhe em

Susan Ray

1

O jardim das delícias terrenas [de Bosch]. Então ele me fez recuar alguns passos para que eu pudesse ver inteiramente As meninas [de Velázquez]. Na moldura daquela tela havia diversas outras telas, e um espelho, e uma porta. Cada uma No primeiro roteiro que Nicholas Ray me mostrou, a primeira coisa que me chamou

emoldurava um mundo distinto e um tempo distinto, e todos aqueles mundos e

atenção foi esta palavra:

tempos estavam emoldurados, unidos, abrangidos em uma única pintura. Mas Nick não mencionou isto naquele momento, e eu também não vi. Foi só há três anos atrás, em 2006, em uma nova visita ao Prado — acompanhada por Jos

MIMAGE

Oliver, que possui a única cópia de We Can´t Go Home Again no mundo disponí-

Eu não sabia o que ela significava. Eu nunca a havia visto antes. Achei que era um

vel para circulação, —, é que me ocorreu o que os antigos velhos amigos de Nick

termo como voice over, long shot, e close-up , familiar para quem tem um conheci-

poderiam ter dado a ele e a seu último filme.

2

mento prático da realização cinematográfica. Eu não tinha este conhecimento. Nick tinha acabado de me contratar para ajudar com o roteiro e coordenar o escritório de produção, uma aluna do primeiro ano na Universidade de Chicago que não

*

estava procurando trabalho.

*

*

*

*

Agora, quase 40 anos depois, tenho certeza que mimage era um termo

No começo do outono de 1969, enquanto vivia na Europa, Nicholas Ray ouviu

que Nick inventou. Ele inventou para indicar um efeito que ele também inven-

falar em um julgamento político que estava acontecendo em Chicago. Os réus no

tou, ou ajudou a inventar ou descobrir. Era uma abreviação do que ele chamava

julgamento eram um bando de oito ativistas acusados de conspiração, e de cruzar

multiple image [imagem múltipla].

as fronteiras estaduais para incitar um motim na Convenção Nacional Democrata.

Quando e como esta técnica nasceu, desconheço. Ele apontou certas cenas de

Atraído pela chance de realizar um filme sobre uma rebelião juvenil e o sistema

55 dias em Pequim (55 Days at Peking, 1963) como precursoras. Ele disse que ele

americano de justiça, Nick voltou aos Estados Unidos depois de quase uma déca-

experimentara a técnica na pré-produção de Doctor and the Devils.

da. Em seu primeiro dia após o retorno, enquanto filmava uma manifestação em

3

Em uma breve escala em Madri – nesta época, já morávamos juntos há mui-

Washington, capital do país, os policiais o agrediram. Três meses depois, enquanto

tos anos e ele já tinha exibido o último longa-metragem dele, We Can´t Go Home

a sala de tribunal ainda se encontrava em construção, o financiamento do filme

Again (1973), em Cannes –, ele me disse que o que ele mais gostaria de fazer era

foi cortado.

me levar para visitar alguns velhos amigos. Nós pegamos um táxi e quando me dei

Apesar de precisar trabalhar, neste estágio da vida, Nick não estava disposto a voltar para Holywood, e além disso, eles não lhe haviam pedido. Estabelecendo-se em Nova York, diversos projetos passaram por sua escrivaninha. Ele se dedicava

1. Originalmente entitulado Out of the Box. Tradução de Pedro Henrique Ferreira. Texto

a cada um deles até o ponto de exaustão; mas nenhum se concretizou. Pelos anos

revisado por Rachel Ades. (N.E)

seguintes, flanou por eles sem um foco determinado. Ainda assim, onde ele ia, um

2. Nota do editor: O voice over acontece quando um personagem ou narrador que não está

monte de pessoas costumava se ajuntar em torno dele, enfeitiçadas pelos contos

em cena fala. O long shot é a filmagem de um plano no qual a figura central (objeto ou figura humana) é mostrada integralmente, em geral de modo a situá-la no contexto de seu entorno.O close-up é usado para definir a exibição de uma imagem em plano aproximado e com destaque.

selvagens que ele tirava da cartola. Uma vez ele contou um sobre o seu infeliz retorno à sua terra natal. Em agosto de 1971, ele fez sessenta anos. A idade e os vícios estavam levando

3. Do livro homônimo de Dylan Thomas, o filme nunca foi realizado, pelo menos não sob a

a melhor sobre ele. Quando lhe foi oferecido um emprego para lecionar no Harpur

direção de Nick, e os experimentos de Nick com a multiple imagem foram perdidos.

College, no norte do estado de Nova York, ele aceitou.

260

261


O orçamento do Departamento de Cinema do Harpur College era curto; o

e quando. Esqueça que Phil nunca segurou uma câmera, que Doug não sabia a

equipamento, escasso e antiquado; e a maioria dos alunos que se inscrevera para

diferença de um boom e de uma zoom, que Helen nunca tinha preparado as lu-

a aula não tinha a menor ideia de qual lado de uma lente deveriam olhar. Mas Nick

zes. Eles aprenderiam a exercer as funções na prática. Eles aprenderiam a fazer

tinha praticado sua arte durante a Grande Depressão; ele não era um estranho às

um filme fazendo um filme. Era a única forma de se aprender, Nick lhes disse.

limitações. Ele as fazia florescer na medida em que sentia que elas invocavam a

Eles começaram a filmar naquela noite. O título de trabalho do filme: The Gun

imaginação e aproximavam aqueles que delas compartilhavam. “O difícil, faremos

Under My Pillow [a arma sob meu travesseiro].

agora,” ele dizia. “O impossível vai demorar um pouco mais.”

Os alunos trocavam de funções na equipe a cada duas semanas, para que

O emprego em Harpur lhe proveu a situação ideal para explorar a fundo suas

todos pudessem aprender o básico de cada função em um set. Eles todos davam

maiores paixões: o ensino, a experiência de colaboração, a juventude contempo-

uma mão para buscar as coisas, carregar e limpar. Reminiscência de sua própria

rânea, o potencial de uma tira de celuloide e, obviamente, a busca que englobava

formação com o Workers Lab e o Theatre of Action no começo da década de 1930,

todo resto — a realização cinematográfica. Que não havia dinheiro o suficiente para

a turma treinava com exercícios de movimento. Eles trabalhavam juntos, comiam

nenhuma destas metas, se demonstrou um problema estratégico, é claro. O que

juntos, jogavam baralho juntos ou iam à cidade juntos, dormiam juntos ou ficavam

também lhe deu um tipo de liberdade inimaginável no set de um filme de orça-

acordados muitas noites filmando juntos. A fronteira entre vida e aula, no set e

mento elevado. Não ter nada a perder pode ser um tipo de liberdade para aqueles

fora dele, se dissolvia – como era o caso em qualquer produção do Ray. Na medida

que souberem aproveitar.

em que o relacionamento entre a turma e Nick se aprofundava, a dinâmica deles

Da perspectiva mainstream, no momento em que Nick aceitou o emprego de professor, ele era impossível de ser bancado, um ultrapassado, um velho acabado,

se tornava o conteúdo do filme, e o título do filme se tornou: We Can’t Go Home Again, by Us [acrescentando ao título original o by Us, por nós].

um arruinado. Tais epítetos eram lançados contra ele com alguma frequência na-

Nick reverenciava as empreitadas de colaboração conjunta, a junção de

quela época. Da perspectiva de Nick, em um dia bom (e havia dias ruins também,

talentos e habilidades individuais numa equipe que era tão maior que a soma

quando a frustração era insuportável para ele e para todos em volta dele), ele era

de suas partes. E ele valorizava cada participante, não importa o quão pequena

um artesão maduro com uma equipe cada vez mais hábil e disposta, com curio-

fosse sua contribuição. Até do mais tímido, ele conseguia retirar um dom ou uma

sidade, coragem e amor suficiente para querer explorar territórios inexplorados:

habilidade.

para se aventurar para além dos limites.

Para ele, a realização de um filme deveria ser menos a imposição de sua própria ideia do que a criação, com os atores e com a câmera (a câmera também era um ator) de um recipiente ou uma matriz fértil, com a pressão de um desejo ou

2. “Você não vai se capaz de... aprender nada neste aula sem a ajuda dos outros. Até o santuário abençoado da solidão, você só aprende a suportar com a ajuda e o exemplo dos outros.” Nicholas Ray, I Was Interrupted: Nicholas Ray on Making Movies

de desejos conflituantes, e então deixar que a tira de celuloide captasse estas revelações, fossem quais elas fossem. Ele sabia tirar o máximo do mínimo. É possível se observar este processo de preparação e colaboração, e também seu resultado, em We Can´t Go Home Again. Por outro lado, não importa a situação, Nick tinha de ser o diretor, o chefe, aquele que comandava o show. Ele colaborava, mas em seus próprios termos.

“Ninguém faz nada sozinho – nem mesmo a loucura.” Nicholas Ray

3.

Em seu primeiro encontro, Nick deu uma lista de chamada para sua turma. Muito

“A arte audiovisual pode retratar qualquer milagre... Filmes, com suas

parecida com qualquer outra folha de chamada em um set de filmagem, citava

imagens vívidas, ilustram muitas verdades referentes à criação.”

quais membros da equipe e em quais posições eles deveriam se apresentar, onde

Paramahansa Yogananda, Autobiografia de um iogue

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“Você sabe que a imagem na tela da cinema nada é senão luz... A luz

velocidade com que pressionava o pedal, ele podia sentir o ritmo do filme em seu

não se move… O que se move é o filme – que é a mente”

próprio corpo. Visualizando o filme desta maneira, deixava de ser algo “exterior”

Sri Nisargadatta Maharaj, Eu sou aquilo

a ele. Ele passava a conhecê-lo em seu próprio conteúdo, como algo único, do

“A câmera fotografa o pensamento. É uma das propriedades mágicas das lentes. A câmera fotografa o pensamento e extende o tempo com o pensamento.” Nicholas Ray, I Was Interrupted: Nicholas Ray on Making Movies

mesmo modo que alguém conhece o amante como alguém único. Não é uma hipérbole dizer que o filme era sua amante: “Acontece que um filme é uma mulher / e acontece que um dia ela te abandona.”, ele escreveu em um poema, já pelo final de sua vida. Pelo que titulava de “mágica da tira de celuloide”, Nick se aproximava de uma união com o tema que explorava, e com o meio pelo qual o explorava também. Quando Godard disse, “O cinema é Nicholas Ray”, deve ter

Da claridade, os místicos dizem, as coisas infinitas do cosmos se revelam. De um

sido a isto que se referia.

raio de luz projetado por uma máquina através de uma tira de celuloide, o mundo das imagens em movimento se revela. Os paralelos são muito próximos para serem descartados.

4.

Mesmo que Nick tenha tido pouco contato com a literatura e as disciplinas formais de um adepto espiritual, ele era curioso quanto a elas. Eu ouvi que durante as filmagens de Paixão de bravo (The Lusty Men, 1952) Mitchum o chamava de Nick “O Místico”, pela forma com que ele ficava procurando implacavelmente a essência de uma cena, a essência de uma experiência. Em We Can´t Go home Again, quando Leslie clama que ela se sente “tão doente, tão suja” e pede para Nick ajudá-la, ele lhe avisa “Só posso te ajudar da única maneira que conheço”. Então, ele a leva para dentro de um estúdio para trabalhar. A ajuda que ele oferece a ela, a ajuda da qual ele próprio dependia, foi sempre, sempre, o trabalho. Tudo – problemas domésticos, um parágrafo nas

“Um Papai Noel está tentando arranjar uma carona numa rua cheia de neve do lado oposto da New York State University. Ele é atingido por um caminhão. Dois jovens se aproximam. Eles lhe perguntam se ele é o Papai Noel de verdade. Vendo as tiras de celuloide queimando em sua bolsa, eles perguntam: ‘Você está fazendo um filme? É sobre o quê?’. Ele responde: ‘Você já perguntou a si mesmo quem eu sou? O que eu sou? Por que eu sou?” Nicholas Ray, nas notas não publicadas sobre We Can’t Go Home Again

últimas páginas do The Post, um sonho, um clima, uma cena aleatória na rua, uma

“Os anos 1970 foi a década em que as pessoas deram ênfase à pele, à

troca que observara no banco de um estádio –, tudo servia, e era entendido através

superfície, mais do que à raiz das coisas. Foi a década em que a imagem

de seu trabalho. Seu trabalho era sua prática, sua disciplina, a constante através

se tornou preeminente porque nada mais profundo estava acontecendo.”

da qual ele aprofundava o conhecimento que tinha de si mesmo e de seu mundo.

Norman Mailer, “Mailer on the ‘70s—Decade of ‘Image, Skin Flicks, and Porn,’”

Na língua dos místicos, para Nick, filmar era tanto o caminho quanto o destino.

U.S. News and World Report, 10 de dezembro de 1979

À sua maneira, sua devoção à filmagem era completa. Para ele, a tira de celuloide não era qualquer pedaço de plástico. Pela mediação da câmera, a tira de celuloide registrava a vida. Portanto, tornava-se algo com um potencial infinito, pois “não reconhecia nem tempo, nem espaço, apenas os limites da imaginação do homem.” Ele chamava o cinema de “A catedral das

“A van correu pelas ruas para que o motorista pudesse voltar apressado atrás de mais um bando de hedonistas, estavam tão arqueados pelo prazer que dirigiam diretamente pela Felicidade...” Andrew Holleran, Dancer from the Dance

artes”. Não creio que a insinuação de que um filme era um meio para se aproximar de uma realidade superior fora inconsciente ou acidental.

Há alguma forma melhor de se conhecer a condição de uma sociedade do que

Ele preferia editar em uma antiga moviola. Isto o obrigava a ficar parado

estudar sua juventude? Saindo fresquinhos das crenças e valores de seus pais, e

em frente à máquina, fazendo com que funcionasse pressionando um pedal no

ainda com energia e visão para transformar e transcendê-los ou serem afundados

chão. Deste modo, enquanto a tira de celuloide corria no visor, fosse qual fosse a

por estes, eles nos mostram em que direção estamos indo.

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Iniciado em 1971, We Can´t Home Again abre com uma montagen de ima-

6.

gens de uma década recentemente terminada: o Festival da Vida na Convenção Nacional Democrata em Chicago; as manifestações subsequentes; os confrontos

Nas páginas do roteiro que rascunhamos antes da primeira turma de Harpur, Nick

com a polícia; e os 8 “conspiradores” de Chicago durante o curso de seus julga-

iria fazer Nick, o novo professor de cinema e personagem central do filme. Desde

mentos. Então, como se o próprio filme estive suspirando com resignação, ele

o princípio, ele se aproximou do papel com ambivalência e resistência dolorosa.

se move de uma intensa oscilação para um cena mais silenciosa. Os estudantes,

Na minha opinião, até mais do que sua péssima saúde e seu baixo orçamento, foi

ainda em seus trajes hippies, alongam seus corpos em um campo verdejante

esta a principal dificuldade que teve para fazer o filme acontecer. Enquanto vejo

ou flutuam oníricamente em uma jangada. Eles terminaram as manifestações.

Nick na tela, o vejo incapaz de tolerar o olhar da câmera sobre ele.

“Queremos fazer a nossa própria parada,” Richie diz a Nick, o novo professor de cinema da escola.

Ele sabia muito bem que a câmera não mente e que a própria exposição, seja ela próxima e pessoal ou indireta, através daquilo no que o Ser opta em se engajar,

O que está por trás deste recuo e desta resignação? Nick o chamara de

é a meta fundamental de um artista. Ele não gostava da geração de onde veio. Ele a

“a procura da sua própria imagem” — não se trata de uma sonda mística de seus

chamava de geração dos traidores, que esticaram as mãos a seus filhos e depois

próprios recursos na busca pelo Ser, mas a procura narcisista de fontes fora de si

a retiraram. Ele via o efeito destas traições nas crianças tentando alcançar algo

mesmo para refletir, consolidar e confirmar a si mesmo. David vai para um spa

sólido no qual se segurar. “A conformidade e a síndrome de realizações [neles]

para gordos e perde 36kg, mas descobre que, apesar de sua nova imagem física

é muito perturbadora para mim... Eu acho que o mundo material de ganhos tem

vesperal, ele ainda tem uma cabeça de gordo. Leslie grita que quer ser bonita, mas

começado a ser o significado de tudo.”

“Sou sempre feia! Sempre feia! Sou sempre feia!” Observamos as ambições dos

Ainda assim, ele se colocou em frente à câmera e sobrepujou a quase cons-

alunos por fama e glória que a presença de Nick inflama neles; acompanhamos

tante tentação de abandonar-se na sala de cortes. Apesar disto, ele deve ter criado,

o desvio de Nick e de seus alunos para o uso de drogas e do vício; testemunhamos

nas palavras de Bill Krohn sobre o Nick em outro contexto, “o exercício mais lanci-

suas traições mútuas. Em cada personagem e em cada episódio, o filme expõe

nante em autorrevelação já empreendido por um grande artista cinematográfico”.

um interesse egoísta tanto flagrante quanto ingênuo na ignorância de sua própria existência e de suas consequências. Apenas Tom, filho de um detetive da polícia de Nova York e ex-seminarista,

7.

que está cego do mesmo olho que Nick (“Em terra de cego, quem tem um olho é rei,” Nick lhe garante), resiste às tentações do solipsismo. Nós o seguimos enquanto ele perambula, com a mochila nas costas, estranho em uma terra estranha, entre os outros atendentes da Convenção Nacional Democrata de 1972 em Miami, enquanto eles calmamente reclinam e comem seus lanches em toalhas de piquenique. Foram-se os discursos impetuosos, as controvérsias, a animação e a comemoração

“A música que realmente me interessa… é a música polifônica..., música com uma explosão de ideias simultâneas... É a música onde se reconhece a igualdade essencial daquelas ideias.” Glenn Gould, A State of Wonder

de apenas quatro anos antes. Tom pega carona de volta para a casa de Nick de-

“Realizar um filme é como decolar, é um show de imagens múltiplas...

siludido, perdido, capaz somente de realizar um ritual de forte carga emocional

baseadas nas ideias de que nunca pensamos em linha reta.”

oferencendo reconciliação, renovação e limpeza.

Nicholas Ray, nas notas não publicadas sobre We Can’t Go Home Again

Em tais cenas íntimas, testemunhamos o cúspide de uma era, o ponto crítico de virada, o momento preciso da quebra muda de uma visão que não estávamos

Nick e sua equipe de estudantes filmou We Can´t Go Home Again em todas as bi-

fortes o suficiente, sábios o suficiente ou generosos o suficiente para suportar.

tolas e formatos disponíveis naqueles tempos: 35mm, 16mm, super-16mm, 8mm,

O filme não nos deixa saber se, mais adiante, esta visão será reconstituída

super-8mm, e vídeo. Em parte, isto aconteceu por conta dos caprichos da World

em uma forma mais robusta, ou se continuará como cacos inúteis. A decisão nos

War II-vintage 35mm Mitchell, a única câmera disponível na escola; e em parte por

confronta agora, com uma urgência sem precedentes.

conta do custo de processamento de um filme de bitola superior. Principalmente,

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porém, já que não havia financiamento para pagar por visuais elaborados no

caixa. Enquanto eu me sento aqui no laptop, outros estão dormindo em Paris e

laboratório, era a maneira da qual Nick se utilizava para criar o efeito MIMAGE

indo trabalhar em Christ Church, Nova Zelândia. Enquanto estou aqui capinando

que ele procurava.

o jardim, outros estão despejando bombas em Beirute. De acordo com os físicos, e

Há ainda quem diz se lembrar como se fosse ontem as projeções da cópia de

com os místicos também, os eventos lá em Beirute ou Pequim, ou atrás das portas

trabalho que aconteceram há trinta e cinco anos atrás. Imagens em 35mm eram

fechadas da casa na esquina, afetam concretamente o que acontece comigo aqui.

projetadas na tela, enquanto outros quatro ou cinco projetores jogavam imagens

Por que não permitir que a mesma coisa aconteça com uma imagem? Na compre-

de bitolas menores, cada uma em sua própria progressão, em regiões distintas da

ensão de um místico, é o egocentrismo que limita o que você ou eu vemos, e não

mesma tela. Através dos sintetizadores de Nam Jun Paik, algumas das imagens

a nossa natureza humana.

eram distorcidas e suas cores se tornavam neons lúgubres. O filme em cada pro-

Desde a morte de Nick, ando vendo versões de MULTIPLE IMAGE em

jetor tinha sua própria história a narrar. Às vezes, as histórias eram sincronizadas

Napoleão (Napoléon, 1927) de Abel Gance; nos filmes de Godard Aqui e acolá

com precisão em relação uma à outra; às vezes, não eram. Durante a projeção

(Ici et ailleurs, 1976) [codirigido com Jean-Pierre Gorin e Anne-Marie Miéville]

da montagem, que durou cerca de uma hora, os espectadores viram mais de três

e Número dois (Numéro deux, 1975); em Os imorais (The Grifters, 1990) de Stephen

ou quatro filmes.

Frears e em Time code (2000) do de Mike Figgis; mas nenhum deles chegou pró-

Nenhuma destas projeções chegou até o fim sem pelo menos um defeito do

ximo da riqueza e do poder emocional que Nick atingiu em We Can´t Go Home

projetor. Então as luzes se acendiam, e a mágica que talvez estivesse amadure-

Again. E ainda assim, ele não chegou nem perto do que ele realmente queria fazer.

cendo ali estava perdida. Enquanto Nick latia ordens, com seu cigarro de papel de

Com a tecnologia digital de hoje em dia, os efeitos pelos quais ele labutou há mais

milho na boca, a equipe de estudantes apressava-se a fazer os reparos, e o público

de 35 anos atrás são muito mais fáceis e baratos de se atingir. É um mistério para

contorcia-se silenciosamente. Estava claro que a maioria deles, particularmente

mim que ainda tão poucos trabalhos deste gênero possam ser vistos por aí. Eu me

aqueles que tinham dinheiro, pensavam que a coisa toda era uma zona, e que Nick

pergunto se não é por ser desconfortável fazer tudo ao mesmo tempo, e fazemos

tinha passado dos limites. Nick não ignorava aqueles pensamentos, e mesmo as-

parte de uma cultura que coloca o conforto em primeiro lugar.

sim ele urgia a equipe para continuar a projeção. Mas assim que a sala esvaziava, e os equipamentos e películas já estavam empacotados, ele fugia para o bar mais próximo. “Estes contadores de feijão não tem a menor ideia de como olhar um

8.

filme inacabado”, ele murmurava tomando seu gin. Em 1973, com o convite para exibir o filme no Festival de Cannes, Nick já

Entre as últimas palavras do filme, encontramos estas: “As comportas estão se

estava dando um jeito e conseguindo algum crédido com os laboratórios CFI para

abrindo, a água está correndo como as pessoas contra as barragens... Cuidem um

criar alguns dos visuais que ele tinha imaginado. As imagens nas bitolas mais

dos outros. É a única chance que têm de sobreviver.” 4

baixas eram projetadas numa tela de 35mm e refotografadas em 35mm. Os eixos das imagens menores eram feitos para sobreporem ou fundirem uns com os outros.

As palavras da profecia dos anciões hopis 5, lançadas em junho de 2000, são as seguintes:

Às vezes, um buraco parecia aparecer na tela, como se o próprio filme derretesse, e um super-8mm aparecia naquele espaço. Em última análise, Nick pretendia dissolver as arestas duras de todos os quadros completamente. Ele também queria lançar uma faixa de animação em um lado do filme. Uma aquarela de como ele queria que o filme fosse está pendurada agora na minha sala de estar. Como um artista o avaliou, é uma visão pictórica, de texturas e camadas sutis. Sem querer me estender muito e reforçar o argumento, é uma visão unitária,

4. No original, a citação se utiliza de uma semelhança fonética de tradução impossível entre dam (barragem) e goddamns (maldições). Pela imprecisão da citação “(...) the water is rushing like the people against the dams and goddamns.” no português, o tradutor optou por omitir o 2º termo. (N.T.)

uma visão esférica de um místico, alguém que entende que o mundo não é plano

5. Hopis é uma tribo indígena norte-americana do Arizona que mantém uma relação espi-

nem quadrado, mesmo que nossa visão “normal” pareça enquadrada por uma

ritual muito forte com o Tibet. (N.T)

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“Há um rio que flui rapidamente

MARCO DE NICHOLAS RAY

É tão enorme e célere,

MEMÓRIAS DE TRABALHO COM NICK

Que haverão aqueles que sentirão medo, Que tentarão segurar na margem...

Claudio Mazzatenta 1

O tempo dos lobos solitários está terminado. Juntem-se.” Era uma manhã nova-iorquina quente e úmida na pequena quitinete da rua 47 9.

com a Broadway, próxima à Times Square, e eu estava pronto para sair da cama e pegar na Penn Station o trem para Mineola, onde eu trabalhava. Quando o telefone

Como alguém que participou do processo, mas não diretamente, eu assisti o making

tocou, eu peguei o fone e Luca Barbareschi, ligando da Itália, disse: “Você soube

of de We Can´t Go Home Again com um olhar fresco. Os alunos de Nick e eu éramos

da notícia? Nick está morto.” Eu não chorei, já que estava esperando por aquilo.

da mesma idade, e ainda assim eu deveria cozinhar para eles, vesti-los, ouvi-los

Eu tinha falado com Nick pelo telefone a cerca de uma semana, e foi bastante do-

e limpar a zona que faziam. Isto me incomodava. Me incomodava que Nick esban-

loroso ouvir sua voz tão frágil e cansada, mas eu estava triste porque, não importa

jasse tanta atenção para suas vidas criativas, e que não sobrasse nenhum tempero

o que gostamos de dizer sobre força interior, a fulminante noção de morte iminente

para a minha. E então, havia o próprio filme: Nick estava tão pouco à vontade

que nos força a pensar: “É isso! Acabou!” é sempre devastadora. Eu consegui achar

nele. Todos – o próprio filme – estavam tão pouco à vontade. Me fez mal ver meu

apenas na sessão do obituário do New York Times, datado de uma segunda-feira,

próprio estado refletido tão descaradamente.

18 de junho, um pequeno artigo dizendo:

Mas quando Nick me ligou às três da manhã da ilha de edição Zoetrope,

Nicholas Ray, que dirigiu os filmes Johnny Guitar , Juventude transviada, um

ameaçando jogar tudo da ponte Golden Gate, apesar do sono, reuni minhas forças

remake de O rei dos reis, Fora das grades e 55 dias em Pequim, morreu sábado de

e disse: “Não se atreva”.

câncer nos pulmões após uma batalha de 12 anos contra a doença.

Com exceção da cópia que Jos Oliver envia uma ou duas vezes por ano para

Impedido de completar 55 dias em Pequim (55 Days in Peking, 1963), Nick

um festival ou para uma retrospectiva, We Can´t Go Home Again agora repousa

morreu em 1963 para a instituição hollywoodiana. Em 1979, a mídia não propor-

em caixas num armazém de Los Angeles. Ele precisa de restauração e preservação

cionou a mesma atenção dada ao “Duque” John Wayne, que morrera alguns dias

antes de poder ser lançado. O trabalho ainda é bastante dispendioso, apesar da

antes, no dia 11 de junho, e que ironicamente trabalhara em Horizonte de glórias

facilidade dos processos de edição digitais.

(Flying Leathernecks, 1951) de Nick.

Durante os anos após a morte de Nick, muitos homens brilhantes da indústria

Em 1976, voei de Roma a Nova York para participar de um programa de tem-

de filmes me sugeriram gentilmente que eu desistisse de fazer este filme ser lança-

po integral no Instituto de Teatro e Cinema Lee Strasberg. Naquela época, o instituto

do. Eles me lembraram que nem todos os filmes encontram seu espaço no mundo,

era a mais prestigiada escola de atores de Nova York, e ,definitivamente, uma

e que este filme é menos comercial que a maioria. Não precisaram me lembrar

das mais cobiçadas do mundo. Lee, já famoso como diretor artístico do Actor’s

que é um filme problemático, incompleto e deteriorado.

Studio, depois de trabalhar em O poderoso chefão II (The Godfather Part II, 1974)

Ainda assim, e não porque foi realizado por um homem com quem con-

de Coppola, se tornou uma referência que não poderia ser ignorada; e seu insti-

vivi e que amei, tampouco porque eu fui uma das que trabalhei nele, parece

tuto era, de fato, o local para se estudar atuação com um sabor internacional, já

de importância crítica, um questão oportuna, mesmo um assunto urgente, que

que os estudantes vinham de toda parte. Lá eu encontrei Luca novamente, que eu

We Can´t Go Home Again encontre um jeito de sair da caixa. É minha sincera in-

conhecia desde 1974, quando ambos frequentáramos o Studio Fersen em Roma

tenção, mesmo que não saiba exatamente como, que o filme esteja sendo exibido em um cinema de arte perto de você a tempo do aniversário de 100 anos de Nick,

1. Originalmente publicado na revista virtual Fúria Umana, escrito em dezembro de 2009.

em 7 de agosto de 2011.

Tradução de Rafael Bittencourt. Revisão de Rachel Ades.

270

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com outros amigos estudantes que também vieram da escola de Lee. Luca e eu

conseguia. Eu gostava muito de ouvir o Nick: ele nunca era uma pessoa entediante,

estávamos nas mesmas aulas e trabalhávamos juntos dentro e fora da escola, mas

ao contrário, sua habilidade de comunicação era maravilhosa e ele sempre tinha

era eu quem frequentava as aulas de Nick.

alguma coisa interessante a dizer, como sempre acontece com pessoas que viajam

Simplesmente aconteceu: um dia, uma grande placa, anunciando as novas

muito e tem contato com diferentes culturas. Quando eu apresentei o material de

aulas de cinema dirigidas por Nicholas Ray, apareceu na recepção do instituto.

Pirandello, Camus e Sartre, nada era novo para ele. Eu acredito que ele admirava

Na parede, um enorme artigo “REBELDE Nicholas Ray” estava em exibição com

a cultura europeia.

a filmografia desse diretor, do qual eu me lembrava por pelo menos dois filmes

Eu soube de várias histórias através de outros colegas sobre Nick e sobre a

que eu havia visto na Itália: Johnny Guitar (1954) e Juventude transviada (Rebel

gravação de We Can’t Go Home Again. Na primeira aula, na primavera de 1977,

Without a Cause, 1955). Meu sonho inicial de estudar com Lee Strasberg não me

Danny Fischer, que também apareceu em We Can’t Go Home Again, era o câme-

impediu de me inscrever para as aulas de Nick. Poucos dias depois, seguindo

ra oficial, e ele mais tarde me apresentou a Tom Farrel, que também atuou em

o procedimento da escola, eu fiz uma entrevista formal com ele. Eu entrei no es-

We Can’t Go Home Again. Quando eu conheci Nick, ele estava no auge de sua

critório, e atrás da escrivaninha havia um homem sentado, muito calmo, que me

experiência e conhecimento como cineasta, e generosamente transferiu este seu

cumprimentou com um caloroso “Olá”. O homem tinha cabelos brancos e seus

tesouro para seus alunos. Ele apreciava estar entre estudantes jovens de diferen-

olhos azuis estavam olhando diretamente para mim. Ele estava muito abatido e

tes países e experiências, e ele conseguia gerar uma autoconfiança que facilitava

sua pele era muito branca: eu achei que ele estava doente, mas eu não sabia que

a inter-relação entre todos nós, que tínhamos uma melhor chance de evoluir ar-

ele tinha câncer. Ele perguntou de onde eu estava vindo e eu disse que nascera

tística e culturalmente. Nick inspirava um respeito pela arte que se traduzia em

em Roma. Ele respondeu dizendo que havia morado lá por um tempo e perguntou

um respeito pelos outros: nenhuma prima donna era permitida. Ele incentivava os

por que eu queria ser ator e ter aulas de atuação cinematográfica em produções

alunos a explorar e ir além dos limites do comportamento convencional. A arte se

para TV. A conversa foi breve e eu gostei dele; eu senti uma vibração positiva e sai

tornou uma ferramenta para autodescoberta. Todo o trabalho feito com ele tinha

altamente energizado pela nova experiência por vir.

este caráter singular e como consequência a arte se misturou à realidade e vice-

Na primeira lição, Nick estipulou as bases do que ele pretendia fazer e o

-versa. A vida se tornou uma jornada onde contradições viraram a essência da

que ele esperava de todos os estudantes, que eram muito diferentes do grupo de

harmonia imprevisível. Isso aconteceu quando aos alunos foi pedido para explicar

Juventude transviada ou de We Can’t Go Home Again (1973). Nick abordou essa

o nascer do sol a uma pessoa que nasceu cega, ou começar um exercício forjador

nova experiência com uma atitude diferente: não era sobre seus próprios filmes,

em que ninguém sabia quem o farsante era: a contradição era irresistível. O que

mas sobre ensinar e explorar novas possibilidades para estudantes e para ele mes-

Nick estava procurando? Eu tentei responder naquela época e não obtive nenhu-

mo como diretor. Todo o grupo se tornou um workshop de laboratório de cinema.

ma resposta satisfatória, mas o fato de que eu deveria desafiar minha mente para

Lições foram gravadas e mais tarde transcritas por Susan – esposa de Nick – em

atingir um outro nível de raciocínio já era uma grande recompensa para minha

seu livro I was Interrupted: Nicholas Ray on Making Movies .

jornada pessoal. Trabalhar com Nick me deu a confiança que antes eu não tinha,

2

Nick esperava que todo estudante se comprometesse a fazer o melhor de si, e

não apenas para explorar a mim mesmo, mas para projetar minha descoberta aos

esta foi uma importante força propulsora para qualquer coisa que fosse realizada

outros que estavam ao meu redor. Nick é bem conhecido como diretor de cinema

mais tarde. Desafiar era uma necessidade para e se dar o salto para o nível su-

e não como professor, o que é injusto, porque ele tinha a estranha habilidade de

perior. Eu fiz o melhor para quebrar todas as barreiras, busquei atingir completa

entender a psicologia humana e sabia como instigar os alunos a obter o melhor

franqueza e ter contato com o meu eu mais interior. Eu achei os seus comentá-

deles. Ele era um investigador na arte e na vida, e ensinou com amor tudo o que

rios, ao final de todo trabalho – cena, improvisação de monólogo ou o que fosse

ele pôde dar e nunca falou ex cathedra.

–, feitos pelos alunos, muito fascinante: ele podia ver o que o olho comum não

Nick ensinou no instituto na primavera de 1977 e novamente no outono de 1977, após um intervalo no verão na Universidade de Nova York (NYU). Um rumor

2. RAY, Nicholas. I Was Interrupted, Nicholas Ray On Making Movies. Introdução Susan

foi espalhado de que ele estava lecionando novamente no instituto e mais estu-

Ray. University of California Press: Berkeley, 1993.

dantes estavam interessados em fazer o seu curso: o horário original de 8 horas

272

273


semanais (já dobrado em comparação às regulares 4 horas semanais de qualquer

Ele trabalhou comigo durante a preparação e durante as filmagens para maximizar

outra aula de atuação do instituto) foi esticado para 16 horas. Com apoio de Gerry

minha performance, e eu me senti como que guiado para uma outra realidade.

Bamman, Nick apresentou a técnica emprestada de Jerry Grotowski e também

Além disso, todos me deram uma contribuição pessoal, e foi um prazer fazer parte

pediu aos estudantes para desenvolverem um personagem criminoso como apre-

desse grupo. Nick havia criado uma nova família com todos os seus alunos.

sentação final. Mais recursos estavam disponíveis, como uma câmera 16mm com mais recursos de iluminação, além da câmera de vídeo usada pela turma da última primavera. Eu estava mais intrigado e fascinado com todo o conjunto, e constante-

***

mente me perguntava o que eu deveria fazer para viver cabalmente aquela experiência. Eu assisti, ouvi e pensei sobre tudo o que acontecia, e sentia que sempre

A memória daquela experiência ainda é viva após muitos anos, e em três dias eu

queria mais. Eu estava feliz e assustado ao mesmo tempo, porque eu tinha medo

aprendi o que eu nunca havia aprendido em tudo o que eu havia feito em atua-

de não estar apto a chegar onde eu queria ir. Nick era novamente o capitão dessa

ções anteriores. Mas além disso, eu senti que não era apenas uma experiência

jornada, novamente pedindo aos alunos para atravessarem a ponte em direção à

de atuação, mas um desafio de atingir a parte mais interior de mim mesmo, para

abertura de nossas almas, e quando ele notava que sua mensagem não era compre-

levar adiante minha jornada de vida e, também, descobrir meu lado mais fraco e

endida, ele se envolvia pessoalmente, como quando ele deu seu monólogo seguindo

mais obscuro, consistido de raiva, ressentimento e fúria. A gravação da confissão

a narração de suas próprias experiências pessoais. Essa abertura sem hesitação

do infanticídio se tornou um processo de cura pessoal, em que Nick era o mestre

era muito incomum para um professor e era muito inspiradora para meu futuro

de cerimônias. Bill Krohn, correspondente do Cahiers du Cinéma, que estava no

trabalho. Na verdade, me ajudou com o meu monólogo, que foi bem recebido por

set de filmagens naquela noite, em um rascunho que me dera, escreveu que após

Nick, de quem eu aprendi que todos devem trabalhar com suas próprias emoções

filmar vinte tomadas, Nick, exausto porém triunfante, disse: “Imprimam todas!”

pessoais e saber como lidar com isto em qualquer situação de trabalho.

Bill disse:

No fim do semestre, Nick um dia veio a mim com um livro em suas mãos

“Apesar da crueza das emoções evocadas pelo ator e pelo diretor, eu tenho a

e me pediu para ler as primeiras três páginas e lhe dizer se eu gostaria de fazer

impressão de que o quê eu estive assistindo foi exercício de uma técnica esmerada,

aquele personagem, e ele seria o diretor. Eu não podia acreditar naquela oferta:

tal o pico de perfeição que os técnicos puderam dispensar, com a aura quase reli-

Nick nunca havia feito nenhum pedido a ninguém da classe, ele nunca dirigia

giosa que envolvia o Método, quando as pessoas começaram a usá-lo nas décadas

alunos, apenas discutia o material apresentado por eles. Então eu estava ansioso

de 1940 e 1950.”

e intrigado com aquilo. O livro intitulado Marco, Nick explicou, era uma cópia

Quando mais tarde Bill entrevistava Nick sobre minha performance 3:

gratuita recebida de um antigo amigo, Curtis Bill Pepper, que escreveu o romance

“É possível que eu estivesse confundindo o que o personagem estava expe-

baseado em um fato real acontecido em Roma na década de 1960. O pai de um

rienciando com o que o ator estava experienciando. Parecia um ataque histérico

filho com deficiência congênita, causada por remédios com talidomida tomados

acontecendo na frente dos meus olhos...”

pela mãe durante a gestação, incapaz de lidar com essa tragédia, decidiu jogar

…Nick respondeu:

o recém-nascido no Rio Tibre e se entregou à polícia. Eu faria o personagem?

“Mas não era. Se tivesse sido, ele estaria no controle. Como eu vejo em alguns

Eu não poderia pedir nada melhor que isso: uma história que me era familiar,

exercícios, pela maneira que alguns professores ensinam, o ator fica inativo por

um personagem forte para minha tarefa de “ser um criminoso” e dirigida pes-

seis horas – isso irá arruinar um dia inteiro de filmagem. Você deve saber que

soalmente por Nick. Eu fiquei muito entusiasmado, era um sonho se tornando

diabos você está fazendo.”

realidade. Eu comecei a trabalhar imediatamente, devorando todo o livro que Nick gentilmente me deu.

E no fim daquela noite Nick me disse: “Vá para casa, descanse. Você se sentirá melhor amanhã”.

A doença de Nick não era compatível com sua resiliência em lutar contra ela. Ele estava sempre ativo e comprometido em ensinar até o fim. As filmagens de

3. KROHN, Bill. “Rencontre avec Nicholas Ray”. em Cahiers du Cinéma / Petit Journal,

Marco foram feitas em três dias e tinham, definitivamente, a assinatura de Nick.

maio 1978, p. 288.

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*** Uns vinte anos mais tarde, eu estava na Amazônia peruana participando de uma cerimônia de ayahuasca. Uma jovem universitária da costa leste, ansiosa por realizar seu projeto de pesquisa, após beber a poderosa bebida, dolorosamente se entusiasmou, e o curandeiro sabiamente a guiou através de uma jornada espiritual. A memória das filmagens de Marco se tornaram vivas para mim, e eu percebi uma forte conexão entre os dois eventos e identifiquei, novamente, Nick como mestre de cerimônias. A maior diferença era que eu sempre estava ciente de tudo o que estava acontecendo, seguindo as orientações de Nick, enquanto a garota, na manhã seguinte, tinha uma vaga memória de sua enorme experiência.

secundárias no Bronx e depois no Brooklyn. Agora eu sou professor associado ao Departamento de Biologia na Faculdade Comunitária do Bronx [Bronx Community College], uma das 23 faculdades e instituições da Universidade da Cidade de Nova York [Colleges and Institutions of the City University of New York - CUNY]. Ser professor pode ser uma grande experiência: eu sou constantemente atualizado com o que a nova geração pensa sobre a vida. Eu penso sobre Nick muito frequentemente, porque eu me pego do mesmo lado da cerca onde conheci Nick: em frente a um público que quer aprender, e eu espero ser bem-sucedido e conseguir passar o que eles precisam. Então eu penso na obra de Haim Ginott Teacher and Child [professsor e criança]. Eu cheguei a uma conclusão assustadora: eu sou o elemento decisivo em uma sala de aula. Isso é, é meu humor do dia que faz o clima. Como professor, eu possuo um tremendo poder de fazer a vida de uma criança miserável ou alegre. Pode ser

*** Eu não segui minha carreira de ator como eu originalmente pretendia, e frequentemente me arrependo por isso. O que sobrou é o real contentamento por ter podido trabalhar com Nick e explorar minha capacidade como ator e como investigador. Imediatamente depois, eu me matriculei nas aulas de Lee Strasberg, mas ainda

uma ferramenta de tortura ou um instrumento de inspiração. Eu posso humilhar ou divertir, machucar ou curar. Em todas as situações, é minha responsabilidade decidir se uma crise será superada e uma criança humanizada ou desumanizada. Nick era para mim um instrumento de inspiração e eu estou fazendo o meu melhor, com a esperança de que meus alunos um dia digam o mesmo de mim.

que Lee fosse um professor extraordinário, eu não tive a oportunidade de vivenciar a mesma coisa que vivenciara anteriormente com Nick. Muito tem sido dito sobre a vida de Nick e eu, pessoalmente, ouvi diferentes opiniões, mas independentemente dessa controvérsia, Nick continuará sendo o “professor” que deu todo o seu conhecimento para os alunos, de modo que eles pudessem criar sua própria arte. Qual foi sua influência na minha vida? Ele era realmente um professor generoso e honesto: eu aprendi a importância do comprometimento, o valor do profissionalismo; eu apreciava ser audacioso e tentar possibilidades e investigar as remotas partes da psique que sempre estão demarcaradas por barreiras. Eu me perguntava se eu poderia atingir isto sem ele, e a única resposta é que eu não sei e isto não importa, o que importa é que eu o fiz. Nick vivia no limite, e às vezes eu gostaria que eu estivesse mais no limite como ele. Eu aprendi com ele que a vida é uma jornada que merece ser explorada de todos os pontos de vista. Eu tentava identificar similaridades entre mim e Nick, e eu descobri que nós certamente tínhamos uma coisa em comum: ambos nos tornamos professores na parte tardia de nossas vidas. Eu não sei se Nick alguma vez pensou em se tornar professor, mas as lições gravadas e transcritas no livro de Susan I Was Interrupted são extraordinárias. Eu sempre odiei dar aulas quando eu era jovem, mas, para minha surpresa, acabei por lecionar ciência, primeiramente em espinhosas escolas

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Nick’s movies, a casa da beleza e da convulsão

tarde, por meio da natureza selvagem, bárbara, esplêndida e cruel. Era amado pelos diretores da Nouvelle Vague porque conciliava passado e futuro, classicismo e modernidade, com dificuldade, confusão, dor: estações de uma vida desordenada

Toni D’Angela

1

que não se pode reconduzir sistematicamente à ordem. Condenado a não rodar mais filmes, a morrer deles. Até a colocar em cena, para rodar, sua própria morte (Um filme para Nick [Lightning Over Water, 1980]). Grande loser, cineasta maudit. É difícil encontrar um sistema em seu cinema, salvo

Nick Ray talvez não retornou mais à casa, à casa do cinema. Mas essa casa ainda

se o forçamos, mas não parece ser o caso de sujeitá-lo a isso: em vida já padeceu

tem seu cheiro, conserva seus traços, custodia com ciúmes sua juventude ator-

muito nesse aspecto. Cinema descontínuo, ou melhor, desarticulado, mas por

mentada, seu incontrolável desejo pela pureza e inocência. Contrassensos que já

vocação e escolha. Mais próximo da liberdade de um Rosselini e não da lúcida e

marcam seus primeiros filmes, consagrados à febril procura pela forma pura e

implacável firmeza de um Lang. Como em Hawks, os filmes de Ray falam sobre

ingênua da liberdade por meio do uso do primeiro plano que isola os personagens

a amizade, mas não são classicamente lineares e claros.

de armadilhas e imoralidades de um mundo corrompido e à beira da catástrofe.

