1. ENSAIOS Entre e não fique à vontade 4 Douglas Duarte O fato e suas versões 6 Julio Bezerra A tênue linha sonora de Morris 10 Bernardo Uzeda Portais do céu: crítica 14 Roger Ebert Verdadeiro detetive 18 Terrence Rafferty Dedicação aos homens dedicados 23 Eduardo Baggio
No “fora de campo” da história: a entrevista como método 26 Patricia Rebello O excesso e suas implicações em Procedimento operacional padrão 33 Mariana Baltar O caçador do absurdo 41 Paola Prestes First Person: mais estranho que a ficção 44 Paulo Henrique Fontenelle Errol Morris em seis movimentos 48 Simplício Neto
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A Caixa é uma das principais patrocinadoras da cultura brasileira e destina, anualmente, mais de r$ 60 milhões de seu orçamento para o patrocínio a projetos culturais em espaços próprios e espaços de terceiros, com mais ênfase em exposições de artes visuais, cinema, peças de teatro, espetáculos de dança, shows musicais, festivais de teatro e dança em todo o território nacional e artesanato brasileiro. Os projetos patrocinados são selecionados via edital público, uma opção da Caixa para tornar mais democrática e acessível a participação de produtores e artistas de todas as unidades da federação e mais transparente para a sociedade o investimento dos recursos da empresa em patrocínio. Esta mostra de cinema é uma retrospectiva da obra de um dos melhores documentaristas da atualidade. Errol Morris é reconhecido pela crítica internacional pelos seus filmes inovadores que se tornaram uma rica contribuição para a linguagem cinematográfica. O público terá acesso a toda a sua obra, incluindo curtas, médias e longas-metragens e uma série de tv produzida por ele, além de um catálogo com textos e uma entrevista com o próprio diretor. Desta maneira, a Caixa contribui para promover e difundir a cultura nacional e retribui à sociedade brasileira a confiança e o apoio recebidos ao longo de seus 152 anos de atuação no país e de efetiva parceria no desenvolvimento das nossas cidades. Para a Caixa, a vida pede mais que um banco. Pede investimento e participação efetiva no presente, compromisso com o futuro do país e criatividade para conquistar os melhores resultados para o povo brasileiro. Caixa Econômica Federal
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Errol Morris está interessado em pessoas. Em seus filmes as pessoas falam. Falam muito. Falam sobre suas vidas, suas obsessões, suas alegrias e frustrações, suas formas de ver o mundo e de interagir com os outros. E, ao narrar seus passos em retrospecto, colocam-nos em perspectiva e têm sempre um grande plano para o futuro. Ao deixá-las falar, não há interesse em provar que não existem pessoas ordinárias, pessoas comuns. Todos que conversam com Errol Morris exercem, em estado de exaltação, uma básica necessidade humana: a de serem ouvidos. Escorar-se em indivíduos, aliás, não significa dizer que o resultado final recaia apenas nessas declarações. Ao contrário. O documentário de Morris é estruturado, acima de tudo, em densa carpintaria, com a qual lança mão, numa linguagem muito particular, de artifícios dramatúrgicos atípicos ao gênero — desde trilhas sonoras orquestrais ou entrevistas em estúdio a câmeras lentas em reencenações hiperestilizadas. Quando, numa entrevista, Errol Morris declarou levar a vida real em seu bolso, isto nada tinha a ver com celulares. A afirmação é de 1999, quando os aparelhos móveis ainda nem sonhavam em realizar qualquer registro. Morris fazia uma conexão com a sua forma de ver o audiovisual. Segundo ele, o que se chama de vida real no documentário pode — e deve — ser uma versão própria de cada um, algo entendido de diferentes formas, mas que, no fim, será sempre e tão somente arte. A versão dele ele estica, puxa, rasga e dobra até o ponto de levá-la no bolso. O intuito da mostra Errol Morris, a vida real cabe no bolso é possibilitar um olhar completo sobre o trabalho de um cineasta em constante evolução, que desafia, filme após filme, a sua própria maneira de fazer audiovisual e, de certa forma, questiona o próprio gênero documental. O que, afinal, Errol Morris carrega em seu bolso? Curador
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Entre e não fique à vontade Douglas Duarte
Pergunte a diversas pessoas qual o segredo para uma boa entrevista. Pode ir fazer o teste, eu e esse catálogo esperamos aqui. Voltou? Pode abandonar este texto agora se boa parte das respostas não orbitou em torno de temas como “ambiente neutro”, “empatia”, “cumplicidade”, “ouvir sem interromper”, “não julgar” e “seduzir o entrevistado”. Em essência, para se fazer uma boa entrevista é necessário fazer com que o pobre sujeito esqueça câmeras, microfones, maquiagem, figurino, ar-condicionado no máximo e sinta-se próximo de seu interlocutor. É praticamente o inverso do que faz o senhor Morris. Para começar, uma voz esganiçada e alta, como a de alguém que regulou mal seu aparelho de surdez. Uma voz que julga, sim, e por isso decide muitas vezes ser cética, cínica ou irônica. Se Coutinho transformou o “como é que é isso?” em arte, o mesmo pode ser dito de Morris e seu descrente “really?”. Mas o confronto como arte vai além. Desde o filme Fast, Cheap & Out of Control, Morris sequer fica frente a frente com seus entrevistados. Seus personagens ficam num estúdio, iluminados, vestidos, maquiados e separados dele por uma cortina ou uma parede. Conectando os dois está um sistema de duas câmeras e dois teleprompters apelidado de Interrotron. Basicamente, cada câmera filma seu objeto por detrás de um espelho onde a imagem do interlocutor é refletida. Adeus àquele olhar de esguelha, mirando alguém ao lado da câmera, esta é uma arapuca de inventar olho no olho. Parece pouco, mas a mágica desses poucos graus de alinhamento é instantânea e viciante em seus filmes. Mas a função do olho no olho biônico de Morris não é deixá-lo próximo do entrevistado: ele quer que o espectador esqueça que há intermediários entre quem ouve e quem fala. Não voyeurizamos uma conversa alheia a nós em seus filmes. Na tela, alguém fala olhando você nos olhos. Nos seus olhos. O desafio vai além: Morris sempre está em busca de gente incômoda para pôr no colo do espectador. Um homem responsável por parte da barbárie do Vietnã? Sim. Um fabricante de cadeiras elétricas? Claro. Um papagaio? Uma mulher suspeita de estuprar um mórmon? Por que não? É uma alteridade dura a que ele propõe. Difícil acreditar que ele começou ouvindo cuidadosamente os capiaus do Sul americano em seus primeiros filmes, muito como quem hoje se inspira na cartilha espartana mas gentil de Coutinho (que, aliás, detestava seus filmes).
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O que une sua obra à do brasileiro é também o que une as duas pontas de sua carreira: um interesse compulsivo pela prosódia, pela boa oratória e pela tagarelice bem esculpida. É uma galeria de bem-falantes, gente enfática, fácil no floreio, boa de humor; solistas mesmo. Morris, contudo, não se acomoda com o relativismo, com a “verdade do cinema”, nem com o “não importa se é mentira”, que faz muita escola no documentário europeu e no brasileiro também. Há fatos e ele quer descobri-los, muitas vezes com mais afinco do que qualquer jornalista teria. A linha (da morte e de outras coisas) é tênue, mas existe. As vozes, o olho no olho, estão a serviço de uma história, de algo real e louco que aconteceu nesse mesmo mundo que habitamos, tendo alguém não muito distante de nós como coadjuvante. Debaixo da capa polida de seus filmes bem fotografados e invisivelmente montados, há um profundo incômodo, algo que acaba não sendo amável e que indica que a condição humana não é bela. Gostaríamos de ser amigos de nenhum de seus personagens. E há consequências no fato de um homem neutro pedir a gente não muito certa que conte de sua vida. Há uma inversão de jogo que é completada pelo tom desconfiado, pela distância corporal mediada pela câmera e pela distância de gênio imposta pelo casting, por assim dizer. Tento me explicar: entrevistar, de fato, é um jogo de sedução. O documentarista tem que quase sempre seduzir o seu tema. Com Morris, me parece ser o caso inverso: inconscientemente, o palco fica armado para que o entrevistado busque alguma espécie de aprovação, de absolvição, de amor, de aproximação, de ressurreição, de entendimento a respeito do que fez. Ele quer seduzir Morris — essencialmente — e através disso esclarecer, alvejar sua própria história. Em qualquer entrevista há uma traição. A de Morris é fazer com que as pessoas se revelem para ele de forma tão entregue que esperem um prêmio por isso. Não há prêmio, claro, mas o testemunho fica ali, registrado, um tanto como alguém que vai para o meio de uma praça para confessar ao megafone que, sim, viveu. Douglas Duarte é documentarista. Dirigiu os documentários Personal Che e Território, e dá os últimos toques em Sete visitas.
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O fato e suas versões Julio Bezerra
“Como você conseguiu estar na estrada naquela noite?” Esta foi uma das perguntas feitas a Errol Morris quando do lançamento de A tênue linha da morte, em 1988. Era a primeira vez que o documentarista americano se utilizava de reencenações em slow motion para contestar a condenação injusta de Randall Dale Adams pelo assassinato do policial Robert Wood. A questão do jornalista parece à primeira vista absolutamente descabida. O crime ocorreu em 1976 e o longa só foi rodado 12 anos depois. Mais do que isso: em tempos de película, como é que Morris poderia ter uma equipe pronta naquele exato momento e ter filmado tudo com tamanha riqueza de detalhes? Uma pergunta inocente e/ou irresponsável, portanto. Pode ser. Ela, contudo, revela meio sem querer uma tensão que acompanha o documentário desde seu nascimento. Afinal, o que é documentário? O que é real? Encenações devem ser proibidas? Um compromisso com a verdade deve ser exigido? Qual seria a natureza desse compromisso? E com que verdade? Pois desde Robert Flaherty e seu Nanook do Norte (1922), o documentário contém duas naturezas distintas, sendo ao mesmo tempo um registro de algo que aconteceu e uma narrativa, uma retórica, uma construção a partir daquilo que foi registrado. Esta foi a resposta que deu à luz o gênero documental. A tensão, no entanto, como atesta o jornalista americano, permanece ainda hoje. Quer dizer: ao chamarmos um filme de documentário, impomos a ele efeitos muito poderosos e problemáticos. Um documentário nos convida a acreditar na veracidade daquilo que vemos. Esse ato de confiança deriva das capacidades indexadoras da imagem cinematográfica sem ser, muitas vezes, plenamente justificado por ela. Se ver é crer, se estamos sempre muito propensos a acreditar acriticamente na veracidade das imagens que nos são ofertadas, então os documentaristas deveriam ter mais responsabilidade com aquilo que nos mostram. Esta responsabilidade marca os documentários de Morris. Suas reencenações, o coração deste cinema ao lado do gosto pelas entrevistas, operam justamente nessa direção. Não se trata de engano ou manipulação, muito menos da famosa suspensão da descrença. O que está em jogo nos filmes do documentarista é quebrar o princípio ver-crer. Morris sente-se obrigado a reconhecer que não há num filme nada que marque radicalmente sua qualidade documentária, sua autenticidade em relação ao mundo. Não há nada em sua estética que um filme de ficção não possa simular. “A imagem é ontologicamente falsa”, diria ele. Com Morris, a escolha
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não se dá jamais entre verdade e ficção, mas entre determinadas formulações ficcionais capazes de alcançar verdades relativas. A tênue linha da morte é, nesse sentido, uma espécie de divisor de águas na filmografia deste cineasta investigativo, deste profissional da especulação. Em 1985, Morris pesquisava sobre um polêmico psiquiatra da polícia do Texas quando deu de cara com o caso de Adams. Um caso que envolvia o assassinato de um policial em Dallas, morto a tiros ao abordar um automóvel para uma averiguação de rotina. Detido, o delinquente juvenil David Harris acusou-o e, apesar das evidências contra Adams serem inconsistentes, a justiça local condenou-o à morte. Disposto a esclarecer o que lhe pareceu um grave erro judicial, Morris, que já havia trabalhado dois anos como detetive particular, decide então conversar com todas as pessoas envolvidas na condenação de Adams: investigadores, policiais, testemunhas, advogados, etc. O cineasta constrói um enorme dossiê com entrevistas, prontuários da justiça, recortes de jornal, mapas, álbuns de família, relatórios forenses e reconstituições. Morris tinge nossa percepção da realidade com um colorido paranoico. Ele nos contamina pela mente de um detetive obcecado. O filme já começa embalado pela trilha onírica de Philip Glass e por tomadas externas e noturnas dos arranha-céus abstratos e impessoais de Dallas. Adams, em off, de repente nos diz que a cidade parece “o inferno na terra”. A conjugação destes elementos produz um efeito que reverbera pelo filme: uma sensação de inevitabilidade, de inexorabilidade. O imaginário noir se faz sentir. A tênue linha da morte é como uma versão documental de A curva do destino (Detour, 1945), de Edgar G. Ulmer, um longa que enxuga o gênero à sua essência — não exatamente o aspecto sombrio da fotografia e dos enquadramentos, mas a visão amarga da sociedade liberal pós-depressão, a ideia de uma tragédia sempre iminente, como uma possibilidade constante. A tênue linha da morte, como disse certa vez o crítico Terrence Rafferty, é um “documentário na forma de um thriller epistemológico”. Um filme que se move em círculos, sem jamais sair do lugar. Há mais de dez anos no corredor da morte, Adams transborda um fatalismo inabalável e discursa como em um recital formal que ele se sente compelido a proferir. Aos poucos, damo-nos conta de que parte importante da versão aceita pela polícia pode ter sido contada pelo verdadeiro assassino. Adams é um personagem entre Franz Kafka e Jorge Luis Borges. Ele é refém absoluto das versões contadas por terceiros, preso a uma roda sem fim, perdido em um espaço a cada minuto mais complexo e insuportável. Morris está do lado de Adams. Sem se dirigir diretamente ao espectador, o cineasta dá voz a um ponto de vista que, embora
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tácito e indireto, fica difícil de ignorar. Morris defende claramente a inocência do homem condenado. Ele nem sempre aceita a palavra de seus entrevistados. Nem todos merecem crédito. Em determinado momento, o depoimento de uma testemunha-chave da acusação é enfraquecido pela decisão de Morris de cortar para cenas de uma série de filmes da década de 1940 sobre Boston Blackie, um ladrão que se tornou justiceiro. A montagem imprime um tom cômico às alegações da testemunha. Morris duvida, testa e contesta. Essa contestação não é apenas a defesa explícita de algumas testemunhas contra outras. A estratégia expositiva deixa claro que nenhum depoente diz toda a verdade. A reencenação talvez seja sua arma mais poderosa. Morris se mostra consciente de seus artifícios e se mantém sensível em relação às flutuações entre o fato e suas versões. E assim, a cada nova versão do assassinato, temos mais uma reencenação do homicídio. Morris não acredita em um cinema que se contente em observar. Para ele, a verdade não pode surgir da observação passiva. Ela precisa ser provada, confrontando as várias versões de um fato. A imagem de um milk-shake de morango — a maneira como ele é lançado pela policial, a trajetória do líquido e o local exato em que ele foi encontrado pelos investigadores — é repetida três vezes. Por quê? Porque nós montamos a nossa imagem da realidade a partir de detalhes. A realidade não se mostra passiva e por inteira aos nossos olhos. Somos nós que a construímos como algo meramente consistente. Onde estava a policial quando seu parceiro foi assassinado? No carro? Fora do carro? Qual era o modelo do veículo? Quantas pessoas estavam nele? Duas pessoas? Uma pessoa? E a aparência do suspeito? A reencenação do milk-shake de morango comprova discrepâncias na fala da policial e dispara desconfiança para todos os lados. As reconstituições potencializam o aspecto irônico da voz crítica de Morris. Elas funcionam muitas vezes como comentários aos depoimentos dos entrevistados. Sua força, contudo, reside em outro lugar. A reencenação explora pela repetição a defasagem entre o que se diz e o que se vê, problematizando as fronteiras entre história, memória e cinema, e evidenciando que o sentido ou o significado imputado a um acontecimento não depende apenas do reconhecimento do fato, mas de suas estratégias de representação e da maneira como elas nos são mostradas. Ou seja: a reencenação não tem uma missão simplesmente ilustrativa, não se trata de uma estratégia meramente visual ou plástica, mas de um procedimento que reforça através de diversos elementos ficcionais a representação de uma dada realidade. Talvez pudéssemos ir mais longe. A realidade é ela mesma uma reencenação.
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Muitos defendem que a força de A tênue linha da morte é justamente esta exploração criativa da relação sempre problemática e fascinante entre a realidade e a ficção, entre o fato e suas versões. Mas talvez seu mérito maior não seja cinematográfico. Morris conseguiu provar a inocência de Adams, gerando uma revisão completa do caso. Por causa de seu filme, um homem condenado à morte foi posto em liberdade. Julio Bezerra desenvolve pesquisa de pós-doutorado sobre o corpo no cinema contemporâneo na eco-ufrj. Jornalista e crítico de cinema, contribuiu para uma grande variedade de publicações e sites, como Bravo!, Revista de Cinema, Cinética, Globo Online, Programa, etc. Assinou ainda a curadoria das retrospectivas de Abel Ferrara e Samuel Fuller (CCBBs) e mantém o blog Kinos (www.cinekinos.blogspot.com).