2

Em última análise, não há um “sistema”. Há obsessões e constância, sejam

Uma narrativa afetiva centrada no feeling, o sentimento de si, a afeição que às

figurativas ou temáticas: o amor entre os jovens, o choque de gerações, a im-

vezes pode, sozinha, abrir-se ao outro, como no caso de Amarga esperança (They

paciência da juventude, a tendência a se querer uma casa, um refúgio, após ter

Live by Night, 1948) e de Cinzas que queimam (On Dangerous Ground, 1951);

perdido ou abandonado o nativo, a inocência lírica e a violência trágica, a luta

e outras permanecem fechadas em si mesmas: No silêncio da noite (In a Lonely

entre a escuridão e a luz, uma montagem que não é procurada, uma narrativa

Place, 1950). Posteriormente, na última fase de sua carreira atormentada, Ray

muito livre e pouco lógica, cores barrocas e, às vezes, movimentos de câmera

iria se entregar à liberdade de expressão narrativa e figurativa do tipo disjuntivo

oblíquos e anômalos, apontando para un cinema que tende a se tornar desorgâ-

para afirmar uma visão primitiva e inocente: Jornada tétrica (Wind Across the

3

nico. É a imperfeição sobre a qual Jacques Rivette falava em seu artigo de 1953.

Everglades, 1958) e Sangue sobre a neve (The Savage Innocents, 1960). Todavia,

Ray é um artista romântico, que exige somente o amor absoluto, como aquele dos

passando de uma fase intermediária, na qual os planos se expandem para compo-

cinéfilos: Nicholas Ray é o cinema, dizia Jean-Luc Godard. Amado pelos jovens

sições de conjuntos baseadas na dualidade (o choque entre pai e filho ou o choque

turcos por seu desconforto vivenciado no sistema de estúdios hollywoodiano,

entre comunidades abertas e fechadas), acompanhadas de movimentos de câmera

por sua inquietação, por sua desesperada e extrema busca da beleza, inicialmente

atípicos (Johnny Guitar [1954], Juventude transviada [Rebel Without a Cause, 1955],

por meio da paisagem cotidiana da metrópole violenta e da família caótica e, mais

Delírio de locura [Bigger Than Life, 1956]). Sempre equilibrando imagem-afeição, imagem-ação e imagem-pulsão, reescreve junto a Fuller, Losey e Kazan (com

1. Originalmente publicado sob o título “Nick’s Movies: La Casa della Belleza e della Convulsione”, na revista Shangri-la: Derivas e Ficciones Aparte, nº 14-15. Santander,

esses útimos dois, Ray teve um relacionamento artístico e pessoal), o cinema de comportamento norte-americano, o classicismo, no momento em que o excepcio-

Espanha, dezembro de 2011. Tradução de Letícia Maione. Este texto, por sua extensão, é

nalismo norte-americano se tornava somente um fantasma, transitando entre a

apresentado aqui em versão editada. (N.E.)

violência de um Elia Kazan, que reestrutura o esquema sensório-motor do classi-

2. A aproximação a Rossellini remonta à década de 1950 e é encontrada em críticos de di-

cismo, e aproximando-se ao naturalismo de Losey, no qual a violência objetiva se

versas formações e estilos: o entusiasta Éric Rohmer na Cahiers e o prudente Roger Tailleur

transforma sempre em mais emotiva e interior, até remontar, finalmente, à origem

na Positif. Ver Rohmer, “Ou bien... ou bien”, Cahiers du Cinéma, nº 69, março de 1957; “Les

pura e selvagem, às fontes incontaminadas do mundo originário e perdido deste

adolescents”, Positif, nº 22, março de 1957. Rohmer, falando de Delírio de loucura (Bigger Than Life, 1956), identifica as afinidades no tom usado para mostrar a vida cotidiana, a

universo de ponta-cabeça e à beira da explosão. 4

atenção às pequenas coisas, mais pelos olhares do que por gestos mais ostensivos. Enquanto Tailleur, sempre sobre o filme com Mason, fala de precisão quase clínica ao mostrar a evo-

4. Sobre o relacionamento artístico e pessoal entre Kazan, Losey e Ray ver: Patrick McGilligan,

lução do personagem. (N.A.)

Nicholas Ray: The Glorious Failure of an American Director. Nova York, HarperCollins,

3. Jacques Rivette, “De l’invention”, Cahiers du Cinéma, n° 27, outubro de 1953. (N.A.)

2011. (N.A.)

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279


(...)

doméstico e familiar com seus cuidados, uma vez que, como escreveu Gaston

(O retorno impossível)

Bachelard, 5 a dona de casa desperta os móveis. Um território da alma que o corpo

Paixão de bravo (The Lusty Men, 1952) é o filme de rodeio com Bob Mitchun

de Mitchum, muitas vezes batido na terra, pode somente desejar ou imaginar,

que, ao contrário de Robert Ryan, não pode retornar à casa, ao seu ninho, ao es-

fechado na própria solidão, presa da paixão, explosões e exploits com os quais

conderijo de uma vida errante. Sob a casa, no espaço entre o chão e a terra nua,

procura se sentir vivo, se não em casa.

no ângulo de uma intimidade sonhada, uma nostalgia cravada na pedra como um marisco. Intimidade fugitiva: a casa não é mais sua e de seus pais. Depois do

(...)

enésimo rodeio, do enésimo espetáculo que expõe ao ridículo e de forma cômica

(Em fuga da catástrofe)

a epopeia dos pioneiros que domavam animais e paisagens ásperas para cultivar

O deserto, o pântano, o gelo são ainda os mundos que, nos últimos filmes

e construir um sonho, criar raízes, Mitchum retorna àquelas origens, agora ima-

dos anos 1950, atravessam o diretor para ainda ver a beleza, fugindo da violência

ginárias e enterradas sob a antiga casa paterna. A balada crepuscular do velho

e das luzes da cidade. Entre Jornada tétrica e Sangue sobre a neve, lagoas e neve,

campeão de rodeio, inscrita e anunciada num espaço espectral, a arena vazia

Ray grava A bela do bas-fond (Party Girl, 1958), uma obra de arte do barroquismo:

e atravessada do vento que levanta velhas folhas de jornal, é uma das maiores

o barroco é a arte de um tempo que perdeu seu centro (Debord). Ambientado na

fantasias líricas do cinema de Ray, mas também uma verdadeira incisão capaz

Chicago dos anos 1930, o filme é reproduzido sob a tensão entre cores brilhantes

de criar ressonâncias infinitas. Depois da queda, Mitchum se retrai num canto,

e sombras que velam, particularmente, o rosto reluzente do advogado do diabo,

recolhe-se na solidão, recriando, na imaginação, o germe, o esboço de uma casa,

do Lúcifer redimido e interpretado por Robert Taylor. É o último filme realizado

a casa sonhada não só por Bowie e Keechie, mas pelo policial Jim Wilson. É a casa

com uma major. Coloca-se em cena a Chicago da grande arquitetura, da grande

representada na pintura pendurada na sala de visitas de Ida Lupino. Pobre, este

depressão, da violência das gangues. Esplendor e miséria, beleza e convulsão, at-

refúgio é a casa dos sonhos, é a paz consigo mesmo. Sozinho, errante, cansado,

mosfera alegre e autodestruição, amantes atormentados por um ambiente hostil e

vacilante, o campeão de rodeio em declínio, naquele entremundo pode se sentir

cruel. São as obsessões do cinema de Ray, é a constelação dentro da qual se move

à vontade, em casa, atingir a invenção de sua infância. Talvez uma infância in-

a vida do advogado, um outro alterego do diretor. Como Ray está comprometido

ventada, ajustada, idealizada, mas sempre uma fonte a qual recorrer e onde obter

no genêro e no sistema de estúdio, o advogado é incluído nos negócios “sujos” do

força e respiro. Em contato com a terra, transforma-se num feliz sonhador, adquire

gângster Lee J. Cobb. Porém, ambos conservam, a despeito das circunstâncias

abstração e profundidade, que o arrebatam ao duro tecido de uma realidade vazia.

profissionais, um estilo reconhecível que, finalmente, libera-se para que se expe-

Mitchum se volta para o passado, faz-se pequeno, para ainda tocar com a mão a

rimente a emoção do espaço branco e selvagem de Sangue sobre a neve, enquanto

poeira da infância, a vida de sonho, um passado, um abrigo que ressurge no pre-

deixa o advogado finalmente voltar para casa e se apaziguar.

sente versando sobre ele nostalgia e tristeza.

Eis porque A bela do bas-fond é um filme que recapitula os temas profundos

A felicidade está agarrada àquela pistola, brinquedo eviscerado, uma coisa

de sua obra, tanto os visuais quanto os narrativos, e a situação particular do diretor

que ainda possui um mistério, como o gibi escondido entre as tábuas de madeira.

em Hollywood. Um filme que marca uma cessação na carreira de Ray convocan-

Um corpo maltrapilho, doente e deformado toca a alma dos ângulos, dos jogos, das

do os gêneros hollywoodianos (noir, melodrama, musical), redirecionados do

viagens imaginárias. Um infinito recluso num pequeno espaço.

interno do páthos, inerente ao discurso de autor do diretor, e mantendo juntos

A casa, ao fundo, em Paixão de bravo e nos outros filmes de Ray, é sempre

classicismo e modernidade, tradições de gênero e autoria, numa dialética que é

aquela a qual se retorna infinitas vezes, aquela que se sonha. Sonha-se em regres-

uma cicatriz aberta, sempre prestes a se fragmentar e a sangrar (Jornada tétrica

sar. O retorno é um sonho. Sonho de intimidade, calor, harmonia, nativa confiança

e Sangue sobre a neve). Carlos Losilla o definiu bem em seu livro sobre o cinema

no mundo, um mundo que ainda não é frio e hostil, ameaçador e indiferente, feito

hollywoodiano.

de brutalidade e de casas ambulantes. O mundo dos rodeios, do qual Mitchum procura escapar entrando num escritório em pleno campo perdido, no descanso do sonho; e, mais tarde, ao conquistar Susan Hayward, recriando um arranjo

280

5. Gaston Bachelard, La poetica dello spazio, Bari, Dedalo, 1975, p. 92.

281


Por um lado, a cor, o CinemaScope, a imagem violenta e desencadeada do

Um erro contra a comunidade é um erro contra a natureza. Mesmo as focas aba-

vermelho e verde, do preto e dourado. (...) Além disso, os personagens frá-

tidas têm direito a desfrutar do respeito dos caçadores, que, antes de comê-las,

geis e atormentados, a formação lenta e dolorosa de um casal como precária

devem cuidar de suas almas.

alternativa a uma estrutura social opressiva e cruel. (...) Ray transforma,

Nicholas Ray, como Rimbaud, está fugindo da catástrofe representada em

modela o material que tem nas mãos, quase sempre a partir de gêneros e

Juventude transviada. Esta saison en enfer é o anseio desesperado e apaixonado

códigos muito definidos, e o converte numa mistura estranha, por outro

de se salvar de um mundo indigno feito de chapéus com penas de aves, de fuzis

lado perfeitamente harmônica, entre as exigências do modelo clássico e as

e de um sórdido cotidiano, que tornam impossível para o homem se sentir em

variações que deseja introduzir.

casa. Esses dois filmes selvagens são a expressão mais elevada do sofrimento ra-

6

dical, da negação, da revolta do coração, até mesmo adolescente, vibrante e febril, Jornada tétrica e Sangue sobre a neve são filmes singulares e inéditos, quase experimentais no contexto da produção hollywoodiana. Filmes desarticulados e

do desconforto, de um temperamento artístico romântico que soube desafiar até mesmo o isolamento.

livres, certamente conturbados no trabalho pelas divergências com os produtores

A civilização dos brancos é tenebrosa e obscura. A vila tem cores escuras

e outras dificuldades que preenchem o caminho heroico de Ray. Mas a peculiarida-

e os policiais que perseguem Inuk (Anthony Quinn) estão vestidos de preto, en-

de, o excesso e a extravagância dessas obras dependem somente de seu autor, que

quanto os planos contemplativos e imóveis, poderosos, são abertos sob o branco

inverte o domínio de um logos degenerado numa lógica do comércio (capitalismo)

luminoso e inocente. É o espaço de um anomos, o atraso de uma lei incondicional,

e domestica a natureza — e, com essa, também a natureza humana — até depredá-la.

a lei da hospitalidade que está acima de todas as outras, leis lógicas e leis jurídi-

Com enquadramentos sublimes, o olhar de Ray se faz contemplar a maravilha e o

cas dos brancos, as leis escritas que julgam Inuk culpado, inocente segundo a lei

estupor pela crueldade e mostra uma natureza ainda incontaminada.

da hospitalidade, que é a lei da terra do gelo. Ao mesmo tempo, as leis do livro da

São filmes que têm um fraco concatenamento narrativo. Não são lineares,

hospitalidade, sobre as quais fala o policial Peter O’Toole, são o suporte do verda-

porque a forma acompanha o conteúdo, a força das paisagens, a insensatez de um

deiro Sobrenatural. As divindades de Inuk são imanentes, as leis dos brancos são

caos rebelde ao kosmos, a uma ordem que polui e contamina. Uma lógica que tem

transcendentes, abstratas, desencarnadas, sem vínculos com a realidade empírica

medo do ilimitado, porque não tem forma, como esses filmes excessivos que não

e, portanto, injustas e violentas. A lei de Inuk é a paixão do real, a dos brancos

têm medo do medo.

é apenas uma montagem do fingimento que Ray, em seu filme branco, purifica por meio da subtração da luz do gelo, a luz branca que é forma pura, como em

(...)

Malevich. É a diferença entre o lugar, o espaço e o que ocorre no espaço. Uma

(Um artista selvagem)

diferença mínima, porque as leis da natureza são as leis dos homens, e caçadores

Jornada tétrica e Sangue sobre a neve são pertubadores, porque ameaçam a

tendem a não se distinguir no fundo branco. A esta mínima e silenciosa diferença,

própria possibilidade de submeter à dependência de uma composição ordenada

entre Inuk e o gelo, contrapõe-se a destruição máxima anunciada pelo som de

e linear a tensão e o conflito, a contradição da vida ainda não adestrada e enredada.

armas e jukebox do branco.

O instruído Christopher Plummer, apaixonado pela natureza apenas por

Sangue sobre a neve é uma fábula sobre as origens e as raízes, e o rela-

meio da mediação da cultura, descobre o fascínio extremo e violento de uma vida

cionamento entre o homem, a natureza e a história, como Os aventureiros do

selvagem, retornando, enfim, à civilização, à crueldade da razão, mas somente

Pacífico (Donovan’s Reef, 1963), de John Ford, e O profundo desejo dos deuses

após o rito de passagem da travessia do pântano, ao longo de um coração de trevas,

(Kamigami no Fukaki Yokubo, 1968), de Shôhei Imamura. Com um Tony Quinn,

no desejo de conciliar o mundo e o outro. Em Sangue sobre a neve, a natureza e a

cuja postura gestual, os saltos e a potência são já semânticas, sobretudo em relação

sociedade quase coincidem. A natureza do gelo branco impõe condições restritivas

às poses de comerciantes e sacerdotes. Um filme de campos longos e céus, como

ao comportamento humano. Os limites sociais são aqueles criados pela natureza.

Jornada tétrica e, depois, Rei dos reis (King of Kings, 1961). Um conto feito de gestos bruscos nos quais Ray está sempre atento aos ritos e aos gestos (saudações, danças

6. Carlos Losilla, La invención de Hollywood. Barcelona: Paidos, 2003, pp. 213-15.

282

e formas de caça) que compõem o enredo da vida cotidiana, como em Rossellini.

283


O gesto é o significado, é o que se está pronto para fazer na extensão branca do

Nicholas Ray e o Film Noir

infinito quando o outro vem ao encontro: acolhê-lo ou submetê-lo? A dança dos esquimós é sintomática: é tanto agressiva quanto sensual, uma mimese da natureza,

Ely Azeredo

em que o equilíbrio dinâmico é sempre uma tensão. É a dialética de um filme reconciliado e esplêndido, a última grande ilusão. Rei dos reis, o filme sucessor, é de fato notável pela intensidade de primeiros planos, cores, curvatura dramatúrgica. Será o sexto sabotado e excluído pelos produtores.

“Nicholas Ray é o cinema”, diria Godard na Cahiers du Cinéma, o templo mais

Quanto ao último, o superespetáculo 55 dias em Pequim (55 Days at Peking, 1963),

exaltado do “cinema de autor”. Quando Ray estreou na direção, em 1948 — quando

o diretor teve que abandonar o set devido a uma doença cardíaca e dois terços das

nem a revista-mito existia —, o cinema americano vivia um novo apogeu.

cenas montadas na versão final foram filmadas por um assistente... Até o experi-

Tal apogeu se anuncia em 1923, com Ouro e maldição (Greed), de Eric

mental We Can’t Go Home Again (1973-76), que não foi possível ser completado

von Stroheim, concretiza-se no período entre 1923/1930 — com obras-primas de

e que a esposa de Ray, Susan, num ato de amor, finalmente concluiu e restaurou,

Chaplin, Keaton, King Vidor, entre outros gigantes —, supera o abalo da instaura-

na versão apresentada no Festival de Cinema de Veneza de 2011. Nick Ray estava

ção do filme “100% falado”, chega à Idade de Ouro nas décadas de 1930 e 1940;

de volta a sua casa.

e ainda produz safras dadivosas em 1950 e 1951. Depois sofre com as listas negras do macartismo, com o avanço da televisão e, mais além, com o “crepúsculo dos deuses” (Ford, Wyler, Sternberg e tantos mais). Os fantasmas políticos da “caça às bruxas”, assanhados desde o início da guerra fria, materializam-se no ano de 1947 em Washington, quando a Comissão de Atividades Antiamericanas leva à prisão, “por desrespeito ao Congresso” (leia-se: recusa à delação), dez personalidades de Hollywood, entre as quais os responsáveis pelo inigualável Rancor (Crossfire, 1947), o diretor Edward Dmytryk e o roteirista Adrian Scott. Nicholas Ray, inscrito no Partido Comunista quando fazia teatro de vanguarda em Nova York, escapou de ser convocado pela Inquisição parlamentar graças à sua atividade na RKO sob a blindagem do poder do excêntrico magnata Howard Hughes, então à frente da produtora. Temerosa de ficar mal com Washington e de perder as plateias crentes no bicho-papão esquerdista, Hollywood encorajou o “blacklisting”. Cerca de trezentos profissionais de cinema entraram para a lista negra — muitos por amizade com os ditos “vermelhos”. A censura dos estúdios se tornou neurótica, engavetando qualquer projeto suspeito de antiamericanismo ou simplesmente sensível a problemas sociais. Tal atmosfera vai coincidir com a eclosão do Film Noir na década de 1940, entrando pela década de 1950 — período de florescimento da obra de Ray, iniciada com Amarga esperança (They Live by Night, 1948). Seu último grande filme, Delírio de loucura (Bigger Than Life, 1956), ainda na órbita noir, data de 1956. Sob pressão, o cineasta admitiu um “final feliz”. Uma análise de James Naremore (no livro More Than Night) indica que os críticos franceses que cunharam a expressão Film Noir, na década de 1940, poderiam concordar em identificá-la como uma forma de modernismo na mais

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popular das artes. A popularização dessa vertente coincidiu com o clima psicoló-

Impossível relacionar a modesta produção “B” que proporcionou a primeira

gico difuso nos Estados Unidos, que se envolvera pela primeira vez numa guerra

direção a Nicholas Ray, Amarga esperança, com Cidadão Kane (Citizen Kane,

mundial. Daí a sintonia de gêneros populares do cinema com a ficção criminal

1941), de Orson Welles, que trabalhou com uma liberdade de criação total, nunca

de Dashiell Hammett (O falcão maltês [The Maltese Falcon, 1941]) e Raymond

proporcionada antes a um cineasta de Hollywood. Mas há elos curiosos entre as

Chandler (À beira do abismo [The Big Sleep, 1946]) e dos consagrados a seguir —

duas realizações de estreia — ambas sob o selo da RKO. Kane reuniu um elenco

de W.R. Burnett (O segredo das joias [The Asphalt Jungle, 1950]) a Horace McCoy

estreante em cinema, embora bem-sucedido na Broadway. O Film Noir de Ray

(A noite dos desesperados [They Shoot Horses, Don’t They?, 1969]), cujos livros

contou com entusiástico apoio e total confiança do produtor John Houseman, que

elaboravam protagonistas assassinos, psicóticos, autoridades corruptas, mulheres

atuara na mesma função como membro da equipe da Mercury, o grupo wellesiano

fatais — enfim, um universo sem sintonia com os sinais do trânsito social e com os

originário do teatro e do rádio. (Ray também fizera o percurso teatro-rádio-cinema.)

sacrossantos laços de família.

Amarga esperança, com protagonistas novatos e coadjuvantes quase desconheci-

Mas o Film Noir seria pouco mais do que um manual de temas ficcionais

dos, sofreria tremendo fracasso de bilheteria; e Cidadão Kane tampouco obteve

se não encontrasse formas audiovisuais e temporais próprias, um estilo e uma

sucesso comercial. Se Kane foi considerado o melhor filme de 1941 pela crítica

iluminação divergente das luzes do star system, que vendiam como saquinhos

de Nova York, a estreia de Ray só recebeu críticas justas (algumas entusiásticas)

de pipoca os corações e mentes dos protagonistas. O mistério, não necessaria-

em Paris e Londres. Os dois filmes seriam recolhidos aos depósitos da RKO e só

mente vinculado a uma trama policial, o suspense das relações indefinidas en-

muito tempo depois deixariam de ser considerados “malditos”. Apesar de tudo,

tre personagens, e o enigma existencial dos protagonistas privilegiam, então, a

com o passar dos anos, Welles e Ray iriam coincidir em outro ponto: a convicção

iluminação low-key, graduando a percepção visual das expressões fisionômicas,

de que deveriam tentar a sorte no cinema europeu. Welles conseguiu realizar os

assim como a identificação dos ambientes pela plateia. No clima noir de obras

brilhantes Otelo (Othello, 1952) e Falstaff (Chimes at Midnight, 1965). Mas Ray não

como No silêncio da noite (In a Lonely Place, 1950), Amarga esperança, Juventude

conseguiu voltar ao nível de sua consagração americana.

transviada (Rebel Without a Cause, 1955), Nicholas Ray se esmera na criação de

Nicholas Ray levou muito de seu aprendizado no teatro para o cinema, es-

uma mise-en-scène distante de qualquer naturalismo, que afasta o espectador do

pecialmente na seleção e preparação dos atores. Mais importantes, porém, foram

tradicional e o deixa mais sensível às ansiedades, à solidão e às dores dos perso-

as experiências pessoais que amealhou no dia a dia e nos encontros com artistas

nagens. E propicia a compreensão do cinema desse autor, que se identificou com

de várias tendências. A arquitetura ganhou um espaço importantíssimo, decisi-

a solidão e a vulnerabilidade de personagens vividos por atores como James Dean,

vo, a partir de sua relação com outro “rebelde”, Frank Lloyd Wright. O arquiteto

Humphrey Bogart, Gloria Grahame, James Mason, Ida Lupino, Robert Ryan, a fim

convidou-o, em 1933, para integrar a Taliesin Fellowship, entidade artística e edu-

de “dar um sentido ao caos e ao isolamento” que sentia em sua própria vida.

cacional que fundou a fim de universalizar sua visão (utópica) de uma apaixonada

“O ‘espelho escuro’ do Film Noir cria uma ambiência visualmente instável,

e provocativa concepção de vida, na qual a arquitetura — “mãe das artes” — seria

na qual nenhum personagem tem uma firme base moral a partir da qual possa

a expressão mais apropriada. Sua filosofia, aberta às outras artes, propunha uma

operar”, como se observa no ensaio Some Visual Motifs of Film Noir [Alguns mo-

nova relação entre criador e espectador. Um conflito de opiniões encerrou a relação

tivos visuais do Film Noir], de Place e Peterson. “Todas as tentativas de encon-

com Wright, mas Ray manteve a convicção de que o sentido de arquitetura “pode

trar segurança são cortadas pela fotografia e pela mise-en-scène antitradicionais.

ser aplicado a uma peça, a uma partitura, a um estilo de vida”.

O certo e o errado se tornam relativos, sujeitos às mesmas distorções criadas na

Quando surgiu o CinemaScope, visto estritamente como trunfo de marketing

iluminação e no trabalho de câmera. Valores morais, como identidades que entram

e inovação técnica pelos grandes estúdios, Ray se encantou com sua horizon-

e saem das sombras, estão frequentemente mudando, e devem ser redefinidos a

talidade e com sua área de construção artística. Esse namoro, evidente até em

cada momento. E nos mais notáveis exemplos do Film Noir, enquanto as narrativas

trabalhos não eletivos, secundaríssimos, como Sangue ardente (Hot Blood, 1955)

derivam para a confusão e a irrelevância, a precária relação de cada personagem

e A bela do bas-fond (Party Girl, 1958), chega ao êxtase estético/sensorial logo

com o mundo e com as pessoas (e consigo próprio e suas emoções) torna-se uma

em sua primeira experiência com a técnica, Juventude transviada, ainda emer-

função do estilo visual.”

gente do Film Noir. Também foi apontado em Ray um “feeling” para o equilíbrio

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arquitetural na construção de personagens e de mise-en-scène, “fundamental para as quase místicas simetrias e equivalências entre parceiros heterossexuais e entre

A Hollywood depois da Era de Ouro: uma brilhante decadência

antagonistas masculinos em muitos de seus principais filmes”, salienta o critico Jonathan Rosenbaum.

Fabián Núñez

Cinco anos antes de Janela indiscreta (Rear Window, 1954), um prodígio “espacial” de Alfred Hitchcock, a arquitetura de Ray assombrou em outra cenografia, propícia ao voyeurismo — a de No silêncio da noite, uma de suas obras-primas. Diga-se de passagem que a tensão deste filme guarda pontos de contato, na superfície da trama, com outro thriller de Hitchcock, Suspeita (Suspicion, 1941). A arquitetura de No silêncio da noite, ambientado em Hollywood, aproxima — dramática e eroticamente — os protagonistas vizinhos vividos por Humphrey Bogart (também

“Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude.” Dom Fabrizio Salina, príncipe de Falconeri, em O leopardo de Giuseppe Tomasi, príncipe de Lampedusa

fora da tela um macho man sarcástico e alérgico a autoridades) e Gloria Grahame. O violento Dixie Steele (Bogart) é um roteirista obscuro, que menospreza

Em 1948, quando Nicholas Ray dirige na RKO seu primeiro longa-metragem,

Hollywood, e é convidado para adaptar um livro que simplesmente se recusa a ler.

Amarga esperança (They Live by Night), a indústria cinematográfica estaduni-

Ao descobrir que uma recepcionista adora o livro, ele a convida para uma leitura

dense começava a sofrer agudas transformações. Podemos, grosso modo, resumir

noturna. A garota aparece morta. Ele é o principal suspeito. Uma nova vizinha,

tais mudanças em três fenômenos, que manifestam de modo exemplar como a

a solitária Laurel Gray (Grahame), que ele conhece apenas de “janela indiscre-

“fábrica de sonhos” californiana já não era mais a mesma: uma queda, cada vez

ta”, será seu álibi. É antológica a cena em que os dois se envolvem numa paquera

maior, de público nas salas de cinema; a quebra da verticalização da indústria pela

em tom “casual” quando interrogados pela polícia.

decisão da Suprema Corte e o macartismo, que varreu o meio cinematográfico e os

A feminilidade de Laurel deixa vulnerável a couraça de Dix e até o induz ao

Estados Unidos, provocando perda de talentos e de uma certa ousadia nos filmes.

trabalho. O filme tem momentos românticos, mas até nestes é angustiante o peso

A Segunda Guerra Mundial representou anos de “vacas gordas” para a indús-

do caráter possessivo do roteirista. Ray elabora à perfeição esse relacionamen-

tria cinematográfica estadunidense. Apesar da perda de alguns mercados externos

to entre “outsiders” da (então) Meca do Cinema: tenso, marcado pela insegurança

e do racionamento de insumos, como o da própria matéria-prima dessa indústria,

de ambos à sombra da investigação policial e (no que se refere a Dix) pela suspeita

ou seja, da película virgem 1 — o que provocou, por conseguinte, uma relativa dimi-

de que a mulher não acredita de fato em sua inocência.

nuição na quantidade de filmes produzidos —, as principais empresas, conhecidas

A violência do escritor é a de um homicida? Ray vê no protagonista seu pró-

como as “oito grandes”, 2 obtiveram um crescente aumento de lucros nesses duros

prio algoz e, sem manipulações sentimentais, leva o espectador a compartilhar

anos. Diferente de outros ramos da economia estadunidense, como a indústria

da humanidade dos amantes. Dix não precisa de um antagonista para destruir

automobilística, a atividade cinematográfica se manteve estável, de 1941 a 1945,

sua vida; sua violência é autodestrutiva. Não há confronto entre o Bem e o Mal.

ao se tornar — ou melhor dito, ao se manter — como o principal meio de entrete-

Nem qualquer resposta sobre o assassinato da recepcionista. Laurel será morta

nimento de massa num momento no qual havia poucas opções de lazer, ou seja,

pelo amante? Ao mesmo tempo que Laurel, a plateia chega à conclusão de que ele bem poderia matá-la. Uma informação extracinematográfica sobre o entrelaçamento da vida de Nicholas Ray com a de seus protagonistas: durante a filmagem de No silêncio da noite, ele e a esposa, Gloria Grahame, separaram-se sigilosamente (o divórcio ficaria para depois); e o cineasta, a pretexto de maior envolvimento com o trabalho, obteve da produção instalações para morar num dos camarins.

1. Lembremos que o filme virgem também era destinado a fins militares (fotografar e filmar as posições inimigas). No entanto, além disso, seu suporte, utilizado até então pela indústria, era o nitrato de celulose, cuja base química (o nitrato) é também usada na fabricação de explosivos (como a pólvora e a cordite). 2. As “oito grandes”, surgidas na virada dos anos 1920 aos 1930, com a fusão de várias empresas, são as majors (MGM, Warner Bros., 20th Century-Fox, Paramount e RKO) e as semi-majors ou minors (Universal, Columbia e United Artists).

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num período difícil, que por isso mesmo era ávido por diversão. Além disso, há

No entanto, atualmente, como bem comprovam as pesquisas sobre o período,

a imediata participação de Hollywood no esforço de guerra, seja produzindo filmes

o crescimento da televisão nos anos 1950 é o lado mais agudo de uma série de

de propaganda e de instrução para o Estado, inclusive com alguns notórios nomes

fatores. 5 Isso tanto é verdade que, antes mesmo do boom da televisão nos Estados

dessa indústria se engajando em departamentos fílmicos das Forças Armadas, 3

Unidos, Hollywood já estava amargando tal crise de público. 6 Em suma, a expan-

seja enviando suas estrelas para apresentações aos soldados nos acampamentos

são da indústria televisiva, que ocorre nos anos 1950, apenas acelerou — e muito

militares. Em 1946, o primeiro ano inteiro de paz, as “oito grandes” alcançam o

rápido, com certeza — um processo iniciado em 1947. Mas afinal o que ocorreu

máximo de lucros em toda a história da indústria. No entanto, os magnatas de

nesse imediato pós-guerra? Por que, cada vez mais, as pessoas passaram a ir, cada

Hollywood não poderiam prever a tormenta que viria logo em seguida, após os

vez menos, às salas de cinema? Antes de mais nada, conforme já afirmamos, não

faustosos anos de prosperidade do início dos anos 1940, que se seguiram aos cin-

existe uma resposta única para tal questão. Primeiramente, diferente do que ocorria

zentos anos da Depressão.

durante a guerra, esse público possuía diante de si um maior leque de opções de

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Tornou-se um senso comum acusar o advento da televisão comercial

lazer. Vários autores chamam a atenção para o forte aumento do entretenimento

como o principal fator dessa vertiginosa queda de público nas salas de exibição.

esportivo no pós-guerra. Estádios cada vez maiores e mais lotados são o anverso das salas de cinema vazias. O mesmo podemos afirmar de outras atividades do show business, como as apresentações musicais, que logo serão um filão nos

3. Citemos alguns exemplos: John Ford, mobilizado na Marinha na patente de comandante (equivalente ao nosso capitão de fragata), é designado chefe da unidade de fotografia da agência de inteligência Office of Strategic Services (OSS) e entre as suas produções está The Battle of Midway (1942). Depois da guerra, vai para a reserva no posto de contra-almirante.

programas televisivos. E, por último, o cinema se vê às voltas com a concorrência de uma indústria do lazer em plena expansão: o turismo. Sublinhamos que o cidadão estadunidense médio do pós-guerra sabe muito

Frank Capra, na patente de coronel do Exército, trabalha diretamente subordinado ao general

bem quais sãos seus valores. Como muito se escreveu, esse estadunidense que

George Marshall, chefe do Estado-Maior do departamento de guerra, e coordena a célebre

experimentou os dissabores da Depressão e participou dos horrores da guerra

série de propaganda Why We Fight. É também numa equipe fílmica do Exército, como

volta a seu lar com um forte apreço ao... lar. Ávido em realizar, por fim, o american

major da Army Signal Corps, que George Stevens atua como cinegrafista, participando nas

dream, esse estadunidense médio almeja a casa própria, deseja se casar e ter filhos,

campanhas da África, Sicília e Normandia, e filma o Dia D, a libertação de Paris, a tomada do “Ninho de Águia” (Kehlsteinhaus), esconderijo de Hitler em Berchtesgaden, no extremo sul da Alemanha, e a libertação do campo de trabalho de Düben e o campo de concentração

dedicando, por conseguinte, mais tempo à família e, por isso, ficando mais tempo em casa. Isso explica porque um entretenimento doméstico é um bem preciosíssimo

de Dachau. Depois do armistício, como tenente-coronel, é incumbido, pelos promotores do tribunal de Nuremberg, de voltar a esses dois lugares, para ajudar nas filmagens que coletariam evidências. É também na Army Signal Corps, como capitão, que John Huston

5. Essa crise de público do cinema é um fenômeno que ocorre, a partir dos anos 1950, com

dirige três filmes, considerados atualmente como os mais significativos da guerra: Report

mais força nos países centrais. Temos que tomar cuidado com as “histórias clássicas do

from the Aleutians e os censurados The Battle of San Pietro e Let There Be Light, sendo

cinema”, que favorecem algumas cinematografias em relação a outras. Logo, esse raciocínio

que esse último foi liberado somente em 1981. Por sua vez, William Wyler, como major da

“anos 1950 = crise de público do cinema” é válido fundamentalmente para os Estados Unidos

Força Aérea, dirige The Memphis Belle: A Story of a Flying Fortress e Thunderbolt!, esse

e para a Europa ocidental. Em outras partes do mundo, o advento e a consolidação da tele-

último em codireção com John Sturges e o produtor e escritor Lester Koenig. Assim, como

visão comercial ocorrem em outro momento. Por exemplo, na América Latina, a televisão

outros executivos de Hollywood, o produtor Darryl F. Zanuck se afasta de suas atividades

conhece, de fato, o seu boom somente nos anos 1970. Até a década de 1960, vários países do

na iniciativa privada para se dedicar à produção fílmica militar, no posto de coronel na

nosso subcontinente ainda não tinham emitido seu primeiro sinal de televisão — que dirá a

Army Signal Corps.

expansão da presença dos aparelhos de tevê nas residências.

4. “Diante da acentuada queda de público e de rendimentos de bilheteria, ficava claro,

6. “Depois de 1946, a frequência e as receitas das bilheterias principiaram a cair, antes

no início de 1948, que o boom do período da guerra chegara ao fim. Os lucros das Oito

mesmo que a televisão produzisse seu significativo impacto por volta de 1949 ou 1950. Em

Grandes juntas caíram do patamar máximo até então alcançado, 122 milhões de dólares,

1953, quando se calculava que 46,2% das famílias norte-americanas possuíam televisores, a

em 1946, para 89 milhões, em 1947. Em 1948, o declínio se acelerava.” SCHATZ, Thomas.

assistência dos cinemas caíra para quase exatamente a metade do nível mais alto de 1946.”

O gênio do sistema: a era dos estúdios em Hollywood. Trad. Marcelo Dias Almada. São

SKLAR, Robert. História social do cinema americano. Trad. Octávio Mendes Carijó. São

Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 434.

Paulo: Cultrix, 1978, p. 316.

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nesses novos tempos, somado com o conforto de um lar cujas tarefas domésticas

o posto de trabalho dele durante o conflito). Esses dois aspectos perturbadores

são, cada vez mais, realizadas por eletrodomésticos. Num primeiro momento, é

que estão mais ou menos latentes nos anos 1950, explodirão na década seguinte.

o rádio que ocupa o papel central da diversão doméstica; em seguida, por volta

Então, os filhos desse casal, os baby boomers, ressignificarão essa imagem (família

de 1949-50, ele é substituído pelo aparelho de tevê. Aliás, esse estadunidense, que

de classe média suburbana — o símbolo da felicidade e da prosperidade) como o

retorna do conflito, não somente tem filhos, mas muitos filhos. Os Estados Unidos,

retrato do que há de mais conservador, hipócrita e medíocre nos Estados Unidos e,

logo após a guerra, conhecem uma impressionante alta na taxa de natalidade.

por conseguinte, tudo o que eles justamente não querem. Irônica ou tragicamente,

É o chamado baby boom, que ocorre de 1946 a 1964. Assim, é verdade a afirmação

a positivação dessa imagem realizada pelo conservadorismo dos anos 1980 se

de que, em meados do século passado, duas bombas explodiram: a bomba atômica

dará, simbólica e sintomaticamente, sob a égide de um ator hollywoodiano dos

e a “bomba humana”. Essa última também é provocada pelos avanços da medicina:

anos 1950: Ronald Reagan.

a diminuição da mortalidade infantil e o aumento na expectativa de vida. Nesse

Em suma, não é apenas a televisão que destronou o cinema de seu reinado;

sentido, podemos afirmar que é um divisor de águas não somente a mecânica quân-

o mais correto seria afirmar que foi uma mudança nos hábitos de lazer, vinculada

tica, que tornou possível o advento da era nuclear, mas também o desenvolvimento

com as transformações sociais sofridas no pós-guerra. Logo, o crescimento de

da microbiologia, que culminou nos dois grandes feitos da medicina no século XX,

outras atividades de lazer (como os esportes e o turismo), da indústria automobi-

a saber, a vacinação em massa e a criação dos antibióticos — com os quais se soma

lística e do mercado imobiliário está associado com a expansão da televisão como

seu último e terceiro feito, cujo salto ocorre no pós-guerra: o progresso da genética,

sintomas de uma sociedade em ampla transformação. 7

que abre as portas para os dilemas contemporâneos da bioética. Portanto, a segun-

Diante desse novo panorama, Hollywood irá se armar com vários artefatos

da metade do século passado é inconcebível sem as consequências das explosões

para seduzir esse público arredio, que fugiu das salas do downtown e dos bair-

dessas duas bombas: a ameaça nuclear e o aumento da população mundial.

ros cêntricos. Ou seja, será necessário não somente mudar a logística da rede

Ao encontro dessa afirmação de valores e de cenário demográfico, ocorre

exibidora, mas também — e sobretudo — proporcionar um espetáculo impossí-

uma outra mudança, inclusive no sentido físico. Esse casal com muitos filhos irá

vel de ser realizado pela televisão. Em suma, é a era das “novidades” tecnológi-

morar nos subúrbios. Ocorre uma nova configuração no espaço urbano dos Estados

cas, como o filme 3D, 8 o som estereofônico, 9 a consolidação da cor, 10 os formatos

Unidos, ao atrair sua classe média para os arredores das grandes cidades, em fuga do barulho e do tumulto do downtown e de seus bairros contíguos. No entanto, para

7. Ver SORLIN, Pierre. Cines europeos, sociedades europeas: 1939-1990. Trad. Núria Pujol

se chegar a essa tranquilidade tão sonhada presente nos subúrbios, considerada

i Vallis. Barcelona: Paidós, 1996.

perfeita para criar uma família, seria necessária a abertura de amplas avenidas

8. É considerado como o primeiro longa em 3-D do pós-guerra Bwana Devil (1952), de Arch

e estradas, que fariam a ligação do espaço do trabalho (o centro da cidade) com

Oboler, em Natural Vision. Diante de seu sucesso, a Universal desenvolve a sua tecnologia,

o lar. Portanto, o automóvel se torna um bem fundamental para esse cotidiano. Por isso, vemos um aumento na produção de automóveis que, por sua vez, tornam-se cada vez maiores e mais espaçosos (para conter uma família tão numerosa),

patenteada sob o nome de Universal 3-D, que é estreada no longa O monstro da lagoa negra (Creature from the Black Lagoon, 1954), de Jack Arnold. 9. Para realizar Fantasia (1940), o primeiro longa em som estéreo, a Disney desenvolve o sistema Fantasound, que não teve consequências, tornando-se um caso ímpar e isolado até

sem maiores preocupações, uma vez que estávamos em tempos em que a gasolina

então. No entanto, em 1954, surge a Perspecta, com o apoio principalmente da MGM e da

ainda era barata e a questão ambiental, inexistente.

Paramount, embora em seguida passe a ser empregado pela Universal, Warner, Columbia

Para nós, hoje, essa imagem de família de classe média estadunidense se

e United Artists. Porém, o som estéreo tende a ser o padrão na indústria somente nos anos

converteu praticamente num clichê dos anos 1950, que como todo estereótipo faz

1970, principalmente após a entrada da Dolby na indústria cinematográfica, cujo marco

um amálgama de traços empíricos somado com juízos de valor. Não por acaso, essa imagem nos dá um ar de “anos dourados”, conforme um tom saudosista (mesmo àqueles que não viveram a década de 1950), mas ao mesmo tempo esconde um lado

inicial é Laranja mecânica (A Clockwork Orange, 1971), de Stanley Kubrick, uma coprodução da Warner. 10. É a partir da segunda metade dos anos 1950, quando Hollywood decide aposentar o filme preto e branco, que a indústria incentiva a concorrência entre os fabricantes de filme colorido.

oculto e sombrio: o clima de medo típico da Guerra Fria e as tensões nos papéis

Para maiores informações sobre os processos de cor, confira o site The American WideScreen

sexuais (o homem que voltou da guerra se encontra com a mulher que assumiu

Museum: http://www.widescreenmuseum.com. Acesso em 3 de setembro de 2011

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panorâmicos 11 e o drive-in. 12 Na verdade, não se trata de novidade alguma, uma

nefastos do Crash de 1929. Ou seja, o cinema hollywoodiano — e, por extensão,

vez que a maioria desses inventos tinha surgido no final dos anos 1920 e ao longo

o do mundo todo — se tornou definitivamente sonoro não por fatores tecnológi-

da década seguinte, semelhante ao advento e à consolidação do som. Portanto,

cos, mas simplesmente por razões econômicas. Portanto, essas outras inovações

assim como a própria história do som no cinema demonstra, uma tecnologia co-

esperaram por quase duas décadas para despertar o interesse da indústria devido

nhece um intenso processo de desenvolvimento quando há capital investido, mo-

à urgente necessidade de atrair o público que, até pouco tempo, lotava as salas

vido por seus futuros ganhos financeiros. Ou seja, quando a indústria se interessa

de exibição. Ou seja, tais técnicas foram postas em prática com mais empenho

por uma determinada técnica, ela investe seu dinheiro para aperfeiçoá-la e, por

somente a partir dos anos 1950 não por limitações tecnológicas, mas por razões

conseguinte, torná-la menos onerosa e mais lucrativa. Num primeiro momento,

puramente econômicas.