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A tênue linha sonora de Morris Bernardo Uzeda
Às vezes esquecemos que nada é mais irreal ou antinatural do que a música. Frequências perfeitas criadas por instrumentos meticulosamente construídos. Sons que não existiriam na natureza não fosse uma busca pela organização e criação de uma nova realidade. Como, então, conciliar um universo tão artificial, tão harmônico e perfeito com o universo do documentário, que busca na realidade sua matéria prima? A música incidental é talvez o mais artificial dos elementos cinematográficos. Nós, espectadores, já estamos tão acostumados às convenções cinematográficas e à noção de suspension of disbelief, que aceitamos uma orquestra soando em uma cena na qual um homem está perdido no deserto, local onde seria impossível de existir uma música soando pelos ares. Essa separação entre música diegética (que tem uma fonte sonora justificável dentro da cena) e música incidental (descolada da fisicalidade do mundo fílmico) é algo que nasce na Ópera (mais notavelmente a de Wagner), em que um fosso no teatro transformava os músicos em seres invisíveis, separando a orquestra do público e do palco numa espécie de limbo sonoro. Pulando alguns séculos na História, chegamos no cinema de Errol Morris, que tem latente na sua essência audiovisual uma noção de que vivemos em um mundo tão artificial e construído que, sendo assim, a desconstrução e reorganização da realidade são necessárias para chegarmos às verdades. No meio das suas manobras narrativas e de montagem, a música e o som tomam importâncias decisivas. Ao mesmo tempo, por mais contraditório que possa soar, Morris se firma como um pensador antipósmodernista (se me permitem o neologismo) em muitos dos seus filmes. Para ele, a “verdade está lá fora” em algum lugar. Talvez essa noção que perpassa a maioria de seus filmes seja uma herança de seus dias como detetive particular, mas no fim das contas, acaba emprestando à sua filmografia um sentimento de que existe um limite até onde a realidade pode ser interpretada de múltiplas maneiras, e de que se quisermos ver e achar a verdade, ela virá, mesmo que escondida em complexos constructos de imagens e sons. A música incidental serve como um dos elementos centrais para Morris desenvolver sua tese em A tênue linha da morte (1988). Interessante notarmos que um filme meticulosamente construído com elementos ficcionais como esse tenha tido influência na real libertação de um homem condenado à pena de morte. Morris desconstrói imagens, sons e frases do mundo real, e as reorganiza dentro de sua
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visão a respeito daqueles personagens e daquelas evidências. Uma das formas mais interessantes em que a música incidental é utilizada nos seus filmes é como um elemento de conexão e fluxo para unificar sequências e expandir seus significados e ligações temáticas, ligações essas que podem, sim, transbordar para o mundo real. Como de costume, uma das funções de qualquer diretor é fazer escolhas. Morris embora tenha sido um excelente violoncelista durante sua juventude (foi aluno de Nadia Boulanger, considerada talvez a maior educadora musical da História), fez sua maior decisão quando escolheu um compositor da vertente minimalista para A tênue linha da morte. A música de Philip Glass acrescenta uma dimensão que nunca seria possível de existir se dependesse apenas das imagens e entrevistas. O sentimento que a música associada àquela narrativa real passa é de que estamos perdidos em um labirinto de fatos duvidosos, meias verdades e paranoia. A música minimalista tem em sua essência estrutural a repetição de frases que raramente se concluem, assim como também não nos levam aos pontos de chegada que nossos ouvidos ocidentais estão acostumados. Nada mais apropriado para um filme no qual há uma busca impossível pela verdade em torno da reconstrução de um assassinato. Curiosamente, a música de Glass no filme em questão transborda os momentos de dramatização ficcional, estética em que Morris foi um dos pioneiros. Muitas vezes nos vemos perdidos entre dramatizações com câmera-lenta, diálogos em off oriundos de entrevistas e imagens de arquivo. E por debaixo de tudo isso, temos quase que ininterruptamente as notas de Glass, servindo como elemento unificador desses universos tão distintos na busca obsessiva que o filme tem pela verdade em torno daquela noite. Já no universo dos efeitos sonoros, Morris atinge um nível de ousadia raramente visto em documentários biográficos na sua notável série First Person. Além da música incidental quase onipresente, existe uma complexa camada sonora de sons extradiegéticos que pontuam as frases dos entrevistados. O interessante é que isso cria uma nova camada visual para o espectador, já que na imagem propriamente dita o formato desse projeto não é muito distante do bom e velho talking head. No entanto, quando nossos olhos se acostumam a ver o mesmo rosto durante muito tempo, entramos em um estado de transe em que o cérebro já não demanda tanta energia para processar as imagens e libera um pouco dessa atenção para nossos ouvidos se tornarem mais atentos. Morris, sabendo disso, insere diversos efeitos sonoros que se relacionam com o conteúdo das entrevistas. Uma sirene de ambulância, uma porta batendo, um carro derrapando, só para citar alguns exemplos. Assim, sem nos darmos conta, vamos
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reconstruindo o que está sendo dito pelos entrevistados visualmente em nossas mentes. A criação de uma nova dramatização dos fatos ocorre então com a participação da criatividade visual e subjetiva de cada espectador. Abrindo um parêntese final (se é que isso é possível), recordo de um documentário em que trabalhei como editor de som, no qual as situações representadas se resumiam à rotina dos moradores em uma comunidade carioca recém-ocupada pela Polícia Militar. Tecnicamente falando, dentro da concepção estética desse projeto em particular, seria impossível de filmar essas situações em uma lógica tradicional de ficção, ou seja, com microfones presos a varas erguidos na direção de policiais e moradores. Uma das soluções encontradas foi colocar microfones sem fio em todos os policiais, e qualquer fala de outras pessoas que não fossem policiais seria captada através de seu vazamento nesses microfones. A solução de microfonar todos os policias foi correta e bem executada, pois ter as vozes quase que totalmente separadas do resto dos sons proporciona um maior controle sobre o resultado final. Por outro lado, isso cria um grande desafio para a pós-produção, já que não tínhamos até o momento outros sons essenciais àquelas imagens como ambientes, passarinhos, vento, folhas, passos, portas e todos os outros tipos de elementos que esperamos ouvir em uma favela do Rio de Janeiro. Curiosamente, o único som real do filme (real no sentido de capturado in loco no momento das filmagens) era, em grande parte, apenas as vozes. Uma pessoa quando viu ao meu lado trechos desse material ainda no início do processo da edição de som perguntou se os policiais tinham sido dublados. Essa pergunta surgiu, acredito eu, pela simples falta de outros sons simultâneos. Parecia que os policias estavam falando em um estúdio tamanha era a limpidez da gravação das vozes, o que não condizia com a imagem de uma favela à luz do dia. Naquele momento, me recordei do óbvio: que na mente da maioria dos espectadores, tudo que é ouvido em um filme é oriundo do momento da filmagem e isso se torna uma questão ainda mais latente no cinema documentário, que lida com uma suposta realidade que está lá fora. Um ambiente que não tem passarinhos, vento, cachorros e passos de transeuntes não soa tão real quanto soaria depois de passar pela meticulosa adição artificial desses sons. Esse processo de criação de ambientes e efeitos acabou então sendo feito neste documentário em questão, resultando em uma experiência fílmica que emprestava aos cortes um efeito bastante parecido com os cortes de um filme de ficção como, por exemplo, momentos de plano/contraplano sem pulos ou engasgos de som, que podem ser impossíveis se pensarmos que tudo foi feito com
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uma câmera só, mas que por outro lado não interrompem a imersão do espectador a cada momento. Documentário ou ficção, o cinema é um só, “mentiras a 24 quadros por segundo”, como diria Morris. Bernardo Uzeda é compositor, editor de som e professor do curso de cinema da puc-Rio. No âmbito do documentário, dirigiu o curta-metragem Remo Usai — Um músico para o cinema, vencedor do prêmio de melhor curta no É tudo verdade 2008 e foi editor de som do longa Morro dos Prazeres, de Maria Augusta Ramos, que recentemente recebeu o prêmio de melhor som no Festival de Cinema de Brasília 2013.
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Portais do céu Roger Ebert
“Aí está o seu cachorro; ele está morto. Mas onde está aquilo que o fazia se mexer? Devia ser alguma coisa, não?” Essas palavras, de uma mulher que acabara de enterrar seu cão, são ditas em Portais do céu. Elas expressam o mistério central da vida. Nenhum filósofo afirmou melhor. Elas constituem a verdade no centro do documentário de 1978 dirigido por Errol Morris, que é coberto, camada sobre camada, por comédia, pathos, ironia e natureza humana. Assisti a esse filme cerca de 30 vezes e ainda não estou nem perto de sua essência: tudo que sei é que se trata de muito mais do que cemitérios de animais. Em meados da década de 1970, Morris, que nunca tinha feito um filme, leu artigos de jornal sobre o colapso financeiro do Foothill Pet Cemetery, em Los Altos, na Califórnia. Depois de muitas questões legais desagradáveis, animais mortos foram desenterrados e realocados no Bubbling Well Pet Memorial Park, em Napa Valley. Pensando haver potencial para um filme neste acontecimento, Morris foi com o diretor de fotografia Ned Burgess entrevistar Floyd McClure, o gerente paraplégico do primeiro cemitério, e a família Calvin Harberts, responsáveis pelo cemitério Bubbling Well. O filme que fizeram se tornou um ícone underground, uma prova de fogo para o espectador, que não consegue decidir se a obra é séria ou satírica, engraçada ou triste, complacente ou caçoadora. Morris veio a se tornar um conhecido documentarista americano, com créditos de filmes como A tênue linha da morte, Uma breve história do tempo e seu novo lançamento Fast, Cheap & Out of Control. Mas Portais do céu permanece em uma categoria individual, inclassificável, provocante e perturbadora. Quando coloquei-o na minha lista dos 10 melhores filmes de todos os tempos, não estava brincando; esse filme de 85 minutos sobre cemitérios de animais me deu mais o que pensar nos últimos 20 anos do que os demais filmes que assisti. O filme é contado sem narração, ele é conduzido pelas pessoas envolvidas. É dividido em duas partes, separadas por um monólogo excepcional. A primeira metade pertence a Floyd McClure, que relembra sua “ideia predestinada” de instalar um cemitério de animais em um local onde havia “um grande potencial visual”. Ele se lembra com ferocidade de uma experiência de infância, quando ajudou um amigo a enterrar um animal de estimação antes que o caminhão de lixo pudesse rebocá-lo. Seus dentes inferiores se revelam raivosamente enquanto ele fala sobre o seu grande inimigo, as graxarias (empresas que processam animais mortos para
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a produção de sebo ou farinhas de carne). Ao visitar uma graxaria pela primeira vez, aos quatro anos de idade, ele lembra do que pensou: “estou no inferno agora”. Suas palavras, assim como as palavras de todos no filme, são escutadas com grande intensidade: eles se expressam em um inglês que se aproxima da poesia e até seus erros são eloquentes, como quando McClure fala sobre realizar “tarefas pacíficas”. Mas Morris também tem um ouvido para a ironia, e nós suspeitamos de seu sorriso malicioso atrás das câmeras enquanto McClure discursa sobre o problema de viver perto de uma graxaria: “O que chegava aos nossos narizes não era o aroma daquele bom pedaço de carne que compramos para comer… Primeiro era preciso beber um gole de vinho, para poder tirar o cheiro da graxaria de nossas narinas antes das refeições.” Suas cenas são intercaladas com as tristes recordações de alguns de seus investidores, em particular um homem que diz ter perdido 30 mil dólares no estabelecimento e suspira como quem jamais verá esse dinheiro novamente. Há ainda um alívio cômico na forma do arqui-inimigo, o dono da graxaria, que relata que as pessoas simplesmente não querem saber o que acontece com animais mortos: “De vez em quando morre uma girafa no zoológico, eles perdem a Velha Bertha ou o Urso Joe…” E para evitar ofender a sensibilidade dos amantes dos animais, “eventualmente temos que negar que o animal veio para cá”. A peça central do filme é um extenso monólogo, enunciado por uma mulher chamada Florence Rasmussen, que se senta na porta de sua casa com vista para o primeiro cemitério. William Faulkner ou Mark Twain teriam chorado de contentamento por terem criado tais palavras da forma em que ela as profere enquanto conta para a câmera a história de sua vida: ela tece os detalhes em esquetes rápidos e vibrantes, para depois contradizer absolutamente tudo o que disse. E então o filme segue para Napa Valley, onde a família de Cal Harberts gerencia o Bubbling Well Pet Memorial Park. Ele também fundara uma igreja que ensina que Deus ama aos animais assim como aos homens. Muito de sua grandiloquência é enfraquecida pela língua ferina de sua mulher, Scottie, que é quem melhor expressa a filosofia da igreja: “Com certeza, nos portais do céu, um Deus todo misericordioso não vai dizer: ‘Bem, você está andando em duas pernas — você pode entrar. Você está andando em quatro patas — não podemos te aceitar.’” Somos então apresentados aos dois filhos dos Harberts. Danny é um romântico melancólico com um bigode fino, que saiu de casa
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para a faculdade, mas seu perfil festeiro atrapalhou seus planos. Ele perdeu sua namorada e agora sabe que “ter seu coração partido é uma experiência pela qual todos devem passar”. Seu irmão mais velho, Philip, vendia seguros em Salt Lake City, mas retornou para Napa, onde analisa suas tarefas (cavar covas, pentear cães mortos) com condições dos princípios de sucesso de W. Clement Stone. Danny é mais pragmático ao analisar o desafio de cavar uma cova: “Você não pode fazer muito larga porque não quer perder espaço e você não pode fazer muito pequena porque a coisa não vai caber ali.” Em um memorável plano-sequência, uma dona de animal, de luto, faz um longo discurso sobre o falecimento de seu cão e as medidas que recomenda aos demais donos de animais. Quando chega à sua última palavra, seu marido a interrompe para concluir clara e diretamente: “castrado”. Esse é o tipo de momento perfeito que não pode ser roteirizado ou antecipado; só pode ser filmado enquanto acontece. Há uma entrelinha não palpável na vida da família Harberts. Os pais aparentam prosperidade e moram em uma casa confortável, mas Danny vive atormentado pela solidão e Philip, quando “voltou para sua pequena família”, foi significativamente rebaixado. No mercado de seguros, ele diz, “eu fui de salesMAN (vendedor) para salesMANager (gerente de vendas)” (ele gosta de trocadilhos), e impressionava os funcionários arrumando seu escritório para “exibir o máximo de troféus”. Agora, no entanto, ele admite sentir um “medo real” de ser obrigado a memorizar as rotas em que precisa trafegar para buscar os animais mortos das clínicas veterinárias. A vida de Danny também é tocante. Depois de se formar em administração, não conseguiu nenhum emprego e voltou para casa para viver em uma cabana onde planta maconha no peitoril da janela e escuta música em seu aparelho de som. À tarde, quando não há mais clientes, ele posiciona suas caixas de som de 100 watts no topo de uma colina e toca guitarra, que pode ser ouvida “por todo o vale”. Ele é como o último de uma espécie, entoando um pesaroso chamado a outro de sua linhagem. As mensagens nas sepulturas também são eloquentes a seu modo. “Eu conheci o amor, eu conheci esse cão”. “Cachorro (dog) é Deus (God) escrito ao contrário”. Ao fim do filme, mesmo depois de rir, nos encontramos em silêncio. Esses amantes dos animais expressam as mais profundas necessidades humanas de amor e companheirismo. “Quando viro as costas para você, diz Floyd McClure, eu não conheço mais você, não verdadeiramente. Mas quando
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viro as costas para meu cãozinho, eu sei que ele não vai me atacar ou morder; e humanos não conseguem ser assim.” Quando sou convidado para dar uma palestra e exibir um filme, frequentemente levo Portais do céu. No fim da exibição, as discussões são intermináveis: será que ele está caçoando dos personagens? Eles são ridículos por se importarem tanto com os animais? Esse filme é uma pegadinha, certo? Não poderia ser verdade? Cal Harberts prometeu no filme que seu cemitério ainda estaria existindo em trinta, cinquenta ou até cem anos. Vinte anos já se passaram. Pesquisei na internet pelo Bubbling Well Pet Memorial Park e encontrei (www.bubbling-well.com). Estão disponíveis informações sobre as opções de canteiros “Jardim do Companheirismo”, “Curva do Gatinho” e de “planos de pré-necessidade”, mas não há nenhuma menção a este filme. Ou aos Harberts. Publicado originalmente no site rogerebert.com, novembro de 1997
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Verdadeiro detetive Terrence Rafferty
Os documentários de Errol Morris têm uma singularidade luxuriante, uma estranheza profunda. Nos seus dois primeiros filmes — Portais do céu (1978), um relato sobre cemitérios de animais na Califórnia, e Vernon, Florida (1981), uma coletânea de histórias soltas sobre uma pequena cidade do Sul dos Estados Unidos contadas por velhos, simplórios e meio senis —, a escolha do material e o prazer em se demorar nos discursos absurdos dos entrevistados permitem identificá-lo como um verdadeiro connaisseur da excentricidade local, um colecionador de bizarrices da cultura americana. Seu novo filme, A tênue linha da morte, mostra que ele é mais do que um artista inspirado no acredite se quiser. Ao narrar o assassinato de um policial em Dallas, no ano de 1976, detalhando o processo em que um homem quase certamente inocente foi condenado e sentenciado à morte pelo crime (tendo o provável assassino como testemunha principal de acusação), Morris mergulha num apavorante reino de duplicidade, percepções errôneas e ambiguidades infindáveis. O filme consegue ser imparcial e fanaticamente intenso. O material possui a heterogeneidade e a precisão tranquila de documentos de um dossiê: há entrevistas com os personagens principais, close-ups de palavras-chave e de parágrafos de matérias de jornal, plantas da sala de audiência, mapas, fotos dos suspeitos em álbuns de família e diagramas da cena do crime e dos ferimentos no corpo da vítima, além de uma série de reconstituições sinistras das várias versões das testemunhas e dos eventos que culminaram no crime. Mas esse material não é organizado da maneira à qual estamos habituados. A tênue linha da morte não tem a estrutura do jornalismo investigativo de um programa como 60 Minutos, nem das histórias ficcionais de detetive, embora reúna elementos de ambos. Sua forma é circular, espiral, e seus repetitivos e obsessivos motivos visuais ecoam na monótona e fantasmagórica trilha sonora de Philip Glass. É um documentário em forma de thriller epistemológico. Morris parece querer nos levar àquele ponto em que nossa apreensão do mundo real atinge o nível da paranoia — para induzir em nós o estado de espírito de um detetive cujo minucioso exame das evidências, cuja busca dos elos entre fatos resolutamente isolados tenham começado a ganhar a clareza febril de uma alucinação. O filme parece um relato meio em transe, quase lírico, de um pequeno e confuso caso de assassinato — o tipo de história que se costuma ler em jornais locais e, em tom sensacionalista, nas