é possível afirmar que a Depressão impediu o desenvolvimento dessas patentes,

Já não bastasse essa crise de público, Hollywood sofre um outro golpe duro:

mas essa resposta é frágil, uma vez que a consolidação do som em 1930, segundo

a quebra da verticalização da indústria. Em 1948, a Suprema Corte julga o pro-

alguns autores, foi a aposta da indústria cinematográfica para se salvar dos efeitos

cesso “Estados Unidos versus Paramount Inc. et al.”, dando ganho de causa para o Departamento de Justiça, que havia entrado contra as “oito grandes”, acusando-as de prática oligopólica. Trata-se de um processo que tramitava desde o final dos

11. Em 1952, surge o Cinerama, que utiliza três projetores simultâneos (na verdade, quatro,

anos 1930, mas que havia sido “suspenso” por conta da guerra, quando o Estado

um só para o som ótico) voltados para uma tela côncava, criando uma imagem em 1:2,59

fez um acordo temporário com Hollywood, uma vez que precisava dela durante

ou 1:2,65. No ano seguinte, a 20th Century-Fox lança o seu CinemaScope, a partir do desenvolvimento do artefato criado pelo inventor e astrônomo francês Henri Chrétien, pelo qual se cria uma imagem em 1:2,35. Para concorrer, a Paramount lança, em 1954, o VistaVision,

o conflito. Findo o confronto bélico, o litígio volta à cena, culminando na derrota da indústria cinematográfica nos tribunais. Autores afirmam que os magnatas de

que utiliza um negativo em 35mm, no sentido horizontal, com um fotograma de oito per-

Hollywood subestimaram o caso, supondo que jamais iriam sofrer tão fragorosa

furações (o dobro do 35mm convencional), produzindo imagens em 1:1,66, 1:1,85 ou 1:2.

derrota. 13 Verdade ou não, a decisão da Suprema Corte força os estúdios a se des-

Nesse mesmo ano, em conjunto com a RKO, a empresa Superscope lança o formato com o

fazerem de suas salas de exibição, uma vez que fica decidido, pela instância maior

seu nome, produzindo uma imagem em 1:2 ou 1:2,35 (Superscope 235). Em busca de ima-

do Judiciário, que nenhuma empresa pode estar, simultaneamente, presente nos

gens cada vez maiores, utiliza-se a película 70mm (bitola reservada para as cópias, sendo que seus negativos são em 65mm). É seguindo esse rastro que, em 1955, aparece o Todd-AO (junção dos nomes do produtor Mike Todd e da Americal Optical Company), com imagens

três ramos da indústria cinematográfica (produção-distribuição-exibição). Assim, as “oito grandes” se mantêm como produtoras e distribuidoras, configurando-se

de 1:2,1 e 1:2,35, as mesmas proporções realizadas pela Super Panavision 70, surgida em

como são hoje em dia. No entanto, as salas de cinema que eram propriedades

1959, e pelo Technirama, criado em 1957. Trata-se de uma tentativa de compatibilidade, uma

dos estúdios compunham, na verdade, uma pequena parcela da rede exibidora

vez que o Ultra Panavision 70, desenvolvido em conjunto com a MGM, que surge também

nos Estados Unidos. Porém, elas eram as prioritárias em matéria de lançamen-

em 1957, alcançava uma imagem em 1:2,76. Frisamos que existem vários outros formatos

tos. 14 Outra questão, que se aproxima da anterior, é que as principais cadeias de

(Cinemiracle, Vistarama, Thrillarama, Smith-Carney System, sem falar dos europeus) que desenvolviam aparelhos próprios e, por conseguinte, fugiam do pagamento das patentes. Para maiores informações sobre os formatos panorâmicos recomendamos o site citado aci-

exibição possuíam acordos privilegiados com as “oito grandes”, o que as favorecia em relação aos pequenos exibidores, configurando como concorrência desleal.

ma. Para o circuito de exibição em 70mm nos dias de hoje, ver: http://www.in70mm.com.

Visando protegê-los, a Suprema Corte também considera ilegal a prática do alu-

Acesso em 30 setembro 2011.

guel “em lote” (em inglês, “block booking”), mecanismo de “venda casada” que

12. “No começo dos anos 1960, momento culminante desse novo estilo de vida, o número de drive-ins tinha passado de cem, que havia aproximadamente no final da Segunda Guerra Mundial, para mais de quatro mil. Durante uma semana de junho de 1956, pela primeira

13. Essa é a opinião de Sklar; cf. SKLAR, Robert. Op. cit.

vez, foram mais pessoas aos drive-ins do que às salas tradicionais, iniciando uma tendên-

14. “Era verdade que os cinco estúdios principais — Paramount, Warner Bros., MGM-Loew’s,

cia segundo a qual o verão é a época do ano com maior frequência ao cinema nos Estados

RKO e Twentieth Century-Fox — possuíam apenas 17% de todos os cinemas dos Estados

Unidos.” GOMERY, Douglas. La llegada de la televisión y la redefinición del sistema de

Unidos, mas o caso Paramount versava realmente o monopólio das primeiras exibições nas

estudios de Hollywood. In HEREDERO, Carlos F.; TORREIRO, Casimiro. Historia general

grandes cidades, e estas se achavam, em proporção esmagadora, nas mãos dos cinemas

del cine. Madri: Cátedra, 1996. Vol. X, p. 18 (tradução minha).

filiados aos estúdios.” Idem, p. 318.

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obriga o exibidor a alugar do distribuidor um lote fechado, empurrando-lhe, entre

demonstrou ser o mais eficiente. 16 Ou seja, a produção está atrelada à exibição e

títulos com potencial de bilheteria, uma série de filmes não desejados e, inclusive,

não o contrário. 17 É por isso que a decisão da Suprema Corte, no fundo, quebra

ignorados (em Inglês, “blind bidding”).

a espinha dorsal dessa indústria, que já começava a fraquejar devido à crise de

15

Em suma, a partir do chamado “Caso Paramount” (essa empresa é a

público. Resta, então, a esse gigante ferido, que é a Hollywood do pós-guerra,

primeira a ser citada no processo porque foi a primeira a se verticalizar e, por

readaptar-se aos novos tempos. Alguns estúdios resistiram — é o caso da MGM —,

isso mesmo, possuía a maior cadeia de exibição entre as “grandes”), passamos

mas, cedo ou tarde, a lógica do capitalismo avançado se torna evidente para todos.

a ver o funcionamento da indústria como ocorre atualmente, com as majors e as

É por isso que a partir de 1955, vemos impor-se um novo sistema de produ-

semi-majors produzindo, coproduzindo, financiando e/ou distribuindo filmes,

ção, que põe por terra a “Era dos Estúdios”. Segundo a classificação proposta por

negociando-os um a um. Ou seja, a chegada da produção às telas de cinema,

Staiger, Bordwell e Thompson, advém o “modo de produção de equipe de con-

agora, dá-se filme por filme e não mais por um seguro escoamento em série, como

junto”, constituído por contratos temporários, por filme, dando um maior poder

em lote. Com a quebra da verticalização, Hollywood se desestrutura e precisa

às agências de talento. Diferente do que ocorria no período clássico, não há mais

rapidamente se remodelar, porque se rompeu o fluxo contínuo entre a indústria

contratos de longo prazo, que “amarravam” os profissionais aos estúdios. Conforme

e o comércio cinematográfico. No estudo do “Caso Paramount” vemos a extrema

uma lógica própria do pós-fordismo, a existência de uma grande quantidade de mão

relevância da verticalização e o quanto sua existência configurou um verdadeiro

de obra, formalizada contratualmente, num único espaço físico, tornou-se contra-

e singular período, formando um tipo de cinema que não existe mais: a “Era de

producente. 18 Se tal necessidade visava, então, a um maior controle da produção,

Ouro de Hollywood”. Como frisa Schatz, se os filmes da MGM da era clássica se

por intermédio da otimização do trabalho a partir de uma lógica de administração

definem como grande espetáculo — antípodas do realismo da Warner —, isso dialoga com o fato de a cadeia de exibição da MGM ser pequena e constituída por palácios de cinema. Portanto, os filmes desse estúdio deviam ser condizentes com o luxo e o

16. BORDWELL, David; STAIGER, Janet; THOMPSON, Kristin. El cine clásico de Hollywood:

glamour dessas joias arquitetônicas. Por outro lado, se a Universal se especializou

estilo cinematográfico y modo de producción hasta 1960. Trad. Eduardo Iriarte e Josetxo

em filmes B, em particular no gênero de terror, isso se deve não somente às suas limitações orçamentárias — em comparação aos outros grandes estúdios, como a Paramount ou a MGM —, mas porque possuía uma ampla rede exibidora, formada

Cerdán. Barcelona: Paidós, 1997, p. 351. 17. Em mais de uma ocasião, tive a oportunidade de escutar a seguinte exposição do prof. André Gatti, especialista em estudos históricos de economia do audiovisual: “os norte-americanos sempre encararam o cinema como atividade comercial. Tanto é verdade que

por salas pequenas e médias nos bairros centrais e, por conseguinte, necessitava

os primeiros cursos de cinema nos Estados Unidos, surgidos ainda nos anos 1920, não se

alimentá-las com uma produção fílmica constante e barata.

voltavam para a produção fílmica, mas à administração de salas de cinema. Isso porque

Para terminar esse ponto, frisamos o seguinte: como não tivemos e ainda

os norte-americanos perceberam muito cedo que o público, em geral, frequenta sempre as

não temos uma indústria cinematográfica, por vezes, custa-nos compreender que

mesmas salas de cinema, ou seja, o consumo de filmes se dá na relação entre o consumidor

o motor dessa indústria não é a produção, mas sim a exibição. Foi a partir do estabelecimento — muito cedo, em meados dos anos 1910 — de um calendário fixo de lançamentos e de meios de financiamento externo (uma vez que, em termos

(atual e potencial) e a área geográfica.” (versão do autor da exposição do prof. Gatti no Encontro da SOCINE 2010 e de sua arguição na banca de doutoramento em Comunicação de Luís Alberto Rocha Melo, 27 de junho 2011, Universidade Federal Fluminense). 18. É justamente esse modelo fordista de divisão do trabalho, mediante uma linha de pro-

econômicos, o filme é uma mercadoria que dá retorno financeiro a longo prazo)

dução e a partir da organização do tempo centralizado num único espaço, que provoca a

que Hollywood desenvolveu, com sucesso, um modelo de organização da produção

corrente analogia entre a fábrica e o estúdio cinematográfico — e, por isso, a alcunha de

(variável no tempo) que, como sublinha Staiger, não é o mais barato, mas o que

Hollywood de “fábrica de ilusões”. No entanto, como sublinha Staiger, apesar de, como toda indústria, Hollywood tender à estandardização de processos e insumos e à especialização do trabalho, ela jamais se constituiu numa indústria no sentido fordista, mas antes numa “manufatura em série”, mais apropriado ao show business, no qual é necessário espaço para

15. Sublinhamos que a proibição da prática do “block booking” e do “blind bidding” se dá,

a inovação e para a contribuição individual, esta subordinada no entanto a um processo

obviamente, em território estadunidense, ou seja, as “oito grandes” continuarão praticando

maior, do trabalhador (artista ou técnico do filme). Em suma, não se fabrica filmes do mesmo

esses mecanismos em outras partes do mundo.

modo — e sentido — como se fabrica um automóvel.

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centralizada e de processos especializados e correlacionados, esta se demonstrou

Contudo, além da crise de público e da quebra da verticalização, Hollywood

desnecessária e onerosa, devido às mudanças tecnológicas (e sócio-históricas).

passa por um de seus períodos mais negros: o macartismo. De 1947 a 1953, a co-

Assim, inaugura-se um modelo em que há uma inter-relação maior entre as “gran-

munidade ensolarada da Califórnia sofre um sombrio clima, motivado por uma

des” e as chamadas independentes.

intensa caça às bruxas. Em 1945, torna-se permanente na Câmara dos Deputados

No entanto, essa transformação ocorre aos poucos. Inicialmente, visando

estadunidense, 20 a Comissão Parlamentar de Atividades Anti-Americanas (House

ao equilíbrio das contas, uma vez que os prejuízos aumentam aceleradamente,

Un-American Activities Committe, i.e., HUAC), num Congresso de maioria repu-

os estúdios enxugam seu quadro técnico e administrativo, investindo em produções

blicana, durante o primeiro mandato presidencial do democrata Harry Truman.

“terceirizadas” (ou seja, de produtoras independentes), através de contratos tem-

A primeira investida da HUAC contra Hollywood se dá em março de 1947, quando

porários. 19 Ou seja, a partir do começo dos anos 1950, em parte por conta de uma

seu presidente, o deputado republicano por Nova Jersey J. Parnell Thomas, anun-

lição aprendida durante a prosperidade dos anos de guerra, preferiu-se diminuir

cia uma futura investigação sobre Hollywood. Até hoje não é bem clara como se

o ritmo de produção (fazer menos filmes), para absorver, a curto prazo, a renda.

iniciou essa cruzada anticomunista na “fábrica de sonhos”. É mais do que certo

Assim, passa a ocorrer o seguinte fenômeno: menos filmes são produzidos para

que o citado parlamentar conseguiu uma primeira lista de “suspeitos” graças

que se realizem filmes mais caros (devido às já mencionadas “novas” tecnologias).

a informações de dentro da indústria. Afirma-se que as principais fontes para a

Dito de outro modo, em vez de pulverizar o capital numa larga produção em série,

formação dessa lista tenham sido os produtores Louis B. Mayer, Walter Disney

prefere-se investi-lo em poucos filmes, mas — para usarmos uma expressão atual-

e Jack L. Warner. Os dois primeiros eram mais do que conhecidos por suas posi-

mente em voga — com alto valor agregado. Ora, com poucos filmes em produção,

ções politicamente conservadoras. Por sua vez, se diz que Warner estava profun-

parte dos estúdios e dos equipamentos fica ocioso, o que é um prejuízo. Logo,

damente irritado com as constantes greves em seu estúdio, o que lhe motivou a

as majors e as semi-majors passam a usá-los em produções “que não são da casa”,

ajudar a identificar os “agitadores vermelhos” no seio da indústria. Convencido

isto é, em produções independentes que os alugam. Assim, as grandes companhias

da ameaça, Parnell Thomas, em setembro, expediu 41 intimações a profissionais

estreitam uma “simbiótica relação” com as produtoras independentes, que, através

do setor, que deveriam comparecer diante da Comissão, em Washington. Desses 41

de contratos temporários, tornam possíveis as suas realizações, pelo fato de con-

intimados, 19 declararam pública e imediatamente que se opunham à Comissão,

seguirem uma “grande” como coprodutora ou financiadora e, por último, como

por considerá-la inconstitucional. 21 Muito rápido, a grande maioria da comunidade

distribuidora. De modo um tanto simples (para não dizer simplório), as majors e

cinematográfica se mobilizou a favor dos companheiros, formando a Comissão

as semi-majors diminuem o volume de produção, concentrando-se nas produções

da Primeira Emenda, que coletou fundos para a defesa (buscando uma tática em

A e Super-A, “terceirizando”, por assim dizer, as produções B. Esse raciocínio

comum, segundo o conselho de notáveis advogados), além de comícios e passe-

talvez não possa ser tão correto, por sua simplicidade, mas é ilustrativo da nova

atas. Em 20 de outubro de 1947, iniciam-se as sessões da Comissão, na presença

dinâmica que surge no pós-guerra e que é vigente até hoje. Como uma variante,

de mais de cem jornalistas e de vários membros da indústria em solidariedade

são as relações com a televisão que de inimiga passa a ser encarada como sócia,

aos colegas intimados. Nem todos os 19 “inamistosos” chegaram a ser ouvidos,

quando a produção de séries televisivas e de telefilmes se torna, a partir de 1955,

uma vez que as sessões foram abruptamente suspensas na segunda semana de

moeda corrente nos estúdios hollywoodianos.

audiências. Assim, dos intimados “inamistosos” que chegaram a ser ouvidos, dez

19. Aliás, Schatz chama a atenção de que a figura do freelancer começa a se tornar comum

20. Cujo nome em inglês é House of Representatives (“Casa dos Representantes”).

na indústria cinematográfica ainda durante a guerra. Com a necessidade de se capitalizar,

21. Os nomes das dezenove testemunhas “inamistosas” (“the unfriendly nineteen”) são:

por conta do conflito, o Estado aumenta a tributação, com a promulgação da Revenue Act, em

Alvah Bessie, Herbert J. Biberman, Bertold Brecht, Lester Cole, Richard Collins, Edward

1941, que incide principalmente sobre os salários mais altos no país. Logo, para fugir desses

Dmytryck, Gordon Kahn, Howard Koch, Ring Lardner Jr., John Howard Lawson, Albert

pesados impostos, Hollywood recorre a subterfúgios, como diminuir o pagamento de suas

Maltz, Lewis Milestone, Samuel Ornitz, Larry Parks, Irving Pichel, Robert Rossen, Waldo

estrelas e altos executivos, pagando-os de outro modo, seja com participação nas rendas da

Salt, Adrian Scott e Dalton Trumbo. Cf. GUBERN, Román. La caza de brujas en Hollywood.

bilheteria e/ou com contratos temporários. Cf. SCHATZ, R. Op. cit. pp. 305-6.

3 ed. Barcelona: Anagrama, 2002, p. 24.

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se recusaram a responder, invocando a Primeira Emenda. Em suma, inicialmen-

Dmytryck, o produtor Adrian Scott e os roteiristas Alvah Bessie, Lester Cole, Ring

te, ocorre uma vitória sobre a HUAC, como demonstra a brusca interrupção dos

Lardner Jr., John Howard Lawson, Albert Maltz, Samuel Ornitz e Dalton Trumbo.

depoimentos. As audiências da Comissão somente seriam retomadas quatro anos

Na verdade, os ataques da HUAC à indústria cinematográfica não são novi-

depois, na primavera de 1951, desta vez sob a liderança do deputado democrata

dades para Hollywood, uma vez que ela sempre se viu, constantemente, posta em

pela Geórgia John Stephens Wood (o antigo presidente da HUAC, Parnell Thomas,

xeque pelas autoridades dos Estados Unidos. Como frisa Sklar, Hollywood sempre

encontrava-se preso por corrupção e nepotismo, ironicamente, cumprindo pena na

suscitou a suspeita das elites estadunidenses tradicionais, devido a seu forte poder

mesma prisão federal onde estavam duas de suas vítimas das audiências de 1947).

econômico e simbólico concentrado nas mãos de segmentos sociais e étnicos não

No entanto, em 24 de novembro de 1947, os chefões da indústria cinematográ-

oriundos dessas mesmas elites (lembremos que Hollywood foi formada por imi-

fica se reúnem no hotel Waldorf-Astoria, em Nova York. Encontram-se os diretores

grantes judeus). No entanto, a grande diferença é que no macartismo ocorre um

financeiros da Costa Leste, os diretores de estúdio da Costa Oeste e Eric Johnston,

processo muito mais avassalador. Inicialmente, porque a indústria se encontra ex-

que havia substituído, a partir de 1945, Will H. Hays na presidência da Motion

tremamente fragilizada e, segundo, porque essa “caça às bruxas” teve um irrestrito

22

Picture Association of America (MPAA) , entidade que defende os interesses das

apoio de pessoas da própria indústria. Não somente dos altos executivos, mas dos

grandes companhias hollywoodianas. A “declaração de Waldorf” é a posição oficial

mais diversos profissionais. O real motivo para a delação pode ser o mais variado:

da indústria em relação às recentes investigações do Estado em seu seio. Os mag-

ressentimento (acertar as contas com antigas rivalidades), arrivismo e carreiris-

natas de Hollywood apoiam o esforço do governo em expurgar o comunismo nos

mo (ser bem visto pelos patrões), ou mesmo idealismo, por crer convictamente

Estados Unidos e anunciam que não aceitarão nenhum comunista em seu quadro

no dever patriótico de denunciar comunistas. O relevante é que foi um processo

de funcionários. Em suma, institui-se, de modo bem pragmático, a oficialização

extremamente doloroso, devastador e uma das páginas mais tristes da história da

da nefasta “lista negra”. As primeiras vítimas dessa atitude da indústria são os dez

indústria cinematográfica e dos Estados Unidos.

23

intimados que se recusaram a responder nas audiências da HUAC. Assim, eles são

Portanto, com certeza, Hollywood não é mais a mesma quando Ray debuta

suspensos e, em seguida, despedidos de seus empregos. Para concluir a tragédia,

na direção em 1948. Os três fenômenos abordados explicitam isso de modo ine-

logo em seguida, o silêncio deles é considerado pelo Congresso como desacato à

quívoco. 24 No entanto, resta-nos sugerir como essas transformações aparecem nos

autoridade, imputando-lhes multa e prisão. Esses homens ficaram conhecidos

filmes. Ora, se “a era dos estúdios” está em seus estertores, isso significa que uma

como os “Dez de Hollywood”, a saber, os diretores Herbert J. Biberman e Edward

nova era do cinema está despontando. Como a sociedade estadunidense se encontra em agudas mudanças, a questão do que deve ser exibido ou não nos filmes também muda. Assim, o Código de

22. Nome que a entidade passou a adotar a partir de 1945. Seu nome de fundação é Motion

Produção, vulgarmente conhecido como Código Hays, mecanismo de autocensura

Picture Producers and Distributors of America (MPPDA).

das “oito grandes” vigente, em termos rigorosos, desde 1934, inicia seu lento mas

23. “Tem-se dito com frequência que a decisão de instituir uma lista negra não proveio de

irreversível processo de desmantelamento nos anos 1950. Coube à sofisticada

Hollywood, mas dos banqueiros de Wall Street e dos chefes dos escritórios comerciais da indústria cinematográfica em Nova York, mas a verdade é que, nesse caso, não vale a pena fazer distinção entre os homens do dinheiro da Costa Leste e os homens do cinema da Costa

semi-major United Artists ser a pioneira das “grandes” a romper com a MPAA, lançando comercialmente, sem o seu “selo”, Ingênua até certo ponto (The Moon

Oeste. A estratégia dos produtores de Hollywood quando liderados por Will Hays sempre fora evitar interferências externas, conservar o poder em suas próprias mãos e esquivar-se subrepticiamente às indigestas declarações de princípios, quando a necessidade o impunha e as

24. “Em Hollywood, os chefes dos estúdios estavam começando a sentir-se como César no

circunstâncias o permitiam. Era evidente que a política da lista negra colimava o alcançamento

Fórum ou como Ricardo III no Campo de Bosworth: as cutiladas chegavam de toda a parte ao

das mesmas metas: se a declaração do Waldorf vingasse afastar novos ataques do Congresso à

mesmo tempo. No meio da luta com o Departamento de Justiça, vieram os investigadores do

indústria e, particularmente, à sondagem do conteúdo dos filmes anunciada por Thomas (como

HUAC; e no momento exato em que os homens do cinema se preparavam para a confrontação

parece que ela conseguiu fazer), o sacrifício de uns poucos empregados, até então havidos

parlamentar, seu mercado estrangeiro mais lucrativo, a Grã-Bretanha, desfechou um ataque

por valiosos, não parecia ser um preço demasiado alto. Coisa muito parecida já acontecera

geral. Não admira que eles não tivessem podido pensar com seriedade nas implicações da

antes, no escândalo de Arbuckle e em outros sucessos similares.” SKLAR, R. Op. cit. pp. 309-0.

televisão.” Idem, p. 319.

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Is Blue, 1953), de Otto Preminger, que versa sobre o tabu da virgindade. Esse pre-

Joseph L. Mankiewicz; o suspense que ganha seu título de nobreza por meio da

cedente é o sintoma de uma necessária renovação e abre espaço para repensar

extrema sofisticação do mestre Alfred Hitchcock ou em um tom de fábula com

a forma de abordagem dos temas delicados e, sobretudo, das instituições sociais.

o singular O mensageiro do diabo (The Night of the Hunter, 1955), de Charles

Porém, há um outro aspecto profundamente importante: essa mudança nas telas

Laughton; o terror, que mesclado com ficção científica, exorciza os fantasmas

está relacionada com uma mudança nas poltronas das salas de exibição. A maioria

da Guerra Fria; uma nova comédia norte-americana, em O pecado mora ao lado

do público que frequenta o cinema passa a ser formada por jovens. A irrupção desse

(The Seven Year Itch, 1955), e, sobretudo, em Se meu apartamento falasse (The

novo ator no cenário social redefine não apenas o papel do cinema na sociedade,

Apartment, 1960), ambos de Billy Wilder, o discípulo mais talentoso de Lubitsch.

mas a própria sociedade, sobretudo na turbulenta década seguinte, os anos 1960.

É nessa seara em que se encontra a obra e o talento de Nicholas Ray.

De fato, é um ator novo, porque assim como o século XIX inventou a infância, o século XX criou a juventude, dotando-a de idiossincrasias próprias, deixando de ser uma mera passagem para a vida adulta. No entanto, os filmes não apenas mudam seu conteúdo (temas, valores e procedimentos de representação), mas também se modificam em algo mais sofisticado: a forma. É possível identificarmos como, em alguns filmes, os gêneros são subvertidos ou ressignificados, por intermédio de procedimentos autorreflexivos, que indicam um perfeito domínio e uma exímia manipulação dos códigos narrativos dos gêneros clássicos dos anos 1930 e 1940. Não por acaso, serão muitas vezes esses filmes — como assinala Bourget, o “segundo escalão, o segundo raio das majors ou glória dos estúdios independentes” 25 (como a Monogram e a Republic) —, e não as grandes produções, que seduzirão a cinefilia europeia. Ou seja, os criadores da “política dos autores”, apaixonados por cinema hollywoodiano, notaram que em suas margens — não nos subterrâneos do cinema estadunidense, como o cinema underground — havia o substrato com o qual um novo cinema poderia surgir. É o cinema moderno que já se prenuncia. Sabemos o quanto é complicado e ambíguo o conceito de transição, mas se é possível, de modo grosseiro, definir o cinema hollywoodiano dos anos 1950, ele seria um fascinante canto de cisne do classicismo. É só vermos os “westerns psicológicos” Matar ou morrer (High Noon, 1952), de Fred Zinemmann, e Os brutos também amam (Shane, 1953), de George Stevens; os musicais “saudosistas” de um cinema que não existe mais, como Cantando na chuva (Singin’ in the Rain, 1952), de Stanley Donen e Gene Kelly, e A roda da fortuna (The Band Wagon, 1953), de Vincente Minnelli; um noir quase barroco, na versão a cores em Torrentes de paixão (Niagara, 1953), de Henry Hathaway, ou metalinguístico, como Crepúsculo dos deuses (Sunset Boulevard, 1950), de Billy Wilder; os melodramas rigorosos de Douglas Sirk ou um viés labiríntico desse gênero em A condessa descalça (The Barefoot Contessa, 1954), de

25. BOURGET, Jean-Loup. Hollywood, la norme et la marge. Paris: Arman Colin, 2011, pp. 119-20.

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Nicholas Ray e a crítica de cinema no Brasil

lugar, seus próprios pares. Elogiando um diretor, o crítico não só manifestava sua opinião como frequentemente negava a preferência de seu eventual arqui-inimigo

Luís Alberto Rocha Melo

ideológico. E assim por diante. Enquanto isso, indiferentes a essas diatribes provincianas, os filmes hollywoodianos continuavam a ser feitos lá fora e exibidos no país, obedecendo a regras políticas, econômicas e financeiras que só incluíam em suas preocupações as redações de jornais brasileiros e o trabalho dos respectivos críticos

Analisar a recepção da obra de Nicholas Ray pela crítica cinematográfica brasileira

quando se tratava de entregar anúncios e material publicitário para a imprensa.

implicaria em fazer um levantamento exaustivo, em jornais e revistas, de tudo

Mas é necessário também tomar cuidado com visões excessivamente esque-

(ou quase tudo) de significativo que tivesse sido publicado aqui sobre o realizador

máticas. Se é verdade que a crítica cinematográfica brasileira dos anos 1940-1960

de No silêncio da noite (In a Lonely Place, 1950). Dadas as dimensões continentais

se pautou pela polarização ideológica típica de um mundo dividido pela Guerra

dessa tarefa, que forçosamente incluiria um número bastante grande de críticos

Fria, não é menos verdade que a entrada maciça do filme estrangeiro no mercado

de diversas regiões do país, seria imprescindível um recorte. Contudo, o pesqui-

interno acabou por transformar os críticos brasileiros — fossem de “esquerda” ou

sador não teria dificuldades em estabelecê-lo, o que não deixa de ser uma lástima:

de “direita” — em verdadeiros especialistas na arte de consumir e diferenciar o que

o estudo da crítica de cinema no Brasil enfrenta obstáculos quase que insuperáveis,

vinha de fora, especialmente de Hollywood. Isso evitou uma visão excessivamente

especialmente em se tratando do acesso às fontes mais antigas, como é o caso da

“blocada” de filmes e diretores, bem como das linhas de produção desenvolvidas

fortuna crítica acerca dos filmes de Nicholas Ray exibidos no Brasil.

pelas majors ou pelos chamados produtores independentes. Não por acaso, sobre-

Pondo de lado a massa gigantesca de textos meramente publicitários, repro-

tudo nos anos 1940-1950, o “gênio do estúdio” conviveu aqui sem grandes conflitos

duções de press releases e comentários suscintos — mesmo os opinativos — sobre as

com a “política dos autores” — afinal, ambos faziam parte de uma mesma percepção

estreias dos filmes nos cinemas, ainda assim o trabalho de selecionar quais críticos

de cinema como indústria e como arte, isto é, cinema estrangeiro; aliás, Cinema

ou publicações analisar demandaria um esforço considerável. Nesse caso, além da

simplesmente, escrito assim, com “c” maiúsculo.

“seleção natural” forçada pela dificuldade de acesso a jornais e a arquivos públicos

Portanto, a recepção da crítica brasileira aos filmes hollywoodianos poderá

e privados, não se pode deixar de atentar para o critério ideológico na eleição dos

ser tudo, menos simplória. Se é possível falar em impacto neorrealista, quando

nomes a serem estudados ou cotejados. No período em questão, 1940-1960, a polari-

da chegada dos primeiros filmes italianos do pós-guerra ao Brasil, em 1947-48,

zação entre uma crítica de “esquerda” e uma crítica de “direita”, hoje quase incom-

o mesmo não se pode dizer da maior parte dos grandes e inovadores filmes norte-

preensível para o público leitor de jornais, era não só perceptível como recomen-

-americanos que aqui aportaram nos anos 1940, assistidos sem o atraso verificado

dável — posicionar-se politicamente diante da “forma” e do “conteúdo” de um filme

num país como a França, que, envolvida no conflito mundial, tomou Cidadão Kane

(assumindo, frequentemente, essa distinção) fazia parte do trabalho do comentarista,

(Citzen Kane, 1941) e os filmes noir, exibidos naquele país apenas a partir de 1946,

escrevesse ele para a grande imprensa ou para jornais e revistas especializados.

como verdadeiras revelações de uma nova realidade estética. No Brasil, desde

É provável que, por isso, o estudo da obra de um determinado realizador

o final dos anos 1920, Hollywood quase sempre foi sinônimo de padronização,

através de sua recepção crítica acabasse nos dizendo bem pouco sobre essa obra

mesmo quando os filmes propunham novidades. O mapa dos estúdios sempre foi

ou sobre esse realizador, mas muita coisa sobre a crítica que deles se ocupou.

facilmente decifrável, em seus códigos de gênero e em sua política do estrelismo.

No caso brasileiro isso é ainda mais notável quando o realizador pertence à in-

A percepção de Hollywood como uma fábrica de espetáculos normatizantes per-

dústria de cinema hegemônica no planeta, Hollywood. Aqui, ao contrário do que

maneceu entre nós até mesmo após 1948, quando lá se verificou a ascenção de pelo

ocorre quando a crítica se dirige a um filme ou a um diretor brasileiro, não se trata

menos uma dezena de jovens realizadores e produtores, independentes ou ligados

de um diálogo efetivo entre críticos e produtores, mas de um monólogo ditado pela

aos grandes estúdios, que renovaram os parâmetros do filme norte-americano,

enorme distância entre ambas as partes.

voltando-se para preocupações sociais e políticas. Um novo “realismo” de estúdio

Na verdade, não se trata bem de um monólogo, antes de um diálogo indireto.

possibilitou a criação de anti-heróis, mas não foi capaz de criar rupturas traumá-

Falando de tal ou qual filme, o crítico muitas vezes tinha como alvo, em primeiro

ticas. O sopro de renovação não passou desapercebido pelos críticos brasileiros,

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mas foi devidamente absorvido conforme as preferências estéticas e ideológicas

(pelo menos da parcela que mais destacadamente se bateu pelas posições ideo-

de cada um.

lógicas em torno do cinema como manifestação artística e industrial/comercial),

Para a crítica brasileira, quando o caso era Hollywood, padronização e ino-

poderemos verificar o quanto essa discussão proposta pelo editorial de A Cena

vação conviviam em pé de igualdade. Nada mais natural do que enxergar, em um

Muda era determinante para a análise dos filmes e para a compreensão da carreira

determinado filme, as regras impositivas do produtor ou do estúdio e, ao mesmo

do realizador. A percepção do cinema como um universo cindido pela tensão en-

tempo, o talento do diretor a suplantar as dificuldades trazidas pelo convencio-

tre arte e indústria estava profundamente entranhada no discurso crítico daquele

nalismo do roteiro ou do star system. Hollywood não poderia ser diferente do que

período, e se ela possibilitou, nos anos 1960, o surgimento de uma mentalidade

era: indústria e comércio a formatar espíritos; isso, porém, não impedia os críticos

anti-hegemônica e anti-industrialista (Cinema Novo), nos anos 1940-1950 ela ainda

brasileiros de enxergarem, por trás da percepção de um conjunto padronizado que

era o principal sintoma da afirmação de uma cultura cinematográfica entre nós.

eles tão bem conheciam (por força do ofício e por imposição econômica), uma

É curioso verificar, por exemplo, como dois críticos que ocupavam posições

multiplicidade de estilos e de intenções a destacar filmes e realizadores absolu-

ideológicas antagônicas na imprensa carioca — Alex Viany e Antônio Moniz Vianna

tamente heterogêneos, estabelecendo entre eles relações de continuidade ou de

—, vão encarar positivamente o surgimento de Nicholas Ray no cenário da produção

ruptura muitas vezes enriquecedoras.

hollywoodiana contemporânea. As razões de um e de outro não serão as mesmas:

Quando os primeiros filmes de Nicholas Ray chegaram ao Brasil, o que se

para o primeiro, contava o fato de que, com Amarga esperança (They Live by Night,

discutia em uma revista popular de grande circulação como A Cena Muda, por

1948), Ray trazia para o cinema um tema de peso, o da juventude de baixa extração

exemplo, era justamente a dicotomia entre Arte e Indústria, ou seja, renovação

social sendo corrompida pela sociedade; para o segundo, tratava-se de estabelecer

versus padronização. Não é por acaso que a obra de Ray chamou a atenção dos

entre essa obra e o cinema norte-americano anterior (isto é, aquele da “época de

que escreviam sobre cinema nos jornais: ela vinha carregando exatamente essa

ouro” dos anos 1930) uma certa continuidade, senão de estilo — o que seria na

dicotomia, de forma tão pronunciada quanto desconcertante. Tome-se como exem-

verdade indesejável —, pelo menos de tema.

plo o editorial de A Cena Muda, publicado em 14 de março de 1950, no qual Leon Eliachar discorre sobre o drama do artista aprisionado pela indústria:

No segundo e último número da revista Filme, lançado em dezembro de 1949, Viany vai citar Amarga esperança como um dos quatro grandes filmes norte-americanos lançados entre 1947 e 1949 que, não obstante serem “grandes”, haviam

Em verdade, a verdadeira obra de arte é aquela da qual o artista não espera

sido produzidos com poucos recursos. 2 O filme também será colocado entre as

recompensa, senão a satisfação de ter realizado um trabalho digno de seu

“menções honrosas” em “O ano cinematográfico de 1949”, artigo que Viany publi-

talento. Por outro lado, sem [...] dinheiro, que comercializa muitos espíritos

cará em três partes na revista A Cena Muda. Para o crítico, Nicholas Ray é um “es-

de valor, não poderia haver uma evolução no sentido objetivo das coisas, no

treante” que dirige “com segurança uma história de amor e crítica social”. 3 A ideia

terreno material, onde se realizam as obras provindas do espírito. [...] Assim

de denúncia é enfaticamente sublinhada por Viany: “O final é cruel, bárbaro, como

o cinema. Sempre existiram artistas e sempre existirão, onde quer que haja

um pontapé num oponente caído. E Amarga esperança mostra que a sociedade

uma câmera. Contudo, a dois passos de um artista, haverá também dois es-

ainda não perdeu o injustificável hábito de considerar o indivíduo como oponente.” 4

píritos comerciais que industrializam a Arte, que transformam o celulóide em fábricas de cifras. 1 2. Cf. VIANY, Alex. “Quatro filmes modestos”. Filme, nº 2. Rio de Janeiro: dezembro de

O trecho acima citado não se refere a Nicholas Ray — mas poderia resumir admiravelmente a trajetória desse cineasta. Se tomarmos como referencial a recepção dos filmes de Ray pela crítica carioca militante na imprensa dos anos 1940-1960

1949. Os outros títulos analisados são O gângster (The Gangster, 1947); Ninguém crê em mim (The Window, 1949) e Punhos de campeão (The Wet-up, 1949). Texto publicado neste catálogo na página 16.. 3. VIANY, Alex. “O ano cinematográfico de 1949” [Parte 1]. A Cena Muda, vol. 30, nº 4. Rio de Janeiro: 24 de janeiro de 1950.

1. ELIACHAR, Leon. “Ofensiva contra a arte”. A Cena Muda, vol. 30, nº 11. Rio de Janeiro:

4. VIANY, Alex. Apud. BANDEIRA, Roberto. O cinema americano e a nova geração de

14 de março de 1950.

cineastas. Rio de Janeiro: Editorial Andes, 1957, p. 39.

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307


O entusiasmo com Amarga esperança logo dará lugar à decepção no filme

A descoberta de Ray pela crítica brasileira — especialmente a carioca, aqui

seguinte, o melodrama A vida íntima de uma mulher (A Woman’s Secret, 1949),

tomada como exemplo — se deu, portanto, de forma um tanto ambígua: trata-

prefigurando o que seria uma característica comum à trajetória de Nicholas Ray,

va-se evidentemente de um diretor talentoso, embora muito irregular. Por essa

isto é, a alternância entre pontos altos e baixos. A vida íntima de uma mulher vai

razão, ele jamais foi uma unanimidade. Ao longo dos anos 1950, os filmes de

ser considerado por Viany, no já citado balanço das estreias de 1949, como “um

Nicholas Ray serão considerados interessantes, ridículos, tediosos, vibrantes, ex-

dos piores filmes de qualquer ano”. A realização seguinte, no entanto, reabilita

traordinários, corajosos, frustrados, soporíferos, maduros, vertiginosos, amargos,

Nicholas Ray, que com O crime não compensa (Knock on Any Door, 1949) merece

ríspidos, vulgares, profundos, indesculpáveis, meticulosos, decepcionantes, ra-

novamente figurar “entre os cineastas mais promissores de Hollywood”. São vários

zoáveis, pretensiosos, dissonantes, medíocres, íntegros... e uma série de outros

os pontos positivos destacados por Viany: em primeiro lugar, o tema corajoso, que

adjetivos largamente utilizados pelos críticos que se surpreendiam a cada títu-

mais uma vez denuncia a sociedade como corruptora dos jovens; além disso, o

lo lançado nos cinemas: como localizar em Sangue ardente (Hot Blood, 1956)

astro Humphrey Bogart está muito bem, “intensamente sincero”, lançando-se ao

aquela antiga promessa de Amarga esperança? Como estabelecer relações entre

papel com entusiasmo, até porque, observa o crítico, ele era um dos produtores

Horizonte de glória (Flying Leathernecks, 1951), No silêncio da noite e A bela do

do filme; e, por fim, a própria direção de Ray, que vence o desafio do “filme de

bas-fond (Party Girl, 1958)? O que aproximaria Jornada tétrica (Wind Across

tribunal”, com suas cenas que comumente tenderiam ao estático. “No entanto”,

the Everglades, 1958) ou Amargo triunfo (Bitter Victory, 1957) de um Juventude

comemora Viany, “Ray saiu-se da prova com êxito”.

transviada (Rebel Without a Cause, 1955)? O signo da rebeldia parecia extrapolar

5

Já Moniz Vianna, que em sua coluna no Correio da Manhã também saudara

o campo da ficção e informar o estilo do realizador, constantemente submetido

entusiasticamente a estreia de Nicholas Ray em Amarga esperança, é mais come-

às rígidas convenções do sistema de estúdio e, ao mesmo tempo, buscando a re-

dido nos elogios a O crime não compensa: o filme não chega nem perto de uma

novação onde menos se poderia esperar — por exemplo, no uso da cor em A bela

antiga obra-prima do gênero, Beco sem saída (Dead End, 1937), embora tenha sido

do bas-fond, ou nas “violências” cometidas contra o canônico gênero western,

realizado “com certo cuidado”, sendo inferior, porém, a vários outros filmes com

sobretudo em Johnny Guitar (1954).

tema semelhante, inclusive à obra de estreia do próprio Ray. 6 A desconfiança de

No primeiro caso, A bela do bas-fond, o trabalho de cor é francamente con-

Moniz Vianna é compartilhada por outros críticos cariocas, por exemplo, Hugo

denado por Moniz Vianna, não por ser propriamente ruim, mas por parecer quase

Barcelos, do Diário de Notícias:

sempre incompreensível. Numa determinada cena, reclama o crítico do Correio da Manhã, há “vários tons de vermelho, só de vermelho” — mas “o motivo está oculto”.

Nem a direção esteve à altura do enredo, nem o enredo à altura da história, nem esta, ainda, à de uma lógica mais admissível. Nicholas Ray, o diretor, por não ter captado a plástica de um assunto essencialmente dramático, qual o da criminalidade juvenil, narra geralmente por fórmulas, e com palavras comuns, demonstrando pobreza de vocabulário, falta de vivacidade, além

Em outras cenas, personagens e cenários ganham tons de preto e branco, “mas nem isso é novidade, nem há razão agora para que tenha sido feito”. Admirador de Nicholas Ray que Moniz Vianna era, como explicar tamanho despautério? A culpa cai sobre o produtor, Joe Pasternak, apontado pelo crítico como “velho e irregenerável corruptor”:

do que o estilo lhe sai incolor das mãos, para logo demandar a rotina pão-e-laranja dos homens que fazem cinema sem compreendê-lo. 7

A experiência cromática [...] não deve ter sido ideia de Nicholas Ray. [...] Uma das instruções do produtor, acostumado a trabalhar com um George Sidney ou um homem tão dócil quando Richard Thorpe (muito hábil, a ponto de esconder, para viver, a sua inteligência, só mostrando-a uma vez ou outra),

5. VIANY, Alex. “O ano cinematográfico de 1949” [Parte 1], cit. 6. VIANNA, Moniz. “O crime não compensa (Knock on Any Door)”. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 1950. 7. BARCELOS, Hugo. “O crime não compensa”. Diário de Notícias. Rio de Janeiro, 1950.

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deve ter sido a de que Ray fizesse precisamente o inverso de filmes como Bitter Victory (Amargo triunfo) e In a Lonely Place (No silêncio da noite). O diretor, embora seja um desses que lutam sempre (Hot Blood, Sangue ardente, é um

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bom exemplo de vitória sobre o impossível), agora obedeceu. Party Girl é o

Ray impunha seu estilo, e isso significava dizer — sobretudo nos textos de Moniz

filme que Pasternak queria — e é o ponto mais baixo da carreira de Nick Ray.

Vianna — que uma determinada visão poética de mundo, vigorosamente traduzida

8

pela direção, dava unidade essencial a um conjunto que, exteriormente, para olhos Em relação a Johnny Guitar, o experimentalismo de Ray é igualmente en-

mais descuidados, carecia de harmonia. Assim como o fracasso da “experiência

carado como exibicionismo vazio, rebeldia inócua. De sua coluna na Tribuna da

cromática” de A bela do bas-fond não devia ser creditado ao diretor, mas ao pro-

Imprensa, o crítico Ely Azeredo dedica-se a comprovar que o western estrelado

dutor, os filmes de Ray deveriam ser vistos como resultados sofridos (e, em alguns

por Joan Crawford e Sterling Hayden é apenas uma farsa:

casos, sofríveis) da luta entre o artista e a padronização comercial, entre o gênio e o dinheiro. Dessa luta, apenas algumas vezes o primeiro saía vencedor; na maior

Johnny Guitar, lançado pela Republic como “superprodução”, é um western que só tem de invulgar a audácia com que se assimila a vulgaridade de diversas fórmulas comerciais. É colorido, mas pelo péssimo [processo] Trucolor. Tem Joan Crawford, mas nunca a atriz foi tão maltratada. Seu competente diretor, Nicholas Ray [...] nunca deu tantas provas de incompetência. [...] Algumas cenas têm toda a sofisticação exigível num veículo de Joan Crawford; cenas em que a grande atriz pode arregalar os belos olhos, e concentrar em poucas falas toda a subliteratura de seus piores filmes. 9 É curioso ressaltar que Ely Azeredo, ideologicamente um dos críticos mais afinados a Antônio Moniz Vianna, tem em relação ao conjunto da obra de Ray um posicionamento em tudo diverso do que se verifica naquele mestre e colega. Enquanto o crítico do Correio da Manhã jamais deixava de apontar, mesmo no filme de Ray que mais o desagradava, pelo menos dois ou três aspectos positivos, Ely Azeredo só a muito custo extraía algum elogio da massa de considerações negativas em torno da obra do diretor norte-americano. Esse é um dos exemplos de como a polarização da crítica brasileira em muitos casos não obedecia a critérios tão rígidos quanto comumente se pensa, sobretudo quando o assunto em questão era a obra de um realizador inquieto ou pouco afeito a classificações generalizantes. Se por um lado a percepção por parte da crítica da rebeldia de Nicholas Ray (para o bem ou para o mal) identificava-se à ideia de insubordinação do artista diante da padronização imposta pelos produtores e pelos estúdios — o que remete

parte dos casos, a vitória era mesmo do sistema industrial hollywoodiano. Restava o esforço do poeta, e era assim que Ray era entendido por um de seus mais ardorosos defensores, Moniz Vianna, que em sua argumentação em defesa do cineasta recorria frequentemente à lógica autorista, citando mesmo, em alguns casos, os jovens críticos franceses contemporâneos da Cahiers du Cinéma. O caso de Moniz Vianna não era, porém, o de um crítico seguidor da política dos autores. Mais uma vez, é necessário atentar para as nuances do debate crítico entre nós. Até os anos 1960, a Cahiers du Cinéma não exerceu uma influência significativa junto aos principais críticos brasileiros em atividade, que em grande parte eram bem mais velhos do que os “jovens turcos” (Truffaut, Godard, Rohmer etc.). É possível afirmar que nos anos 1940-50, no Brasil, nem mesmo André Bazin, o guru da Cahiers, foi tão influente assim. Ao contrário, a crítica comunista francesa — sobretudo Georges Sadoul — e italiana — Umberto Barbaro, Guido Aristarco, Luigi Chiarini e as revistas Cinema Nuovo e Bianco i Nero — eram de fato aquelas de maior prestígio junto à crítica cinematográfica brasileira de esquerda, notadamente Alex Viany e Salvyano Cavalcanti de Paiva. Assim, não fica difícil compreender que, para Moniz Vianna, a Cahiers du Cinéma não significasse propriamente — como se dará com Glauber Rocha e os cinemanovistas — a descoberta de um determinado método crítico, de resto já exercido intuitivamente pelo colunista do Correio da Manhã desde meados dos anos 1940, mas uma oportuna alternativa à crítica comunista. Em crítica a Juventude transviada, por muitos considerado o ponto mais alto da carreira de Nicholas Ray, dirá Moniz Vianna:

à discussão sobre arte versus indústria comentada mais acima —, por outro lado ela está ligada à absorção entre nós de determinados pressupostos de análise funda-

[...] ainda há quem insista em negar a Nick Ray o que dão, indebitamente,

mentados na política dos autores francesa. Contra tudo e contra todos (maus pro-

aos medíocres fazedores de “neorrealismos”, [atribuindo] o prestígio do ci-

dutores, roteiristas medíocres, atores inadequados, temas ridículos etc.), Nicholas

neasta a uma “invenção” de alguns críticos franceses — por sinal os melhores da Europa e os que, neutralizando o academicismo de alguns colegas

8. VIANNA, Moniz. “A bela do bas-fond (Party Girl)”. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 1959. 9. AZEREDO, Ely. “Johnny Guitar”. S. veículo. Rio de Janeiro, 1954.