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revistas do gênero True Detective — e é hipnótico como Um corpo que cai (1958). Embora Morris não apareça em A tênue linha da morte, ele é o verdadeiro detetive do filme, o investigador cuja consciência insone repassa incessantemente as provas, criando imagens ambíguas de um crime a partir dos depoimentos contraditórios das testemunhas, deslocando-se constantemente das palavras para as imagens, dos fatos para as hipóteses e vice-versa. Morris soube da história por acaso. Em 1975 fez algumas entrevistas com detentos de um presídio do Texas para um documentário sobre o médico James P. Grigson, psiquiatra de Dallas conhecido como “Dr. Morte” porque seu testemunho em casos de pena capital era virtualmente uma garantia de que o réu seria sentenciado à morte. Um dos entrevistados era Randall Adams, que afirmava ter sido injustamente condenado pelo assassinato de um policial. Morris leu seus autos do processo e do julgamento e se convenceu de que Adams era inocente, o que acabou por desviá-lo do filme sobre o Dr. Morte. Descobrir como Adams fora condenado por um crime que provavelmente não cometera passou a ser uma questão para o cineasta. Sem dúvida, a qualidade compulsiva e o tom de urgência de A tênue linha da morte são consequência, ao menos em parte, da origem singular do filme. O tema parece ter se apoderado da imaginação de Morris de um modo imprevisto — tal como um outro crime em Dallas, o assassinato do presidente Kennedy, parece ter levado as pessoas, quase que contra a vontade delas, a um labirinto de meias verdades e contradições, de arquivos sigilosos e indícios de conspiração. O agente policial Robert Wood foi morto numa noite fria de novembro de 1976. Ele e sua colega interceptaram um carro num bairro perigoso da cidade para avisar ao motorista que devia acender os faróis. Ao chegar perto da janela do motorista, Wood foi atingido por vários tiros disparados pelo homem que estava ao volante. Sendo um crime aparentemente tão desprovido de sentido, e como a única testemunha conhecida, a colega de Wood, não era muito observadora (o filme sugere que ela não seguiu o procedimento padrão, tendo ficado dentro do carro, tomando um milk-shake, enquanto Wood se aproximava do carro do assassino), a polícia de Dallas não tinha nenhuma direção a seguir e não tinha praticamente nenhuma pista. Um mês depois eles interrogaram David Harris, de 16 anos, que se gabava com os amigos da pequena cidade de Vidor de ter assassinado um policial em Dallas. Harris admitiu à polícia que estava no carro parado por Robert Wood, mas afirmou que a pessoa que havia atirado era Randall Adams, a quem ele tinha dado carona naquele dia. Depois de interrogar Adams — que insistia que o adolescente o deixara no hotel cerca
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de duas horas antes da hora do assassinato e se recusava a assinar a confissão —, a polícia decidiu acreditar em Harris, apesar das provas circunstanciais que indicavam ser ele o assassino: tanto a arma utilizada no assassinato como o carro haviam sido furtados por Harris em Vidor e por isso ele tinha mais motivos do que Adams para entrar em pânico ao ser parado pela polícia. Além disso, Harris tinha uma extensa ficha criminal e estava sendo processado em Vidor quando foi interrogado, ao passo que Adams não era fichado nem tinha histórico de violência. Então, pergunta o filme, por que razão Adams havia sido preso, julgado e condenado à morte? As respostas de Morris — ou sugestões de resposta — são complexas e vão sendo lançadas com tal rapidez que às vezes mal conseguimos acompanhar. Registramos um fato e logo depois já vem outro, e em seguida outro, e mais outro, até que finalmente passamos a assimilá-los quase num nível subliminar — nossa concentração é tão intensa que tudo ganha ressonância, tudo se conecta, em uma lógica que já desistimos de tentar articular. Ao nos mostrar as mentiras, os medos, as pressões sociais, as influências culturais, os pressupostos injustificados, os motivos a posteriori, a obstinação e a confusão pura e simples que se combinaram para produzir o processo contra Randall Adams, Morris — que é formado em filosofia e já trabalhou como detetive particular — parece estar investigando não apenas este esquálido assassinato, mas a natureza profunda da mentira. É difícil pensar em outro filme (mais ainda, em outro documentário) que tenha desenvolvido um senso tão rico da textura da falsidade, um filme capaz de reunir tantos fios soltos e entremeá-los de tal maneira que chega a nos cegar. A polícia de Dallas, com a raiva atiçada e o orgulho desafiado pelo assassinato de um dos seus, precisava prender alguém. Se acreditassem em Harris, tinham um crime como testemunha; se acreditassem em Adams, então Harris estava sozinho no carro, ou seja: não tinham nada. O promotor, Douglas Mulder, que até então jamais havia perdido em caso de pena capital, precisava de uma condenação à morte. Harris sendo menor de idade não podia ser julgado por homicídio qualificado. Mas Randall Adams, de 27 anos, podia. Durante o julgamento, a colega policial da vítima, que vinha sendo investigada pela Corregedoria por seu comportamento na noite do crime e que, portanto, estava ansiosa para cooperar, mudou o testemunho original. Dissera inicialmente que havia apenas uma pessoa no carro, mas agora afirmava ter visto duas; o motorista passou a ser descrito como tendo cabelos desgrenhados até a altura dos ombros (como Adams) em vez de cabelos curtos e um casaco de gola de pele (como Harris). O juiz, filho de um agente do fbi, amante da lei e da ordem, admitiu que se sentia tocado
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durante a emotiva argumentação final do promotor sobre “a tênue linha da morte” em que caminham os policiais, arriscando a vida para proteger a sociedade. Uma das testemunhas-chave da promotoria, apresentada ao advogado de defesa no último momento, era uma mulher chamada Emily Miller, que costumava “assistir a todas as séries policiais da televisão” e adorava ser útil às autoridades — sobretudo nesse caso, que oferecia uma recompensa de 21 mil dólares e justo quando sua filha acabava de ser presa por crime qualificado. (As acusações foram discretamente arquivadas.) Morris nos guia por um processo em que um homem, Randall Adams, torna-se uma espécie de personagem de ficção de uma história cujo ímpeto parece não ter fim. Quando o vemos durante a entrevista na prisão, Adams, chamado de “andarilho” pela polícia e pela imprensa, (ainda que tivesse conseguido trabalho fixo desde que chegara a Dallas, dois meses antes do assassinato), é um homem de fala mansa, pálido, de aparência meio fantasmagórica. É bem mais magro que o hippie bigodudo que vemos nas fotos dos jornais no momento da prisão e fala com voz monocórdia e cansada. Embora não esteja mais no corredor da morte — em 1977, num complicado estratagema legal para evitar recurso de um novo julgamento, o estado do Texas comutou a pena de morte em prisão perpétua (depois que o Supremo Tribunal anulou a sentença máxima) —, Adams dá a impressão de alguém prestes a desaparecer. Parece pouco real, uma imagem indistinta, animada esporadicamente apenas por lampejos de humor cáustico. A reconstituição do assassinato e dos eventos relacionados a ele têm uma presença mais forte que o próprio Adams. Mesmo as cenas que mostram relatos com grande probabilidade de serem falsos têm mais força. Assistimos às mesmas ações repetidas vezes, com pequenas mas significativas variações, no mesmo trecho escuro da estrada. É um cenário ao qual Morris dá uma nitidez misteriosa, com as luzes intensas do faróis, figuras em silhueta, claros dos tiros de revólver, o giroscópio da viatura de polícia, a escuridão rica e envolvente — e nós então nos flagramos pensando, contra qualquer lógica, que um novo detalhe ou um ângulo diferente vão subitamente revelar a verdade, que de algum modo essas reconstituições terão o poder de nos levar ao âmago dos acontecimentos. Quando David Harris termina de contar a sua versão, a vida de Randall Adams é apagada para ser substituída por uma série infinita de construções e reconstruções de um único momento, o momento em que, muito provavelmente, ele estava dormindo em seu quarto de hotel. É como se o tempo tivesse simplesmente parado para ele no tempo em que sua imagem atirando em Robert Wood se alojou na mente dos policiais de Dallas, como
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se ele estivesse condenado a viver o resto da vida exclusivamente na mente dos outros: policiais, juízes, jurados, advogados, leitores de jornal, Errol Morris, o público deste filme — todos nós que, por variadas razões, repassamos aquele terrível momento, com a imagem de Randall Adams pulsando para dentro e para fora da tela. A sina de Adams é digna de um herói de Borges, como um daqueles espíritos melancólicos presos a um circuito infinito de traições metafísicas. Fazer um documentário que causasse no público esse tipo de mal-estar existencial foi uma proeza. Entretanto, em alguns momentos a narrativa se torna obscura e confusa. Não porque a vida real seja, digamos, desesperadamente ambígua, mas porque o estilo do cineasta é altamente elaborado e elíptico, ou porque Morris não se deu ao trabalho de nos oferecer a informação de que precisávamos. Os procedimentos legais, sobretudo, quase nunca ficam totalmente claros. O absurdo da experiência de Adams com os tribunais não perderia nada do seu horror se Morris tivesse se preocupado em explicar alguns pontos cruciais da lei. De todo modo, é um filme poderoso e de uma estranheza emocionante, e os eventuais excessos artísticos de Morris não podem ser tomados como sinal de indiferença pela realidade desesperadora de Randall Adams. Na verdade, o cineasta descobriu vários fatos novos, testemunhou em defesa de Adams nas audiências de apelação e obteve uma quase confissão de David Harris, que ouvimos em uma gravação na cena final do filme. (Em entrevista recente a um jornal, Harris chegou ainda mais perto de admitir claramente a sua culpa. Ele está no corredor da morte por outro assassinato e Adams continua a recorrer para obter um novo julgamento.) Morris, que sem dúvida possui uma compreensão sofisticada da relação entre arte e realidade, fez uma investigação plena e acabada no mundo real. E depois fez algo diferente no cinema: transformou o caso em poesia de tabloide numa meditação sobre a incerteza e o fascínio da violência. Se nos incomodamos com uma ou outra ninharia em sua apresentação dos fatos, a culpa é dele: A tênue linha da morte nos transforma a todos em detetives obcecados. Publicado originalmente na revista The New Yorker, setembro de 1988
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Dedicação aos homens dedicados Eduardo Baggio
Fast, Cheap & Out of Control é um filme que não se concentra em um fato chamativo ou em uma situação de contornos dramáticos. Na verdade, nem sequer centra-se em um único fato ou em um mesmo tipo de fato ou de personagem e isso pode causar certa estranheza. Por sinal, é justamente um tipo estranho de dedicação que norteia o filme, tanto a dedicação de Errol Morris a pessoas que, apesar de peculiares, provavelmente não chamariam a atenção de outros cineastas, como a dedicação desses personagens aos seus mundos particulares delineados por suas atividades profissionais. Com o olhar aguçado, típico de um detetive, Morris encontra o que há de comum em um treinador de animais selvagens (Dave Hoover), um estudioso de uma espécie rara de mamíferos conhecida como rato-toupeira-pelado (Ray Mendez), um cientista de robôs (Rodney Brooks) e um jardineiro especializado em topiaria — um tipo de escultor de plantas — (George Mendonça). Todos são sonhadores envoltos em extrema dedicação ao que fazem. Nas primeiras imagens do filme, acompanhadas de uma trilha sonora orquestrada, temos um rápido contato com as atividades e campos de atuação dos quatro personagens. Logo em seguida, Morris nos coloca diante de uma grande elipse temporal ao vermos trechos de King of Jungleland — série de filmes produzidos pela Republic Pictures na década de 1930 —, que vai sugerir a ideia de alguém que vive entre os animais selvagens e servir de ponte para a apresentação do domador de circo, Dave Hoover. Ele está sentado, olhando direto para a câmera, e conta que desde criança queria ser um treinador de animais selvagens, que queria ser como Clyde Beatty, um famoso domador. É como se Hoover tivesse optado por dedicar sua vida a uma imitação, à busca de ser tão corajoso e famoso como Beatty. George Mendonça é um jardineiro topiário que trabalha constantemente em um enorme jardim de formas variadas. Também com olhar direto para a câmera, ele diz, para explicar sua profissão, que o que tem que ser feito tem que ser feito. Mendonça usa de imensa precisão e agilidade para esculpir animais a partir das plantas e afirma que seu processo de criação passa por olhar para as plantas e procurar a forma de um animal que já esteja surgindo naturalmente. Depois basta tirar o que está sobrando. É um homem dedicado a uma tradição, dedicado a um trabalho que já era feito antes e que lhe foi transmitido.
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Ray Mendez, o especialista em ratos-toupeira-pelados, conta sua experiência infantil em um clube de estudo de insetos e frisa que a vida social dos insetos era considerada totalmente diferente da vida social dos mamíferos até a descoberta dos ratos-toupeira-pelados, que são mamíferos mas vivem em uma sociedade semelhante à dos cupins. Para ele, esse tipo de organização social faz com que as pessoas olhem para esses pequenos mamíferos em busca de semelhanças sociais com os humanos, em uma espécie de projeção. Rodney Brooks, o cientista de robôs, talvez tenha a profissão mais comum dentre os quatro personagens, mas é também muito incomum na forma como transfere aos robôs uma espécie de livre arbítrio tipicamente humano. Ele diz que deixa os robôs seguirem suas naturezas, em uma sugestão de alteridade incomum para uma máquina. Morris opta por uma estrutura fílmica que mescla entrevistas, ambientes que envolvem os personagens e suas atividades profissionais e elementos externos aos universos abordados. Esses elementos são dados por imagens que fazem o papel de agregadores de valores não realistas, ou seja, de valores presentes, por exemplo, em cenas de filmes ficcionais que funcionam como interpretações do diretor sobre as situações vividas pelos personagens. Apesar de tratar de personagens que têm vidas absolutamente isoladas, Morris monta falas de um com imagens de ações e ambientes de outro. Temos, por exemplo, falas de Brooks sobre o robô com imagens de circo. Esta é uma forma de criar relações entre os personagens, mas também é uma forma de produção de associações mais livres, menos denotativas, que solicitam do espectador atenção e capacidade de correlacionar as ideias apresentadas. Um dos grandes méritos de Morris é justamente conseguir trabalhar com essa montagem que mistura os personagens sem tornar o documentário confuso ou fugidio. Cada uma das profissões dos quatro personagens, por mais particulares que sejam, vão ganhando proximidade com o espectador. Passamos a sentir um forte sentido de existência, de presença, em cada uma das narrativas individuais do filme. Os trabalhos desenvolvidos por eles nos são mostrados em seu sentido infinito, que foge da finitude dos indivíduos. Como diz Hoover, é mais fácil domar animais selvagens do que assistir a alguém fazendo isso, principalmente porque quem ele vê domando é uma jovem que dará sequência ao seu trabalho. E da ideia do poder de sequencialidade surge um modelo fílmico que articula imagens produzidas pela equipe de realização do filme com trechos de filmes ficcionais antigos, com imagens de arquivo e com trechos de desenhos animados. Em princípio, estes últimos não seriam materiais típicos de um documentário, pois
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não estabelecem a famosa relação com o estar fenomenológico da câmera nos ambientes que remetem ao que o filme aborda. Também em divergência com a prática mais comum em documentários, Morris produz outras mesclas: imagens em cores com imagens em preto e branco, cenas em câmera lenta com outras aceleradas, enquadramentos tradicionais com outros de inclinações incomuns. No entanto, trata-se de um filme que vai aos sonhos e é permeado por eles. Os personagens enfatizam a beleza da dedicação pessoal, do amor por uma atividade profissional, tal qual a do cineasta que se dedica a eles e torna-se o quinto personagem sonhador. Eduardo Baggio é documentarista, professor do curso de cinema e vídeo da fap-Unespar e pesquisador de cinema com mestrado e doutorado na área.
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No “fora de campo” da história: a entrevista como método Patricia Rebello Quando a lenda é melhor do que a realidade, imprima-se a lenda. (O homem que matou o facínora, 1962) Em tempos de simulações, de programas, de oráculos, de roteiros, de enquetes, de previsões e precauções, para que outro presente pode nos abrir o cinema documentário? (…) Diante de milhões de telas de televisão acesas dia e noite ao redor do mundo, como falar, dizer, compreender, como ver propriamente aquilo que nos chega e como representar sem acrescentar, à vaidade de um ruído, o ruído das vaidades? (Jean-Louis Comolli, 2004, p. 7)
Documentários são narrativas desenhadas nos tênues limites entre realidades e lendas, fatos e ficções, e que procuram não tanto dar conta de histórias, mas desdobrar pontos de vista e possibilidades de entendimento, ressaltar que aquilo que é registrado “o é dentro de um dispositivo que, para ser filmado, se transforma em um sistema de signos diferentes, altera-se, modifica-se e restitui-se outro” (Comolli, 2012, p. 20). Talvez, hoje, a única maneira de pensar o documentário seja a partir da conjugação dos espectros do espetáculo e do acontecimento, da dúvida como a única certeza, no espaço entre a cena que se organiza para ser vista e aquela que se desorganiza quando se descobre observada. Pensar essas narrativas, enfim, a partir de um questionamento não apenas das histórias que são contadas, mas daquilo que se escolhe deixar de fora. Contudo, diante do volume de telas que informam e formam o cotidiano, como parar diante de uma imagem e pensar o que ficou de fora, o entorno e o contexto do qual ela foi recortada? Ao comentar o lugar do espectador contemporâneo, o crítico e realizador de cinema Jean-Louis Comolli alerta para uma “perda de desejo pelo fora de campo”, proporcional ao desejo de tudo saber, tudo compreender a partir da proliferação das imagens. As metamorfoses impostas ao cinema pela indústria do espetáculo, escreve, “conduziram-no, paradoxalmente, a se perder como cinematografia ao se aproximar do fantasma de ser o ‘espelho’ da vida, ao se submeter à média da percepção humana ordinária” (Comolli, 2012, p. 12). Nesse sentido, como devolver ao cinema a riqueza deste mais que se inscreve no menos? Tal é a experiência do espectador, observa Comolli: “ser confrontado com aquilo que ele não vê. Como ver que o quadro é um recorte? (…) O recorte é evidentemente o que torna não visível a porção de visível que não está em quadro” (p. 16).