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e expulsando os Sadouls, fizeram da Cahiers du Cinéma a revista que discute com maior personalidade e mais penetrantemente os problemas do

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cinema. Se o entusiasmo, em algumas ocasiões, traz a idolatria [...], a sua

Moniz Vianna — para quem, como vimos, o artificialismo formalista de um

falta ou a sua inversão gera anomalias graves e aparentemente incorrigíveis

A bela do bas-fond era francamente deletério — no caso de Juventude transviada

(“cinemaScofobia”, zavattinite obliterante), 10 quando não leva à depreciação,

discorda veementemente de Ely Azeredo: ao escrever o roteiro, Nicholas Ray de-

por anestesia, dos mais legítimos valores artísticos.

monstrava “já estar capacitado a produzir a obra artisticamente definitiva que

11

suas outras experiências prefiguravam”. Seu intuito, porém, não é o de pregar Ao falar em “legítimos valores artísticos” opondo Ray aos neorrealistas, Moniz

mensagens: “porque Ray é essencialmente um artista, não faz sociologia de bolso:

Vianna está na verdade se referindo a uma das principais discussões em pauta

a interpretação que dá ao problema é sempre menos sociológica do que poética.”

no meio cinematográfico brasileiro da segunda metade dos anos 1950, qual seja,

E o crítico cita Eric Rohmer: “Nick Ray é o poeta da violência e do amor.” Por essa

aquela ligada ao realismo. Aqui, os conflitos ideológicos entre as correntes da

razão, continua Moniz Vianna, “jamais se sentiria o diretor inclinado a empregar

crítica brasileira vão estabelecer diferenciações entre forma e conteúdo, identi-

o estilo realista [...] — e nem em Knock on Any Door, quando tudo o levava ao

ficando, grosso modo, o primeiro termo à noção de universalismo da linguagem

realismo, foi só um realista.” 13

cinematográfica (logo, à primazia do cinema norte-americano) e o segundo termo

Os anos 1960 foram particularmente ingratos para Nicholas Ray. O rei dos

à ideia de comprometimento do tema à realidade nacional (logo, à contraposi-

reis (King of Kings, 1961) e 55 dias em Pequim (55 Days at Peking, 1963) serão fra-

ção das cinematografias europeias e periféricas, como era o caso da brasileira).

cassos retumbantes. No âmbito da crítica cinematográfica brasileira, sua obra será

Há, evidentemente, uma série de variações no interior do esquema acima traçado.

“eclipsada” — termo usado por Paulo Perdigão, em 1966 ­— pelos “cinemas novos”

Por isso mesmo, é curioso observar como a obra de Nicholas Ray não conseguia

que despontaram na Europa, na América Latina e mesmo nos Estados Unidos.

ser perfeitamente encaixada em nenhuma das duas correntes: tanto os formalistas

O cinema de autor não era mais resultado de um método crítico, mas a filmografia

quanto os realistas sofriam constantes decepções.

de diversos realizadores que recusavam os estúdios e aplicavam algumas fórmulas

Para Ely Azeredo, Juventude transviada era um filme frustrado: sem posicio-

e procedimentos neorrealistas, para a tristeza de um Moniz Vianna que, aliás, pre-

nar-se claramente diante do tema, não podia ser considerado um filme de tese,

cisou engolir como cineastas os ex-“melhores críticos da Europa”— possivelmente

embora não fosse simplesmente um thriller, pois era bem mais pretensioso. Aqui

transformados, na opinião do veterano crítico carioca, nos piores da Europa...

a questão formal parece vir à tona como uma das causas do fracasso:

A redescoberta de Nicholas Ray virá apenas nos anos 1980, com Um filme para Nick (Lighting Over Water, 1980). Antes disso, nos anos 1970 a crítica de cinema

Nicholas Ray nunca foi um grande diretor, mas a coragem e a autenticidade de Knock on Any Door (O crime não compensa) e They Live by Night (Amarga ironia [sic]), dois filmes sobre delinquência juvenil de seis e oito anos atrás, eram credenciais para a realização realista que o problema está exigindo. Mas Ray mostra-se tremendamente artificial e, sendo também autor da história original, não merece absolvição por personagens e conflitos tão esquematicamente armados. 12

no Brasil praticamente ignorou Nicholas Ray, a não ser festejando eventuais reestreias de filmes produzidos há duas décadas. Não se deve estranhar esse fato: como enquadrar, classificar, rotular e consumir aquele velho cineasta hollywoodiano que, antecipando o Godard de Numéro deux (1975) e das Histoire(s) du cinéma (198898), experimentava como um jovem de vinte anos a montagem de telas múltiplas e a junção de várias bitolas (35mm, 16mm, 8mm e vídeo) em We Can’t Go Home Again (1973-76), obra a que jamais conseguiu dar um ponto final?

10. Referências irônicas à rejeição aos espetáculos em CinemaScope, tecnologia de captação de imagens e de projeção com lentes anamórficas, inaugurada com o filme O manto sagrado (The Robe, 1953), e aos elogios da crítica de esquerda ao roteirista e diretor italiano Cesare Zavattini, um dos principais teóricos do neorrealismo. 11. VIANNA, Moniz. “Juventude transviada (Rebel Without a Cause)” [Parte 1]. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 1956.

13. VIANNA, Moniz. “Juventude transviada (Rebel Without a Cause)” [Partes 1 e 2]. Correio

12. AZEREDO, Ely. “Juventude transviada”. Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 1956.

da Manhã. Rio de Janeiro, 1956.

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OS VELHOS MORREM, OS JOVENS RECAPITULAM

No ano seguinte, a segunda e última edição do Festival. Além de uma seleção de curtas soviéticos e do Guernica de Alain Resnais, são exibidos filmes de Edward Dmytryk, John Sturges, Mark Donskoy, Alfred Hitchcock e Alexander Mackendrick,

Bruno Andrade

cineastas célebres entre certos círculos parisienses obscuros. Dentre os novatos que o Festival exibe, dois nomes que mais tarde fariam balançar o terreno até então seguro dos valores cinematográficos vigentes: Michelangelo Antonioni, A cena se passa em 1963, na Espanha, durante um intervalo nas filmagens de 55

com Crimes d’Alma (Cronaca di un Amore, 1950), e Nicholas Ray, com Amarga

dias em Pequim (55 Days at Peking, 1963). Nicholas Ray responde às perguntas

esperança (They Live by Night, 1948).

de alguns críticos europeus: Adriano Aprà (italiano, revista Cinema & Film), José

Não tardará para que a revolução crítica que teve início em Biarritz se es-

Luis Guarner (espanhol, revista Nickel Odeon), Barry Boys, Ian Cameron, Paul

palhe pelas principais capitais da Europa. É a própria importância que a França

Mayersberg e V. F. Perkins (ingleses, revista Movie). A entrevista será publicada

terá nesses primeiros anos de questionamento dos cânones cinematográficos que

parcialmente na edição nº 9 da Movie, e na sua totalidade no nº 14 da Nickel Odeon.

podemos retraçar ao Festival. Inspirados pelo gesto de Cocteau, os jovens críticos

O que pode parecer uma simples anedota, representa na realidade um dos pontos

capitaneados por Rivette e Rohmer viram de ponta-cabeça os valores estáveis para

significativos do papel assumido e desempenhado pela crítica cinematográfica

tomar em consideração cineastas menosprezados pela crítica da época: além de

durante um período que vai do início da década de 50, a aproximadamente me-

Hitchcock e Renoir, Howard Hawks, Roberto Rossellini, Jacques Becker, Joseph

ados da década de 60, e que teve em Nicholas Ray a figura emblemática do autor

L. Mankiewicz, Fritz Lang, Anthony Mann, Robert Aldrich e Nicholas Ray formam

a ser defendido.

o panteão de uma revolução em andamento, que ainda ensaiava seus primeiros passos. Eis o que faz com que hoje seja impossível distinguir a lenda que cerca ***

os primeiros anos de publicação da revista Cahiers du Cinéma, da fama que ela imprimiu ao nome de Nicholas Ray.

Em 1949, Jean Cocteau, amparado pelos membros do cineclube Objectif ‘49, orga-

Uma saúde intelectual sem precedentes (e sem sucessores) tornava-os espe-

niza o Festival do Filme Maldito, no qual se exibe filmes de Jean Vigo - de difícil

cialmente aptos à realização deste trabalho: a França de então ainda respirava a

circulação até então -, Soberba (The Magnificent Ambersons, 1942) e A dama de

prosa de Elie Faure e André Malraux. Com antepassados notáveis como Diderot

Shanghai (The Lady from Shanghai, 1947) de Orson Welles, As damas do Bois

e Baudelaire, e contando com figuras tutelares como Bazin e Astruc, esses jovens

de Boulogne (Les Dames du Bois de Bologne, 1945) de Robert Bresson, Lumière

críticos encontravam-se suficientemente amparados pelo que de melhor havia sido

d été (1943) de Jean Grémillon, Tensão em Shanghai (The Shanghai Gesture, 1941)

produzido na crítica de arte européia. Herança assumida com desprendimento e ri-

de Josef von Sternberg, A longa viagem de volta (The Long Voyage Home, 1940)

gor, uma verdadeira consciência moderna, como demonstram os artigos de Rivette

de John Ford, Fireworks (1947) de Kenneth Anger, e Obsessão (Ossession, 1943) de

sobre Paixão de bravo (The Lusty Men, 1952), Truffaut sobre Johnny Guitar (1954),

Luchino Visconti, Semente do Ódio (The Southerner, 1945) de Jean Renoir, além

Rohmer sobre Juventude transviada (Rebel Without a Cause, 1955), Godard sobre

de filmes de Jean Rouch, Jacques Tati e René Clair.

Sangue ardente (Hot Blood, 1956) e Amargo triunfo (Bitter Victory, 1957), Philippe

Essa atenção dada ao cinema norte-americano, cujo conhecimento o público

Demonsablon sobre Jornada tétrica (Wind Across the Everglades, 1958) e prin-

francês só pode ter a partir de 1946 (durante a ocupação, a produção norte-ameri-

cipalmente Fereydoun Hoveyda no texto seminal dedicado a A bela do bas-fond

cana foi completamente banida do território francês), bem como a um cinema eu-

(Party Girl, 1958) (“Como alguém pode descrever em palavras o que a mise en scène

ropeu subterrâneo, extra-industrial - maldito, segundo a fórmula de Jean Cocteau

pode transmitir em alguns segundos?”), todos publicados nas páginas dos Cahiers.

- constitui a ponta-de-lança de uma vanguarda crítica e teórica inicialmente ca-

“Agora Rossellini está pondo a porta a baixo; mas você também pode respirar

pitaneada por André Bazin, na qual o acompanhavam futuros cineastas como

essa lufada de ar fresco, que nos chega do outro lado do oceano” 1, escreve Jacques

Alexandre Astruc, Roger Leenhardt, Jacques Rivette, Maurice Schérer (mais tarde Eric Rohmer), François Truffaut, Claude Chabrol e Jean-Luc Godard.

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1. RIVETTE, Jacques. Notes sur une révolution, Cahiers du Cinéma, nº 54, natal 1955.

315


Rivette em 1955, num texto que, de um grupo de cineastas que inclui Richard

todo. O pequeno grupo que impôs no circuito parisiense o nome de Ray — composto

Brooks, Anthony Mann e Robert Aldrich, Ray é destacado como “o maior e o mais

de fanáticos pelo cinema norte-americano e frequentadores assíduos do cinema

secreto; sem dúvida alguma o mais espontaneamente poético”. Como no caso de

MacMahon — abandona sua obra no momento em que ela passa a se caracteri-

Rossellini, é justamente o segredo dessa poesia, a sua encarnação em mise en scène,

zar por uma poesia que revela, em retratos pungentes, as inseguranças de seus

que exigiu da crítica um equilíbrio entre inteligência e sensibilidade. Em contra-

principais personagens: os heróis firmes e contrariados dos primeiros filmes dão

partida, um tal confronto da paixão com a lucidez, fez com que o exercício crítico

lugar a encarnações menos ásperas, mais febris e estremecidas do homem adulto.

se conduzisse naturalmente à tentativa de elucidação de um conteúdo que, pela

A batalha por um cineasta havia sido ganha, mas justamente no momento em que

sua própria essência poética, é por definição furtivo à simples análise. É aqui

a “maldição” — que desde o início pairava sobre ele (Biarritz, 1950) — se instalava

que a crítica de arte faz a sua entrada definitiva: é através do diletantismo, de um

definitivamente, encerrando de vez uma trajetória que se confunde intimamente

exercício nobre do gosto, e somente por ele, que uma obra de arte digna do nome

à aventura de uma crítica que extraiu de sua obra uma verdadeira arte poética

pode ser acessada e devidamente apreciada.O que é especialmente interessante

do cinema.

numa obra como a de Ray é que ela parece destinada, pela sua irredutibilidade, à entrega absoluta, à adesão mais completa desse novo tipo de espectador. Os dilemas dos protagonistas podem ser partilhados tanto por uma platéia jovem

***

como pelos mais adultos, e admiramos principalmente a franqueza com que Ray retrata suas instabilidades: homens que se comportam como delinqüentes juvenis,

É aqui que voltamos a 1963, no exato momento em que tudo está para acabar. Ray

jovens que agem com uma maturidade para a qual não foram preparados. Apesar

é entrevistado durante a rodagem do filme que pôs um fim à sua breve carreira.

de um temperamento que o conduzia a uma contemplação poética incomum aos

Após anos de trabalho da crítica francesa, é a vez de alguns jovens homens de

cineastas de sua geração, tais proposições aproximam Ray da fibraque caracte-

nacionalidades distintas se reunirem ao redor daquele que inspirou as paixões

rizava outros grandes diretores como Joseph Losey, Jules Dassin e Elia Kazan

mais violentas, os posicionamentos mais persistentes, o desvio de rumo que con-

(homens que, como Ray, vieram do teatro). Mais tarde, obras como as de Michael

duziu a crítica de cinema à sua idade adulta. Os caminhos do realizador e de seus

Cimino — O franco atirador (The Deer Hunter, 1978), O ano do dragão (Year of the

interlocutores curiosamente se cruzam: Ray para de filmar ao mesmo tempo em

Dragon, 1985) — e Jean-Claude Brisseau — De barulho e de fúria (De Bruit et de

que o papel dessa crítica se completa.

Fureur, 1988), Os indigentes do bom Deus (Les Savates du Bon Dieu, 2000) — esclarecem certos aspectos cruciais da obra de Ray, prolongando-a num horizonte que, pelo intermédio dos textos de João Bénard da Costa, Bernard Eisenchitz e Louis Skorecki, também se estendeu ao campo da crítica. A última fase da obra de Ray, que inclui todos os filmes que sucedem Amargo triunfo, é marcada pela intensificação de algumas das características apontadas acima. O lirismo, a que sua obra nos habituou, alia-se a uma inspiração agora mais prevenida, mais serena, ao mesmo tempo que mais obstinada, e portanto mais apaixonante. Por uma estranha coincidência, é no contexto dessa última evolução que observamos um fenômeno importante: alguns dos seus principais admiradores de primeira hora, como Jacques Lourcelles 2 e Michel Mourlet, talvez já prevendo o impasse a que essa obra se encaminhava, rejeitam-na no momento em que ela conquista a adesão de novos críticos e dos jovens cinéfilos do mundo 2. Posição parcialmente revista no obrigatório Dictionnaire du Cinéma, Paris: Laffont, 1992.

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Nicholas Ray, sem Mitificar

Tudo é relação, equilíbrio e desequilíbrio, uma luta de proporções em busca de um ideal impossível. O mundo é recriado a cada corte ou re-enquadramento

Chris Fujiwara

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num filme de Ray, porque o mundo não existe senão como relação. Nunca há consenso, só eu, você e um terceiro, que em alguns dos filmes de Ray podem ser a sociedade, a justice, a lei ou alguma outra abstração, uma força intelectual que exerce dominação, como um mito. Ray e seus personagens constantemente sentem

Seja o que for que ainda possa vir da lenda de Nicholas Ray, não é mais uma verdade de que Ray necessita. O mito já foi bem estabelecido, em grande parte graças a seu filme mais famoso, Juventude transviada (Rebel Without a Cause, 1955): Ray é costumeiramente romantizado – e, por vezes, ridicularizado – como o poeta cinematográfico norte-americano dos foras da lei, forasteiros e adolescentes, como um artista autodestrutivo arruinado pelo álcool, pelas drogas, bom demais para Hollywood. Quando grande parte de sua obra ainda era completamente desconhecida, e a política dos autores era uma posição minoritária, mantida por um bando de rabugentos renomados, tais elogios fizeram-se necessários para nortear as pessoas em direção às verdadeiras realizações de Ray. Mas, agora, a batalha para se ter Ray como um grande artista já foi vencida. A confirmação disto é a atual comemoração internacional de sua obra, no ano do seu centenário. Suas obras-primas falam por si só: não precisam de nenhuma mitificação. Jean-Luc Godard escreveu que Amargo triunfo (Bitter Victory, 1957) assemelha-se a um desenho cheio de artimanhas: “Não nos interessamos pelos objetos, mas pelo que existe nas entrelinhas e que, por sua vez, se torna um objeto”. É um comentário adequado: cada filme de Ray forma padrões ocultos à primeira vista. A tensão de No silêncio da noite (In a Lonely Place, 1950) se articula tanto pelo modo como os caminhos (das pessoas, dos olhos) entrecruzam os espaços de um set de bangalôs hollywoodianos, quanto pela dureza maníaco-depressiva de Humphrey Bogart como um roteirista suspeito de ter cometido assassinato. Expansivo em seus sentimentos pelo submundo do circuito de rodeios do Oeste, Paixão de bravo (The Lusty Men, 1952) é uma peça melancólica cuja tensão se concentra nas saudades reprimidas e silenciadas de três pessoas (Robert Mitchum, Arthur Kennedy, Susan Hayward). Johnny Guitar (1954), a primeira das obrasprimas coloridas de Ray, mostra sua crescente confiança em desdobrar tempo e espaço utilizando-se de movimentos, gestos e ângulos de câmera, encontrando

a necessidade de se medirem contra a pressão e o prestígio de tais mitos, que eles rejeitam pois vivem até o fim a lógica da solidão necessária. Até em um filme tão comprometido, quanto O rei dos reis (King of Kings, 1961), Ray cria uma forte e inteligente visão de uma sociedade apartada por ideais que compentem um com as outros para impor união – todos falhando. Os filmes de Ray são de constante desafio e instabilidade. Delírio de loucura (Bigger Than Life, 1956) é seu melhor filme por ser o mais inclassificável. É, e não é, um ataque ao conformismo e consumismo norte-americano. É, e não é, um estudo psicológico realista de um homem sucumbindo ao vício. Como outros filmes do Ray, lida com a fuga, e neste, todas as rotas de fuga estão bloqueadas; um filme sobre o caráter funesto da vida comum da classe média nos Estados Unidos, grandioso em suas cores e designs. O célebre uso que Ray faz do CinemaScope nunca foi tão hábil quanto nas aberturas e fechamentos dos espaços em torno de seu heróico professor escolar (James Mason) e sua família aterrorizada. “A chave para a emoção estética é uma função do espaço”, escreve Le Corbusier in O Modulor 2. O CinemaScope é importante para Ray, e Ray é importante para o CinemaScope, porque o alongamento do quadro amplia (num sentido literal) o campo de escolhas para descrever o espaço entre as pessoas, ao mesmo tempo em que torna manifesta a função do diretor ao fazer estas escolhas. Todos os seus principais filmes, e particularmente os filmes em Scope, tem como tema o problema de tentar impor medidas humanas a um espaço-tempo cósmico. (Le Corbusier cita O Livro das Revelações 3 — “Havia um silêncio no céu pelo espaço de aproximadamente meia hora.”) O problema é posto explicitamente nas sequências do planetário de Juventude transviada, o primeiro filme de Ray em scope , e é novamente endereçado na misè en scene de Amargo triunfo, com suas agonizantes composições de homens encalhados nas intermináveis extensões do deserto. Nestes dois filmes, e em Delírio de loucura, a desordem e as explosões

uma forma concisa de acompanhar situações complexas. 2. CORBUSIER, Le. O Modulor. Lisboa: Orfeu Negro, 2010. Tradução de Marta Siqueria. 3. Ínuites é uma nação indígena de esquimós que habitam o Canadá, o Alaska e a Groelândia. 1. Nicholas Ray, Without Mythologizing. Tradução de Pedro Henrique Ferreira.

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(N.T)

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do espaço, as incessantes reações e reajustes entre as pessoas e seus arredores,

gimento nas últimas cinco tomadas de Sangue ardente (Hot Blood, 1956), quando

criam uma tensão incrível, que é um dos mistérios mais espantosos dos produtos

ele alterna variações de movimentos giratórios contra ritmos de avanços e freadas

visuais de Ray.

abruptas. As pessoas, nos filmes de Ray, por vezes giram umas em torno das outras,

Olhar, para Ray, tem uma força imensa e enigmática. Amargo triunfo é um

improvisando balés tangentes à linha narrativa. Amargo triunfo faz destes movi-

filme radical sobre, e de, olhares, onde as pessoas estão sendo constantemente

mentos um tema, como, por exemplo, quando algumas crianças árabes fazem um

posicionadas e reposicionadas em relação umas às outras, em um estado de deso-

oficial inglês rodopiar na rua, ou quando o oficial esbarra contra um boneco de

rientação sempre renovado. Na quase ausência de pontos de referência no cenário

pano, fazendo-o girar. Em A bela do bas-fond, o remover de um curativo do rosto

do deserto da Líbia, Ray consegue criar uma sucessão de situações visuais limítro-

de Cyd Charisse é mostrado em uma série de tomadas que prolongam o suspense

fes. A relação de espelhamento dos dois personagens principais (Richard Burton,

em um movimento de lenta curvatura. A incrível estilização dos gestos, assim

Curt Jürgens) reproduz a natureza onírica do cinema, cada personagem servindo

como o magnífico desdobrar dos terrenos e arquiteturas, em Johnny Guitar, fazem

tanto como o representante imaginário do outro, quanto seu espectador. Jeff e

com que este western se assemelhe a um musical, onde os personagens trocam

West, em Paixão de bravo, também formam uma relação deste natureza: o aluno

de parceiros e de roupas em uma interminável dança pelas múltiplas locações -

trocando de lugares com o professor, para então voltar novamente ao lugar de

morrendo (simbólica e verdadeiramente) e renascendo.

aluno - na cena final de rodeio -, num momento prolongado por troca de olhares.

Ray preenche seus filmes com momentos provocantes, que não podem facil-

Um leit-motif que se repete em A bela do bas-fond (Party Girl, 1958) é o olhar

mente ser colocados na narrativa, mas que repentinamente libertam a experiência

incerto: nervoso, redundante, às vezes ameaçando violentamente (os olhares dos

dentro desta e os tornam fundamentais para ela. Um menino pequeno aponta uma

gângsteres para Vicki [Cyd Charrise]), às vezes procurando a confirmação de que

arma de brinquedo de madeira a John Derek, em Fora das grades (Run Fo Cover,

o outro está olhando (o gângster olhando a Farrell [Robert Taylor], enquanto os

1955); Cyd Charisse encara Robert Taylor enquanto seu casaco cai no chão,

curativos de Vicki são removidos). A edição também é parte crucial. No encontro

em A bela do bas-fond. Imagens como a do filho entregando a bola de futebol

clímax entre o advogado Robert Taylor e o gângster Lee J. Cobb, em A bela do

para seu pai, no clímax de Delírio de loucura, possuem um excesso alucinatório

bas-fond, Ray corta para tomadas de outro advogado, David Opatoshu - alarmado,

de clareza. Em Cinzas que queimam (On Dangerous Ground, 1951), o ódio por

porém quieto. A estranheza destes cortes é uma marca de Ray, que se usa de tais

si mesmo do policial Robert Ryan — no fade-out da cena onde ele está prestes a

tomadas em praticamente todos os filmes: elas implicam uma ligação dissimulada

espancar um homem em troca de informação — é mais apavorante do que seria

ou contraditória - às vezes preparando uma tensão que será mais tarde liberta,

ver o espancamento.

às vezes revelando as entrelinhas escamoteadas de uma determinada situação.

Desde Amarga esperança (They Live by Night, 1949), seu filme de estreia sobre

Ray frequentemente começa uma tomada um pouco antes da ação assumir

amantes fugitivos, Ray está dizendo adeus a Hollywood, e a despedida se torna

sua forma definitiva - como no silencioso prelúdio, para o famoso encontro nas

cada vez mais definitiva em seus últimos filmes, que são, em sua maioria, fora de

escadas de James Dean com seus pais, em Juventude transviada - , mostrando a

estúdios (até ele ter se tornado tão vítima quanto Samuel Bronston e suas tentativas

instabilidade e o fluir das coisas. Por usar, em sucessão, ângulos de câmera leve-

homéricas de recriar Hollywood na Espanha). O filme sobre Inuítes 4, Sangue sobre

mente distintos um do outro, dentro de um mesmo e dado evento, Ray perturba as

a neve (The Savage Innocents, 1960), não é nem uma película etnográfica nem um

cenas de tal modo, que estas parecem estar à busca ou de um equilíbrio ilusório,

exercício de exotismo trivial, mas um conto de fadas cruel e mágico com um final

ou de estarem prontas para explodir suas constrições espaço-temporais. Nos filmes

de sublime impossibilidade. Jornada Tétrica (Wind Across the Everglades, 1958)

de Ray, as pessoas normalmente não saem de quadro, tanto quanto caem para fora

é, como o Faces (1968), de John Cassavetes, afetado por álcool em sua própria

deles em frenesi, como o grupo de adolescentes que se arrastam em direção à beira

forma. Isto ocorre de maneira tão profunda, que até a brusquidão das transições —

de um abismo para encarar a prova de sua mortalidade no final da sequência de corrida de Juventude Transviada. Ray inventa movimentos que dão tanto sentido, quanto ambiguidade, a seus filmes. Nada é mais típico de seu estilo do que a combinação de graça e constran-

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4. Jonathan Rosenbaum, “Circle of Pain: The Cinema of Nicholas Ray”, Sight and Sound, outono de 1973.

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que é, parcialmente, resultado de cortes que se deram depois que Ray foi retirado

Lição de cinema

do projeto – termina elevando a intensidade do filme, o excesso de sua presença.

(sobre a cena do grapefuit em No silêncio da noite)

Desigual, mutilado, com uma sequência final que é obviamente, e penosamente, filmada e encenada de forma diferente do resto do filme (ainda que a se-

Leonardo Levis

quência, tematicamente, reapareça em outros filmes de Ray, como Amargo triunfo e Sangue sobre a neve), Jornada tétrica carrega a inconfundível estampa de Ray. A sequência impressionante na qual, em meio a uma tempestade selvagem, o herói (Christopher Plummer) se encontra prisioneiro e companheiro de bebedeira

No silêncio da noite (In a Lonely Place, 1950) foi meu terceiro Nicholas Ray. Antes

de seus inimigos, é uma das maiores cenas que Ray já realizou. A documentação

já havia assistido a Johnny Guitar (1954) e Juventude transviada (Rebel Without

da estranha e desconhecida subcultura dos fora da lei dos Everglades, e o uso da

a Cause, 1955) e, se os amei quase como se pode amar um filme, também os dei-

música folk em várias de suas cenas, apontam diretamente para os interesses

xei de lado, pouco tempo depois, como quem não deve a eles fidelidade alguma.

e predileções de Ray. A qualidade das imagens e dos movimentos — quebradas,

Mal sabia eu que essa fidelidade logo seria cobrada. Eu trocava os canais da tevê

abruptas e fragmentadas — desenvolvem o estilo que Ray estava perseguindo e

por assinatura quando cruzei, pela primeira vez, meus olhos com os de Humphrey

refinando por toda a sua carreira, e que se ampliaria no trabalho de multi-telas de

Bogart, destacados no retrovisor do carro, na cena inicial de No silêncio da noite.

We Can´t Go Home Again (1973).

Parei, hipnotizado, e ali fiquei. Não havia outra possibilidade. O filme me atingiu,

Para aqueles que se importam com Ray, Jornada tétrica é uma obra extraor-

me encurralou, me levou a nocaute. E digo a mais tenebrosa verdade: ninguém,

dinária: repleta de erros, porém não menos marcada pelo brilhantismo visual do

nunca, deveria ver um filme de Nicholas Ray mudando de canais, sem preparo,

diretor, e sua visão triste, porém lúcida e humana, de seus personagens e das rela-

quase sem querer.

ções humanas. Deste modo, é mais uma obra-prima entre as onze que elegi em sua

Voltei muitas vezes depois ao filme, mas sempre com certo temor. É difícil

filmografia, junto a Delírio de loucura, Amargo triunfo, Paixão de bravo, Juventude

dizer que amei No silêncio da noite como Johnny Guitar ou Juventude transviada,

transviada, No silêncio da noite, Johnny Guitar, Amarga esperança, Sangue sobre a

a não ser que pensemos nesse amor como o exemplificado pela obra do cineasta:

neve, A bela do bas-fond e Cinzas que queimam. Junto com alguns de seus filmes

um sentimento tão intenso e obsessivo que chega a ser destrutivo; algo que justifica

mais comprometidos, mas extremamente expressivos acerca do olhar de Ray —

uma vida inteira, mas que por isso mesmo não dura mais que uns breves, belos

Fora das grades, Sangue ardente e O rei dos reis, pelo menos — e o póstumo We Can´t

e terríveis momentos. Esqueçamos o amor então, pelo menos por um segundo.

Go Home Again — “Sem dúvidas, o cinema em seu zênite” como disse Jonathan

Creio que tenho medo de voltar ao filme, sempre, porque voltar a No silêncio da

Rosenbam — , estes filmes constituem um corpo de obras cuja peculiar atmosfera

noite é possivelmente resgatar algum segredo recôndito em mim que eu prefiro

continua a ressoar, carregando novos e velhos espectadores para um mundo vivo

manter escondido. É saber que aquelas imagens me explicavam antes mesmo

de cinema, para além da mitificação.

que eu as conhecesse. É não conseguir virar os olhos para a grande tristeza que

é ser humano. Por isso, escrever sobre ele é tão difícil. Uma coisa é escrever sobre algo que se admira, com maior ou menor intensidade, ou mesmo sobre algo que se odeia. Outra, no entanto, é tentar entender o que acontece quando uma obra de arte chega a um nível distante de qualquer possibilidade crítica; quando a reação que ela provoca encontra-se muito além da simples soma de seus elementos, quando a técnica, e mesmo o estilo, que eu defendo tanto e tão veementemente, parecem elementos quase acessórios na busca de algo maior e tão poucas vezes alcançado. Um cinema que jorra do corpo, como a bílis — e que ao fígado terá de retornar. Esse é o cinema dos cinemas, esse é Nicholas Ray.

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É muito difícil escrever sobre Nicholas Ray, mas tentemos. I was born when she kissed me/ I died when she left me/ I lived a few weeks/ While she loved me 1 Primeiro, o contexto. Estamos em 1950. Billy Wilder dirige Crepúsculo dos deuses (Sunset Boulevard) e Joseph L. Mankiewicz, A malvada (All About Eve). Os filmes viram clássicos instantâneos, disputando e angariando estatuetas douradas, sendo exibidos em escolas de cinema, cursos, retrospectivas, marcando um ano conhecido, por causa dessas duas obras, como aquele em que Hollywood voltou-se para si mesma. Pois nesse mesmo ano, sem pompa nem circunstância, Nicholas Ray realiza No silêncio da noite, um pequeno filme noir também sobre as entranhas do espetáculo cinematográfico. Não é preciso reiterar que os filmes de Wilder e Mankiewicz ficaram com os louros e a consagração histórica. Ao filme de Ray, restou apenas ser o melhor. No silêncio da noite marca a segunda e última parceria entre Ray e Humphrey Bogart, uma parceria que, apesar de curta, não poderia ser mais certeira. Na figura de Bogey, o cineasta encontrou um reflexo de sua própria intensidade, de sua inadequação às regras sociais, de sua força criativa e destrutiva e, principalmente, da violência resultante disso tudo. Bogart é, sendo Bogart, o espelho de Ray. No filme, isso fica ainda mais claro, considerando que o cineasta escalou como a protagonista feminina Gloria Grahame, mulher do próprio Ray à época, mas de quem estava se separando, no que João Bénard da Costa, em seu belo artigo sobre o filme, chama de “um terrível ajuste de contas, na dimensão mais apaixonada e demencial de que o cinema conservará memória”. 2 A história toda se passa em Los Angeles. Bogey vive Dix Steele, um roteirista talentoso, porém em baixa, que parece ter perdido o prazer na vida. Grahame vive Laurel Gray, uma atriz que não deu certo e não sabemos muito mais sobre ela, além do fato de recentemente ter se mudado para o condomínio do roteirista. Ele é acusado de assassinato, Grahame é sua única testemunha, os dois se apaixonam ardentemente. Mas a intensidade de Dix é tanto sua grande qualidade quanto seu maior defeito: aquilo que o destaca dos demais também é base de um comporta-

mento obsessivo e extremamente violento. Aos poucos, Laurel começa a duvidar se Dix é ou não inocente. História contada, chegamos então à tal cena citada no subtítulo do texto. Laurel acorda e, ainda sonolenta, vai à cozinha, onde Dix lhe prepara um café da manhã. Ele serve um grapefruit (ou uma toranja, para os amantes de nossa língua pátria) meio sem jeito, como fica comprovado pelo mau uso da faca, que Dix desentorta quando não deveria. É uma cena cotidiana, na qual acompanhamos as ações com uma temporalidade um tanto mais lenta que a usual num filme norteamericano. Laurel chega após se arrumar e diz a Bogey que a sequência de amor que ele havia acabado de escrever é muito bonita, ao que Dix retruca: “É porque em momento algum eu falo de amor. Veja nós dois, aqui, nesse momento, eu servindo um grapefuit, você quase dormindo. Qualquer um que olhasse poderia dizer que estamos apaixonados.” Eis uma lição de cinema e tanto! Wilder e Mankiewicz adorariam ter escrito essas palavras, com certeza. Para se falar de algo, é preciso filmar outra coisa. Para se mostrar o amor, é só colocar alguém servindo um grapefruit. Simples, direto ao ponto, perfeito. Mas, para Ray, essa lição não significa nada — e é isso que faz de seu cinema tão grandioso. A cena é de fato uma aula magna sobre cinema, mas não pelas belas palavras que saem da boca de Bogart, e sim por aquelas que não saem da de Grahame. Enquanto Dix se declara, só conseguimos pensar no temor de Laurel ao ter percebido que aquele homem é, talvez, um assassino. Ou melhor: que por mais que o ame, ele nunca poderá ser o homem de sua vida. Tudo pode ser resumido nos três planos principais da cena: no primeiro, um close, Bogart explica como se faz uma cena de amor, e temos de concordar com ele. No segundo, um plano conjunto, com cada um de um lado do quadro, percebemos que esse amor encobre uma dinâmica de forças absolutamente contrastante. No terceiro, estamos enfim no close inevitável de Laurel, o close que preferiríamos nunca ter visto, Bogart já fora de quadro, e sabemos, definitivamente, que aquele romance será impossível. Pois aí se revela a chave do cinema de Ray. Seu interesse não está em como se deve escrever e/ou filmar uma cena de amor, nem nas regras e comentários sobre como se fazer cinema, mas no que está além disso: nesse caso específico,

1. Poema que Dixon Steele escreve em No silêncio da noite, e que funciona quase como um resumo do filme — e da própria ideia de cinema — de Ray; a vida existindo apenas quando ela alcança o máximo de intensidade. Em tradução minha: “Nasci quando ela me beijou/ Morri quando ela me deixou/ Vivi umas poucas semanas/ Enquanto ela me amou”. 2. O artigo encontra-se online na Foco — Revista de Cinema: http://focorevistadecinema.com.br/FOCO1/benard-silencio.htm.

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a verdade muda revelada pelo rosto de Gloria Grahame. Estamos aqui muito distantes do distanciamento crítico e do artifício/virtuosismo da própria linguagem escrita e/ou visual, presentes nas obras de Mankiewicz e Wilder (“I’m ready for my close-up, Mr. De Mille”). Em Ray, ninguém nunca está preparado para o close-up. Assim, se seu filme é um comentário sobre o próprio cinema, ele o é num sentido muito distinto dos outros dois. A cultura do espetáculo, o mundo de Hollywood,

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as regras de roteiro, o fazer e o estar cinematográfico são, para o cineasta, uma

A queda do Golias

enorme chatice. Seus objetivos, afinal, não acompanham essas mesquinharias. Nicholas Ray, como Godard bem afirmou, é o cinema, e isso parece fazer todo

Pedro Henrique Ferreira

o sentido. Falar sobre o cinema, no fundo, é procurar o que se esconde sobre os olhos e os rostos, é achar aquilo que não pode ser revelado de outra forma. É, em suma, descobrir a verdade oculta dos outros e de si. Eis sua aula, eis seu sentido de metalinguagem.

A última imagem que vemos de Cottonmouth em Jornada tétrica (Winds Across

Voltemos então ao rosto de Gloria Grahame e a tudo o que ele significa.

the Everglades, 1958) mostra este pirata homérico dos pântanos, após uma lon-

Enquanto vemos seu close-up, o personagem de Bogart continua alheio, falando

ga agonia, sucumbir enquanto o veneno da cobra-marinha pulsa em suas veias.

de casamento, planejando o futuro. O olhar ali, portanto, não é de Laurel para Dix.

Ele reclina para trás e, deitando no tronco da árvore, cobre a parte inferior do

Ele, inclusive, sai da cozinha, alegre e satisfeito. O rosto de Laurel, no entanto, per-

quadro; na queda, com um movimento natural do pescoço, vira e escancara em

manece em quadro. O que vemos então está muito além do filme: é Gloria Grahame

nossa direção os olhos sem vida, que até então estavam fechados. Ao fundo, Walt

dizendo em silêncio a seu marido que o romance entre eles acabou de vez. Talvez

Murdoch, o advogado da natureza, está de costas e vai embora remando. Vemos seu

nem Gloria estivesse a par disso, quem sabe nem o próprio Ray, mas nada disso

pequeno tronco exausto e igualmente derrotado. Esta imagem en passant é breve,

impede a câmera de captar esse momento íntimo, confessional e absolutamente

dura cerca de 12 segundos numa sequência cuja média não está muito abaixo disto.

triste. Talvez o momento mais triste da história do cinema.

O que atrai a atenção é a perfectibilidade de sua composição num filme em que

É preciso muita coragem para se entregar dessa forma, é preciso ser, voltando

absolutamente nada é perfeito e simétrico. Esta imagem encontra uma enorme

a Bénard, tanto um apaixonado quanto um demente, um romântico e um cínico, um

força expressiva ao agrupar os dois homens, encarnações de Davi e Golias, numa

homem que cria suas próprias regras onde as regras já existem. Poucos cineastas

profundidade de campo (pela primeira vez utilizada na sequência) — um recur-

se jogaram ao abismo como Ray e um número ainda menor conseguiu sobrevi-

so que, ao mesmo tempo em que os une, também os separa em dois ambientes

ver. Ray permanece, sempre, aceitando esse abismo e filmando o rosto de sua

distintos, reservando o fundo ao vencedor do duelo, que se retira melancólico, e

mulher amada, por mais dor que lhe causasse; transfigurando-se em Humphrey

privilegiando a trágica morte e o olhar misterioso do gigante derrotado. O olhar

Bogart, andando sozinho para fora de quadro no final do filme, em direção à total

moribundo de Cottonmouth realmente nos confronta.

escuridão — e tudo isso, podemos afirmar, já contido ali, naquele minuto, naqueles segundos fundamentais.

Poderíamos depreender desta imagem uma síntese absoluta da obra de Nicholas Ray, mas aí já seria demais para um diretor que nunca foi dado a unida-

A lição definitiva: uma simples cena cotidiana de um homem servindo um

des aparentes, a recursos de simplificação ou a processos de abstração. Muito pelo

grapefruit a uma mulher pode abarcar tudo o que o cinema conseguirá dizer, on-

contrário, Nicholas Ray saltava para a multiplicação dos elementos, como Welles,

tem, hoje e sempre; aquilo que nunca poderá estar presente, talvez nem mesmo

para traços estilisticamente barrocos, ainda que seus objetos sejam os mais prosai-

sugerido, em linhas de roteiro, maneirismos de câmera, tour de forces de atuação.

cos, quando não os mais sórdidos possíveis, para um lirismo profano e para uma

Aquilo que sequer pode ser de fato planejado. E não há lições para isso, fora uma

plurificação de detalhes conflitantes num mesmo espaço, cores fortes que cres-

busca obsessiva e desesperada pela grandeza e pela miséria escondidas em cada

cem por oposição. 1 No máximo, é possível que o plano supracitado seja o resumo

ser humano.

exato de uma cena, o instante em que, tal qual o diretor repetia incessantemente, a câmera encontrou o “sentido da cena”, sua verdade mais literal. Não seria a representação absoluta de uma verdade do mundo, mas o ponto de chegada trágico

1. Se, por um lado, interessava-lhe a arquitetura moderna de Frank Lloyd Wright, também declaradamente dizia-se influenciado pela arquitetura da Idade Média, na qual, possivelmente, fincou suas raízes místicas e seu interesse pela plurificação dos detalhes. (N.A.)

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de um longo processo criativo que se alastrava desde os estágios iniciais, e que é

Duas formas cinematográficas se ligam na primeira viagem de Murdoch pelo

o motor e o interesse central de Jornada tétrica, tanto quanto de praticamente toda

pântano. Imagens naturais, homogêneas, adquirem sentido justamente quando

sua cinematografia: as razões de proximidade e distância entre dois homens de

contrapostas às imagens narrativas do ambientalista em seu bote as observando.

convicções conflitantes. Mais do que uma síntese, é um resultado de fragmentos

A montagem excessivamente descontínua acentua uma diferença clara entre os

isolados que, neste instante, atingem um ápice, uma realização plena em que

dois modos e afunda o abismo desta diferença, de tal maneira que fica impossível

finalmente se resolveu o embate entre o ambientalista e o fora da lei (relação

dizer que as imagens do pântano são projeções subjetivas de Murdoch. Em princí-

esta que desde o início se colocara por planos e contraplanos antissintéticos e

pio, é como se estivéssemos perante os índices de uma realidade fenomenológica,

uma montagem que exaltava justamente a desorientação espacial). Um momento

uma imagem que revela uma parte da realidade e que isto só poderia acontecer

trágico, porém o momento de contato e de mútuo entendimento, daquilo que Ray

porque este pesquisador passivo apenas a observa sem, em hipótese alguma, agir

compreendia como a função maior de sua arte, a comunicação.

sobre ela, o que seria, neste caso, violentá-la. Nas palavras de Murdoch, estamos

Os tópicos de Ray variavam entre foras da lei, juventudes órfãs, sátiras

diante da “forma em que o mundo era em seu momento primevo”, da “força da

do american way of life, solitários inócuos, leis ditatoriais que açoitam vítimas

vida em sua forma mais pura e primária, a face de Deus”. Mas o curioso e peculiar

inocentes, entre outros. A opção de se tratar sempre, de uma forma ou outra,

deste procedimento em Jornada tétrica é o curto-circuito que ele cria um pouco

de um pária social veio a calhar como uma luva nesta metodologia, pois cria-

adiante. Dada a passividade de Murdoch, sua não intervenção no canal que obser-

va as situações mais adequadas para o encontro antagônico que se engendra

va, logo o abandonamos completamente. Em função disto, em vez de as imagens

das mais diversas formas, ora entre dois homens (Paixão de bravo [The Lusty

dos pântanos se tornarem dados integralmente homogêneos, imagens de fluxos

Men, 1952] ou Amargo triunfo [Bitter Victory, 1957]), ora entre um homem e sua

indiciais, “reflexos do real” por excelência, são uma outra força, metafórica, que

geração (Juventude transviada [Rebel Without a Cause, 1955]), ou até de um ho-

começará a organizar sua ordem, sua narrativa. Estamos diante de uma trama

mem consigo mesmo (Delírio de loucura [Bigger Than Life, 1956] ou Cinzas que

que nada possui de Beleza, nada possui da “face de Deus”, onde um jacaré devora

queimam [On Dangerous Ground, 1952]). E o embate, por sua vez, só pode ser

um pássaro que tranquilamente pairava sobre o canal, uma trama que culmina nas

resolvido em uma experiência limítrofe, um teste de coragem em que a própria

bicadas dos pássaros em nossa direção. Se o homem não a controla e age sobre ela,

morte está em jogo, seja ela numa corrida de carro em direção ao abismo, nas dis-

é ela que irá se apoderar dele. Temos aí o primeiro desenho de uma outra natureza,

putas de caubóis num rodeio, numa missão de guerra num deserto árabe ou, como

a primeira fagulha de um espanto preliminar, o início de um processo gradual de

é o caso de Jornada tétrica, numa aventura pelos pântanos da Flórida.

transformação da interpretação que fazemos dos pântanos e dos jacarés, raias e

Tal qual na literatura de Joseph Conrad, o ambientalista Murdoch faz sua jor-

aves que neles digladiam. Por recursos estéticos e mecanismos cinematográficos,

nada pântano adentro até um lugar para além da civilização. Sua meta é pôr fim às

por uma apresentação e uma reinvenção do ideal de Belo, somos gradualmente

indiscriminadas matanças de pássaros que servem, ironicamente, para fazer chapéus

introduzidos ao que será o encontro mais importante de Jornada tétrica, um que se

de pluma em Miami, imagem hipócrita dos Estados Unidos progressistas repletos

dá entre a moral infalível de Murdoch e o anarquismo exuberante de Cottonmouth.

de bordéis e de trâmites políticos. Mas o panegírico de denúncia inicial, com direito

Não é à toa que o momento se dá quando o primeiro arma uma câmera para foto-

a uma narração em off explicativa, rapidamente encontra sua verve existencia-

grafar um grande pássaro e, à sua frente, a figura enviesada do segundo se interpõe,

lista quando Murdoch resolve abandonar um cotidiano tranquilo para confrontar

semelhante a um viking irlandês de barba alaranjada cujas primeiras palavras

Cottonmouth em seu próprio covil. Todo o movimento da trama serve justamente

que ouvimos são de uma indagação casual: “Está tirando umas fotos bonitas aí?”

para levar os dois a este inevitável embate num campo de batalha onde não há armas

Mas por que o diretor sente a necessidade vital de preparar o solo? É comum

de fogo. Em realidade, trata-se de uma jornada de jangada pelos confins do pânta-

que Ray dê todas as informações rapidamente, e com menos de oito minutos de

no, e o vencedor é aquele que está mais apto a suportar e a sobreviver à presença

filme já sabiamos a função de Murdoch na trama e sua personalidade incoercível,

sufocante daquele espaço. Mas, para que o embate final adquirisse esse tremen-

o problema que vive Miami (uma narração em off nos explica do modo mais literal

do aspecto trágico, como Ray desenhou progressivamente este espaço pantanoso?

possível), e até a existência de um vilão a ser combatido, Cottonmouth, “o único

Como o transformou de um paraíso idílico numa natureza selvagem e desconhecida?

homem que anda com uma cobra no bolso”. Os dados iniciais são o pano de fundo

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para que se dê início a este embate entre duas narrativas, mas por que Ray não

Jesse James? [The True Story of Jesse James, 1957]), uma mulher com quem sorrir

nos lança com a mesma retidão para o verdadeiro drama, e não nos permite que

para um esquimó solitário (Sangue sobre a neve [The Savage Innocents, 1960]), ou

o encontro entre Murdoch e Cottonmouth chegue rápido? Por que esta construção

simplesmente a inspiração para um roteirista improdutivo (No silêncio da noite

imagética inicial de um passeio pelos canais é necessária?

[In a Lonely Place, 1950]), uma inspiração que cresce com o cotidiano de uma

No cinema de Nicholas Ray, o gesto de sublimação de uma imagem não é

vida a dois. Há um grande cansaço de seus passados, de suas próprias culpas e

um acontecimento abrupto que irrompe, mas uma lenta e progressiva criação que

psicoses, a ser sarado por este cotidiano. Uma grande nostalgia jamais cumprida

aguarda, sorrateira, sem demonstrar o instante preciso de seu milagre. 2 Nunca

de um momento paradisíaco. Mas há também sempre algo que os impele de volta

se vê uma troca de olhares demorados, fantasiosos, num tempo subjetivamente

para o abismo existencial, uma necessidade brutal, ora violenta, ora autodestrutiva.

dilatado quando o herói encontra sua dama, e nenhuma das mulheres se apresenta

As duas tendências contrárias que marcavam seu momento histórico, uma teleo-

a seu par como o mais puro objeto de sedução. O que está em jogo não é erigir

lógica e a outra ritualística, uma natural (a lei do mais forte) e outra civilizatória

um ideal, uma imagem absoluta da perfeição, um instante epifânico da verdade.

(a vida cotidiana), a utopia ou o comodismo, são facetas que nunca se conjugam

É ver crescer por um conjunto de fragmentos homogêneos, de partes da beleza, por

de um dilema que nunca se resolve.

detalhes que existem no cotidiano da vida simples, uma sublimação ainda mais

A sublimação (e aqui talvez possamos entender também o amor) está invi-

arrebatadora e comovente. Só há corpos comuns, gestos corriqueiros de pessoas

sivelmente conectada a um ponto de indiscernibilidade com esta promessa não

que sonham em vão com o american way of life, mas que vivem a grande depressão.

cumprida de um descanso, essa vontade impossível de estaticidade, de não mais

Assim, o sublime de Ray nunca se concretiza num momento perfeito de epifania.

ter de lutar para existir. Isso quer dizer que amor e cotidiano se imbricam de for-

Ele escala (se constrói) gradualmente do obscuro, contaminando as partes e tocan-

ma tão emaranhada e íntima que, em determinados filmes (Paixão de bravo ou

do pouco a pouco com as unhas a superfície do perpétuo movimento de alguém

Amarga esperança, por exemplo) não sabemos exatamente qual é a causa e qual é

que mergulha em sua direção. E é por este motivo que se prepara o solo: Jornada

o efeito. É justamente este o sentido da célebre cena metalinguística de No silêncio

tétrica é a história deste processo que nos arranca da tese inicial (a naturaza é bela

da noite, quando Bogart descasca um grapefruit e sua amante observa carinhosa-

e divina) em direção a uma recomposição desta mesma tese (a natureza é a lei do

mente seu ato prosaico. Neste gesto cotidiano, estão conscientes de estar vivendo

mais forte). Esta recomposição exige uma construção progressiva, um mergulho

uma grande cena de amor. Mais adiante, no mesmo filme, o poeta arcaico amigo de

lento, e não um ideal, uma imagem pronta e nua da verdade.

Bogart recitará o Soneto 29 de Shakespeare: “Yet in these thoughts, myself almost

Nicholas Ray é um pioneiro no cinema norte-americano pois figura entre

despising/ Haply I think on thee, and then my state/ Like to the lark at break of

os primeiros que perceberam que a geração dos anos 1940 e 1950 não precisava

day arising/ From sullen earth, sings hymns at heaven’s gates;/ For thy sweet love

mais de teleologias, de fortes afirmações, de imagens modelo ou de narrativas

remember’d such wealth brings/ That then I scorn to change my state with kings.” 3

que elevariam moralmente os homens. O objeto de idolatria nunca fora uma

A metáfora é de uma literalidade direta: a diferença entre um proscrito violento

sociedade promissora, a imagem pronta da família perfeita, o Éden na Terra.

que se sente exilado do mundo e o seu duplo, alegre e inspirado, é a diferença

Em realidade, o comportamentalismo do american way of life não seria preci-

entre quem possui ou encontrou este sublime e quem não o possui ou encontrou.

samente a formação política de um ideal modelo. No fundo, o que as figuras de

Em Jornada tétrica, uma década depois de seus primeiros filmes, o paradoxo

Ray, filhos do New Deal, buscavam era um cotidiano tranquilizante e pacato

se desenha, um pouco diferentemente. De um lado, uma tendência natural carac-

para homens que se lançaram no abismo, a comida caseira no jantar para o ex-

terizada pela anarquia do bando de Cottonmouth, párias sociais que vivem livres

caubói que digladiava com touros (Paixão de bravo), um jardim florido para o

das teias da civilização numa forma de protesto, bebendo como loucos e dançando

ex-assaltante de bancos (Amarga esperança [They Live by Night, 1948] e Quem foi 3. “Mesmo nesses pensamentos, quase me desprezando/ Feliz penso em ti, depois em meus 2. Ver o texto “Le Plan Absent: poétique de Nicholas Ray” no livro La Fable cinématographi-

bens/ Como a cotovia elevando-se ao romper do dia/ Das entranhas da terra, em hinos a

que, de Jacques Rancière. (N.A.) Texto presente no catálogo sob o título “O plano ausente”,

louvar o céu/ Pois lembrar de teu doce amor traz tanta riqueza/ Que desdenho trocar meu

na página XX. (N.E.).

dote com reis.” (N.A.)

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na lama, seguindo a única lei que reconhecem, o “desdobramento lógico da lei

explicar, foi a razão pela qual, à certa altura, indagava-me se o tal plano não deveria

natural: devorar ou ser devorado”, e, por causa disso, enxergam matar o próximo

originalmente durar mais do que seus 12 segundos. Descartei a dúvida ao lembrar

por um habitat ou caçar pássaros para vender suas plumas apenas como mais

que Ray nunca nos permitiu um tempo estendido para que refletíssemos sobre uma

um desdobramento desta teleologia progressista. Do outro lado, uma tendência

imagem, para uma imersão de qualquer natureza. A função de sua arte é sobretudo

civilizatória que se caracteriza pela crença na igualdade de todos os seres, na não

narrativa, a de narrar um processo de transformação, a de nos mostrar, passo a

intervenção ou atuação do homem, a menos que a atuação signifique resguardar

passo, fragmento por fragmento, o porquê de uma sublimação. E é por isso que

o mais fraco da violência do mais forte. Ao contrário da maioria dos cineastas da

à certa altura de seus filmes imperfeitos, damo-nos conta de estarmos enternecidos.

época, é curioso e significativo que a ideia de “progresso” esteja ligada à natureza,

É por isso também que, após toda aquela jornada, a queda do Golias e o pe-

e não à civilização. Quer dizer, a lei natural (na qual o homem se insere como

sar do Davi nos impressionam e nos deixam uma forte sensação de mistério na

mais um ser), que promove a lei de sobrevivência do mais apto às suas condições,

jornada trágica que acompanhamos. Cottonmouth salvou Murdoch, mas Murdoch

é igualmente a lei que promove e direciona os desenvolvimentos da ciência e

não pôde salvar Cottonmouth. Os pássaros, objetos sublimes pelos quais o am-

o domínio do homem sobre o mundo. Não é à toa que Miami aparece a nossos

bientalista lutou pondo em risco a própria vida num gesto que intrigou até aquele

olhos como um grande reflexo dos pântanos, onde também as mesmas leis se apli-

que vive sob a regra do perigo, só é finalmente compreendido pelo gigante quando

cam. E o status de rei da selva do qual Cottonmouth usufrui, seu monopólio sobre

já é tarde demais. O ambientalista sobrevive, mas não vence. Vence, mas chora

o que acontece lá dentro, é naturalmente encaminhado para a única conclusão

de tristeza. A teleologia cai por sua própria lei e perece tragicamente no pântano

lógica possível a todo monopólio, a toda tese evolutiva na qual a narratividade do

natural. Seu grande corpo vira os olhos escancarados para trás e, morto, olha-nos

cinema clássico narrativo sempre se baseou: um abismo para o nada, um retorno

(olha-nos?), reconhecendo seu fracasso e nos interpelando sobre o que faremos

ao estado primitivo tão bem expresso naquele último plano de Cottonmouth, o da

com o nosso próprio. Olha-nos (olha-nos?) como se pedisse para que simplesmente

queda do Golias.

não fosse esquecido.

Voltemos, então, a este plano. Murdoch já suportou a noite de bebedeira, já compreendeu e se identificou com aquele modo de vida inebriante dos pântanos, mas agora deve levar Cottonmouth para ser julgado na civilização. O gigante aceita, porém somente depois de uma aposta que põe em risco a vida de ambos: Murdoch deve ser o guia da canoa que os levará da natureza à civilização de Miami, deve refazer o trajeto originário se quiser prendê-lo. É o ápice da identificação de ambos, a comunicação numa vereda pantanosa, agora homens que se admiram e se respeitam, que compreendem suas próprias diferenças e estão prontos para pôr suas convicções a teste. O plano do Golias caído não indica uma queda abrupta e repentina que não fora antes prenunciada. Bem pelo contrário, é uma queda que já fora armada narrativa e progressivamente, pelos planos da cobra se aproximando, do chapéu de plumas que cai no canal, da ajuda que o mais forte dá ao mais fraco, até o cume inevitável, sua morte e este olhar escancarado que parece nos interpelar. Há boatos de que, graças a um uso excessivo de heroína, Nicholas Ray não filmou grande parte de Jornada tétrica, sua obra-prima mais imperfeita, a obra-prima mais imperfeita do “diretor das obras-primas imperfeitas”. Não é de se admirar que esta loucura pareça estar impressa diretamente na película. Há boatos também de que houveram cortes brutais na cópia original, e que o que vemos é o resultado de uma retalhação hedionda. Apesar de isto complicar mais do que

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O estranho mundo de Nick

dro interno, presença autorreflexiva etc. —, ou ainda pela inusitada posição do filme dentro da obra de Ray, praticamente uma ruptura frente à filmografia anterior, o

Hernani Heffner

1

que talvez revelasse um esgotamento de seus elementos de organização anteriores. Qual um Pound cinemático, o diretor aqui conduz e recita um vasto poema audiovisual de contextura whitmaniana, e neste nível estabelece as restrições contidas no título: impossível retorno a um cinema de representação, no qual o espectador

Todo classicismo encontra suas leis em si mesmo e se atém a

assume a realidade física e psicológica proposta pelo filme; inexorabilidade do fim

elas: vive num presente sem história, tanto quanto vivemos numa

da juventude, sobretudo expressa pela ideia do advento do amor; e queda ou afasta-

história que nos impede de ter um presente. Deste modo não só

mento do paraíso, mítico e físico, com o progresso técnico (a cidade) se sobrepondo

nosso estilo, mas também nossa época, estão inviabilizados.

à natureza. A sugestão do título e do filme, no entanto, não se refere a uma perda

E.M. Cioram

ou ao pecado original. Ainda que ecoem elementos nesse sentido presentes em sua obra, querem afirmar um outro movimento, mais importante e decisivo. O de novo indica e implica de início um aparente e impossível retorno ao anterior, ou mais propriamente uma descoberta que não se sustentará frente ao devir do mundo e à formação da consciência do sujeito. Mas sugere também o ter estado lá de alguma

Por que não poderíamos voltar para casa de novo? Talvez esse enigmático título de

forma, o ter apreendido e aprendido o que quer que constituísse o segredo deste

um dos filmes mais obscuros de Nicholas Ray indique uma chave de compreensão

momento primeiro. A melancolia do cinema de Ray vem deste saber amargo e da

de seu cinema. Frise-se, não é a obra em si mesma. Esta não oferece de forma pri-

distância entre um ponto e outro, distância essa que cumpre ao seu cinema tornar

vilegiada um possível entendimento estético dos procedimentos do artista, ou uma

visível de alguma forma, não como uma revelação divina, mas como uma epifania,

aproximação mais detida a sua mirada sobre o mundo. Neste filme, como de resto

isto é, uma iluminação ou pensamento. Ray cria muitos atalhos para nos ajudar

nos demais, o cinema de Ray sempre parece algo mais intangível, que escapa a

a subentender, a ultrapassar as aparências, e vários deles funcionam como raízes

um enquadramento mais detido, que se formula menos como conceito e que se

de um cinema moderno. Concentrar a comunhão nas operações fílmicas não é só

apresenta compassado como algo entre o impulso e o gesto. Apreciar este ou aquele

uma profissão de fé na sétima arte. Ray é o cinema, entre outras razões, porque os

não implica, portanto, em decifrar elementos de composição, semantizando-os

milagres de qualquer ordem precisam sempre ser encarnados.

numa ou noutra chave, ou em mergulhar o discurso no mar da história, mas em

A encarnação maior é a dimensão humana e libertária do amor, que abre e

uma predisposição de outra ordem. Consiste em perturbá-los em alguma medida,

fecha seu percurso de Amarga esperança (They Live by Night, 1948) a We Can’t

fazendo-os funcionar em outro nível. O surpreendente, ou melhor dizendo, o es-

Go Home Again (1973-76), e de que não trataremos aqui. As encarnações me-

tranho, é que essa ação possível seja percebida na urdidura fílmica, uma espécie

nores, pontuais, singelas, estão dispersas por seus filmes, que nesse sentido são

de heurística interna, contínua, regressiva e pontual. A contradição em termos não

exercícios em busca dessa qualidade transformadora. Em breves planos, cenas

é mero jogo de palavras, embora possa também indicar o grau de dificuldade para

ou momentos, ou por vezes ao longo de quase todo um filme, elas afloram isolada

se acercar de uma obra evasiva, mais do que conclusiva.

e sistematicamente envolvendo o espectador no mistério em torno do viver, neste

We Can’t Go Home Again fascina menos por aspectos que poderiam ser toma-

caso associado a uma época de horrores bélicos, boom econômico, decadência do

dos como estéticos ou “vanguardistas” — quadro dentro do quadro, divisão do qua-

sistema de estúdios, transformação do capitalismo. Ray não se contentou em filmar, filmar bem, filmar belamente. Procurou ressaltar à la Esptein o quê por trás do véu

1. A sugestão para este título veio da leitura do extraordinário texto de João Bénard da Costa, “Da vida e da obra de Nicholas Ray”, presente no catálogo Nicholas Ray (Lisboa: Cinemateca

da imagem. Em vez de imprimir, exprimir por meio do celuloide. Daí a sensação de que seu cinema nunca encaixa, nunca se conforma, não cede à mesmice e ao

Portuguesa,1985), que por sua vez remete à famosa crítica de Jean-Luc Godard sobre Amargo

sistema, apesar dos clichês narrativos, do kitsch audiovisual, e do decadentismo

triunfo (Bitter Victory, 1957) publicada na Cahiers du Cinéma e citada pelo autor. (N.A.)

técnico que envolve os filmes numa primeira e desavisada apreciação.

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I É claro que Ray tem seus grandes momentos, em geral associados aos filmes em que os misfits são jovens. Outro viés bastante comentado atualmente valoriza o caráter antecipatório de suas abordagens: ecologia, feminismo, homoerotismo etc. Mas sua obra se constrói menos sobre a manifestação desses temas, muitos dos quais estão permeados por ambiguidades e mesmo fortes contradições, como no retrato dos jovens de Amarga esperança e de Juventude transviada (Rebel Without a Cause, 1955), os primeiros se decepcionando com o sonho utópico e os segundos recusando-os de saída, e mais por elementos aparentemente dispersos, de preferência constitutivos da expressão cinematográfica — corte, ângulo, densidade, movimento de câmera, cor, enquadramento etc. Às vezes tais elementos são anedóticos, ainda que perpassados de fina ironia, como a calça suja à altura do joelho do personagem de James Cagney logo no começo de Fora das grades (Run for Cover, 1955). A assepsia típica do estúdio, mesmo quando retratava a paisagem barrenta do velho oeste, não admitia nódoas de quaisquer natureza, ainda mais se associadas à estrela do espetáculo. É elucidativa a abordagem psicanalítica, sobretudo a lacaniana, em sua indicação de uma ordem racionalizadora e paranoica associada à correção, à limpeza, à legalidade, e que Ray fustiga sistematicamente com seus pequenos e deliberados “erros” de campo, de eixo, de raccord etc. Às vezes ganham uma posição mais central dentro da narrativa, ainda que não se tornem os-

arquivo o sofrimento e a mortandade que envolvem qualquer conflito bélico. Ver pessoais reais não no momento de seu triunfo, mas de sua dor mais lancinante, expondo suas feridas e o escorrer de sangue, situações interditas por décadas aqui visíveis por brevíssimos momentos, resgata a condição humana em sua dimensão de maior precariedade, flagrando-a indefesa e frágil. O material de arquivo reapareceria em outros filmes de Ray, ora enquanto tal, ora insinuado como tal, particularmente em Paixão de bravo (The Lusty Men, 1952), Jornada tétrica (Wind Across the Everglades, 1958) e Sangue sobre a neve (The Savage Innocents, 1960). A diferença de texturas e cromias entre cenas “reais” e cenas de “estúdio” (ficcionais) instaura uma dialética sutil mas importante. Existe um mundo para além da superfície do filme e para o qual este remete de forma mais imediata do que se pensa. A narrativa pode incorporá-lo, mas não exatamente defini-lo, apreendê-lo, domá-lo. Esse lado selvagem da vida, com seu grão mais visível, mais estourado, traz instabilidade para as cercanias de vidas outrora inocentes. Confrontado com os procedimentos do estúdio hollywoodiano, sempre maximizados em sua estilização natural na encenação de Ray, as “cenas da vida real” amplificavam ainda mais a ambivalência do estatuto do próprio cinema, que ora se confundia com o mundo, ora se distanciava dele, revelando insuficiências de um e de outro. Ao drama do mundo, qualquer que ele seja, sempre superpor o drama da vida no mundo, parece insistir o realizador.

tensivamente visíveis ao espectador, caso de um filme menor dentro da filmografia do cineasta, o fraco e conservador Horizonte de glórias (Flying Leathernecks, 1951). Este filme demonstra, talvez melhor do que qualquer outro feito por Ray, a

II

inclinação contestatória, a visada humanitária e a curiosidade técnica e artística do

Talvez no seu conjunto o cinema de Nicholas Ray não seja tão impressivo quanto

jovem diretor. Designado para mais uma produção de linha, dentro de seu draco-

de fato é. Contribuem para tanto, a falta de um tema moral maior, as exageradas

niano contrato com a RKO, o trabalho consistiria a princípio em dar corpo a mais

condições de produção, ora para mais, ora para menos, a irregularidade estilística

um elogio das forças armadas estadunidenses em tempos de mais uma guerra, no

do conjunto e as bilheterias negativas retumbantes. Cinema de bufões, fracassados,

caso, a da Coreia. Grandemente improvisada por falta de um delineamento prévio

delinquentes, delatores, aleijados, pervertidos, cínicos, arrivistas, erroneamente

às filmagens e constrangida a limitações orçamentárias de produções B, como

enquadrado no relativismo e no niilismo soprados pelos horrores da guerra en-

exiguidade de cenários e uso de material de arquivo, a obra virou um exercício

cerrada há pouco, são narrativas sinuosas, descuidadas da moral vigente, mas

de continuidade visual a partir do uso de registros de batalhas reais da Segunda

desejosas e ardentes por certo tipo de novo herói. As falas finais redentoras das

Guerra Mundial. O que poderia ser mero aprendizado, cujo resultado teria tudo

perdições e das traições podem nos induzir a um erro de compreensão ou de pers-

para soar puro formalismo, releva-se por um pormenor que, se não salva o resul-

pectiva, assim como a aproximação sem maiores matizes ao filme noir, faz-nos

tado do desastre previsível, puxa a atenção do espectador para o real significado da

acreditar em criminosos, gângsteres e femmes fatales, como se disso se tratasse.

guerra a partir de uma perspectiva humana. Com a censura impondo sua assepsia

É mais ilustrativo perceber a fabulosa sugestão do estender a mão de Jim a Judy

e controle dos signos que perturbassem as crenças e a estabilidade emocional dos

em Juventude transviada. Ela acaba de entender a morte e se sente magnetica-

cidadãos, surpreende como o filme deixa entrever, mas só entrever, nas cenas de

mente atraída pelo abismo à sua frente. Ele a salva — lhe dá a vida — à maneira da

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A criação de Adão, de Michelangelo. E isto invertendo-se papéis, gêneros, responsa-

e mesmo cegar aquele que tentar ver o que não existe ou que não pode nunca ser

bilidades, diante do vazio do cosmos. Jim mostra-se um Deus terna e sinceramente

visto. No branco também ressoa o nada.

preocupado, como este jamais o seria. Só os homens podem estender a mão no momento da angústia total. Um gesto, nenhum verbo.

Não é à toa que no confronto central de Johnny Guitar (1954), busque-se o

branco mais alvo e o preto mais saturado. Mas entre o preto e o branco se colocam

Não há nada para ser compreendido no vazio, ou nas sombras absolutas.

as cores. E à volta das cores pode se colocar a escuridão — a súbita mudança de luz

Talvez por isso Ray gostasse tanto de um diretor de fotografia como George Diskant

em meio à dança na rua em Sangue ardente (Hot Blood, 1956); o contexto ceno-

e elegesse Amarga esperança sua composição imagética preferida. É um filme de

gráfico às escuras realçando o momento vivo, a explosão da cor e a luminosidade

muitas inovações visuais — dos planos aéreos aos close-ups —, mas sua maestria

extrema da desolação ártica de Sangue sobre a neve, como que explicitada pela

encontra-se invisível. Dono de uma carreira em que só se distingue por sua par-

duração “excessiva” dos planos de natureza. Ou podem mesmo constituir dégradés

ceria com Ray, Diskant realiza aqui uma proeza técnica extraordinária para a

ou variações entre um polo e outro: os verdes de A bela do bas-fond (Party Girl,

época, construindo planos com áreas de sombra extremamente densas, ou seja,

1958) e os cinzas claríssimos deste estranho experimento que é o saárico deserto

na prática sem definição ou nuance de cinza algum, um efeito que deveria ser ainda

em CinemaScope preto e branco de Amargo triunfo. A luz, espectro cromático

mais notável em cópias em suporte nitrato, propícias ao relevo e ao efeito de alto-

reunido, pode transcender sua natureza? A arte da luz em movimento pode tornar-

-contraste. A ausência de sombras, que é o que de fato existe neste filme revelado

se puramente abstrata? Ray provavelmente diria que não. Interessava-se demais

a um ponto de obtenção de densidades extremamente raras, coadjuvada por uma

pelo que acontecia entre um extremo e outro. Queria compreender a formação

inteligente recusa da estratégia fragmentada do desenho de luz do filme noir, pro-

de cada camada da vida e do cinema e isto já o absorvia por completo. Mas não

picia o realce do que está à luz, sobretudo os rostos de Kechie e Bowie. Não é à toa

havia comprometimento maior em deixar ressoar e talvez ainda fosse possível

que os personagens sejam colocados muitas vezes debaixo de fontes de luz muito

tirar algum partido disso.

próximas, sobretudo à noite. Lembra e prefigura muito o que Gordon Willis fez em

Um dos planos que ressoam mais discreta e fortemente em seu cinema é o

O poderoso chefão (The Godfather, 1972). Num e noutro, as áreas escuras não são

de abertura em Alma sem pudor (Born to Be Bad, 1950). Ver a cidade fará toda

preenchidas por luzes de compensação (laterais) ou contraluzes (divinas), e a fonte

a diferença para o enquadramento geral das ações do filme. Como naturalizar uma

principal coloca-se em posição perpendicular ao quadro. A diferença reside nas

escrita tão arraigadamente estilizada como a do estúdio hollywoodiano, ainda mais

sombras faciais algo expressionistas do sombrio filme de Francis Ford Coppola,

se o estúdio for a RKO, tão infenso à revolução neorrealista? Os estúdios tinham

e em sua ausência no filme de Ray. Aqui tão luminosos jovens não compreendem

seus padrões de trabalho, seus estilos visuais (fotográficos, cenográficos, de vestu-

o vazio definitivo que os envolve sob a forma de escuridão, e esta não se apresenta

ário, montagem, maquiagem etc.), e ofereciam pouca margem de experimentação

por oposição, o que redundaria num barroquismo, mas por ausência: nada se vê

real. Deve ter sido muito difícil convencer um dos principais artífices — junto com

nessas áreas. É a noite mais profunda.

John Alton — da geometria luminosa abstrata que marca o grafismo visual noires-

Um efeito parecido, ou uma ideia semelhante, é alcançada a partir de uma

co. Para quem conhece o trabalho do fotógrafo Nicholas Musuraca, surpreende a

outra premissa de trabalho. Em vez de um filme inteiro, um único plano. Logo

sobriedade e o naturalismo (dentro obviamente das convenções de Hollywood)

no começo de Jornada tétrica o protagonista chega de trem a Miami. O plano que

imprimidos ao tratamento de luz e à representação dos ambientes internos, como

evidencia o término da viagem também sugere o fim do mundo. Nunca um fim

que ressoando a indicação primeira fornecida pela panorâmica sobre a paisagem

de linha ferroviária e uma placa tiveram tal reverberação cósmica. Ray consegue

urbana. Ray reforçará esta associação, sugerindo a presença dessa luz externa

isso com um fim de movimento de câmera e sobretudo com um ângulo que encara

num cenário interno aqui e noutro ali (há um esforço para balancear e compati-

esse espaço à frente como um nada. A imagem em si é banal, mas, usando uma rara

bilizar fontes que são fisicamente diversas), deslocando a ação em continuidade

perspectiva ortogonal na composição do quadro, enfatiza a ideia de um limite últi-

do interior para o exterior, e promovendo um diálogo e uma interpretação mais

mo, que desta vez não é obscuro, mas luminoso ao extremo. Ray não superexpõe

coloquiais, no que só é bem-sucedido de verdade com Joan Leslie. O acúmulo será

as áreas claras, mas sua presença e função estão prefiguradas ao longo do filme,

suficiente para perturbar o anódino melodrama em sua pretensão de estrutura

pois o estouro de luz típico dos anos 1960 pode indefinir visualmente tais espaços

autossustentável e autoexplicativa.

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As intromissões do produtor Howard Hughes foram mais eficientes em con-

às incertezas do relacionamento com Cornel Wilde e ao artificialismo absoluto do

figurar o sentido final de Alma sem pudor, ou pelo menos em evitar a moral dúbia

cinema? Todas as respostas são possíveis e na verdade convergem para a percepção

pretendida por Ray. 2 De qualquer modo sempre houve uma distância considerá-

de um experimentalismo radical com a forma clássica do filme, este e todos os

vel entre ressoar e convencer de fato. Normalmente esta era uma tarefa para o

demais. “Não sei se estou quebrando as regras ou não”, comenta o jovem soldado

verbo, emprestando-se aos diálogos a imponência de carregarem a verdade de

de Amargo triunfo. No momento em que o souber terá deixado de ser jovem e de

praticamente tudo. Herança teatral rechaçada pelo outrora homem de teatro, a

tentar dar um sentido ao mundo. Logo a questão não é ter um projeto, um desti-

importância das palavras colocava em segundo plano a ação propriamente dita e

no, mas descobrir se existem limites a uma dada condição, se ela se transforma,

quaisquer outros elementos discursivos, impondo-se como instância decisória e

é transformada ou fica indiferente diante de uma constante e aparente mudança

decisiva do ponto de vista do que deveria ser contado. O cinema tinha outros atri-

do mundo. Adequar o mundo a uma ideia ou desejo postula o classicismo. Inverter

butos, mas num deles não diferia substancialmente das potencialidades de outro

a proposição aponta para a quebra dos paradigmas. Em que polo estaria o cinema

veículo, o som, também compartilhado pelo rádio. A experiência de Ray com o som

de Ray? Que movimentos internos seus filmes desenhariam, procurando responder

e a voz irradiados ensinou-lhe o valor e o alcance dramático não das palavras em si

a tão difícil questão?

mas da entonação. No cinema, aproveitaria o caráter de coisa do mundo do som (e não a mera representação contida na imagem) para acentuar sua percepção como verdade, mas com uma sutil e decisiva aplicação. Era comum que algo importante

III

a ser dito por um personagem fosse corroborado pelo primeiro plano de seu rosto a dizer as palavras, em particular a confirmá-las com os olhos, isto é, com sua

O que é o cinema clássico? Ele se confunde com Hollywood? O que há de bom

imagem. As estrelas de Hollywood tinham normalmente mais credibilidade do

e de ruim lá? É mera questão de capital, custo/benefício? Nicholas Ray sempre

que os personagens que interpretavam. Sempre que possível, já que até mesmo as

demonstrou orgulho de ter estado lá, trabalhado lá, vivido lá em sua era dita clás-

estrelas procuravam reforçar tal prática, Ray as punha a dizer falas importantes

sica (pelo menos em seu final), em que pese sua carreira ter sido destruída pelo

em meio a deslocamentos banais em cena. Ele extraía delas entonações sensíveis

mesmo Leviatã. O que de fato o fascinou, pelo menos nos primórdios, embora sua

que descortinavam os sentimentos e a psicologia em jogo, sem o reforço direto

visão de mundo já tivesse se constituído fora dos parâmetros correntes praticados

da imagem. Daí vem sua fama de bom diretor de atores, sabendo-se do casting

dentro da indústria? Certamente o brinquedo cinema era uma tentação grande e

bastante limitado com que trabalhou a maior parte do tempo. Não é o caso de

descobrir-lhe os segredos talvez óbvios, um bom começo. Alma sem pudor, um

James Cagney, mas observe-se a marcante sinceridade obtida em relação a sua

de seus filmes cuja autoria é rejeitada, face à inserção de cenas que desvirtuaram

preocupação com o estado de saúde de John Derek em Fora das grades, a partir do

a conclusão da narrativa, no entanto, não funcionou como fio de Ariadne e nem sei

tom de sua voz ao entrar na casa de Viveca Lindfors. Cagney tinha tom e ortoépia

se houve tal aposta e realização em momento anterior. Na aparência era apenas

vocais muito característicos e soa excepcional encontrá-lo a esta altura da carreira

mais uma futilidade narcísica da grande indústria, nos bastidores, mera desculpa

exercitando tão inovadoramente suas potencialidades artísticas.

para o produtor conseguir levar a estrela feminina para a cama, o que nem acon-

A verdade do som, realidade física que se impõe por conta própria, poderia

teceu. Mas olhando com cuidado, é um exercício extraordinário sobre os limites

obviamente ser relativizada ou mesmo questionada, mas poderia ser desmate-

de funcionamento dos mecanismos clássicos e se estes poderiam vir a resistir a

rializada e reduzida ao mesmo estatuto de representação pura da imagem? Em

crescentes doses de novas formas de realismo. Forçando os limites, o castelo de

Sangue ardente, um musical que não se define como tal, no momento em que Jane

cartas se sustentaria?

Russel canta de boca fechada, parece que sim. Mera projeção do desejo da perso-

Egresso de uma safra cujo melhor representante é o famoso A malvada (All

nagem, exteriorização de seu fluxo de consciência ou de fato um comentário vivo

About Eve, 1950), de Joseph L. Mankiewicz, ao qual se junta entre outros, Assim estava escrito (The Bad and the Beautiful, 1952), de Vincente Minnelli, este escrito

2. Hughes filmou cenas extras, criando uma reconciliação entre as personagens de Joan

pelo mesmo roteirista de Alma sem pudor, Charles Schnee, do qual em verdade

Leslie e Zachary Scott. (N.A.)

é uma variação mais explícita e bem-sucedida, a produção de Howard Hughes

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inscrevia-se em princípio na categoria de mero melodrama romântico rotineiro.

em termos horizontais, quanto verticais. O que conduz de forma muito natural

Sabendo-se o quanto a preparação do filme deve a Ray, em termos de conceituação

e espontânea a movimentação dos atores é esse descortinar, ainda que sua ação

e mesmo escrita do argumento e do roteiro, sem falar na realização propriamente

demonstre total familiaridade com os espaços e se dê de forma até algo acelera-

dita, pode-se considerá-lo, na verdade, uma das primeiras avaliações indiretas

da (o filme começa em meio a diversos preparativos que mobilizam sob certa

da meca do Cinema. Ao diretor de No silêncio da noite (In a Lonely Place, 1950),

pressão os personagens). Num filme tipicamente clássico, a esta altura teríamos

outra incursão do mesmo gênero, porém, não interessava tanto nesse momento

a progressão em escala de planos: do geral, apresentando o ambiente, para o pla-

fazer a crítica radical do sistema e sim conhecer suas possibilidades, além de

no de conjunto inserindo os personagens no contexto, e inserindo talvez algum

suas armadilhas. Algumas dessas elaborações já foram enunciadas acima, mas

plano mais próximo para detalhar a ação, e chegando ao close para conhecermos

as principais dizem respeito à armação cênica, tomando-se por parâmetro a lite-

melhor os personagens/estrelas da narrativa em algum diálogo movido a campo/

ratura e principalmente o teatro. Tanto um quanto o outro meio ofereciam sérias

contracampo. Se fosse algum seguidor de Cidadão Kane talvez houvesse menos

limitações em suas possibilidades de representação do espaço, não permitindo a

planos fixos em detrimento de alguns deslocamentos de câmera mais insinuantes,

contiguidade numa única unidade narrativa e restringindo mesmo a percepção

nunca a atomização promovida por Ray, que se fixa no vaivém dos personagens,

gestáltica dos ambientes em sua completa integridade. A questão do espaço cênico

desprezando aparentemente o ambiente insípido e pouco nobre à volta — um cor-

era vital para a possível naturalização do espetáculo cinematográfico, e boa parte

redor, frise-se outra vez —, e que tem real atenção pelo cenário que os envolve.

dos experimentos hollywoodianos nos anos 1940 se deram neste campo, com Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941) à frente.

A este balé coreográfico comandado pelo cenário vai corresponder uma série de rupturas no momento em que a câmera conceder o privilégio ao diálogo e acio-

Alma sem pudor parte do mesmo pressuposto, mas assume ambições aparen-

nar a reação dos personagens aos desejos (sexuais, sociais e de poder) em jogo.

temente mais modestas, em grande parte por se tratar de uma produção de parcos

Nesse momento a montagem é redimensionada não para o raccord clássico, mas

recursos. Com efeito, pode-se dizer que cerca de 25% do filme se passa num único

para uma participação mais insinuante e autorreferencial, na qual o momento

cenário, a casa da personagem de Joan Leslie, em particular, o pequeno corredor

mais significativo é o de um jump-cut pioneiro, perfeito e admirável em cima de

de acesso aos ambientes do segundo andar. Tão exíguo espaço, que poderia ter sido

uma movimentação de Zachary Scott. Mais à frente no filme, com o ambiente do

preterido por uma certa ampliação dos ambientes que lhe são conexos, já traz a indi-

corredor já mais do que conhecido pelo público, o embate-chave entre a alpinista

cação do experimento proposto à narrativa e à direção: tornar dinâmicos e atraentes

social interpretada por Joan Fontaine e o digno escritor encarnado por Robert

os pequenos acontecimentos para ali propostos. Trata-se de um lugar de passagem,

Ryan será exposto dentro de um esquema estereotipado de campo e contracampo

propício a breves encontros, o que em parte ocorrerá, mas nem tanto entre os per-

alicerçado no raccord das luzes em cena (e não a partir dos personagens) e com a

sonagens, embora boa parte dos que acorrem ao filme passe pelo local. A intenção

irrupção de uma sombra ostensiva e incongruente com os elementos já apresen-

maior é apresentá-los mesmo ao público. Para tanto, cada um deve merecer um

tados. A quebra do realismo proposto é tão flagrante que pela primeira e única vez

mínimo de atenção da câmera e esta não deve incorrer na repetição de ângulos e

no filme a imagem quase atinge uma dimensão simbólica, não fosse o elemento

situações sob pena de tornar enfadonha a narrativa. Caso a direção seja habilidosa

visual em questão ser banalíssimo. Não por acaso a trama paralela que alimenta a

o suficiente, a montagem resolverá os problemas mais agudos de fragmentação

intriga do filme gira em torno justamente de uma imagem, um quadro da alpinista,

e ritmo necessários a uma boa progressão da história. De forma surpreendente

retratada à maneira de uma grande dama aristocrática, insinuando seu verdadeiro

os cortes não se pautam tanto por rostos, diálogos ou ações significativas. O que

capital. O milionário com o qual casa não percebe (ou finge não perceber) a frigidez

os guia é a reconstituição das dimensões espaciais da casa para os espectadores.

dela, até que sua voz, mais uma vez em solução e plano admiráveis em termos

A formulação do ambiente — que tem um andar abaixo, uma laje acima, um

de economia narrativa, trai sua real paixão por outro. Este jogo de trocas sociais,

quarto, uma cozinha, uma sala de estar, todos conectados a esse corredor e que

dentro da narrativa e entre esta e o público, persiste até o desenlace previsível, mas

não se descortinam na decupagem inicial, inteiramente focada na sua extensão

nem por isso menos eloquente, não se esquecendo o destino e o valor do quadro de

até a janela, que dá para a rua — é realmente espantosa em sua variação de ângu-

uma agora famosa figura pública da alta sociedade, ou seja, nada muito diferente

los, dispostos a fornecer ao fim e ao cabo uma visão de 360 graus do lugar, tanto

dos bastidores de Hollywood.

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Nicholas Ray sempre soube onde estava entrando, tanto em termos artísti-

Vulto luminoso de Nicholas Ray na nova Estrada

cos, quanto sociais. Não houve ilusões, nem mesmo no início. Se ele se dedicou a fustigar os elementos de composição do velho classicismo, percebendo sua de-

Felipe Bragança

sagregação e contribuindo para ela, isso não significa uma rejeição pura e simples dessa premissa e um ingresso decidido na aventura de criação do chamado cinema moderno. Se elementos nesse sentido aparecem em seu cinema, e isto ocorre de forma muito pronunciada, não significa uma adesão cabal a novos paradigmas. Ray

Pedem-me um texto sobre Nicholas Ray. Um texto sobre Nicholas Ray deveria

examinou as potencialidades do classicismo, consciente de que este não se fundara

durar uma semana. Escolho escrever um texto curtíssimo sobre tudo o que vi e

no aparecimento do cinema, mas que desenvolvia neste novo meio potencialidades

vejo num único plano de Ray e aquilo que permenece nele enquanto sigo pelas

há muito insinuadas, mas nunca de fato testadas. Se sua aventura pessoal guarda

estradas vazias do Centro-Oeste brasileiro.

paralelos quixotescos e sofrimentos atrozes, pauta-se também pela experimentação

Não é um plano de estrada, porém. É um plano essencial para os dois longas

artística no melhor sentido da palavra. Para além do mito do artista incompreendi-

que dirigi e para alguns com os quais eu sonho ver — pois é um plano de espreita

do e vilipendiado, cumpre conhecer melhor a tensão entre esse classicismo e essa

e largada: combustível da jornada.

experimentação, ele que foi artista de dois mundos, pagando um preço por isto.

Ao contrário de uma mecanização analítica, já que não fazemos julgamentos estéticos, mas desafios, essa conexão com uma única imagem talvez seja chave para a compreensão da forma como Ray cria ruídos dentro da estrutura melodramática narrativa que domina com maestria — ruídos quando gera imagens absolutas, emergências gráficas e cênicas que parecem conseguir rasgar e ao mesmo tempo apertar os parafusos da narrativa que nos convida a ver. A imagem que eu penso enquanto passam os faróis dos caminhões na noite é a do plano inicial de Juventude transviada (Rebel Without a Cause, 1955) — o plano de créditos, por assim dizer —, é um plano para se levar para a estrada. Quais os elementos ali presentes? Um rapaz (Dean) deitado numa estrada de asfalto, encarando um objeto, um boneco de macaco que se mexe inadvertidamente e está no eixo da câmera, fazendo com que o rapaz (Dean) quase nos olhe nos olhos. A mão direita do rapaz (Dean) brinca de mexer no macaco, cutucando seu movimento cíclico de bater dois pequenos pratos dourados de plástico, repetidamente criando um ruído sonoro na trilha sonora orquestrada e pontuações dramáticas que “anunciam” os dramas que virão. No rosto do rapaz (Dean), temos ali as pequeninas contrações entre o devaneio e o deboche, numa estereotipia confusa entre a sutileza e o exagero, entre o cansaço cênico e a pulsão dramática. Essa é a imagem: um cansaço estrondoso me choca ali. Um cansaço que não gera desânimo, mas uma espécie de contra-ânimo desestruturante da própria conexão ou desconexão do corpo com o espaço e o uso do espaço. Um filme que já começa com o corpo fora do lugar, agindo mas não agindo, ou reagindo sobre a ação mecânica do boneco/brinquedo que protagoniza o plano. Tornando-se um absoluto em ação intempestiva sobre a ação repetitiva de um pequenino robô.