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O presente artigo investiga a maneira como essa relação entre visibilidades se desdobra em dois documentários de Errol Morris, Sob a névoa da guerra (2003) e O conhecido desconhecido (2013). Utilizando a entrevista como método, Morris produz uma reflexão sobre o fora de campo como espaço/contexto fundamental para a compreensão daquilo que se produz sob a luz. O arcabouço teórico utilizado para a reflexão dos filmes passa pelas ideias desenvolvidas pelo professor e pesquisador americano Bill Nichols em torno de modos de representação no filme documentário. 1. O documentário participativo: cinema da presença Diferentemente de um recorte que pensa uma hermenêutica das imagens em campos distintos (verdadeira/falsa, real/imaginária), os modos de documentário arranjados por Bill Nichols estão interessados, sobretudo, na organização cinematográfica do pensamento. Documentários, escreve o autor, “selecionam e arranjam sons e imagens de formas distintas, utilizando técnicas e convenções cinemáticas específicas”. Ou seja, mais que modelos narrativos de algo que se encerra no momento da organização das imagens (a edição), trata-se de uma tentativa de delimitar instrumentos e posturas para atravessar e produzir diferentes atores sociais (o diretor, seus personagens, o mundo como cena e, até mesmo, o espectador). Das seis categorias inventariadas por Nichols [1], o cinema de Errol Morris corresponde ao que se convenciona chamar de modo participativo. Surgindo em meados dos anos 1960, com o advento das novas tecnologias que permitem a gravação em locação com som sincronizado (especificamente, as câmeras portáteis com gravador acoplado), esses documentários se distinguem, primeiramente, pelo uso da entrevista como método de captura do real. Em seguida, podemos apontar o uso de material de arquivo (articulado às falas dos sujeitos) como o segundo elemento que caracteriza mais fortemente esse tipo de documentário. Entrevistas são sofisticados modelos de encontro social nos quais, em uma primeira instância, duas verdades, ou dois desejos de verdade, disputam o mapeamento de uma história. Ferramenta recorrente na construção da narrativa jornalística, na qual quase sempre aparece como figura de retórica a legitimar um conteúdo previamente estabelecido no modo participativo, a entrevista, contudo, permite ao realizador interagir: [1] Em Introdução ao documentário, Bill Nichols estabelece seis modos de representação nessa forma de cinema: modo expositivo, modo poético, modo observacional, modo participativo, modo reflexivo e modo performático.
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(…) com seu personagem no lugar de inobstrusivamente observá-lo. Questões surgem de entrevistas ou conversas; o envolvimento surge de uma forma de colaboração ou confronto. O que acontece diante da câmera se transforma em índice da natureza da interação entre realizador e personagem. Esse modo flexiona a formulação ‘eu falo sobre eles para vocês’ em algo que se aproxima bastante de um ‘eu falo com eles para nós (eu e você)’, na medida em que a interação com o realizador abre para nós uma janela específica sobre uma porção particular do mundo. (Nichols, 2010, p. 179-180)
Para além de uma observação distanciada sobre o mundo, escreve Nichols, “o realizador destes documentários pratica uma espécie de ‘observação participativa’, que compreende um complexo gesto de engajamento e separação com o presente imediato do registro”. Se, por um lado, os documentários de observação se preocupam em oferecer ao espectador a sensação de estar testemunhando diretamente uma determinada situação, sem a mediação do realizador, o documentário de participação “oferece uma sensação de como é para o realizador estar em uma dada situação e como esse fato altera a própria situação como resultado” (Nichols, 2010, p. 181). Um tipo de documentário em que o sentimento de presença do realizador como parte da dinâmica do contexto, como negociador em meio ao processo de trocas, é extremamente importante: A sensação de presença física, mais que de ausência, que surge da troca entre realizador e personagem com o som sincrônico coloca o realizador ‘na cena’. Esperamos que o que iremos aprender surgirá da articulação da natureza e da qualidade do encontro entre o realizador e a personagem. Podemos ver, e ouvir, o realizador atuar e responder no ato, na mesma arena histórica que os personagens do filme. (Nichols, 2010, p. 184)
Mas no que implica participar do jogo? De que maneira iluminar essa participação permite modificar nossa visão de mundo? Questões que nos deixam pensar a sofisticação deste dispositivo: ao encarnar o papel do espectador diante do acontecimento, lançando luz sobre as próprias condições de realização do filme, o realizador descobre a entrevista como mecanismo que “desprende um engajamento situado, interação negociada, encontro emotivo denso” (p. 117). Porque considera que ser espectador do processo é parte irredutível do próprio processo enquanto coisa e que estar ciente disso constitui parte do que se chama conhecimento; porque incorporam a figura do espectador à própria narrativa, os documentários participativos desafiam nossas certezas e nos
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convidam, reiteradamente, a pensar o mundo como um conjunto de sujeitos e sintomas em movimento. Além da entrevista, um segundo elemento constitutivo dos documentários participativos, nos termos propostos por Bill Nichols, seria o uso de imagens de arquivo articuladas à fala dos personagens, movimento que ora permite a ressignificação das imagens, ora reitera seu valor simbólico. De uma maneira ou de outra, é inevitável um exercício do olhar da parte do espectador, um gesto de parar sobre a imagem e repensar seu próprio conteúdo, aquilo que cabe e aquilo que extravasa. Nas palavras do autor, a ênfase na participação se desloca da interação entre realizador e personagem para uma outra entre o espectador e o material reunido. Esses documentários de banco de dados [2] ocupam um território muito fértil entre a estrutura amplamente aberta do arquivo em si e a estrutura bem mais linear do documentário tradicional. (Nichols, 2010, p. 180)
Se por um lado o gesto do documentarista de retomar as imagens e jogar com seus significados em diferentes contextos não aparece, nos termos de Bill Nichols, engessado dentro de um determinado período histórico [3], por outro ele está fortemente associado a um momento particular [4]. A partir dos anos 1950, no contexto do pós-guerra europeu, documentários marcados por uma perspectiva de reflexividade sobre o mundo manifestam um desejo indiscutível do cinema de pensar suas próprias condições de produção. François Niney, pesquisador associado à universidade Paris 3 — Sorbonne Nouvelle, comenta que a retomada do papel da montagem, que no documentário, àquela altura, havia se “acomodado” no formato da narrativa clássica, foi profundamente significativo, reinventando não apenas o diálogo “entre a voz e as imagens, mas também o diálogo entre as imagens e a reflexão que elas produzem a partir do interlocutor, entre essa voz off e nosso discurso interior via imagens (Niney, 2002, p. 101). Com isso, continua o autor, “a atualidade das imagens é como que ‘dobrada’ pelo discurso que as relê, se abre (e nos abre) para a história”. [2] Database documentaries, em tradução livre. [3] Entre os filmes aos quais se associam os processos do modo participativo cabem desde Portrait of Jason (1967), passando por Shoah (1985) e Roger e eu (1989) até Tarnation (2003) e O homem urso (2005). [4] Ainda que não associe diretamente os métodos a qualquer período histórico específico, o próprio Bill Nichols comenta que uma possível “variante” do modo participativo pode ser encontrada nas práticas do cinema verité francês, cujo maior expoente talvez seja o emblemático Crônica de um verão (1960), de Jean Rouch e Edgar Morin.