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Encontrar uma imagem única, fixa, eterna em si mesma e para dentro da

futuro? O que podemos aprender com as ações inúteis e reluzentes de quem age

narrativa é algo que se procura em toda estrutura dramática de aventura ou des-

por “impulso de desequilibrar”, murmurando canções que parecem ao mesmo

ventura. A relação de harmonia, e desarmonia da figura em ação com o espaço,

tempo afirmar apaixonadamente e implodir tudo o que existe (estou falando dos

será o objeto de desvelamento ao longo de toda a trajetória desse cinema e ali,

“jovens” ou de Ray?).

nessa imagem, a ideia mesma de juventude talvez tenha sido concretizada pela primeira vez em seu processo de invenção cinematográfica. Eis a “juventude” ou a “rebeldia” em seu estado de latência e excelência: esse

É tempo de saber narrar o que há sem se perder a intuição da própria destruição do que se narra. Nessa pega em que nos sobreporemos sobre nós mesmos (agindo e contra-agindo), Nicholas Ray nos ilumina adiante na jornada.

misto de emergência e decadência em que quanto mais firme se coloca, mais frágil se anuncia, ou vice-versa. Há algo de sempre estúpido e sempre sábio nesse lugar imaginário da “rebeldia juvenil” que (enquanto valor estético dos mais potentes e dos mais banalizados nas imagens, hoje) pode ser pensado a partir de Ray (e essa sua “imagem de abertura”) e nunca sem passar por ele. É de tal ordem potente esse único plano que certamente não há nenhuma representação do risco ou da insurreição juvenil que não passe por ele, que não deva a sua colocação. Muito menos em nada do que eu tenha filmado: desde o primeiro plano de meu primeiro longa ao último plano do segundo longa, tudo o que eu estava tentando fazer era resolver o problema que ali se apresenta e que hoje, no Brasil do capitalismo pleno, se coloca cada vez mais urgente: como lidar, representar e colocar em ação os ruídos culturais, as ações intempestivas e ingênuas, numa sociedade que se orgulha de estar no caminho certo da prosperidade? Como lidar com o vazio do espírito ou o embotamento da sensação de pertencimento, numa sociedade brasileira em que o objetivo pragmático comum do desenvolvimentismo muitas vezes desgasta qualquer forma de contravenção do espírito? Como lidar com essa nova (no Brasil) rebeldia sem causa num país cujo trilho está bem traçado e o poder se dá numa inédita harmonia de jogos de poder? Hoje, ao passar por pequenas cidades do Centro-Oeste brasileiro, cheias de motos e picapes e vultos nas ruas, e aparelhagens vibrando o novíssimo asfalto com seus subwoofers recém-comprados e parcelados, encontro milhares, milhões de James Deans caídos em cada esquina e em cada cruzamento. Invisíveis mas tangíveis, seguem ali entre o deboche e o desafio, entre o bote e o completo cansaço — murmurando alguma coisa enquanto máquinas, tratores, fábricas e colheitadeiras seguem batendo seus pratinhos rumo ao país sem causa. O que essa única imagem gera é a representação de uma ação distópica utópica, melancólica (sem pulso) e alegre ao mesmo tempo (naquilo que deixa vibrar no desejo de mais vida, sempre). Essa me parece uma imagem central a ser pensada, refletida, expandida e assombrada nas imagens hoje desse jovem país cheio de si: O que podemos aprender com o cansaço do desespero do corpo? O que podemos descobrir no desejo do

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RAY


Da história ao roteiro 11

O inocente público tem aprendido muito sobre escritores e produtores por meio de antropologistas de escritório que chegam a Hollywood para uma visita rápida e uma série de entrevistas curtas e escrevem um livro sobre o lugar cheio de referências a sociedades primitivas e inconscientes tribais. Dizer mais do que isso é, talvez, pedir por confusão. Mesmo assim, apesar dos paralelos com cerimônias de iniciação na Polinésia já estar desgastado, a experiência pessoal ainda tem coisas a dizer. Eu fui sortudo o suficiente, em Hollywood, por ter trabalhado com dois excepcionalmente bons produtores. “Produtor” nesse sentido não significa o executivo responsável por tudo o que acontece no estúdio, mas sim um membro da equipe dela designado para supervisionar as alterações no roteiro, seleção de elenco, orçamento e a abordagem geral para um filme específico. Leo Rosten, cujo livro Hollywood — The Movie Colony contém a melhor e mais direta análise de produtores que eu conheço, observa que os filmes são o que executivos “encorajam ou permitem que sua bateria de talentos criativos façam deles”. Bem verdade, mas esse privilégio idealmente pertence ao diretor, e sua função é assumi-lo assim que puder na criação de um filme. Um simpático e imaginativo produtor pode ser de grande ajuda, não apenas com as ideias criativas que ele traz para o filme, mas em enfrentar as batalhas “executivas” do diretor por ele. O produtor precisa, obviamente, de coragem assim como de imaginação; e isso é o que faz dele algo raro. O produtor inapto ou inseguro, infelizmente, não é raro, e sua existência criou o personagem de um panfleto criado pelo Screen Director’s Guild há alguns anos. Simplesmente pelas coisas que não consegue ou não fará, ele pode causar muito estrago a um filme — ao criar um clima de confusão e desconfiança que afete o relacionamento do diretor com seus roteiristas e equipe técnica, assim como com os executivos do estúdio. Na Warner, eu encontrei outro grande produtor. Para minha surpresa eles me propuseram que escolhesse qualquer um dos produtores da casa, e eu decidi por David Weisbart. Ele era o mais jovem; tinha dois filhos adolescentes, o que me fez pensar que ele teria um interesse pessoal no assunto; e ele era ótimo para trabalhar com o negativo (um raro atributo entre produtores). Ele tinha sido um 1. Originalmente publicado na revista Sight and Sound, sob o título Story into Script, edição de outono de 1956. Tradução de Guilherme Garcia.

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editor, e montado Uma rua chamada pecado (A Streetcar Named Desire, 1951)

gridade dos seus roteiros. Isso é admirável na teoria, porém, no todo, deplorável na

para Kazan, que tinha me dito que gostou de trabalhar com ele e achava que nós

prática. Para conseguir isso é necessário o talento excepcional de um John Huston

dois iríamos nos dar bem, e que Dave contribuiria como produtor. Ele contribuiu.

ou de um Preston Sturges em seus respectivos auges. Existem vários escritores-

Quando Dave leu a sinopse de The Blind Run [A corrida cega] e me escutou

diretores cujos filmes são insatisfatórios exatamente porque eles superestimam o

falar ainda mais sobre, sua primeira reação foi como se tivesse engolido uma bata-

escritor e subestimam o diretor. O escritor-diretor é muito indulgente para com

ta. (Mais tarde ele percebeu, obviamente, que tinha engolido mesmo.) Isso não era

o escritor, relutante em cortar uma palavra do brilhante diálogo, ou uma frase

surpreendente. Para começar, ele foi apresentado a uma história original — menos

daquela cena prolixa.

uma história, nesse momento, do que uma ideia — e não à base confortável de uma

Os mais talentosos escritores de Hollywood são aqueles que reconhecem

história de um livro ou revista ou peça da Broadway. Além disso, o conteúdo por

a natureza especial de escrever para cinema e compreendem as reivindica-

si só era potencialmente explosivo.

ções criativas do diretor. (“Uma das funções do diretor”, diz Gilbert Seldes em

Acredito que ele ficou em estado de choque por algum tempo. Mas quando a

The Movies Came From America, “é nos salvar do escritor enamorado de sua

história começou finalmente a tomar forma e estávamos quase prontos para filmar,

própria esperteza; outra é nos salvar dos atores enamorados com suas próprias

ele se envolveu apaixonadamente com o filme. Não foi a coisa menos importante

personalidades; e uma terceira é nos salvar dos produtores...”) Isso envolve, às

que ele fez para mim, aceitar com paciência e compreensão os dois falsos começos

vezes, um tipo diferente de renúncia para o escritor, que está trabalhando num

na procura por um escritor, e permitir que a busca pelo escritor certo continuasse.

meio no qual a imagem, e não a palavra, tem o impacto final. “Estava tudo no roteiro”, um escritor delirante irá lhe dizer. Mas nunca está tudo no roteiro. Se estivesse, por que fazer o filme?

Encontrar um escritor é, por vários motivos, mais difícil do que encontrar um

Existe uma história reveladora sobre esse assunto contada pelo diretor alemão

produtor. O produtor, pelo menos, geralmente acha você. Existe uma tradicional

Fritz Lang. Quando ele fez seu primeiro filme, Fúria (Fury, 1935), ele sabia por

hostilidade em Hollywood entre escritores e diretores, e é um tipo único de hosti-

volta de trinta palavras em inglês. (Isso não o impediu de trabalhar no roteiro.) O

lidade. Basicamente, cada um ressente a dependência que tem do outro. O escritor

brilhante filme que surgiu foi considerado muito controverso e perturbador por um

precisa do diretor para a sua história ser realizada; o diretor precisa que o escritor

distinto executivo de estúdio. Furioso, ele chamou Lang a seu escritório e o acusou

dê a ele uma história de uma forma que ele possa realizar.

de ter mudado o roteiro. Lang disse que sua ineficiência em inglês impossibilitou

Dessa situação florescem uma boa quantidade de mal-entendidos e amar-

que isso acontecesse; comparando o roteiro com o filme terminado, ele mostrou

guras. O escritor alega que sua contribuição criativa é subestimada — o diretor

que nenhuma linha de diálogo ou situação fora mudada. Mesmo assim o executivo

e as estrelas quase sempre recebem mais publicidade e reconhecimento do que

reclamou, o filme era completamente diferente do roteiro.

ele; não foi ele quem criou os personagens e a história, escreveu os diálogos e desenvolveu a estrutura?

Partindo de uma ideia original, a tendência da maioria dos escritores é fazê-lo “literário”, apresentando a cena em termos de diálogo. O diretor precisa lutar con-

Se o caso do escritor fosse simples assim ele seria o profissional mais maltra-

tar isso, e o resultado é quase sempre o escritor acusá-lo de ser iletrado. Pode existir

tado da indústria. Infelizmente para ele, não é. Primeiro, existem talvez meia dúzia

uma cena da qual o escritor seja particularmente orgulhoso dos diálogos; pode

de escritores de primeira classe em Hollywood. Os mais proeminentes escritores

ser um diálogo bom, mas o que é realmente necessário para a cena não é um bom

preferem literatura ou teatro, para os quais sua contribuição não gera ambiguidade.

diálogo, mas uma concepção visual. E o diálogo tem que sair. O que o substitui pode

Os famosos romancistas que vêm para Hollywood e escrevem um roteiro poucas

parecer, para o escritor, banal — e aqui outro mal-entendido pode aparecer. Alguém

vezes chegam com a cabeça aberta sobre o meio que estão explorando, e raramente

observou que um princípio fundamental do sistema de Stanislavski é ajudar o ator

aprendem muito sobre ele. Quase todos retornam com uma imagem irônica e mago-

a dizer “Que horas são?” e querer dizer uma ou vinte outras coisas diferentes —

ada do monstruoso diretor ou produtor. O escritor, eles dizem, não é compreendido.

“Eu quero ir embora” ou “Eu quero ficar”, “Eu amo você” ou “Eu odeio você”, “Eu

Do mesmo modo, poucos escritores que conseguiram fama e influência em

estou preocupado” ou “Eu não estou nem aí”, entre outras. Nesse sentido, a linha

Hollywood se viram para a direção a fim de poder, segundo eles, preservar a inte-

aparentemente mais banal de diálogo pode atingir um sentido dramático. Dentro

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do momento, do estado de ser e da necessidade urgente, vem o tom do que é dito

podem ser formadas. No triângulo produtor-diretor-escritor não é necessariamente

ou feito. Só o diretor está em posição de ajudar o ator a criar esse efeito.

o “artista” que forma a base. Para ganhar uma discussão, o produtor pode decidir

Se escritores fossem capazes de trabalhar mais próximos de diretores no início da concepção de um filme, os resultados e a compreensão mútua seriam

causar discórdia, e não é tão difícil para ele fazer isso; separados e secretamente, escritor e diretor podem buscar apoio do produtor numa situação não resolvida.

melhores. A maioria dos diretores, quando começam a fazer filmes, recebem ro-

Um produtor inseguro tende, a princípio, a separar escritor e diretor — em

teiros completos (apesar de impraticáveis) alguns dias antes do prazo de início das

alguns casos recusando a deixar o escritor visitar o set, e assim deixando pratica-

filmagens. Mais tarde, eles ainda têm que lutar para trabalhar com escritores de sua

mente impossível para ele conhecer mais sobre o meio.

escolha. (Geralmente a dificuldade é que estúdios preferem trabalhar com um de

Um escritor inseguro sempre decide que sua primeira obrigação é com o

seus escritores contratados por óbvias questões econômicas.) Essa é uma batalha

produtor, em vez de ser com a história ou com ele mesmo — com a exceção de seu

que diretores de Hollywood têm lutado por vinte anos e que ainda não foi vencida.

“eu” econômico, porque um escritor geralmente acredita que é só um produtor

As reclamações não são todas de um lado. Executivos de estúdio trabalham

que lhe consegue trabalhos.

sob a pressão inquietante de terem que dar satisfação a seus correntistas, e eles

Um diretor inseguro tem campo maior para operar. Basicamente ele pode

só conseguem fazer isso mantendo um estoque regular de produtos lucrativos. O

ser inseguro porque não sabe o que quer — do escritor ou dos atores, da equipe

primeiro instinto de um executivo é se opor a qualquer coisa que vai interromper

técnica ou do montador (e, em alguns casos infelizes, de nenhum deles). Como

esse suprimento ou aumentar o orçamento. É inconveniente e geralmente dispen-

resultado disso ele tem uma legião de vítimas em potencial. O caso foi finalmente

dioso postergar uma data de filmagem, equilibrar os compromissos dos atores.

apresentado por Arthur Hopkins em seu livro, Reference Point. É sobre teatro, mas

Por que um diretor não pode ir lá e fazer o filme que ele foi contratado para fazer?

os paralelos são certeiros e inteligentes.

Ninguém se propõe deliberadamente a fazer um filme ruim, apesar de mui-

Ele reza para que dê certo:

tas pessoas se proporem apenas a fazer um filme. A economia e a mecânica do sistema exigem isso. A dificuldade começa quando convicções pessoais de um

Pelo diretor que aplica suas piadas ofensivas em pessoas indefesas;

cineasta interferem com os mecanismos de um negócio operado para gerar lucro.

Pelo diretor que sofre torturas na sala de apresentação;

Contestar os filmes porque são “comerciais” é idiotice; aceitar que honestidade e

Pelo diretor histérico, um fugitivo de uma casa para meninas desajustadas;

originalidade sejam necessariamente “não comerciais” é impossível.

Pelo diretor que deixa atores sentados esperando enquanto tenta arrumar

Mesmo assim, bons filmes são feitos — e não, como alguns amargurados hu-

aquela cama bagunçada — sua mente;

moristas querem nos fazer acreditar, simplesmente para se opor aos estúdios. Há

Pelo diretor que prepara uma grande cena que planejou para sua própria

muitos mal-entendidos entre produtores, diretores e escritores. Para os escritórios

aparição estelar.

dos estúdios é apenas mais um empecilho a ser lidado. Eles têm todas as razões para nunca assumirem risco algum. Mesmo assim assumem, e surpreendentemente vá-

Isso deixa mais do que claro que nós podemos ser os mais perigosos de todos.

rias vezes. A decisão de permitir que As vinhas da ira (The Grapes of Wrath, 1940), Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941) ou Um lugar ao Sol (A place in the Sun, 1951) acontecessem descompromissadamente, da maneira que seus criadores

The Blind Run foi uma ideia original para um filme, sem estrutura dramática mas

queriam, não deve ter sido algo fácil. E em um desses casos pelo menos não deve

com um ponto de vista. O problema em desenvolvê-la estava em criar situações e

ter sido fácil acalmar os correntistas.

diálogos que apresentassem esse ponto de vista. Em certa ocasião eu ganhei a vida

Métodos de produção, então, são um fator. Outro é a insegurança humana. Ao

como escritor. Para muitos de meus filmes eu dei ideias para situações ou mudei

se fazer filmes, pessoas criativas, executivos e administradores precisam trabalhar

as que já existiam, e escrevi algumas cenas de diálogos. Mas não me considero

juntos. Existe um machado da tradição que deve ser enterrado. Crédito e fama não

um escritor. (Idealmente eu preferiria não escrever nada, sendo sem dúvida ainda

são somente questões de orgulho pessoal, mas de necessidade profissional. No pro-

mais indulgente que um profissional para com as poucas linhas que escrevi que

cesso de descartar antigas hostilidades instintivas, algumas inesperadas alianças

me satisfizeram.)

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A Warner queria que eu usasse um de seus escritores contratados, e suge-

Leon Uris abordou o primeiro tratamento do roteiro com diligência e pesquisa.

riram Leon Uris, cujo Battle Cry tinha acabado de gerar um filme bem-sucedido.

Como uma forma de se sentir dentro do contexto, ele começou a escrever uma

Isso não provava que ele era o tipo de escritor que eu estava procurando, mas ele

história curta sobre uma cidade pequena imaginária onde a ação deveria ocorrer:

estava entusiasmado com o material, parecia compartilhar do mesmo ponto de

esboçando o crescimento de uma daquelas comunidades “normais”, agora atônita

vista, e existia um episódio intrigante em sua história pessoal. Antes de se tornar

com o número de jovens delinquentes dentro dela.

um escritor estabelecido, ele tinha sido supervisor de distribuição para um jornal

O tratamento propriamente, entretanto, incumbiu-me da ingrata tarefa de

de São Francisco. Para os quarenta rapazes trabalhando para ele, que iam até ele

explicar que não era aquilo o que eu queria. Uma das coisas mais difíceis para um

com seus problemas, ele agiu como um pai confidente.

escritor é tentar seguir o ponto de vista de outra pessoa, criar uma história a partir

Uris começou ficando dez dias como aprendiz de assistente social no Juizado

de uma imaginação que não a sua. Numa adaptação, ele pode descobrir instâncias

de Menores, centro de detenção onde todos os tipos de crianças e adolescentes que

da atitude do diretor para com o material. Num trabalho original de outra pessoa,

haviam se metido em todos os tipos de problema — desde terem se perdido até

ele está trabalhando no escuro. Era como um exame de visão num oftalmologis-

incendiado uma casa, ou mesmo assassinato — são mantidos para avaliação e en-

ta — será que ele consegue ler os personagens em minha cabeça assim como as

trevistadas por assistentes sociais e psiquiatras antes de seus casos serem julgados.

letrinhas na parede? Nós não víamos, pelo que parecia, os mesmos personagens

Nós abordamos primeiramente o Juizado de Menores e a Secretaria do Menor

na parede. A busca tinha que continuar.

do departamento de polícia da cidade algum tempo antes, incertos da recepção

Dos escritores disponíveis naquele momento, Irving Shulman parecia o mais

que teríamos. Richard Brooks havia me dito que, não por sua culpa, teria deixado

indicado. Além de seu trabalho como romancista e no cinema, ele havia sido pro-

de receber cooperação oficial em Sementes da violência (The Blackboard Jungle,

fessor de ensino médio. Ele era também profundamente interessado em carros

1955). Ele foi aconselhado a dizer às autoridades que não tinha roteiro, por receio

esportivos, o que sugeria um promissor ponto em comum com Jimmy Dean.

de que certas cenas fossem recebidas com objeção e desaprovação. Isso foi um

A esse ponto eu já tinha assistido a Vidas amargas (East of Eden, 1954), co-

conselho ruim. Quando a mentira foi descoberta, as autoridades ficaram furiosas,

nhecido Jimmy e sabia que ele era o ator ideal para Jim Stark. Ainda estava longe

e recusaram até uma entrevista a Brooks, que ouviu da polícia que não esperasse

de certo, apesar de ele estar interessado no projeto, que ele faria o papel. Uma

cooperação alguma dela.

parte da dificuldade era pessoal. Desde que comecei a conhecê-lo percebi que, para

Eu realmente poderia dizer, em minha primeira visita lá, que não tinha ro-

uma colaboração bem-sucedida, ele precisava de um tipo especial de clima. Ele

teiro. Mas eu sabia o que queria, e expliquei honestamente ao juiz McKensson no

precisava de segurança, de tolerância, de compreensão. Uma maneira importante

Juizado de Menores e ao dr. Coudley, psiquiatra chefe lá. Eles gostaram da abor-

para criar esse clima era envolvê-lo em todos os estágios de seu desenvolvimento.

dagem e nos ofereceram tudo de que precisávamos: conversas com os assistentes

Portanto, ele conheceu Shulman numa tarde na minha casa.

sociais, acesso para entrevistas com jovens delinquentes e salas de tribunais, saídas em carros da polícia para chamadas de rebelião. De tudo isso veio a confirmação de meu ponto de partida original. Ao ouvir esses adolescentes falarem sobre suas vidas e seus atos, duas impressões eram

O resultado foi decepcionante. Depois de um pequeno surto, a conversa de carros foi diminuindo até desaparecer. Desconfiado, um pouco ameaçado, como acontecia quando uma conexão não acontecia num primeiro encontro, Jimmy se retirou.

recorrentes. O que eles fizeram tinha uma terrível e melancólica falta de propó-

Shulman começou imediatamente a construir um roteiro com alguns deta-

sito, como o garoto de 16 anos que jogou seu carro num grupo de jovens “só por

lhes. Ao contrário de Uris, ele considerava a pesquisa ativa desnecessária e não

diversão”. O que eles sentiam, quando perguntados sobre suas famílias, era um

visitou o Juizado de Menores ou conversou com algumas das pessoas que eu havia

isolamento amargurado e ressentido. Todos contaram histórias parecidas — pais

contatado lá. Entretanto, seu talento para inventar ou lembrar acontecimentos

divorciados, pais que não conseguiam auxiliá-los ou compreendê-los, que eram

rapidamente nos levou adiante em várias direções.

indiferentes ou simplesmente os “criticavam”, pais que precisavam de um bode expiatório na família.

Nós começamos discutindo a gangue da escola, e Shulman lembrou de uma nota no jornal sobre um “racha” à noite no bairro Pacific Palisades. Um grupo de adolescentes se reuniu em carros roubados no penhasco do elevado. Os pilotos

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deveriam correr contra o outro em direção ao penhasco, e o primeiro a saltar do

de Vidas amargas, eu decidi que deveria ser o compositor do filme —, eu me senti

carro antes do limite da borda, a queda para o mar, era o covarde. Nessa noite

incentivado por eles terem concordado e pensei que essa seria uma das melhores

um dos garotos não conseguiu saltar a tempo. O “racha” no penhasco substituiu

cenas da história. Shulman, entretanto, relutantemente discordava. Ele acreditava

a corrida cega no túnel.

que Plato deveria voltar para sua própria casa.

Nós discutimos Plato, o solitário garoto tentando escapar da enfadonha e

Este foi um ponto crucial para mim, pois simbolizava a afirmação mais vio-

indiferente família, e tentamos achar um caráter mais definido para ele. Apesar de

lenta, o mais amplo conflito desenvolvido que estava procurando e que Shulman

no roteiro de Shulman ele ter ficado mais abertamente psicótico do que na versão

parecia incapaz de aceitar. Era um gesto de raiva e desespero que remetia às

final, nós chegamos a um novo histórico, uma nova situação base, para ele. Sua

histórias que tinha escutado no Juizado de Menores.

solidão agora vinha, como a de Jim e Judy, de uma família bem estabelecida; exi-

Essa questão me fez decidir que nossos pontos de vista eram muito diferentes.

tante, buscando carinho, cheio de violentos conflitos internos, ele vivia numa casa

Apesar das valiosas contribuições que Shulman trouxe para o roteiro, estávamos

grande com sua negligente e luxuriosa mãe, e tinha contato com seu pai somente

novamente num beco sem saída.

através de um cheque que chegava com um bilhete datilografado pregado a ele — para o sustento do filho. Por algum motivo o escritório do estúdio tinha grandes objeções a isso. Eu pude apenas responder que para mim isso tinha um grau de

De acordo com Robert Lindner, pelo menos, escritor do livro que inspirou o título

realidade identificável, já que eu tinha dois filhos na mesma situação, e que esta

do filme (Rebel Without a Cause: The Hypnoanalysis of a Criminal Psychopath), es-

era uma ideia advinda diretamente de minha experiência pessoal.

távamos sem saída. Eu o conheci num coquetel patrocinado pela fundação Hacker

Essas foram evoluções, mas não tínhamos atingido o coração da história.

no hotel Beverly Hills. Ele estava em Hollywood para dar duas palestras: “O motim

Romeu e Julieta sempre me marcou como a melhor história já escrita sobre “jo-

da adolescência” e “Devemos nos conformar?”. Existia, naturalmente, uma tensão

vens delinquentes”. Eu queria uma sensação Romeu e Julieta para Jim e Judy — e

a ser superada em nosso primeiro encontro. Ele sabia que eu tinha rejeitado seu

suas famílias. Disso veio uma convicção em relação à forma da história. “Tente

livro, apesar de ele ter deixado claro rapidamente que não estava ressentido com

seguir a forma clássica da tragédia”, anotei um dia. “Verifique se as unidades estão

isso — apenas genuinamente surpreso.

compreendidas.” A ação principal precisava ser comprimida num dia, começando

Seu próprio livro, ele me disse, possui a maior base de pesquisa para um

para Jim Stark em problemas e confusão, mas terminando, pela primeira vez, em

filme sobre delinquência. “Você deve fazer desse jeito. Você deve fazer um filme

algo diferente. Outra nota dizia: “Um garoto quer se tornar homem, rápido.” O

desenvolvimentista.” Em suas palestras ele iria discutir a oposição entre protesto

problema era mostrar, durante um dia, como ele começava a se tornar um.

e conformidade que os jovens enfrentam hoje. O problema do desejo do indivíduo,

Weisbart e eu também tivemos uma ideia para uma cena de escola. Os alunos vão para uma aula de astronomia no planetário. Em oposição à uma réplica gigante

de preservar a si mesmo em face de demandas opressoras de conformismo social, estava, ele se sentia convencido, no coração do tema.

do céu com planetas localizados e constelações brilhando, eles escutam a uma seca

Enquanto esse homem bonito e nervoso, em seus quarenta anos (sua notável

palestra sobre o cosmos. A voz tediosamente discorre sobre a universalidade, o

carreira como psicólogo criminal seria abruptamente interrompida por sua morte

espaço e os imensos ciclos temporais, e conclui com uma visão do fim do mundo.

um ano depois), falava entusiasmado sobre protesto e rebelião, eu não conseguia

Flashes de luz explodem pelo céu. E enquanto os outros alunos riem ou sussurram,

resistir à impressão de que ele estava lutando contra uma já adiada rebelião em si

Plato repentinamente estremece pela constatação de sua própria solidão.

mesmo. A ideia de filmar seu estudo sobre um jovem delinquente que relata suas

Mais tarde, uma outra ideia de uma cena no planetário me ocorreu. No clí-

fantasias de violência sob efeito de hipnose parecia obcecá-lo. Ele praticamente

max da história, quando Plato acredita que Jim, seu único amigo, abandonou-o,

implorou para que eu fizesse o filme; ele ofereceu seus serviços como consultor.

eu pensei que ele deveria retornar ao planetário deserto à noite, buscando abrigo

Eu expliquei que uma forte razão para eu não querer filmar seu livro era que

sob sua grande redoma e céu artificial. Era o tipo de inesperada referência dramá-

eu já tinha feito O crime não compensa (Knock on Any Door, 1949), sobre um

tica que eu sentia que a história precisava ter; existia para mim uma sugestão de

adolescente que desvia para o crime como resultado da pobreza e de uma criação

tragédia clássica. Discutindo a cena com Jim e Leonard Rosenman — que, depois

infeliz, e eu não queria me repetir. Sua segurança, entretanto, era inabalável. Então,

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em seu caminho, estava o meu — apesar de por trás existirem algumas dúvidas

Sobre direção 11

pressionando. Era por volta do fim de novembro. Quase dois meses se passaram e eu ainda estava sem o roteiro, ou o escritor, que eu queria. Sem nenhuma surpresa, a Warner estava ansiosa em marcar uma data para o começo das filmagens. Como geralmen-

A maioria dos diretores não sabe como se comunicar com atores. Em vez disso, eles

te acontece quando as preparações para um filme não correm como o esperado,

se apoiam nos elementos externos de composição, ângulos da câmera, iluminação,

começaram os rumores de que ele nunca seria feito. Um técnico do estúdio, alguém

lentes. É muito mais fácil para um diretor se relacionar com a mecânica da câmera,

me disse, fez uma aposta de 250 dólares nesse sentido. Dave Weisbart estava tendo

assim como é muito mais fácil para um ator se relacionar com uma imagem de

problemas com o escritório do estúdio, e, depois que começamos a filmar, ele me

seu papel e com a sua imagem nesse papel, do que se relacionar em termos de

disse que houve conversas sobre abandonar o projeto. Num nível mais alto, Steve

ação. Em ambos os casos uma imagem extrapolada é sobreposta no conteúdo e o

Trilling como produtor executivo também estava tendo que justificar sua crença

trabalho de base é negligenciado.

numa ideia que, apesar de já estar consumindo dinheiro, era ainda nada mais do

Estimular uma discussão sobre atuação e direção de atores é, talvez, bem

que uma ideia. Eu fiz outra anotação: “Dave e eu devíamos considerar os novos e

menos complicado do que as pessoas que escrevem sobre atuar e não atuam, ou

jovens escritores como possibilidade. Alguém que vai ficar ali e trabalhar conosco

que escrevem sobre direção e não dirigem, fazem parecer. Não é que escritores

até o fim do espetáculo...”

não sejam perfeitamente capazes de discutir e esclarecer o ofício da atuação e da direção — talvez até melhor do que aqueles que o fazem —, mas isso não é o que fazem para se sustentar, e livros requerem palavras demais. Eu já tentei ler livros sobre atuação. Mesmo quando estudante, eu achava terrivelmente difícil ler livros. Eu ainda acho difícil ler livros e aprender alguma coisa. Um livro pode dar uma impressão, e essa impressão pode evoluir para uma ação, mas eu nunca fui capaz de seguir fórmulas. Por outro lado, mesmo eu dizendo tudo o que tenho a dizer sobre um assunto em poucas linhas, quando começo a investigar e a dissecar um pouco para descobrir como atores chegam ao estado além de sua própria personalidade — esse estado de ser capaz de convencer pessoas de que eles são quem eles são, mas não quem eles são numa determinada situação —, uma discussão mais detalhada precisa de muitas técnicas e teorias, que derivam, provavelmente, de tantas escolas de atuação para palco e cinema quanto de escolas de psicanálise ou finanças. Então hoje, pela primeira vez em 25 anos, li o capítulo final de A preparação do ator, de Stanislavski. Eu ia dizer quarenta anos, mas então olhei a data de publicação do livro: 1949. Estamos em 1977. Certamente, então, só podem ter passado 28 anos. Mesmo assim eu tenho trabalhado de acordo com os princípios desse livro por quarenta anos. Como isso aconteceu? Bem, não foi por acidente. Foi no tempo da severa depressão econômica. A capa de uma proeminente revista de artes era branca com as bordas em preto e dizia: “O teatro está morto. 1. Originalmente publicado na revista Sight and Sound, edição de outono de 1990. Tradução de Guilherme Garcia. (N.E.)

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Vamos dar a ele o enterro que merece.” E eu, garoto inocente do Meio-Oeste, des-

confortável, mas falar demais é um problema. Um diretor que não teve experiência

treinado e inexperiente (uma pessoa pode ser destreinada e experiente), recebi

como ator é um aleijado.

uma oferta de trabalho numa produção da Broadway chamada Her Man of Wax?.

Kazan foi para Hollywood com Laços humanos (A Tree Grows in Brooklyn, 1945)

Tinha um atrativo ali, sexual. Eu rejeitei a oferta e fui para um teatro em um loft

— seu primeiro trabalho como diretor de cinema — e me levou como seu assistente.

na 42 East 12th Street, que ouvi ter sido chamado de “real”, “sincero”. Eu queria

Durante o processo de casting filmamos testes incríveis. Decidimos por Peggy Ann

ser real. Eu queria ser sincero.

Garner para o papel da garota. Ela tinha 12 anos, não tinha nenhuma experiência

Meu teste para o teatro foi um sucesso. Mudei-me de um quarto num prédio

no palco e não podia ser terrivelmente sobrecarregada com nenhuma teoria sobre

chamado Desire under the L para um apartamento de cinco quartos na East 13th

atuação. Mas ela tinha uma mãe que bebia e emitia cheques sem fundo constan-

Street, que dividia com 12 outros membros do teatro. Meus hábitos alimentares

temente. Dorothy McGuire fazia o papel de sua mãe. Dorothy era bem-educada,

mudaram de farinha de milho cozida, frita ou assada três vezes ao dia para chá e

vinha de uma formação elegante e era casada numa família rica provinda do

pão preto no café da manhã, um sanduíche de cream cheese no almoço, e o que

nordeste estadunidense. Até então, ela tinha sido atriz de teatro. E James Dunn,

sobrava, do que um orçamento de 17 centavos por semana era capaz de providen-

que fazia o papel do pai, era um bêbado que tinha bebido seu caminho para fora

ciar, para o jantar, e eu comecei a aproveitar a vida.

da indústria e tinha todas as qualidades realistas do personagem de Johnnie na

Contribuindo para essa sensação de completude estavam meus companheiros

história. Ele poderia ter sido um cômico burlesco, associado majoritariamente com

de quarto e colegas atores, voluntários da companhia de Martha Graham (Doris

apostadores, músicos e pessoas burlescas, e era um risco constante na cabeça de

Dudley e Anna Sokolov eram minhas favoritas), que davam aula de movimento

todos, assim como um lindo ser humano que nos deu uma performance vence-

de corpo, professores de voz e dicção; Elsa Findlay, em eurritmia; e Billy Lewis,

dora do prêmio da Academia. A extraordinária técnica de Kazan uniu essas três

Lewis Leverett, Morris Carnovsky e, de uma particular significância para mim,

pessoas muito diferentes, com diferentes formações e experiências. Ele as colocou

Elia Kazan do Group Theater. 2

no mesmo tom e não tinha uma nota sequer destoando.

Deixe-me começar por Kazan. Considero Gadge Kazan o melhor diretor de

O que eu tinha que aprender naquela época, Kazan me ensinou; o que ele não

atores que o ambiente de estudo de teatro nos Estados Unidos já produziu. Suas

me ensinou ele me guiou e incentivou para que eu aprendesse por mim mesmo.

realizações como diretor são imensas. É um mistério para mim que sua inteligência

Mas ele era a fonte, o poço de onde eu bebia mais profundamente. Ele me trouxe

e instinto sejam tão erraticamente representados por seu trabalho.

a essência dos últimos capítulos de A preparação do ator muito antes de o livro

Encontrei Gadge trabalhando no loft, e eu o conheci por meio de sua mulher, Molly, que ensinava dramaturgia. Atuei na primeira peça que Kazan dirigiu.

ser impresso. Se nós os interpretamos de maneiras diferentes nos anos que se passaram não é importante.

Sustentar-me como ator me envergonhava terrivelmente. Fiz isso por dois anos e

Então agora, aos 65 anos, estou fazendo novamente a transição de farinha

meio, e unicamente porque queria me tornar um diretor. Kazan já tinha estabe-

de milho três vezes ao dia para uma dieta mais variada. Sou duplamente aben-

lecido uma sólida reputação como ator de teatro com uma ou duas performances

çoado. Assim como o ator que quer trabalhar em frente da câmera e lê o livro de

que foram consideradas entre as dez melhores do ano, mas ele também não queria

Stanislavski. Um indivíduo, quer seja um ator, diretor, produtor, crítico, que diz

ser ator. Nós nos tornamos amigos porque queríamos ser diretores e sabíamos que,

que atuar em frente às câmeras é mais fácil do que atuar no palco, pode não ser

para conseguirmos, teríamos que aprender os problemas do ator.

um idiota. Ele apenas está fugindo da verdade, o que é bem idiota.

No meio da minha adolescência eu tinha como objetivo me tornar maestro

Eu presumo que queremos nessa discussão distinguir entre atuar no cinema,

de orquestras sinfônicas. Era doloroso admitir que eu não tinha nem facilidade

atuar no teatro e atuar psicologicamente falando, assim como atuar voluntária ou

nem talento com piano, madeiras, cordas ou metais. Como você vai aprender os

involuntariamente. Para o bem da unidade, vou falar do ponto de vista do diretor.

problemas do ator a não ser que você atue? Você pode teorizar um bocado, e isso

Fiz uma anotação daquele tempo trabalhando com Kazan: “Não dirija um

vai mantê-lo confortável e impedi-lo de fazer qualquer coisa. Não é necessário estar

ator nato.” Se você for sortudo o suficiente para encontrar um ator nato, deixe-o trabalhar, porque nele você tem talento de graça. Mas a maioria não é assim e

2. Grupo de teatro de esquerda da década de 1930. (N.T.)

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precisa de direção, seja velho ou jovem, amador ou profissional.

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Outra nota que fiz para mim mesmo, se bem me lembro, é relacionada com trabalhar com o ator saído direto do teatro que não teve experiência em frente às

do diretor, porque pedir a um ator para relaxar ou para se concentrar nas falas não vai ser de muita ajuda.

câmeras, mas que teve a experiência de projetar o que estava fazendo para a fileira

Por outro lado, se o diretor consegue criar uma situação que demanda a

Z do mezanino. Se o ator tem qualquer método de atuar, o diretor deve incentivá-

concentração, então o ator vai se concentrar em suas ações como o personagem.

lo em seu método de trabalho para chegar na mesma verdade e tom de emoção

Um personagem não virá à vida até que o ator faça a transição de “se eu fosse

que ele precisaria projetar no teatro, e aí ele deve sentar em cima disso, porque a

ele, o que eu iria querer, o que eu faria?” para “eu quero isso”. O diretor precisa

câmera é um microscópio e um ampliador.

ajudar o ator descobrir as coisas que ele quer nos seus próprios termos — e não

Muitas das pessoas que procuram uma carreira como ator nunca se preocu-

ditando para ele ou dizendo “Isso é o que você é e isso é o que você quer”. Você

pam em ter um método de trabalho. Outras que têm um método de trabalho não

deve ajudá-lo a achar o que quer ele mesmo, lembrando sempre o que aconteceu

percebem que têm um. E ainda outros que têm que ter seus maus hábitos rompidos

com ele logo antes e os obstáculos que ele deve enfrentar. Você talvez tenha que

sem esvaziar completamente sua confiança. É geralmente mais divertido trabalhar

ajudá-lo com alguma descrição para dar a ele a marcha correta, o olhar correto,

com um completo amador.

o aspecto correto. O que acontece depois é que a performance dele pode lhe sur-

A abordagem para conseguir uma desempenho de um ator e de um não ator,

preender, e isso é sempre bom.

ou de um ator de cinema e de um ator de teatro, é às vezes idêntica e às vezes

Depois disso existe a técnica de surpresa. No ensaio você pode sentir que a

absolutamente oposta, e concebida na hora sem preocupação alguma por seguir

cena esta perto de pronta, e que o amador, esse pedaço de material bruto e não

um plano. Eu contratei não atores, pessoas que nunca antes tinham estado num

sofisticado que você gosta, está gostando de si mesmo, mas irá congelar no momen-

palco ou nas telas, em todos os filmes que fiz. Minha preferência pessoal quando

to em que o assistente de direção disser “Silêncio!” ou o cameraman for colocar

escolho um ator para um papel é andar pelo quarteirão com o ator, descobrir quem

uma lâmpada no lugar. Então você liga a câmera sem ninguém saber e filma o

ele é, de onde ele vem, o que ele quer como pessoa, quais são seus interesses; em

ensaio, e depois filma formalmente também, mas imprime somente a tomada que

vez de fazê-lo improvisar uma cena ou ler um roteiro. Um ator pode criar uma

ninguém sabe que foi feita. Quando isso acontece você deve manter o assistente,

boa impressão, mas, ao menos que ele consiga projetar um entendimento que

ou cameraman, ou os técnicos, quietos porque eles não têm nenhum senso de

tenha uma base emocional, tanto o diretor quanto o ator estarão com problemas.

como lidar com atores e são capazes de gritar “Imprima esse!” depois do ensaio.

Se um ator é ou não nato para o papel que eu pedi para ele ou ela atuar

Sua equipe tem que estar muito próxima a você; você deve dizer a eles exatamente

parece imaterial, exceto por uma coisa: você pode dirigir demais um ótimo ator

o que você está fazendo.

sem sérias consequências, mas se você dirigir demais um ator nato ele não volta

Outras técnicas de surpresa são o uso da câmera escondida, ou introduzindo

no dia seguinte; ele ficará confuso. Então a linguagem tem que ser diferente, sua

um elemento estranho na cena no último momento para transformá-la numa

linguagem e comportamento com o não ator precisa desarmá-lo.

improvisação.

Se você tiver sorte vai ter uma semana ou pouco mais para conhecê-lo. Nessa

Um fundamento para o diretor, que tem muito poucas exceções, é que toda

semana você deve — mas se for uma questão de três horas você deve fazê-lo nessas

frase, fala ou pensamento que é dito na tela deve soar como se fosse a primeira

três horas — achar uma conexão com aquela pessoa para que você consiga que ela

vez que tivesse sendo dito. As únicas vezes em que isso não funciona exatamente

responda inconscientemente em frente da câmera. Os únicos modos de se atingir

assim é quando evidenciar um determinado ponto dramático, assim como quando

esse estado de inconsciência, na minha opinião, são concentração e surpresa.

uma pessoa satiriza a si mesmo ou a outro.

Para conseguir concentração com um não ator você deve encontrar dentro

Como conseguir essa qualidade da primeira ou da última vez? Você persuadiu

dele seus maiores desejos ou necessidades naquele momento e transferi-los para

um não ator a atuar no filme com você. Você acredita que a forma com que ele

a situação do filme. Na verdade não é diferente com o ator profissional, mas com o

dirá as falas será exatamente como você quer porque quando conversou com ele

não ator você deve fazê-lo se concentrar sem nunca usar a palavra “concentre-se”,

acreditava nisso, e era uma das coisas que fazia dele atraente para você. Mas muita

tem que conseguir relaxá-lo sem nunca usar a palavra “relaxe”. Se você ouvir um

coisa aconteceu desde que você o convidou para trabalhar com você: durante o

diretor usar essas palavras com seu elenco numa circunstância qualquer suspeite

primeiro momento de bloqueio com a câmera, quando ele teve seu primeiro cara

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a cara com a câmera e saiu do set preocupado. Então alguém bem-intencionado

para si mesmo sobre que tipo de diretor iria se contradizer num espaço de quarenta

da equipe de fotografia, ou maquiagem, ou de continuidade, ou outro ator foi até

minutos. Mas ele já teve experiência cinematográfica o suficiente, já fez associa-

ele e disse que ele não deve ficar nervoso.

ções pessoais o suficiente com o personagem, para manter a ação fundamental

Quando chega a hora de fazer a primeira tomada com ele você tem uma

viva. E a melodia, que aparece nos olhos, torna-se mais interessante, porque ele

bagunça em suas mãos. Você então pode ligar para o casting e dizer para eles

está tentando pensar em algo novo. Eu dei a ele uma concentração falsa que se

que você fez uma péssima escolha e precisa de um ator diferente com urgência,

transforma numa concentração real, e agora ele esta renovado.

se eles poderiam mandar alguém da companhia ou do casting central, tanto faz,

Deve-se fazer o mesmo com um ator com longa experiência, e deve-se fazer,

você apenas precisa de alguém que consiga andar, que já tenha estado na frente de

lamentavelmente eu penso, quase da mesma forma. E se isso não funcionar, aí você

uma câmera. Mas isso é algo que qualquer diretor com ego saudável vai se negar

precisa tentar algo diferente. Você deve ser muito paciente. Bogart, por exemplo,

a fazer. Então você tem um pouco de trabalho à sua frente.

secava depois de seis tomadas. A primeira vez que fui mais de seis tomadas com ele

Agora você tem que dirigir muito. O não ator vai ter acumulado num perí-

tive que parar na sétima e encerrar os trabalhos do dia, não tinha como continuar.

odo de cinco minutos à meia hora tantos bloqueios quanto um ator profissional

Na manhã seguinte eu comecei com uma cena de insert para aquecer e desviar do

acumula em longos anos desenvolvendo técnicas externas e maneirismos — que

que quer que o tivesse bloqueado na noite anterior.

também devem ser desfeitos. O processo com o não ator e o ator é o mesmo, mas

Por sinal eu não conheço nenhum bom — quero dizer bom mesmo — ator

de novo com uma linguagem diferente, porque você não pode falar com um não

masculino que não tenha vergonha de ser ator. Portanto nos dois extremos de ex-

profissional em termos profissionais. É por isso que você deve passar um tempo

periência você tem que lidar com as mesmas características: o muito inexperiente

com ele antes de trabalhar — seja saindo para bordéis ou para beber, ou jogar cartas

e o muito bom são ambos envergonhados.

ou beisebol —, para descobrir como a vida dele tem sido, quais áreas da vida dele servem para vocês se conectarem.

Parece que estou dizendo que você tem os mesmos problemas com o ator

muito experiente, envelhecido na madeira e por isso enrijecido, e com o não ator

Se você se importa com composição do elenco, deve fazer as coisas que irão

inexperiente, aquela joia bruta, o ator nato. A grande maioria de atores são aque-

facilitar a concentração dele naquilo que ele quer pessoalmente, e assim deixá-lo

les que estão entre esses extremos. Eles vão do egoísta/exibicionista ao artesão/

apto a ser verdadeiro consigo mesmo, ao personagem que você quer. Mais do que

trabalhador competente.

confiança, ele precisa encontrar o próprio orgulho, autoridade e um desapego à

Esse último pode ter técnica, teoria e conhecimento, uma real e desenvolta

vergonha de qualquer espécie. O não ator precisa ter a desculpa, se ele comete

familiaridade com todas as coisas que estão acontecendo no set e com o papel,

um erro, de que ele não era ele mesmo. Ele já está envergonhado o suficiente por

uma sacola variada de truques que ele usa discretamente. Ele pode pensar que é

estar em frente às câmeras.

sempre bom porque conhece a profissão, porque tem facilidade; ele sabe como usar

Então quando você está trabalhando com um grupo de pessoas, você deve

suas ferramentas. Ele normalmente também tem uma conta no banco, a primeira

achar um vocabulário comum para cada pessoa do grupo. Você precisa se tornar

hipoteca da casa própria, é membro rotariano; mas nunca teve uma inspiração a

um expert em ser capaz de lidar com oito ou dez vocabulários diferentes, mas cada

vida inteira. Ele teve muitas coisas que pensou serem inspiração porque queria

um deles deve ser filtrado pelo seu vocabulário e depois traduzido. Ocasionalmente,

pensar em si mesmo como um cara inspirado. Ele faz parte da maioria e tudo o

com atores como Arthur Kennedy ou James Dean, você vai ter uma linguagem

que você pode fazer é empregá-lo como o melhor utensílio disponível e, se você

tão parecida que vai poder falar em poucas palavras. Você pode falar apenas uma

for bom como diretor, faça-o parecer melhor do que ele é.

ou duas palavras-chave, e antes que as lâmpadas estejam frias entre as tomadas

Em quase todos os filmes em que trabalhei, tentei desenvolvê-los num corpo

você vai voltar a filmar novamente pelo fato de o entendimento ser tão completo.

único de entretenimento, tive atores com todos os tipos de histórico, de todos os

Digamos que depois de três ou quatro tomadas o seu ator seque. Você quer

tipos de escolas que existem. Não há uma generalização que funcione com todos

ser capaz de encontrar novas formas de reanimá-lo. Nesse momento eu daria a ele

eles. Um diretor tem que estar preparado para lidar com todo o tipo de treinamen-

uma ação contraditória a tudo que ele tem desenvolvido até ali. Isso o confunde.

to, aprendendo os termos que cada um dos atores que está trabalhando usa. Em

Ele vai pensar que eu sou um grande babaca e vai voltar para a cena resmungando

Juventude transviada (Rebel Without a Cause, 1955) os pais ao redor de Dean eram

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atores que ficariam horrorizados em saber que estavam improvisando. Em vez

num filme ou em ensaios, mas apenas o suficiente para dar ao ator confiança, dar

disso mantivemos num nível simples de estímulo. Fazendo isso fomos ao encontro

a partida. É como fazer o escritor colocar as primeiras palavras no papel.

do que eles precisavam para se sentirem bem, então houve espontaneidade, houve

Esse método, que é talvez o mais difícil, demorado e exigente que eu conheço

improvisação; nós apenas não usamos essa palavra. As palavras os assustariam.

que tenha alguém usando, requer um relacionamento entre ator e diretor no qual

O Group Theatre tinha uma famosa frase de conselho para atores logo antes

tudo o que é dito entre vocês, mesmo em contatos preliminares ou entre toma-

de entrarem: “Dê um minuto.” Os antigos atores de vaudevile reservavam esse

das, seja de uma natureza terrivelmente íntima em seu conteúdo e associações.

mesmo minuto antes de entrar, mas eles chamavam de “congelar”. E se alguém

Recomendo que o diretor de um filme sempre mantenha a troca entre ele e o ator

chegasse até eles nesse momento, enquanto estavam congelados, e perguntassem:

longe dos ouvidos dos outros atores. Não se deve violar a confiança de um ator,

“Como foi o jogo dos Yanks hoje?”, eles pegariam o apoio de palco mais próximo e

suas informações pessoais; caso isso aconteça, ele irá interromper o fluxo entre

o quebrariam na cabeça do cara por atrapalhar a concentração deles.

você e ele assim como com os outros atores.

Você talvez tenha que trabalhar com pessoas que são muito profissionais,

Ao mesmo tempo o diretor deve se expor, mesmo que apenas mentindo. Posso

mas que suas profissões sejam dançar ou cantar. Cantores são difíceis de lidar

contar as histórias mais atrozes imagináveis sobre mim mesmo para conseguir que

porque eles nunca fazem contato com os olhos dos outros atores. Eles olham para

um ator se solte sem se sentir envergonhado, para que ele consiga dizer: “Mas ele

as testas. São treinados para fazer isso. Geralmente se comportam como corpos

fez cinco, dez vezes pior do que eu fiz, e ele é o diretor. Se ele foi tão mal eu também

duros, gelatinas ossificadas. Cantores contemporâneos tantos de acid rock ou beat

posso ser.” Mas isso pressupõe que você foi capaz de convencer o ator com quem

ou pop podem ser exceções, mas eles trarão consigo outra complicação, a de falsa

você está trabalhando de que o equipamento básico dele — somado ao roteiro, ao

modéstia, ou falso desdém, ou de um completo e inabalável ego coberto com uma

set, aos objetos da arte e ao diretor — é ele mesmo; suas memórias, associações, e

casca do exato oposto. Ali, a tarefa do diretor é trabalhar para diminuir a vergonha

sua imaginação. De tudo isso o mais importante é a imaginação.

de estar ansioso. É difícil porque você não é melhor do que um analista, e você não

Nunca soube de um diretor que tivesse sido capaz de colocar talento dentro

vai mudar o caráter de ninguém. O caráter está lá, mas a afetação pode mudar,

de um ator. Não tente. Você não consegue colocar o talento dentro, mas você pode

controles podem ser instituídos.

colocar imaginação. E isso você tem que ter em abundância, porque nenhum di-

Mas você não tem tempo para dar aulas de atuação para ninguém. Existem

retor é talentoso o suficiente, na minha opinião, exceto um Welles ou um Chaplin,

atores acomodados que sentem que estão fazendo um favor para a plateia ao apa-

para atuar em todos os papéis. Você precisa de seu elenco, mas tem que saber como

recer e procedem exercitando suas usuais necessidades psicóticas. Essas pesso-

fazer eles serem um pouco melhor do que são.

as, na minha opinião, confundem atividade criativa com confusão, ou confusão

Então, depois dos numerosos detalhes das luzes, objetos de cena, cor, ar-

com atividade criativa. E eles têm um milhão de perguntas para fazer, como uma

rumação do set, figurino, cabelo, maquiagem, o temperamento da equipe, foco,

criança que não quer beber o leite dela porque ninguém sabe dizer de que vaca

ensaio e as terríveis trocas com os atores foram atendidos, o diretor deve voltar

que veio o leite.

para trás das câmeras e desenvolver e exercitar consigo mesmo um relaxamento,

Desde o momento que você vê um ator entrar no set, você deve sentir o

uma boa vontade em aceitar, e uma propensão em não subestimar nada. Antes que

suficiente do que acabou de acontecer com ele para saber se pode usar algo da

você permita que a câmera seja ligada, você deve estar preparado para receber e

situação na cena. Você deve saber o material melhor do que os atores. Deve saber

responder e para avaliar a cena prestes a ser encenada; e se durante a cena você

o que você espera que as ações de cada ator devam ser, e também ter opções, para

perceber uma dificuldade sua em responder à cena, você deve descobrir por que

caso o ator escolher uma ação errada você ter outra opção pronta para não deixá-

e, ou dirigir novamente os atores, ou dar a eles outras coisas para trabalharem até

lo se debatendo. Atores por si só conseguem pegar uma cena e ensaiá-la apenas

que a cena esteja completa. E de novo, tudo isso remonta ao fato de você saber o

até certo ponto.

que quer da cena, saber a ação que quer.

Existem aqueles que irão pedir para o diretor demonstrar o que ele quer e

O diretor não deve nunca descartar a intuição. Pelo contrário, deve-se ter fé

então assumirão o controle a partir daí, e com isso você vai ter a chance de dar

nela. Nós todos percebemos alguns sinais de tempos em tempos, e, se acreditamos

um pouco mais de vida à cena. Você só vai conseguir fazer isso uma ou duas vezes

neles uma ou duas vezes, começamos a perceber quando eles acontecem. Muitos

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de nós passamos pela vida sem perceber a realidade da percepção extrassensorial.

Um diretor não pode ser egoísta. É uma profissão complicada e maravilhosa,

Existe sempre uma chance de nos tornarmos cada vez mais afinados, mais e mais

mas ingrata. Abandone-a antes que seja tarde e você vai perceber a vida mais fácil,

receptivos.

calma e respeitável. Do contrário, ame o palco. Ame-o mais do que você ama sua

Nesse sentido, o diretor deve ser um ator. Assim como o ator tem apenas a si mesmo para trabalhar, o diretor tem apenas ele mesmo, sua reações para de-

casa. Um diretor sente a felicidade de estar criando somente quando essa felicidade é compartilhada com aqueles ao seu redor.

terminar quando ele não está satisfeito, quando fazer mais uma tomada, quando

Se me perguntassem: “Qual é a formula mágica para ser um diretor?”, eu

escolher com qual ficar. Você deve treinar seus instrumentos, e mantê-lo afinados

diria: “Não tenha medo de ser um filho da puta.” Se você quer ser um diretor com

dia a dia, assim como o ator.

a ideia de que será amado, esqueça, você está no ramo errado.

E, assim como o ator, o diretor precisa estar no controle. Estar no controle não significa assustar o elenco, ou a equipe, ou funcionários que estão trabalhando com você. A autoridade geralmente é mais mantida de modo mais eficiente por meio de sua habilidade em estimular a imaginação e os interesses mútuos das pessoas envolvidas, e que se unem por sua causa. Nesse sentido você é, na pior das hipóteses, um ditador benevolente. O diretor no cinema tem que saber tudo o que se precisa saber sobre os equipamentos do set, e mais tudo o que se precisa saber sobre comunicação no set, e mais tudo o que for possível sobre teatro, atuar, musicais, composição, treinamento vocal, eventos recentes, política, envolvimentos e tudo e qualquer coisa que consiga absorver. Não deve existir nada que um diretor de cinema não consiga ou não deva fazer. Abbie Hoffman disse isso melhor quando fez uma palestra uma noite no Instituto de Arte de Chicago durante o julgamento de conspiração de Chicago. 3 Ele disse: “O que é arte? Foda-se a arte! Arte é o que você está fazendo! O que é política? Foda-se a política! Política é viver!” Eu entendo que existam jovens fazendo filmes de três, cinco minutos para preencher exigências escolares. Dessa maneira o jovem cineasta se torna uma pessoa à parte da sociedade. Ele faz tudo sozinho. Finalmente, eu não acho que se possa fazer um filme sozinho. Você precisa de um laboratório, de um cara que venda o negativo a você, do cara que faz a câmera. Precisa que sua esposa e seus amigos ajudem com transporte, que façam coisas para você. Você simplesmente não consegue fazer um filme sozinho. Para mim, a raison d’être, a obrigação, do diretor é dar ao espectador uma experiência elevada, um senso de ser elevado. Se um diretor não consegue dizer oi para as outras pessoas, como ele vai conseguir dizer oi para o espectador?

3. O Julgamento da Conspiração de Chicago (Chiago Conspiracy Trial) foi um acontecimento no qual oito pessoas foram acusadas de conspiração, apologia a revoltas antiguerra, entre outros delitos relacionados com protestos que aconteceram em Chicago simultaneamente à Convenção Nacional Democrata em 1968. (N.T.)

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Retrato de um ator quando jovem: James Dean 11

furtado. Ele se enraiveceu — mas era só o começo. Alguns dias mais tarde, os responsáveis do estúdio lhe anunciaram que ele não podia continuar a dormir em seu camarim. (Em certo sentido, isso era quase uma infração das regras de segurança do estúdio, e a Warner havia sofrido dois ou tres incêndios graves.) Ele se recusou

No princípio era o revólver

a lhes obedecer até que, uma noite, proibiram-no de transpor o portão de entrada. Há placas com inscrições de nomes e números sobre as portas dos escritórios

No seu camarim da Warner, ele guardava uma Colt .45. E era ali que ele também

da Warner. No dia seguinte Jimmy as arrancou, pendurou-as no teto e nos chafa-

morava. Quando estava com 22 anos, voltou a Hollywood para o Vidas amargas

rizes ou simplesmente as inverteu, causando uma bagunça generalizada. Depois

(East of Eden, 1954), e tudo o que Jimmy fazia indicava que não tinha nenhuma

ele montou em sua moto, jurando jamais fazer outro filme em semelhante lugar.

intenção de se adaptar àquele meio. Viera para trabalhar; permaneceria ele mesmo.

O episódio do revólver, e o que se seguiu, não foi a primeira experiência que

No interior do estúdio, descobriu um santuário de aço e concreto, e quando a noite

tive de seu caráter. Mas foi a primeira vez que me dei conta de algumas de suas

avançava, podia estar só naquele reino fechado, vazio. O revólver era talvez um

necessidades. Sua expulsão do camarim tornou impossível todo o clima de tolerân-

símbolo de autodefesa, de advertência aos outros.

cia no estúdio; como um gato, ele havia errado até encontrar seu canto preferido.

Ele guiava uma moto. Havia dias em que não se barbeava. Vestia-se de qual-

Depois nós o havíamos aprisionado. Uma ferida no orgulho de um gato é algo sério.

quer jeito, de maneira pobre, o que interpretávamos invariavelmente como um ato de revolta. No entanto, isso não era inteiramente verdade. Nm sentido, tal hábito economizava tempo, o que Jim detestava perder. E economizava também dinheiro,

Eu escutei pela primeira vez o nome de Jimmy sendo pronunciado por alguém

eis uma razão simples que ignoramos frequentemente. A maioria dos jovens atores

que o conhecia, algumas semanas antes, num jantar com Elia Kazan e sua mulher.

é pobre: camisa de cowboy e jeans como trajes de trabalho, antes de se tornarem

Kazan, que havia filmado naquele dia, voltou para casa tarde e de mau humor. Ele

uma moda, foram uma maneira de se vestir rápida e confortavelmente, diminuindo

estava muito corado. Quando perguntamos o que estava acontecendo, ele murmu-

a conta da lavanderia. Da mesma forma, se Jimmy abria mão de se barbear, era

rou alguma coisa a propósito de Jimmy Dean: “Esse garoto estava impossível.”

porque havia alguma coisa de mais importante a fazer.

Algum tempo depois, quando já havia escrito o primeiro esboço de meu fil-

Como no caso do revólver, seus hábitos eram também reações de autodefesa.

me, Kazan me convidou para ver uma primeira montagem de Vidas amargas no

Ao guiar uma moto, viaja-se com seus próprios meios. Ao dormir num camarim

auditório da Warner. O compositor, Leonard Rosenman, improvisava no piano.

de estúdio, vive-se numa completa solidão. Ele podia sair, mas ninguém podia

Jimmy Dean estava lá, sozinho num canto; trocamos algumas palavras penosa-

entrar. Recusava-se a seguir as convenções sociais, a polidez, pois elas supunham

mente. Nesse momento, a ideia de que ele era o ator ideal para meu filme não me

um disfarce. Ele queria permanecer nu. “Ser um tipo chic”, disse um dia, “preju-

ocorria. Que ele devia ter talento, não havia dúvida, mas eu respeitava demais o

dica os atores. Quando vim pela primeira vez a Hollywood, todo mundo era chic

dom de Kazan para poder tirar muitas conclusões sobre sua atuação.

comigo. Todo mundo pensava que eu era um tipo chic. Eu visitava o intendente

Quando me instalei num escritório da Warner, contíguo ao de Kazan, Jimmy

e jantava e as pessoas eram amáveis e eu pensava que era maravilhoso. Mas não

entrou e me perguntou qual era o gênero da história na qual eu estava trabalhan-

tinha intenção de continuar a ser um tipo chic — e dessa forma, as pessoas teriam

do. Eu lhe expus a ideia geral, o esboço; ele pareceu se interessar um pouco, mas

que me respeitar pelo que eu fazia, pelo meu trabalho.”

não disse grande coisa. Um ou dois dias mais tarde, ele entrou acompanhado de

Logo, o revólver protegia seu autorrespeito do mundo. Em seguida, um pouco

um jovem homem, robusto e moreno, que respondia pelo nome de Perry Lopez e

depois que as gravações de Vidas amargas terminaram, ele voltou ao seu camarim

que havia conhecido em Nova York. Ele me explicou que Perry vinha da Avenida

e descobriu que seu revólver havia desaparecido. Sem explicação, alguém o tinha

Lexington. “Você devia conversar com ele”, Jimmy disse. “Ele poderia talvez lhe dar algumas informações.”

1. Originalmente publicado na revista Cahiers du Cinéma, nº 66, de 1956. Tradução de Mirian Monteiro. (N.E.)

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Após alguns encontros como esse, decidi que ele deveria interpretar Jim Stark. Todavia, era necessário que ele também se decidisse. Não se tratava simplesmente

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de saber se o papel o agradava ou não. Depois dos atritos com a Warner, nem ele

seu programa de televisão dava a entender? “Ela não conhecia nada”, disse com

nem o estúdio estavam certos se ele poderia fazer outro filme para a companhia,

tristeza mais tarde.)

visto que pouco se importava com seu contrato. Além disso, após o sucesso de Vidas amargas, agentes e pessoas que o apoiavam apressaram-se a aconselhá-lo. Seria loucura, eles lhe diziam, não aparecer num filme baseado num best-seller,

Ao entrar no aposento, fez um rodopio para trás e depois me fitou intensamente. “O senhor já tem certa idade?”

adaptado por um roteirista que ganhava 3 mil dólares por semana, dirigido por

Admiti que sim.

Elia Kazan, George Stevens, John Huston ou William Wyler. Ele não era o tipo

“O senhor morava num bangalô na Sunset Boulevard, perto do velho Clover

de pessoa que levaria tais conselhos a sério; mas tão grande era sua prudência

Club?”

que não poderia deixar de ser incomodado por um sucesso. Se por um lado isso o

“Sim”, respondi.

alegrava, por outro suas inquietações também aumentavam.

“Já houve um incêndio lá em plena madrugada?”

Certa noite tivemos uma longa e calorosa discussão com Shelley Winters sobre atuação e espetáculo. “Eu preferiria saber como cuidar de mim mesmo”, disse Jimmy. Tal atitude se mostrava na sua maneira de trabalhar. Ele não tinha uma

“Sim.” “O senhor, estando descalço, levou um pequeno boxer para fora da casa e cortou o pé ao atravessar a rua?”

carapaça profissional sólida. Uma falta de simpatia, de compreensão da parte do

“Sim”, disse.

diretor ou de qualquer membro de sua equipe o desorientava completamente. Eis

Ele parecia aprovar. Vampira havia lhe contado essa história; e ele tivera a

porque, ao longo de sua breve carreira, adquirira a reputação de ser impossível. Ele

necessidade de vir até minha casa para se assegurar de que ela era verdadeira.

havia conquistado um sucesso pessoal na Broadway com o papel do pequeno

Em seguida, houve “as tardes de domingo”. Eu tinha o hábito de reunir algu-

Árabe na adaptação de O imoralista de Gide, mas, durante um ensaio, brigou com

mas pessoas, nós tocávamos música e cantávamos e conversávamos. Jimmy não

o diretor e, para estar quite, mandou sua demissão na noite de estreia. Brigou

faltava uma, as reuniões o agradavam. Isso era, certamente, um explorar de ambas

igualmente com Kazan durante Vidas amargas, mas continuou a respeitá-lo e

as partes. Ele iria gostar dos meus amigos? Ele se distrairia nesse ambiente? Tanto

ficou lisonjeado de trabalhar mais uma vez com ele. Também pudera. Kazan é o

eu quanto ele deveríamos saber.

melhor diretor de atores de nossa época.

Num desses dias, ele ficou até mais tarde, depois que os outros já tinham

Há provavelmente muito poucos diretores com os quais Jimmy poderia traba-

partido. Clifford Odets veio me fazer uma visita, e eu os apresentei. Jimmy estava

lhar. Trabalhar com ele significava explorar sua natureza, tentar compreendê-la;

particularmente quieto. Sem nos perder de vista, retirou-se para um canto. Eu fui

sem isso, sua força de expressão se interrompia. Ele fechava-se sobre si próprio,

até a cozinha para preparar um drinque, e Clifford me contou mais tarde o que

ficava amuado. Sempre quisera fazer um filme no qual pudesse acreditar pessoal-

se passou.

mente, mas isso nunca fora fácil para ele. Entre a fé e a ação erguia-se o obstáculo

Houve um longo silêncio. Toda a extensão do recinto separava-os. Enfim,

de sua profunda e obscura incerteza. Desapontado, insatisfeito, ele era uma criança

Jimmy disse com uma voz grave:

bruscamente excitada por um novo jogo, querendo mais, querendo tudo, e com

“Eu sou um ninguém.”

frequência, usando inconscientemente artimanhas para satisfazer seus desejos.

Clifford perguntou por quê.

Certa vez, tarde da noite, ele veio a minha casa. Estava acompanhado de “Vampira”, a estrela da tevê, e de Jack Simmons — nessa época, jovem ator desempregado, que se tornaria um amigo íntimo de Jim e se apresentaria com ele num programa de tevê. (Jimmy sempre tivera uma afeição repentina pelas pessoas

“Bem”, explicou ele, “estou aqui, você sabe... nesse lugar. Com você. É fantástico. Como o encontro com Ibsen ou Shaw.” Naturalmente, Clifford lembrou-se disso como o mais agradável dos elogios que alguém já lhe havia feito.

que lutavam sozinhas; ele adotava várias delas. Ainda que tivesse alguns amigos

Jimmy se aproximava de todos os seres humanos com a mesma curiosidade

habituais, seu companheiro da hora era em geral uma recente adoção ou um novo

apressada, investigativa. “Aqui estou. Aqui estás.” Diante de uma nova presença,

objeto de curiosidade. Mais tarde, ele disse que desejara encontrar Vampira pois

invisíveis antenas pareciam se expandir, estendiam-se, transmitiam séries de im-

havia estudado magia: ela era realmente possuída por forças demoníacas, como

pressões. Às vezes, ele tinha uma sensibilidade extraordinária, quase incômoda.

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Dois amigos de Nova York chegaram em minha casa: Michael e Connie Bessie, um

psicanalista como o qual ele se consultou durante certo tempo, a esperança de

casal que eu conhecia há muitos anos. Depois de apresentá-los a Jimmy, Connie

uma resposta?

foi se sentar no divã. Havia uma almofada a seu lado. Com um gesto inconsciente, maquinal, ela a apanhou e a acomodou em seus braços. Jimmy a observava. Depois de um tempo, ele perguntou, muito atencioso e calmo: “A senhora não pode ter filhos?”

Em Nova York, apresentei Jimmy a meu filho Tony, querendo saber se eles se entenderiam bem, querendo vê-los pelos olhos de sua geração. Tony ficou em Nova York após meu retorno a Hollywood. Ele me contou mais tarde que havia visto Jimmy várias vezes, sobretudo em “festas” — fosse no apartamento da 68th Street,

Ela ficou desconcertada. Ela deixou a sala e eu saí atrás dela. Quase chorava,

fosse num dos quartos da meia dúzia de jovens atores e atrizes que lhe faziam com-

não de pena de si mesma, mas profundamente emocionada por essa sensibilidade

panhia frequentemente. O mesmo grupo estava sempre lá. Ninguém jamais tivera

aguda. Ela e seu marido vinham justamente adotar um bebê. Em dezembro, Jimmy

vontade de penetrá-lo. Havia bongôs nos quais Jimmy tocava; um dançarino negro

foi a Nova York. Pouco antes do Natal, eu também estava na cidade para encontrar

tocava calipso e fazia imitações de Gene Kelly; a conversa se estendia de novos

atores. Visitei seu apartamento, pois havia coisas nesse lugar que eu tinha necessi-

filmes ou peças de teatro (quando despontava a madrugada) a Platão e Aristóteles;

dade de conhecer. Jim alugou esse apartamento depois de sua vinda a Hollywood, e

eles liam histórias e peças, declamando uma vez 27 vagões cheios de algodão de

nunca ficava em outro lugar quando estava em Nova York. Ele ficava no quarteirão

ponta a ponta, enquanto dormiam alternadamente.

das casas de tijolos, no quinto andar de um velho imóvel na 68th Street.

Jimmy ia também a recepções mais ortodoxas. Elas eram mais importantes,

Não havia elevador. Um aposento grande o bastante, com duas pequenas

mas dadas por pessoas que o conheciam menos. Lá, era diferente. Ele não gostava

janelas, mobiliado de maneira simples, um divã de estúdio, uma mesa, algumas

das pessoas, parecia não se sentir em segurança. Ignorando os movimentos e a

cadeiras e tamboretes desemparelhados; na parede, um pôster de tourada, muletas

conversação, preferia procurar seu canto e, melancólico, recolher-se para lá.

e chifres; em toda parte, livros e discos, alguns cuidadosamente empilhados, ou-

Passava facilmente da morbidez à exaltação. Seu humor sombrio podia se

tros num equilíbrio precário ou caídos no chão. Uma porta levava à cozinha e ao

desvanecer tão completa e subitamente quanto havia chegado. Certa vez, ele foi

banheiro, uma outra a uma escada, pela qual ascendíamos ao telhado. Estava de

curado pela atuação de Jacques Tati em Carrossel da esperança (Jour de fête, 1949).

noite. A única luz vinha da chaminé onde queimava uns gravetos e caixas velhas.

Sem se barbear, cabelos desgrenhados, envolto num impermeável negro, os óculos

Ele começou ligando o toca-discos, um disco seguido de outro, e tive a im-

na ponta do nariz. Estava entediado ao entrar na sala de cinema. Ao final de dez

pressão de escutar uma cacofonia. “Onde ele os tinha escutado pela primeira vez?”,

minutos, ria tão alto que os espectadores a seu lado se queixavam. Ele os ignorou:

eu me perguntava — música de tribos africanas, cantos e danças afrocubanas,

não havia nada a fazer, a vontade de rir e a euforia tornavam-se mais e mais irre-

jazz clássico, Jack Teagarden, Howard Brubeck; depois Haydn, Berlioz... Entre os

sistíveis. Teve que partir antes que o filme tivesse terminado, fazendo dos cinzeiros

livros, muitos eram sobre touradas. Lembro-me de haver, sobre a mesa, Toureiro

da passagem lateral obstáculos que transpunha aos saltos. Do lado de fora, na rua,

e Morte na tarde.

ele parou numa confeitaria. Depois, na calçada, com um doce na mão, começou

Não há dúvida que duas coisas fascinavam Jimmy na tourada. Havia o ritual, a prova de resistência da qual o matador não pode fugir, o desafio da afirmação de

a imitar Tati, recriando com perfeição seu andar espaçado, ligeiro ,“à la Groucho Marx”, e sua feição interrogativa com olhos de bolas de bingo.

si mesmo. E havia a graça física. Jimmy tinha uma graça instintiva no movimento,

Em outra ocasião, foi um guarda-chuva. Em Nova York, num dia triste, cinza

e ele a desenvolvia seguindo o curso de Katherine Dunham. Já em Vidas amargas,

e chuvoso, ele decidiu comprar um. Havia guarda-chuvas por toda parte nas lojas,

a falta de jeito amarga, pesada, incerta da adolescência que ele havia tão perfeita-

prateleiras e prateleiras deles. Mas qual? Finalmente, ele deixou Tony escolher

mente experimentado, resultava num observado controle de seu corpo. Ele tinha

um muito ordinário de três dólares. Ele o tomou como se fosse o guarda-chuva

uma réplica instantânea dos ritmos da vida: o estremecimento de uma muleta de

com o qual havia sonhado toda a sua vida, divertindo-se como um garoto com um

toureiro, as batidas insistentes de uma dança africana, a tensão de uma corrida

brinquedo novo, explorando todas as possibilidades do mecanismo, abrindo-o,

em grande velocidade. Ele se abandonava a essas experiências como a mágicas

fechando-o e fazendo-o rodar por cima de sua cabeça. Na rua, enquanto chovia

promessas de um mundo novo. Cada uma delas — tourada, jazz, corrida — tinha

abundantemente, de súbito, hilário e inspirado, ele se tornou Charlie Chaplin.

o caráter dominador, obsessivo por uma caçada. Elas ofereciam a ele, como o

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Seus dons para a imitação eram fortes. Um amigo queria passar num teste

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para o Actors’ Studio, e Jimmy se ofereceu para dirigir uma cena. Escolheu um

Essa ideia significava alguma coisa para ele. Retomava-a com frequência. “Eu

conto de fadas, que tinha um combate entre o Pequeno Príncipe e a raposa. Quase

não quero ser obrigado a dar 70% a quem quer que seja, eu não quero que quem

que imediatamente concentrou-se na raposa, com um terrível ardor. Era claro que

quer que seja me dê 70%. Eu quero a metade.”

ele queria desesperadamente interpretar o animal.

O drama de sua vida, pensava eu depois de tê-lo visto em Nova York, era esse

Interpretou-a, é claro; e sua imaginação fez maravilhas. Tornou-se a raposa

conflito entre o desejo e o medo de se entregar. (O mesmo de Jim Stark.) Era a

humana. Sem dúvida, muitos atores estudaram os animais, mas Jimmy usava sua

luta, encetada desde sua mais tenra infância, entre uma impetuosidade violenta e

sabedoria com um método particular. Ele não imitava; a beleza, o porte furtivo e

uma grande desconfiança. Ela permanecia contraída nele, com sua sensibilidade

ameaçador do animal pareciam entrar em seu corpo. Ele era a raposa.

aguda e seu espírito curioso de tudo, e, quando criança, os fatos não fizeram mais

Tal qual a raposa, ele era prudente e difícil de domar. De acordo com o ponto

do que desenvolver tal contenda. A morte prematura de sua mãe, que não adorava

de vista de muitas pessoas, suas próprias relações com Jimmy eram complexas,

nada senão ele e Lord Byron (inclusive, ela lhe deu Byron como segundo nome) e

causas de muitas inquietações. Entretanto, para ele, elas eram simples e, prova-

que Jimmy amava profundamente, abriu uma era na qual todos os laços familia-

velmente, muito menos importantes. Ele estava ainda ternamente decidido a não

res reais estavam ausentes. Ainda muito cedo, ele compreendeu quais obstáculos

amar, a não deixar ser amado. Ele podia estar cativado, fascinado, atraído por

a esperança e a afeição que procuram um porto seguro deveriam encontrar, e a

alguma coisa nova, bela — mas ele nunca se entregava. Havia moças convencidas

solidão que se segue disso.

de serem a única mulher de sua vida, enquanto que (frequentemente ao mesmo

Como não tinha a tendência de se apiedar de seu passado, ele voltava sua

tempo — havia muitas pessoas e coisas simultaneamente em sua vida) elas eram

atenção ao mesmo tempo para o porvir e para o agora. Todo dia, jogava-se no

somente uma ocasião para satisfazer seu desejo.

mundo como um animal faminto que descobre de repente um resto de comida.

Apegar-se estava fora de questão, pois — tal era sua convicção na época — isso

A intensidade de seus desejos e de seus medos poderia talvez lhe render uma

ameaçava fazê-lo sofrer. A dor que pode nascer das relações humanas era um

atitude arrogante, egoísta; mas por trás dela havia uma vulnerabilidade profunda

risco a correr para o qual ele não estava pronto: mais valia amar uma raposa, ser

que emocionava, quase assustava. Sem dúvida, quando ele se mostrava cruel ou

uma raposa, ou Tati ou Chaplin. Ele mudava de pele com uma paixão e um alívio

pérfido, pensava compensar uma velha dívida. A afeição que ele recusava dar era

evidentes. “Se eu fosse ele”, dizia a si mesmo. E isso contribuía muito para a sua

a mesma que outrora havia sido sua e que não havia achado eco.

destreza de atuação.

Parecia que qualquer coisa o interessava. Dizem que certa vez num restau-

Quando estava pobre e desconhecido em Nova York, tinha razões para de-

rante, fascinado por um papagaio, ele estudou seu comportamento durante uma

monstrar sua gratidão a muitas pessoas pela comida e amizade que elas lhe haviam

hora inteira. Essa história é provavelmente verdadeira. Ela se assemelha à sua

dado. Mas depois, quando voltou de Vidas amargas, seu sucesso lhe serviu às

repentina curiosidade pelo meu pequeno boxer que eu resgatara descalço de um

vezes não para manifestar seu orgulho, ou sua reserva, mas para se mostrar cruel.

incêndio, ou pela jovem mulher que acalentava uma almofada em seus braços, ou

Um jovem fotógrafo que era muito seu amigo durante seus dias de luta de-

pelo guarda-chuva que o fez um sósia de Charlie Chaplin.

sejava comprar uma câmera Rolliflex usada. Ele pediu a Jimmy que o ajudasse

Utilizando um jargão de arte, esse gênero de traço é geralmente chamado

pagando metade do valor: o preço era 25 dólares. Jimmy tomou essa sugestão como

de “detalhe significativo”. A vida de Jimmy era somente detalhes significativos.

uma afronta pessoal. “Por que eu aceitaria e compraria um aparelho de segunda

Na véspera da noite em que retornei a Hollywood, nós jantamos juntos, como

mão com você? Agora eu posso ter tudo o que quero novo em folha.”

havíamos feito todas as noites durante minha estadia em Nova York. Fora num

Acusava ainda os outros. “Eles vivem às minhas custas”, dizia ele. Certa vez,

restaurante italiano: ele havia conduzido a refeição com uma grande cerimônia,

num restaurante, ele se sentiu abatido. Perguntou: “Onde estão meus amigos?”

orgulhoso de conhecer pratos obscuros. Desde esse momento, comecei a sentir

Quatro de seus companheiros íntimos estavam sentados na mesa com ele, mas,

que ele tinha confiança em mim. Sentia que ele adoraria fazer o filme; mas, mesmo

antes que um deles pudesse responder, ele se levantou bruscamente e saiu.

que o desejasse, outras dificuldades ainda precisariam ser vencidas: a situação

“Não quero nada que seja dividido a 70%-30%”, ele adorava dizer. “Meio a meio é bom o bastante para mim.”

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com o estúdio e as objeções daqueles que queriam firmá-lo como uma estrela de cinema; e, mesmo que eu soubesse o que queria colocar na minha história, eu só

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tinha um script de trinta páginas. Estava pensando nisso quando ele ergueu os olhos para mim, alguma coisa em sua expressão anunciando que ele estava prestes a me conceder sua confiança. Ele estava um pouco preocupado, não como geralmente ficava, mas como se qualquer problema inabitual tivesse surgido em seu espírito. “Estou com dor de estômago”, disse ele. “Que devo fazer?” Eu o levei a uma farmácia. Já na rua, separamo-nos. Ele me agradeceu pela ajuda, sorriu, depois disse: “Tenho vontade de fazer seu filme. Mas não diga nada para eles.” Disse-lhe que estava contente. Em seguida, trocamos um aperto de mão.

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I’m the Best Damn Filmmaker O que é importante ao ser humano? Saber quem ou por que ele é, ou não saber, não ter consciência. Eu sei quem eu sou. Eu sou o melhor cineasta do mundo que nunca conseguiu realizar um filme inteiramente bom, completamente satisfatório. Um filme é uma mulher que você não pode ligar e desligar, mas acontece que um filme é uma mulher, e acontece que um dia ela te abandona.

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Aprendendo e Ensinando 11

Aprender é descobrir o que você já sabe. Fazer é demonstrar que você sabe. Ensinar é lembrar aos outros que eles sabem tanto quanto você.

Descendo em um elevador, observei dois jovens, ambos carregando guitarras em cases idênticas. Um dos rapazes tinha mais ou menos 21, usando um

Somos todos alunos, fazedores, professores.

capacete na figura de um porco 2; o outro era ligeiramente calvo, de uns 31 anos,

Sua obrigação, em qualquer momento do mundo, é ser verdadeiro com você

loiro e com barba, visivelmente o professor. Eu não conseguia deduzir se ele

mesmo.

era professor dos meandros motociclistas da moto que estava estacionada no lado fora, ou se da guitarra. Em determinado momento, ele disse para seu companheiro: “Te ensino a tocar.” O garoto respondeu: “Não, nem.” O mais velho então replicou: “Por que você não quer que eu te ensine? Você vai ter que aprender. Por que não deixar que eu te ensine? Você aprende em

Você ensina melhor aquilo que você mais precisa aprender. Viva sem jamais se envergonhar se algo que você disse ou fez é publicado em qualquer parte do mundo – mesmo se o que é publicado não é verdade. “Não existe problema grande o suficiente que você não possa fugir dele” – Snoopy, o cão.

15 minutos.” Abra qualquer livro e descubra o que está lá: você encontrará seus problemas. O jovem disse: “Não, olha, quer dizer, talvez.” E estacou, estacou, estacou até que o elevador chegou a seu destino e a porta se abriu.

Segure um problema em sua mente. Abra um livro.

Me veio à cabeça que talvez aqueles cinco ou dez por cento que estão no

Não se esquive de possíveis futuros até o momento que você tenha certeza

topo das suas turmas, estão lá porque gostam de se exibirem aprendendo,

de que não terá nada que aprender com eles. Você é livre para escolher outro

enquanto a maior parte das pessoas tem vergonha de mostrar que aprenderam

(diferente) futuro, outro passado.

alguma coisa. O voluntário, dentro de uma sala de aula, é provavelmente um exibicionista. Por que é que a maioria dos homens brilhantes, das ciências ou acadêmicos, eram os piores de suas turmas, por que raramente não são aqueles

Não existe um problema que não guarde um presente em suas mãos. Você vai atrás dos problemas porque você precisa destes presentes.

que estão no topo das notas?

Você encontrará uma mão amiga na extremidade de seu braço.

Eu creio que o sistema grupal não é mais uma forma de ensino aceitável ou

Qualquer pessoa que valha a pena conhecer é sempre também um pouco

mesmo funcional.

esquisita.

1. Publicado originalmente no livro organizado por Susan Ray, I was Interrupted: Nicholas Ray on Making Movies (1993), sob o titulo Learning and teaching. Tradução de Thiago Brito. 2. No original: Hog Helmet. Na década de 60, estudantes da Universidade de Arkansas começaram a usar estes capacetes – vermelhos e em forma de porco – para ir aos jogos dos Razorbacks, time universitário de futebol americano. Eram grandes o suficientes para alojar garrafinhas de vodka. (N.E).


And when the time comes…

E quando chegar a hora

And when the time comes

E quando chegar a hora

Once more, and when the time comes,

Mais uma vez, e quando chegar a hora,

And once again, when men will say this is the way and that is not,

E mais uma vez, quando os homens disserem ser

I hope I will be long forgotten and then revived

somente este o caminho e não aquele,

In the exaltation of the youthful knowledge of immortality,

Eu espero ter sido há tempos esquecido e então revivido

By a flicker of film and a flash of hope,

Na exaltação da tenra sabedoria da imortalidade,

And only once again

Por um tremeluzir de película e um lampejo de esperança

I’d find the question in my heart forever living and dying,

E apenas mais uma vez

But only one more time.

Encontraria a pergunta em meu coração vivendo e morrendo eternamente, Mas apenas mais uma vez.


Cor 11

maltrapilha de 15 anos, para um rosa macio e aveludado – sentimental, mas uma gradação, e importante para o desenvolvimento da personalidade da menina. E então, o amarelo alaranjado de Corey Allen. Tudo foi significativo. Mais tarde, usei vermelho-sobre-vermelho para a Cyd Charisse em A bela do

Assim como o close-up, que não foi inventado por D.W. Griffith, deve ser utiliza-

bas-fond. Jimmy foi vermelho-sobre-vermelho no sofá, e isso irradiava um peri-

do na acepção estética que Griffith tinha dele – espaçadamente, e em momentos

go latente. Cyd Charisse com um vestido vermelho em um sofá vermelho, era já

de revelação, mudança de atitude, conflitos internos, etc –, assim a cor deveria

outra coisa completamente diferente.

ser utilizada em um filme. O uso de uma cor primária dentro de um filme é tão significativo quanto o uso de um close-up. A cor é revelada apenas através da luz – o que é exatamente o que fez dos impressionistas, os impressionistas – então você já começa com uma revelação ao seu lado. T. Bankhead, subindo as escadas em vermelho no final do segundo ato de Pérfida, permanece gravado em minha mente como profundamente tocante – por me causar desgosto ou espanto – enquanto na versão preto-e-branca do filme esta cena tenha se passado de forma batida. Mas, vamos logo nos desfazendo da idéia de que preto e branco não sejam cores. Algumas pessoas já experimentaram bastante a relação entre o uso da cor e a reação emocional da platéia. Este tipo de experimento meu e de outros diretores, está presente em uma boa parcela de filmes comerciais. Eu já tinha filmado cinco dias de Juventude transviada em preto-e-branco quando a Warner notou que seu contrato com o homem que inventou o Scope determinava que tudo filmado em Scope fosse colorido. Então, eu tive que mudar pro colorido e mandei chamar o John Hamilton, que trabalhou como diretor de arte no Group Theater 2 – um grande beberrão e um grande olho. Fiz dele meu consultor especial de cor. Escolhemos nossa paleta da Life e outras revistas fotográficas. O vermelho-sobre-vermelho para o Jimmy foi resultado de uma improvisação realizada em minha sala de estar. Eu tinha um sofá vermelho. Disso, nós extraímos todos os outros vermelhos-sobre-vermelhos: o vermelho da jaqueta do Jim; o marrom neutro para o garoto, indo para o vermelho; a transformação de Natalie, do vermelho guache do batom e casaco que ela usou enquanto uma

Em A Bela do bas-fond, o verde era sinistro e enciumado, enquanto em Delírio de loucura, o verde era vida, grama e paredes de hospital. Eu reavaliei completamente o uso do laranja para este filme. Barbara Rush tinha algumas qualidades próximas de uma Rosalind Russell, mas faltava a eletricidade, a vibração. Ela não era uma estrela. Eu tinha que dar isso a ela, se eu pudesse. Eu precisava achar uma maneira significativa para que as pessoas dessem atenção a ela. Encontrei um vestido laranja para ela em um desfile de moda em Paris. Acho que não se pode ignorar o laranja, e minha observação foi confirmada quando as estradas começaram a usar o laranja, ao invés do vermelho, para suas placar de perigo, ou advertência para obras nas ruas. Estranho é ter demorado para tomarmos consciência desta cor. Johnny Guitar ganhou prêmios por seu uso da cor, e eu insisti que mantivéssemos a turba em preto-e-branco por todo o filme. Enquanto que, em Cinzas que queimam, filmado em preto-e-branco, eu queria tanto o calor que só a cor pode prover, que eu deixei tanto Ward Bond quanto Ryan e Lupino exagerarem na atuação em determinados momentos: a emoção não foi propriamente controlada pela estética. Se o filme fosse colorido, eu acho que eu não insistiria tanto em criar um contraste entre a violência e a umidade, sujeira, chuva, lodo e confusão de Boston, com o esplendor da neve, sua qualidade radiante, forte e pastoral. Sem a cor, o significado dos objetos é sempre perdido. Não foi sempre assim, mas agora que estamos acostumados com a cor. Pode ser interessante perguntar para pessoas diferentes, ou para as mesmas pessoas em dias diferentes, quando estão em humores diferentes, o que deter-

1. Publicado originalmente no livro organizado por Susan Ray, I was Interrupted: Nicholas Ray on Making Movies (1993), sob o titulo Color. Tradução de Thiago Brito. 2. Grupo teatral nova-iorquino de esquerda criado em 1931. O Group Theater, onde Ray atuou majoritariamente como ator, foi dirigido, pelo menos em seu período mais fértil,entre outros, por Elia Kazan. (N. T)

minadas cores significam para elas. E perguntar de uma tal maneira que elas são pegas de surpresa e respondam honestamente, e não a partir de uma noção intelectual do verde como inveja, ou o verde como saúde, ou verde como ciúme, ou verde como asseado, ou o verde como amor.


Do I Contradict myself? Eu me encontro em contradição! Eu sempre me encontro em contradição! Eu me contradigo! Eu sempre me contradigo!


Edição 11

Eles contratam artistas comerciais que poderiam muito bem formular desenhos para papel de parede, pessoas que possuem um certo talento e, ao mesmo tempo, a paciência e a perseverança para ficarem sentadas numa escrivaninha desenhando a mesma coisa 500 vezes seguidas. Embora o Disney tenha sido um

Quando eu cheguei em Hollywood, existiam duas ou três diferentes escolas de edição, para além das estúpidas E eu acredito que elas foram muito bem exemplificadas pela forma da edição do Billie Wilder em comparação com a de Darryl Zanuck 2. Darryl Zanuck cadenciava a entrada de uma cena, enquanto Wilder dizia: “Se você vai cortar, você tem que sentir o corte, você tem que ter

grande artista dos quadrinhos, além de um artista menor para os parâmetros de qualquer museu, ele representa um pouco o tipo de talento escondido em toda esta área. Revista em quadrinhos é muito importante em nossa cultura. Alguém de Harvard escreveu um livro chamado From Cave Painting to Comic Strip 5. Revistas em quadrinhos tem sido importante para nós há um bom tempo.

uma razão para isso”. Assim, em um filme do Zanuck, do primeiro plano, você

Então, eu apontava para um dos quadrinhos e perguntava: “É disso o que está

cortava para um pouco mais próximo, um pouco para a direita, um pouco para a

falando quando diz que temos que nos esquivar do estilo dos antiquados – Henry

esquerda – o que é tedioso. Com o Billie, você está em um lugar e então

King, Henry Hathaway: plano geral, plano médio, primeiro plano? Por que não

WOW! para a direita WOW para a esquerda e BOOM para o meio – Billie foi um

podemos fazer da maneira como fazem nas revistas em quadrinhos? Por exem-

grande diretor de comédias, além de um grande artífice do suspense e tensão,

plo, algumas revistas em quadrinhos te levam de um plano detalhe para um pla-

haja visto Pacto de sangue.

no geral, mas existe sempre um elemento fundamental que te guia entre um e

Quando cheguei em Hollywood, minha experiência não vinha de filmes, mas do teatro e outras mídias, então eu me eduquei conversando com quem realizava as partes técnicas do cinema. Eu me encontrava com quatro editores e

outro.” Não é o mesmo plano geral que o King Vidor usou em Vontade indômita, do fundo de um túmulo para o topo do túmulo – tão ilógico, e sem nenhuma fundamentação emocional.

um projecionista toda quinta-feira à noite no Luau, em Beverly Hills. Eu trazia

O editor de Amarga esperança me ajudou bastante sugerindo que cortasse para

comigo revistas em quadrinhos como Steve Canyon e Terry and the Pirates

as árvores balançadas pelo vento, que acompanham Kathy entrando na caba-

como referências, e discutia ideias e problemas que tinha acumulado durante

na. É de extrema importância lembrar que suas imagens devem ou se opor, ou

a semana e que não tive chance de resolver na moviola. Às vezes, eu trazia

casar, violentamente uma com as outras.

3

também os quadrinhos do Dick Tracy. Eram um pouco soltos e desinteressantemente estilizados para o meu gosto, mas as composições eram bem rígidas, os planos conjuntos eram sempre ótimos, planos com três personagens também e os planos únicos 4 eram feitos sempre com uma perspectiva interessante com relação a profundidade de campo. Sempre achei triste e estranho o fato dos artistas das revistas em quadrinhos não terem sido muito utilizados pela indústria cinematográfica. Não acho que a indústria da Disney utilize os talentos dos grandes artistas dos quadrinhos.

Resumidamente, essas conversas me ajudaram a formular minha preocupação com tempo e espaço dentro de um filme. Um diretor russo, Kozintsev, escreveu o prefácio para o livro Film Essays 6, de Serguei Eisenstein. Ele diz que em qualquer lugar que Eisesenstein esteja morando, você pode abrir a porta do apartamento e imediatamente saber quem mora ali. Você saberia por conta dos livros, e a vasta gama de assuntos que cobriam, pelo acúmulo de papéis e a escolha de seus tópicos. Principalmente, você saberia por conta dos contrastes e oposições, e finalmente pela recusa de

1. Publicado originalmente no livro organizado por Susan Ray, I was Interrupted: Nicholas Ray on Making Movies (1993), sob o título Color. Tradução de Thiago Brito. 2. Wilder foi um diretor. Zanuck, um produtor e chefe de estúdio. (N.E)

5. LANCELOT, Thomas Hogben, From Cave Painting to Comic Strip. Nova York: Chanticleer

3. Duas revistas em quadrinho criadas por Milton Caniff, nos anos 40. (N.E).

Press, 1949.

4. Plano de um único personagm. (N.E).

6. EISENSTEIN, Serguei. Film Essays. Londres: Dobson Books, ltd, 1968.


Eisenstein, a despeito de suas preocupações com a caligrafia e uma aproximação científica da montagem, de abraçar qualquer teoria ou estética. Eu realmente adoraria que alguém viesse conversar comigo sobre o estudo de caligrafia de Eisenstein, apontando como se encaixam em relação a seus filmes. O próprio Eisenstein não conseguia fazer isso. Para ele, o estudo da caligrafia era um exercício intelectual e uma maneira de matar o tempo enquanto se cagava de medo que fosse assassinado, o que de fato aconteceu. Eu ouço muito falar

I look into my face and what did I See

sobre montagem em colisão, montagem analítica, montagem lógica, montagem invisível, e eu não entendo nada, nunca ouvi um cineasta que falasse desta forma sobre as coisas. Vejo muita preocupação com resultados, e pouco com lógica interna. Deve existir alguma recompensa para a vida e a aspiração e a mudança,

No granite rock of identity – faded blue

para o acidente, inspiração, o abrupto impulso que é o erro da beleza.

Drawn skin and wrinkled lips and sadness

Eu digo a editores inexperientes que procurem sempre cortar em movimento,

And a wildest urge to recognize and accept the face of my

de um movimento para outro movimento, de modo que não possam tratar um

Mother

filme como uma forma estática. Mas, para além disso, eles precisam perseguir a

And the will to find all the places to word down the love

verdade, e lembrar que um filme não é feito numa moviola ou na sala de edição. A arte do filme tem pouco a ver com a arte da edição. Nenhum editor pode co-

For my wife, chambers to hold and protect her silent thoughts.

locar em um filme o que já não está lá desde o princípio, como nenhum diretor pode extrair talento de um ator que não o possui. Qualquer qualidade que possa vir de um filme provém de suas situações e personagens, nunca de alguma coisa mecânica.

Eu olhei para meu rosto e o que é que eu vi Nenhum granito empedrado de identidade – azul desvanecido Pele esticada e lábios enrugados e tristeza E um impulso selvagem de reconhecer e aceitar o rosto de minha Mãe E a vontade de encontrar todos os espaços para expressar em palavras o amor Pela minha esposa, câmaras para guardar e proteger seus pensamentos silenciosos.


Senhor Ao Avesso 11

Sou um objeto sensível em um espaço físico. Não importam as circunstâncias, ninguém é mais próximo de mim do que eu. Eu sou o mais próximo de mim. Eu estou ao avesso, então o que está fora é guardado dentro. O lado de fora não foi sempre um lugar confortável. Foi necessário uma terrível agitação para se chegar lá, e, quando finalmente

The Closer I’am

cheguei, foi necessário firmar uma paz com o anonimato. Apertar e contorcer trouxe alguns atritos, e feridas ficaram abertas por mais tempo que um nariz escorrido ou um joelho ralado, mas as feridas formaram o novo e confortável habitat onde o Senhor Ao Avesso por ora reside. As paredes são vermelhas e

The closer I get to my ending, the closer I am getting to rewriting my beginning Quanto mais próximo estou do meu fim, mais próximo estou de reescrever meu início.

marrons, diluídas com amarelos guaches de Van Gogh. Os canos de calefação são azuis; as janelas pretas em um de seus lados. Uma cadeira é de palha, quase âmbar, seus balanços, vermelhos. Em um vale de camaleões, um camaleão passa despercebido. Assim como uma pantera branca em um oceano de neve e gelo. Até o momento em que ela se move. Eu me mexo e ando despercebido. Eu entro por uma porta invisível. Quando você se move, você está em perigo. E eu imagino que você seja perigoso. Você vem até mim recolher o que eu tenho criado por dentro. Eu não vou até você. Tem café no fogão, creme no refrigerador, açúcar no pote, e um copo preso em um gancho. Sinta-se em casa. Ali dentro tem duas pinturas novas. As melhores que eu fiz. Pague por elas o quanto você tiver. Deixe o dinheiro dentro do pote. Adeus. Então. Eu sou um artista. Se você me chama de um artista, então eu sou um artista. É melhor você dizendo isso do que eu. Seria eu também um babaca? Acredito que não.

1. Publicado originalmente no livro organizado por Susan Ray, I was Interrupted: Nicholas Ray on Making Movies (1993), sob o titulo Mr. Inside Out. Tradução de Thiago Brito.


Epitaph The Best epitaph I can think of is: Born Lived Interrupted And it happens everyday. O melhor epitĂĄfio que consigo imaginar ĂŠ: Nasceu. Viveu. Interrompido. E acontece todos os dias.









Filmografia Completa

Tuesday in november Tuesday in November EUA, 1945, PB, 16mm, 17 min Direção: John Houseman Ass. de Direção: Nicholas Ray Produção: Escritório de Informações de Guerra dos EUA Música: Virgil Thomson Um idealizado retrato das eleições presidenciais dos EUA de 1944.

Laços humanos A Tree Grows in Brooklyn EUA, 1945, PB, 35mm, 128 min, 1.37:1 Direção: Elia Kazan Ass. de Direção: Nicholas Ray Roteiro: Tess Slesinger, Frank Davies. Adaptado do romance A Tree Grows in Brooklyn de Betty Smith. Fotografia: Leon Shamroy Direção de Arte: Lyle R. Wheeler Montagem: Dorothy Spencer Produção: 20th Century- Fox Elenco: Dorothy McGuire, Joan Blondell, James Dunn Uma brilhante e imaginativa jovem passa à vida adulta, em um cortiço do Brooklyn, no início do século XX.

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Amarga esperança Mistério no Caribe Caribbean Mystery EUA, 1945, PB, 35mm, 65 min, 1.37:1

They Live by Night EUA, 1948, PB, 35mm, 95 min, 1.37:1, 14 anos Direção: Nicholas Ray

Direção: Robert D. Webb

Roteiro: Charles Schnee. Adaptado por Nicholas Ray do romance

Direção de Diálogos: Nicholas Ray

Thieves Like Us de Edward Anderson.

Roteiro: Jack Andrews, Leonard Praskins. Adaptado por W. Scott Darling do

Fotografia: George E. Diskant

romance Murder in Trinidad de John Vandercook.

Som: John Cass, Clem Portnuity e Mercy Weireter

Fotografia: Clyde De Vinna

Direção de Arte: Albert S. D’Agostino e Al Herman

Montagem: John MacCafferty

Produção: RKO Radio

Produção: 20th Century- Fox

Elenco: Cathy O'Donnell, Farley Granger, Howard Da Silva, Jay C. Flippen,

Elenco: James Dunn, Sheila Ryan, Doral Hudson, Willian Forest, Roy Gordon

Helen Craig, Will Wright, Marie Bryant e Ian Wolfe

Um detetive aparece em uma ilha tropical para procurar alguns geólogos

Nos anos 30, o jovem Bowie e outros dois detentos fogem de uma prisão no

desaparecidos. Em sua própria maneira descontraída, o Sr. Smith descobre um

Mississipi. Bowie deseja ter uma vida tranquila com a mulher pela qual se

esquema de assassinato elaborada por um auto-denominado "chefe" da selva

apaixona, mas é convencido pelos companheiros a praticar uma série de crimes.

que mata qualquer um que ameace seu domínio.

A polícia o considera o líder do grupo e passa a buscá-lo como nunca.

Swing Parade of 1946

A Vida íntima de uma mulher

EUA, 1946, Cor, 35mm, 74 min, 1.37:1 Direção: Phil Karlson

A Woman's Secret EUA, 1949, PB, 35mm, 85 min, 1.37:1, 16 anos

Roteiro: Tim Ryan. Adaptado do original de Edmund Kelso (em colaboração

Direção: Nicholas Ray

com Nicholas Ray).

Roteiro: Herman J. Mankiewicz, do romance Martgage on Life de Vicki Baum

Elenco: Gale Storm, Connee Boswell, The Three Stooges, Ed Brophy, Russel

Fotografia: George E. Diskant

Hicks e John Eldredge

Som: Frank Sarver e Clem Portman

Uma jovem e lutadora cantora se apaixona pelo dono de um clube noturno, cujo o pai, um milionário, deseja fechar o estabelecimento. Os Três Patetas fazem o papel de garçons.

Direção de Arte: Albert S. D’Agostino e Clark burk Montagem: Sherman Todd Produção: RKO Radio Elenco: Maureen O'Hara, Melvyn Douglas, Gloria Grahame, Bill Williams, Victor Jory, Mary Philips, Jay C. Flippen e Robert Warwick Marian, uma cantora aposentada, confessa ter tentado assassinar Susan, sua protegida e grande estrela da música popular. Entretanto, algo não se encaixa na sua versão e as investigações revelarão muito além do crime.

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O Crime não compensa

Alma sem pudor

Knock on Any Door

Born to Be Bad

EUA, 1949, PB, 35mm, 100 min, 1.37:1, 14 anos

EUA, 1950, PB, 35mm, 94 min, 1.37:1, 14 anos

Direção: Nicholas Ray

Direção: Nicholas Ray

Roteiro: Taradash e John Monks Jr., do romance Knock on any Door

Roteiro: Edith Sommers. Adaptado por Charles Schnee do romance All

de Willard Motley

Kneeling de Ann Parish.

Fotografia: Burnett Guffey

Fotografia: Nicholas Musuraca

Som: Frank Goodwin

Som: Phil Brigandi e Clem Portman

Direção de Arte: Robert Peterson

Direção de Arte: Albert S. D’Agostino e Jack Okay

Montagem: Viola Lawrence

Montagem: Frederick Knudtson

Produção: Columbia Pictures

Produção: RKO Radio

Elenco: Humphrey Bogart , John Derek, George Macready, Allene Roberts,

Elenco: Joan Fontaine, Robert Ryan, Zachary Scott e Joan Leslie

Candy Toxton, Mickey Knox, Barry Kelley e Florence Auer

Christabel engana a todos com seu jeito delicado, incluindo sua prima Donna e

Principal suspeito da morte de um policial, um jovem descendente de italianos é

seu noivo Curtis. O único que vê através de sua fachada é Nick, um escritor que

preso. Seu advogado, um homem que superou os obstáculos de uma origem hu-

a ama mesmo assim. Embora Christabel também ame Nick, a moça deseja o

milde, procura ajudá-lo, mas o desajustado rapaz logo retorna à marginalidade.

dinheiro de Curtis.

Roseanna Mccoy

No silêncio da noite

EUA, 1949, PB, 35mm, 100 min, 1.37:1 Direção: Irving Reis (e Nicholas Ray)

In a Lonely Place EUA, 1950, PB, 35mm, 94 min, 1.37:1, 14 anos

Roteiro: John Collier (e Ben Hecht). Adaptado do romance de Alberta Hannum.

Direção: Nicholas Ray

Fotografia: Lee Garmes

Roteiro: Andrew Solt. Adaptado por Edmund H. North do romance In a Lonely

Elenco: Farley Granger, Joan Evans, Charles Bickford, Raymind Massey

Place de Dorothy B. Hughes

O ânimos se esquentam no rancho dos Hatfield e dos McCoy, quando a filha de uma das famílias foge com o filho da outra.

Fotografia: Burnett Guffey Som: Howard Fogetti Direção de Arte: Robert Petterson Montagem: Viola Lawrence Produção: Columbia Pictures Elenco: Humphrey Bogart, Gloria Grahame e Frank Lovejoy Dixton Steele, roteirista de sucesso passando por um bloqueio criativo, se torna o principal suspeito de um assassinato. Sua vizinha lhe dá um álibi protegendoo, mas seus constantes ataques de raiva fazem com que sua culpa não seja completamente descartada.

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Cinzas que queimam

A estrada dos homens sem lei

On Dangerous Ground

The Racket

EUA, 1952, PB, 35mm, 82 min, 1.37:1, Livre

EUA, 1951, PB, 35mm, 88 min, 1.37:1

Direção: Nicholas Ray

Direção: John Cromwell (e Nicholas Ray)

Roteiro: A. I. Bezzerides. Adaptado por A. I. Bezzerides e Nicholas Ray

Roteiro: William Wister Haines, W. R. Burnett. Adaptado da peça de

do romance Mad With Much Heart de Gerald Butler

Bartlett Cormack

Fotografia: George E. Diskant

Fotografia: George E. Diskant

Som: Phil Brigandi e Clem Portman

Som: Frank McWhorter, Clem Portman

Direção de Arte: Albert S. D’Agostino e Ralph Berger

Montagem: Sherman Todd

Montagem: Roland Gross

Produção: RKO Radio

Produção: RKO Radio

Elenco: Robert Mitchum, Lizabeth Scott, Robert Ryan, Willian Talman,

Elenco: Robert Ryan, Anthony Ross, Ward Bond, Ian Wolfe, Ed Begley, Ida

Ray Collins

Lupino e Charles Kemper

O sindicato do crime se mudou para a cidade, em parceria com o chefão do

Dixton Steele, roteirista de sucesso passando por um bloqueio criativo, se

crime local, Nick Scanlon. Há apenas dois problemas: primeiro, Nick é o tipo

torna o principal suspeito de um assassinato. Sua vizinha lhe dá um álibi

violento, preferindo fazer as coisas da maneira antiga, em vez de usar os méto-

protegendo-o, mas seus constantes ataques de raiva fazem com que sua

dos do sindicato. O segundo problema é McQuigg, o único policial honesto da

culpa não seja completamente descartada.

força, seu patrulheiro leal, Johnson.

Horizonte de glórias

Macao

Flying Leathernecks EUA, 1951, Cor, 35mm, 102 min, 1.37:1, 12 anos

EUA, 1952, PB, 35mm, 80 min, 1.37:1 Direção: Josef von Sternberg (e Nicholas Ray)

Direção: Nicholas Ray

Roteiro: Bernard C. Schoenfeld, Stanley Rubin. Adaptado da historia

Roteiro: James Edward Grant, da história de Kenneth Gamet

de Bob Willians

Fotografia: William E. Snyder

Fotografia: Harry J. Wild

Som: Frank McWhorter e Clem Porman

Som: Earl Wolcott, Clem Portman

Direção de Arte: Albert S. D’Agostino e James W. Sullivan

Montagem: Samuel Beetley, Robert Golden

Montagem: Sherman Todd

Produção: RKO Radio

Produção: RKO Radio

Elenco: Robert Mitchum, Jane Russell, Willian Bendix, Thomas Gomez,

Elenco: John Wayne, Robert Ryan, Don Taylor e Janis Carter

Gloria Grahame, Brad Dexter

O Major Dan Kirby comanda o esquadrão de pilotos de caça na II Guerra Mundial. Após ver muitos de seus homens morrerem em combate, Kirby passa a adotar métodos de batalha considerados suicidas por seus superiores.

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Uma sensual cantora de boate, um homem que viajou para muitos portos exóticos e um vendedor, se conhecem a bordo de um navio em uma viagem de 45 milhas, de Hong Kong a Macau

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Paixão de bravo

Johnny Guitar

The Lusty Men

Johnny Guitar

EUA, 1952, PB, 35mm, 113 min, 1.37:1, 12 anos

EUA, 1954, Cor, 35mm, 110 min, 1.37:1, 14 anos

Direção: Nicholas Ray

Direção: Nicholas Ray

Roteiro: Horace McCoy e David Dortort

Roteiro: Philip Yordan do romance Johnny Guitar de Roy Chanslor

Fotografia: Lee Garmes

Fotografia: Harry Stradling

Som: Phil Brigandi e Clem Portman

Som: T. A. Carman e Howard Wilson

Direção de Arte: Albert S. D’Agostino e Alfred Herman

Direção de Arte: James Sullivan

Montagem: Ralph Dawson

Montagem: Richard L. Van Enger

Produção: RKO Radio

Produção: Republic Pictures

Elenco: Robert Mitchum, Susan Hayward, Arthur Kennedy, Arthur Hunnicutt,

Elenco: Joan Crawford, Sterling Hayden, Mercedes McCambridge e Scott Brady

Frank Faylen,Walter Coy, Carol Nugent, Maria Hart, Lorna Thayer, Burt Mustin

Vienna tem um saloon fora da cidade e é constantemente assediada por ran-

Jeff McCloud é um cowboy que retorna à sua cidade natal após se ferir em

cheiros interessados na passagem da ferrovia. Quando um grupo assalta uma

uma competição. Empregado em uma fazenda, ele conhece um casal que sonha

diligência e mata um homem, os oficiais da cidade, comandados por Emma,

adquirir seu próprio rancho. Sugerindo a possibilidade de grandes lucros, Jeff

rival de Vienna, acusam Dancin' Kid pelo crime. Johnny Guitar aparece para

os apresenta ao perigoso e fascinante mundo dos rodeios.

ajudar sua antiga companheira.

Androcles and the Lion

High green wall

EUA, 1953, Cor, 35mm, 95 min, 1:37:1 Direção: Chester Erskine (cenas adicionais Nicholas Ray)

High Green Wall EUA, 1954, PB, 30 min, 1.37:1, 12 anos

Roteiro: Chester Erskine, Noel Langley, Ken Englund. Adaptado da peça

Direção: Nicholas Ray

Androcles and the Lion de George Bernard Shaw

Roteiro: Do conto The Man Who Liked Dikens, de Evelyn Waugh

Fotografia: Harry Stradling

Fotografia: Frmanz Planer

Direção de Arte: Albert S. D`Agostino

Som: Roy Meadows

Montagem: Roland Gross

Direção de Arte: Martin Obzina

Produção: RKO Radio. G. P. Productions

Montagem: Michael M. McAdam

Elenco: Jean Simmons, Alan Young Evans, Elsa Lanchester, Reginald Gardiner

Elenco: Marshall Bradford, Joseph Cotten, Thomas Gomez, Maurice Marsac

Androcles é um cristão que segue os ensinamentos da religião, até mesmo no

e Ronald Reagan

que se refere ao tratamento dos animais. Vendo um leão em dor, ele remove um

Quarto episódio da série de TV General Electric Theater, adaptado do conto

espinho enorme de pata do animal, criando um amigo para a vida. Androcles

The Man Who Liked Dickens, de Evelyn Waugh.

e uma série de outros cristãos são eventualmente presos e condenados à morte na arena.

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Fora das grades

Sangue ardente

Run for Cover

Hot Blood

EUA, 1955, Cor, 35mm, 93 min, 1.85:1, 12 anos

EUA, 1956, Cor, 35mm, 85 min, 2.35:1, 12 anos

Direção: Nicholas Ray

Direção: Nicholas Ray

Roteiro: Winston Miller, da da história de Harriet Frank Jr e Irving Ravecht

Roteiro: Jesse Lasky Jr., da história de Jean Evans

Fotografia: Daniel Fapp

Fotografia: Ray June

Som: Jane Merritt e John Cobe

Som: Lambert Day e Livadary

Direção de Arte: Hal Pereira e Henry Bumstead

Direção de Arte: Robert Peterson

Montagem: Howard Smith

Montagem: Otto Ludwig

Elenco: James Cagney, Viveca Lindfors, John Derek, Jean Hersholt, Grant

Produção: Columbia Pictures

Withers, Jack Lambert, Ernest Borgnine e Ray Teal

Elenco: Jane Russell, Cornel Wilde, Luther Adler, Joseph Calleia, James H.

Após ser confundido com um assaltante de trem, Matt Dow recupera sua re-

Russell, Nina Koshetz, Helen Westcott e Mikhail Rasumny

putação quando o xerife da cidade atira em um jovem que cavalgava com ele.

Levado por seu irmão, Stephen acaba num casamento arranjado com a tempes-

Matt estabelece uma vida tranquila com sua namorada sueca, como novo xerife

tuosa Annie Caldash.

da localidade, até que descobre que o menino guarda alguns segredos.

Delírio de loucura Juventude transviada Rebel Without a Cause EUA, 1955, Cor, 35mm, 111 min, 2.55:1, 14 anos

Bigger Than Life EUA, 1956, Cor, 35mm, 95 min, 2.55:1, 14 anos Direção: Nicholas Ray

Direção: Nicholas Ray

Roteiro: Cyril Hume e Richard Maibaum. Baseado no artigo Ten Feet Tall

Roteiro: Stewart Stern. Adaptado por Irving Shulman da história de Nicholas Ray

de Berton Roueché

Fotografia: Ernest Haller

Fotografia: Joe McDonald

Som: Stanley Jones

Som: W. D. Flick e Harry M. Leonard

Direção de Arte: Malcolm Bert

Direção de Arte: Lyle R. Wheeler e Jack Martin Smith

Montagem: William Ziegler

Montagem: Louis Loeffler

Produção: Warner Brothers

Produção: 20th Century Fox

Elenco: Natalie Wood, James Dean, Sal Mineo, Jim Backus, Ann Doran e

Elenco: James Mason, Barbara Rush, Walter Matthau, Robert F. Simon,

Dennis Hopper

Christopher Olsen, Roland Winters, Rusty Lane e Rachel Stephens

A família do jovem Jim Stark muda constantemente de cidade por causa dos

Um professor descobre que sofre de um rara doença e aceita se tratar com uma

problemas por ele criados. Ao se estabelecerem em Los Angeles o rapaz fará

droga experimental. Ele começa a se recuperar, mas ao abusar das doses terá

novas amizades, mas também rivais.

reações imprevisíveis.

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Quem foi Jesse James? The True Story of Jesse James EUA, 1957, Cor, 35mm, 93 min, 2.35:1, 14 anos Direção: Nicholas Ray Roteiro: Walter Newman. Baseado no roteiro de Nunnally Johnson para o filme Jesse James (1938, dir. de Henry King) Fotografia: Joe MacDonald Som: Eugene Grossman e Harry M. Leonard

The James Dean Story EUA, 1957, PB, 35mm, 82 min Direção: George W. George, Robert Altman Produção: Warner Brothers Documentário sobre a vida de James Dean. Utiliza fotografias e entrevistas na sua narrativa. Obs: Incorpora imagens documentais do filme Juventude Transviada.

Direção de Arte: Lyle R. Wheeler e Addison Hehr Montagem: Robert Simpson Produção: 20th Century Fox Elenco: Robert Wagner, Jeffrey Hunter, Hope Lange, Agnes Moorehead, Alan

Jornada tétrica

Hale Jr., Alan Baxter, John Carradine e Rachel Stephens

Wind Across the Everglades

Traça a história de como Jesse James e seu irmão se tornaram os mais famosos

EUA, 1958, Cor, 35mm, 93 min, 1.85:1, 12 anos

bandidos do velho oeste.

Direção: Nicholas Ray Roteiro: Budd Schulberg Fotografia: Joseph Brun

Amargo triunfo

Som: Ernest Zatorsky

Bitter Victory

Direção de Arte: Richard Sylbert

EUA/França, 1957, PB, 35mm, 103 min, 2.35:1, 12 anos

Montagem: George Klotz e Joseph Zigman Produção: Waner Brothers

Direção: Nicholas Ray

Elenco: Burl Ives, Christopher Plummer, Chana Eden, Gypsy Rose Lee, Tony

Roteiro: René Hardy, Nicholas Ray, Gavim Lambert e Vladmir Pozner,

Galento, Sammy Renick, Pat Henning e Peter Falk

do romance Amère Victoire de René Hardy. Fotografia: Michel Kelber Som: Joseph de Bretgne Direção de Arte: Jean d’Eaubonne

No início do século XIX, Walt Murdock chega à Miami com o objetivo de proteger uma reserva de pássaros. O forasteiro se vê em perigo ao enfrentar Cottonmouth, líder de um bando de marginais que vivem em uma colônia da região.

Montagem: Léonide Azar Produtor: Transcontinental Films S.A. Elenco: Richard Burton, Curd Jürgens, Ruth Roman, Raymond Pellegrin, Anthony Bushell, Alfred Burke, Sean Kelly, Christopher Lee e Ronan O'Casey Apesar de não se encaixar em seu posto, um oficial recebe uma condecoração por bravura. A honraria se converte em insulto, uma vez que o capitão que a indicou tem um caso com a esposa do oficial.

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A Bela do bas-fond

O Rei dos reis

Party Girl

King of Kings

EUA, 1958, Cor, 35mm, 99 min, 2.35:1, 12 anos

EUA, 1961, Cor, 35mm, 168 min, 2.20:1, Livre

Direção: Nicholas Ray

Direção: Nicholas Ray

Roteiro: George Wells, da história de Leo Katcher.

Roteiro: Philip Jordan

Fotografia: Robert Bronner

Fotografia: Franz F. Planer, Milton Krasner e Manoel Berenguer

Som: Dr Wesley C Miller

Som: Basil Fenton Smith

Direção de Arte: Willian A. Horning e Randall Duell

Direção de Arte: Georges Wakhévitch

Montagem: John McSweeney

Montagem: Harold F. Krass e Renée Lichtig

Produção: Metro Goldwyn Mayer

Produção: Metro Goldwyn Mayer

Elenco: Robert Taylor, Cyd Charisse, Lee J. Cobb, John Ireland, Kent Smith,

Elenco: Jeffrey Hunter, Siobhan McKenna, Hurd Hatfield, Ron Randell, Viveca

Claire Kelly, Corey Allen e Lewis Charles

Lindfors, Rita Gam, Carmen Sevilla, Brigid Bazlen, Rip Torn, Robert Ryan,

Thomas Farrell é um advogado que trabalha para o chefe mafioso, Rico Angelo,

Royal Dano

beneficiando e defendendo criminosos. Mas, ao se apaixonar por uma bailarina,

A história da vida de Jesus Cristo, do seu nascimento até a ressurreição, contada

ele tentará sair do esquema de corrupção.

com uma contextualização histórica e política.

Sangue sobre a neve

55 dias em Pequim

The Savage Innocents

55 Days at Peking

França/Itália/Reino Unido, 1960, Cor, 35mm, 110 min, 2.20:1, 14 anos

EUA, 1963, Cor, 35mm, 154 min, 2.20:1, 14 anos

Direção: Nicholas Ray

Direção: Nicholas Ray

Roteiro: Nicholas Ray. Adaptado por Hans Ruesch e Franco Solinas do romance

Roteiro: Philip Yordan e Bernard Gordon

Top of The World, de Hans Ruesch

Fotografia: Jack Hildyard

Fotografia: Aldo Tonti e Peter Hennessy

Som: David Hildyard, Gordon K. McCallum e Milton Burrow

Som: Geoffrey Daniels

Disign de Produção e Figurino: Veniero Colasanti e John Moore

Direção de Arte: Don Ashton e Dario Cecchi

Montagem: Robert Lawrence

Montagem: Ralph Kemplen e Eraldo Da Roma

Produção: Samuel Bronston Productions

Produção: Magic Film, Joseph Jenni, Apia Films e Gray Film- Pathé

Elenco: Charlton Heston, Ava Gardner, David Niven, Flora Robson, John

Elenco: Anthony Quinn, Yoko Tani, Carlo Giustini, Peter O'Toole, Marie Yang,

Ireland, Leo Genn, Robert Helpmann, Harry Andrews e Nicholas Ray

Marco Guglielmi, Kaida Horiuchi e Lee Montague

Um grupo de estrangeiros é cercado em Pequim durante a revolta dos Boxers.

Após ser ofendido por um padre, Inuk comete um assassinato. Perseguido pela

A liderança de um corajoso membro da Marinha Americana e do embaixador

polícia, o esquimó se aventura pelo norte do Canadá em busca de refúgio.

britânico são a única esperança para eles.

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March on Washington EUA, 1963, Cor, 30min Produção: ABC Television Documentário sobre a filmagem de 55 dias em Pequim.

EUA, 1970, Cor, 16mm, 18 min Direção: Nicholas Ray, François de Ménil, Sarah, Jim, Eli, Marty, Ellen (Ray) Câmera: Claudia Weill e Bill Desloge Som: Bob Levis Montagem: Grady Watts

Circus World EUA/Espanha, 1964, Cor, 35mm e 70mm, 137 min, 2.20:1

Produção: Dome Films, Inc. Curta que documenta uma das maiores manifestações anti-guerra em Washington.

Direção: Henry Hathaway Roteiro: Bem Hecht, Julia Halevy, James Edward Grant, da história de Philip Yordan e Nicholas Ray Fotografia: Jack Hildyard Produção: Samuel Bronston Productions Elenco: John Wayne, Claudia Cardinale, Rita Hayworth, Lloyd Nolan

We can't go home again We Can't Go Home Again EUA, 1973, Cor, 35mm, 90 min, 1.37:1, 16 anos Direção e Roteiro: Nicholas Ray

No início do século 20, Matt Masters decide levar sua trupe ambulante do Velho

Som: Ken Ross, Helen Kaplan e Barbara Di Benedetto

Oeste para a Europa. Sua decisão é impulsionada pelo seu desejo de encontrar

Produção: A film By Us

Lily Alfredo, jovem que desapareceu há 14 anos depois da morte de seu marido.

Equipe: Estudantes do Harpur College, Binghamton (NY) Montagem: Frank Ceverich e Tony Margo (versão 1976) Elenco: Nicholas Ray , Tom Farrell, Leslie Levinson, Richie Bock, Jane

Auf der Suche nach meinen Amerika – Eine Reise nach 20 Jahren America Revisited Alemanha, 1970, Cor, 16mm, 147 min, 1.37:1

Heymann, Jim North Filme realizado em conjunto com seus alunos no período em que Nicholas Ray lecionou na Universidade de Binghamton, NY.

Direção: Marcel Ophuls Roteiro: Marcel Ophuls Fotografia: Nils-Peter Mahlau, Udo Franz Som: Christian Schmidt Montagem: Karin Baumhofner, Marguerite Oboussier Produção: NDR (Norddeutscher Rundfunk, Hamburgo) Obs: Ray aparece na segunda parte

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I´m a Stranger Here Myself EUA, 1974, Cor, 16mm, 58 min Direção: David Helpern Jr, James C. Gutman

O Amigo americano Der Amerikanische Freund Alemanha/França, 1977, 35mm, 126 min, 1.85:1

Roteiro: Myron Meisel

Direção: Wim Wenders

Fotografia: Austin De Besche

Roteiro: Wim Wenders. Adaptado do romance Ripley´s Game, de Patrícia Highsmith

Som: Richie Bock

Fotografia: Robby Müller

Montagem: Richie Bock, Frank Galvin

Produção: Road Movies Filmproduktion Gmbh, Berlim/Wim Wenders

Produção: Octuber Films, Cambridge (Massachusetts)

Produktion, Munique/Les Films du Losange, Paris.

Documentário sobre Nicholas Ray, no set de We Can’t Go Home Again.

Elenco: Bruno Ganz, Dannis Hopper, Lisa Kreuzer, Gérard Blain. Como convidados, o diretor Nicholas Ray, Samuel Fuller, Peter Lilienthal, Daniel Schmind, Sandy Whitelaw e Jean Eustache

The Janitor The Janitor

Um alemão, Jonathan, e um americano, Tom, se conhecem em um leilão de arte. Jonathan está doente, em estado terminal, e não deseja deixar sua esposa e filha sem recursos, por isso aceita a proposta do amigo de assassinar uma pessoa.

Holanda/Alemanha, 1974, Cor, 16mm, 14 min, 1:37:1 Direção: Nicholas Ray Fotografia: Max Fischer Montagem: Max Fischer Produção: Film Group One e Cinereal Film

Marco EUA, 1978, Cor, 16mm, 11 min

Elenco: Nicholas Ray, Melvin Miracle, Anneke Spierenburg, Dawn Cumming,

Direção: Nicholas Ray

Marvelle Willians, Mary Moore

Roteiro: Baseado no primeiro capítulo do romance Marco, A Novel of Love,

Contribuição de Nicholas Ray para a série de filmes eróticos Wet Dreams.

de Curtis Bill Pepper Fotografia: Robert La Cativa e Danny Fischer Elenco: Claudio Mazzatenta, Jim Ballagh, Ned Motolo, Gery Bamman, Connie, Charles W. e Joaquim.

James Dean: The First American Teenager Reino Unido, 1975, Cor, 80 min Direção: Ray Connolly

O pai de um filho com deficiência congênita, causada por remédios tomados pela mãe durante a gestação,incapaz de lidar com essa tragédia, decide jogar o recém-nascido no Rio Tibre e se entregar à polícia.

Fotografia: Mike Mallory, Robert Gersicoff Produção: Visual Programme Systems Documentário sobre a vida e a carreira do ator James Dean. Obs: Nicholas Ray é um dos entrevistados

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Hair EUA/Alemanha, 1979, 35mm, 122 min, 1:85:1 Direção: Milos Forman

Um filme para Nick Lightning Over Water Suécia/Alemanha, 1980, Cor, 35mm, 91 min, 1.66:1, 12 anos

Roteiro: Michael Weller

Direção e Roteiro: Nicholas Ray e Wim Wenders

Fotografia: Miroslav Ondricek

Fotografia: Ed Lachman

Produção: Lester Persky e Michael Butler

Som: Martin Müller, Maryte Kavaliauskas e Gary Steele

Elenco: John Savage, Treat Willians, Beverly D’Angelo, Annie Golden, Dorsey

Montagem: Peter Przygodda e Wim Wenders

Wright, Nicholas Ray (o general)

Produção: Road Movies Filmproduktion GmbH, Wim Wenders Produktion e

Adaptação do musical da Broadway, conta a historia de um grupo de jovens hippies que lutam contra o alistamento e a guerra do Vietnã.

Viking Film Elenco: Nicholas Ray , Wim Wenders, Susan Ray, Gery Bamman, Ronee Blakley, Pierre Cotrell, Timothy Ray, Tom Kaufman Win Wenders e Nicholas Ray realizam um filme sobre os últimos dias de vida

Garlic Is as Good as Ten Mothers

do diretor americano.

EUA, 1979, Cor, 16mm, 51 min Direção: Les Blank

Passeio com Johnny Guitar

Roteiro: Les Blank

Passeio com Johnny Guitar

Fotografia: Les Blank Som: Maureen Gosling Produção: Flower Films Documentário sobre alho, filmado num período de cinco anos. Ray aparece numa única tomada, filmada no Chez Panisse, restaurante em Berkeley, durante o festival anual do alho de 1977.

Portugal, 1996, Cor, 35mm, 3 min, 2.35:1, Livre Direção: João César Monteiro Roteiro: João César Monteiro Fotografia: Dominique Chapuis Som: Henri Maïkoff Montagem: João Nisa Produção: GER (Grupo de Estudos e Realizações), Joaquim Pinto Elenco: Max Monteiro e Ana Reis Na madrugada, João de Deus retorna a sua casa com um fragmento de banda sonora na cabeça. O filme: Johnny Guitar.

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Don't expect too much

crédito das imagens

Don't Expect Too Much EUA, 2011, Cor, Digibeta, 70 min, 16:9, 16 anos Direção: Susan Ray Elenco: Nicholas Ray, Jim Jarmusch, Victor Erice and Tom Farrel. Explora os bastidores da realização de We can’t go home again. Uma viagem afetuosa pela visão artística de Nicholas Ray.

We can't go home again (2011) We Can't Go Home Again EUA, 2011, Cor, Digibeta, 93 min, 16:9, 16 anos Direção e Roteiro: Nicholas Ray Som: Ken Ross, Helen Kaplan e Barbara Di Benedetto Produção: A film By Us Equipe: Estudantes do Harpur College, Binghamton (NY) Montagem: Susan Ray seguindo anotações de Nicholas Ray Elenco: Nicholas Ray, Tom Farrell, Leslie Levinson, Richie Bock, Jane Heymann, Jim North Versão de 2011 do filme realizado em conjunto com seus alunos no período em que Nicholas Ray lecionou na Universidade de Binghamton, NY.

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EQUIPE

Webdesign Fernando Secco Transporte de Cópias

Patrocínio Banco do Brasil Realização Centro Cultural Banco do Brasil

KM Comex & Transportes Legendagem Eletrônica 4Estações Assessoria de Imprensa DF

Organização e Produção

Tátika Comunicação e Produção

Dilúvio Produções

Kátia Turra

Curadoria e Idealização

Vinicius Nader

Eduardo Cantarino

Assessoria de Imprensa RJ

Thiago Brito

Pedro de Luna e Fernanda Galvão

Coordenação de Produção

Assessoria de Imprensa SP

Daniel Pech

F&M Procultura www.fmprocultura.com.br

Produção Executiva Alessandra Castañeda Co-Produção Jurubeba Produções Assistência de Produção e Produção Local RJ Maria Emília Tagliari

CATÁLOGO Coordenação Editorial Eduardo Cantarino Thiago Brito Produção

Produção Local e Monitoria DF

Daniel Pech

Daniela Marinho

Eduardo Cantarino

Produção Local e Monitoria SP Renata Da Costa Monitoria RJ Maria Sayd Assistência de Produção Executiva Natalia Mendonça Projeto Gráfico Gianna Larocca

Maria Emília Tagliari Thiago Brito Identidade Visual e Diagramação Gianna Larocca Pesquisa de Imagens Eduardo Cantarino Thiago Brito Revisão de Textos Guilherme Semionato


Apoio Institucional

Agradecimentos Especiais

Consulado Geral dos EUA no Rio de Janeiro Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro Nicholas Ray Foundation

Susan Ray

Universidade Federal Fluminense

As cópias exibidas na mostra foram provenientes dos seguintes acervos e distribuidoras: Action Cinémas, British Film Institute, Cinemateca Portuguesa, Filmoteca Buenos Aires, Kava - Kansallinen Audiovisuaalinen Arkisto, Nicholas Ray Foundation, Park Circus, Reverse Angle, Rosebud Films, UCLA Film & Television Archive

Agradecimentos Alexandre Arraias (Classic Line), Ana Beatriz Machado, Ana Pech, André de la Cruz (Variety), Bernard Eisenschitz, Bernardo Barcellos, Betina Viany, Bruno Andrade, Carlos Armando, Carol Perdigão, Chris Fujiwara, Christian Viviani (Revue Positif, Claudio Mazzatenta, Carlos Proença, Daniel Cruz (Warner Bros), Dom Francisco Restaurante, Eduardo Ades, Eduardo Valente, Ely Azeredo, Érica Dutra (Autêntica Editora), Fabián Nuñez, Fabrício Felice, Fabrício Marques,

Os créditos das imagens publicadas neste catálogo pertencem às seguintes produtoras/distribuidoras:

Felipe Bragança, Fernando Clímaco, Fernando Ferreira, Francis Vogner Reis, George Watson (BFI), Guilherme Garcia, Guy Borlée, Hernani Heffner, Hotel Meliá Brasil 21, Inácio Araújo, Ines Aisengart, Isadora Vianna, Jacques Rancière,

Columbia Pictures, Gray Film-Pathé, Joseph Janni/Appia Films, Magic Film,

James Quandt, Jean Marie Rodon (Action Cinémas), Jesús Rodrigo (Ediciones

Mark Goldstein, Metro-Goldwyn-Mayer, Paramount Pictures, Pine-Thomas

Shangrila), Jonathan Rosenbaum, Jos Oliver (Rusebud Films), Juha Kindberg

Productions, Republic Pictures, RKO Radio Picutes, Robert Lafond Productions,

(Kava), Karin Kolb, Kathryn Bigelow, Kelly Kashima (KM Comex), Leila Santos

Samuel Bronston Productions, Samuel Goldwyn Company, Santana Pictures

(Consulado Geral dos Estados Unidos), Leonardo Levis, Lúcia Riff (Agência

Corporation, Schulberg Productions, Transcontinental Films, Twentieth Century

Riff), Luciana Marques (MPLC Brasil), Luis Alberto Rocha Melo, Luiz Paulo

Fox, Wald/Krasna Productions e Warner Bros.

Mendonça Brandão Marcelo Miranda, Márcia Perdigão, Márcio Pitta, Maria Sayd, Mark Goldstein, Mark Pannell (Consulado Geral dos Estados Unidos), Martine Heissat (Éditions du Seuil), Miriam Campos (Agência Riff), Mirian Monteiro, Nick Varley (Park Circus), Pedro Henrique Ferreira, Peter Birskind, Rachel Ades, Rafael Saar, Raphael Mesquita, Rebecca Wells (University of California Press), René Ferracioli, Rita Cantarino, Robinson Araújo, Rolando Caputo (Senses of Cinema), Ruy Gardnier, Sara Moreira (Cinemateca

A organização da mostra lamenta profundamente se, apesar de nossos esforços,

Portuguesa), Sarah Fatima Parsons, Setembrino Araújo, Simplício Neto, Steven

algum detentor foi omitido sem intenção. Comprometemo-nos a reparar tais

Hill (UCLA), Teresa Borges (Cinemateca Portuguesa), Thomas Elsaesser, Todd

incidentes caso novas edições sejam realizadas.

Wiener (UCLA), Toni D’ Angela (La Fúria Umana), Vera Oppolzer (Reverse Angle), Victor F. Perkins, Vincent Dupré (Action Cinémas)


Patrocínio

Realização


ISBN 978-85-65116-00-8

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