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2. Errol Morris: notícias de algumas guerras particulares Assim como a dureza, o desconsolo e a profunda falta de sentido de uma guerra estão na raiz da reinvenção das práticas do documentário em sua relação com o mundo em meados do século 20, é também em busca de uma compreensão em torno das práticas que produzem o mundo assim como o conhecemos que se desenvolvem os dois documentários de Errol Morris que comentaremos neste texto, Sob a névoa da guerra e O conhecido desconhecido. Desde o final dos anos 1970, quando começou a realizar documentários, Errol Morris vem se notabilizando por uma coleção de protagonistas exuberantes, que incluem um zelador de cemitério de animais, um fazendeiro de minhocas, um inventor de mecanismos de execução e uma ex-miss sequestradora de namorados mórmons [5]. O respeito pela escuta do outro, a compreensão de que é preciso oferecer espaço para que o personagem encontre verve própria, e se consolide enquanto narrativa, estão presentes desde os seus primeiros filmes: “escutar o que as pessoas estão falando nem era tão importante”, diz o realizador em um longo perfil publicado na revista americana The New Yorker em 1989, “mas era importante olhar como se estivesse escutando o que as pessoas estavam falando”. Todavia, é no final dos anos 1980, com o documentário A tênue linha da morte, uma investigação jornalística com ares de filme noir, híbrido de documentário e ficção, que mistura entrevistas e acontecimentos reencenados para reconstruir (e desvendar) o assassinato de um policial em Dallas, que Morris consolida verdadeiramente seu estilo. Para além da elaborada forma de contar histórias, o realizador também é celebrado pelo uso de um mecanismo para realizar as entrevistas, o Interrotron. Combinação de teleprompter e jogo de lentes, ele permite a Errol Morris conversar com os entrevistados de maneira que estes pareçam estar olhando diretamente nos olhos do espectador. “Nós todos sabemos quando alguém realiza contato visual; é um momento de drama”, comenta o realizador sobre o aparelho: Pode ser um serial killer nos contanto que está prestes a nos matar; ou alguém apaixonado se dando conta de um instante de afeto. Não importa, é um momento de valor dramático. (…) É uma parte essencial da comunicação. E, mesmo assim, se perde nos modelos padrões de realizar entrevista. Isto é, até o Interrotron. (site pessoal do autor)
[5] Respectivamente Sob a névoa da guerra (2003), Vernon, Florida (1981), Mr. Death: A ascensão e queda de Fred A. Leuchter Jr. (1999) e Tabloide (2010).
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Separados por dez anos, Sob a névoa da guerra e O conhecido desconhecido consolidam e levam a um novo patamar o modo como Errol Morris realiza documentários. Em ambos os casos, as narrativas são elaboradas sobre entrevistas articuladas a imagens de arquivo (que ora são referendadas, ora são questionadas pela fala); em ambos os casos, as ideias e noções que surgem destas articulações ganham formas em sequências de ficção criadas especialmente para os filmes. E se ao longo de toda sua obra, comme il faut nos documentários participativos, Morris se tornou celebrado por oferecer ao espectador a sensação de como é estar na situação mesmo do filme (ao permitir ao espectador ter a experiência do face a face com o entrevistado) e como essa presença é parte indissociável daquilo que está acontecendo, os protagonistas destes documentários, mais uma vez, surpreendem por aquilo que nos permitem revelar da cena. Bem mais que sujeitos curiosos, são raposas velhas no ofício da entrevista e não se deixam intimidar ou enganar facilmente. E aquilo que falam, e como falam, tiveram profundas repercussões para que o mundo seja, hoje, aquilo que conhecemos. Separados por dez anos, Robert McNamara e Donald Rumsfeld criam um efeito espelho que mostra o enrijecimento do poder em pura potência de repetição. Ambos atuaram como Secretários de Defesa do governo americano — McNamara, de John Kennedy e de Lyndon Johnson, entre 1961 e 1968; Rumsfeld, de George Bush, entre 2001 e 2006. Ambos tiveram papel fundamental no desdobramento de duas guerras que modificaram de forma indiscutível a cartografia mundial (Vietnã, no caso de McNamara, Iraque, no que se refere a Rumsfeld). Ambos se preocuparam em documentar freneticamente, e em enorme quantidade, suas atividades. Ambos transformaram notas, bilhetes, memorandos, agendas, recortes e rabiscos randômicos em narrativas que, de certa maneira, se ocupam em oferecer um certo tipo de conhecimento a partir da experiência[6]. E, por fim, ambos falam com precisão e firmeza, e entregam para a câmera um discurso que tem bem pouco de espontaneidade e muito de performance. Há quinhentos anos, ao escrever o manual de manutenção do poder para príncipes a partir de uma noção de Estado como forma de organização da sociedade, Maquiavel observava que, no que se refere às qualidades pelas quais os homens, e sobretudo os príncipes, são louvados, na impossibilidade de conseguir ter todas aquelas consideradas boas, “é necessário ser prudente e saber fugir à [6] Sob a névoa da guerra é “baseado” em livro de autoria do próprio McNamara, In Retrospect: the Tragedy and Lessons of Vietnam; O conhecido desconhecido, no livro Unknown Known: A Memoir, do próprio Rumsfeld.
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infâmia dos vícios que podem lhe tirar o Estado” (Maquiavel, 1996, p. 92). Entre estes vícios é possível que esteja aquele da vaidade e da impossibilidade de sair do próprio personagem para si inventado. Tanto McNamara quanto Rumsfeld se mostram impenetráveis em seus discursos de concreto, sinalizando uma incapacidade quase total de se entregarem à entrevista como um encontro social, retomando as ideias de Bill Nichols. É precisamente neste momento, quando nós, espectadores, somos colocados face a face com estes personagens, que nos é dado experimentar o drama que Morris diz se perder na maioria das entrevistas: longe de uma noção de exclusão do mediador da conversa, de uma filosofia de documentário que acredita na não intervenção do cinema no mundo, o que se materializa em imagem é uma espécie de antropologia instantânea do sujeito, que permite ao espectador percorrer o olhar: do discurso em direção à expressão dos olhos, para o franzido da testa, para a maneira como a língua se comporta em relação aos lábios e dentes ou como reage uma sobrancelha assustada. Uma investigação que conjuga fala e face. Como ele já havia comentado no perfil da The New Yorker, não importa tanto o que se fala, mas como se fala. Patricia Rebello é Doutora em Comunicação Social pela eco/ufrj. Professora adjunta da Faculdade de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (fcs/Uerj). Membro do comitê de seleção do É tudo verdade Festival Internacional de Documentários. Bibliografia Comolli, Jean-Louis. Corps et cadre: cinema, éthique, politique. Lagrasse: Éditions Verdier, 2012. Maquiavel, Nicolau. O Príncipe. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996 (coleção leitura). Nichols, Bill. Introduction to Documentary. 2ª ed. Bloomington & Indianapolis: Indiana University Press, 2010.
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O excesso e suas implicações em Procedimento operacional padrão [1] Mariana Baltar
No centro do quadro, a luz desenha um círculo em meio à escuridão. Nele, um homem nu, coberto com o que parece ser sua cueca, está a se contorcer, sentado no chão molhado. O som grave da trilha sonora mistura-se à voz off do personagem, que reconta o episódio encenado. O “Lobo”, prisioneiro capturado em Abu Ghraib, está sendo interrogado por duas agentes militares que servem na prisão iraquiana, agora sob o controle dos norte-americanos. No canto do quadro, veem-se um par de pernas e um coturno militar. Corte seco — temperado por uma batida de tambor — para um primeiro plano do corpo do torturado refletido na água. Em slow motion, o coturno anda à frente do rosto atônito do rapaz. Em outra cena, logo adiante (em torno de 29 minutos do filme), um primeiríssimo plano na altura do chão nos coloca frente a frente com o sujeito capturado da cena anterior arrastando-se, ainda nu, no concreto da cela. Ruídos de portas batendo ambientam a sequência. Trata-se da primeira reencenação (reenactment) do documentário Procedimento operacional padrão, dirigido por Errol Morris em 2008, e, conforme vou argumentar no presente artigo, é, sem dúvida, um excesso. Dizer isso é apontar não uma falha na economia narrativa do documentário, mas um procedimento, estético e político, de incorporação dialógica de marcas estilísticas de gêneros narrativos que se estruturam com base no modo de excesso. Correlacionar obras como as de Morris com o excesso, e de certo modo com a matriz popular, não é uma abordagem totalmente original em relação ao seu cinema. Algo já se falou sobre tal diálogo com a cultura massiva e sobre o papel sensacionalista de suas reencenações, e o diretor pouco esconde suas inspirações. Em mais de uma entrevista, declarou que foi influenciado tanto pelos mestres de Hollywood, como Douglas Sirk e Billy Wilder, quanto por documentaristas como Frederick Wiseman (Grundmann, 2000), e é justamente porque seu “trabalho mistura as inovações do experimentalismo com o imperativo populista da cultura tablóide” (Nunn, 2004, p. 413) que tomo um de seus filmes como nota visual [1] Este ensaio é uma versão mais enxuta e centrada no filme de Errol Morris de um artigo publicado na revista Significação. Para um aprofundamento das questões teóricas, remeto a Baltar, Mariana. Tessituras do excesso: Notas iniciais sobre o conceito e suas implicações tomando por base um Procedimento operacional padrão. In. Revista Significação, ano 39, nº38, 2012.
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exemplificadora para as considerações teóricas que aqui traço sobre o conceito de excesso e sua presença no cinema e no audiovisual. O excesso é a marca comum que leva a pesquisadora de cinema Linda Williams (2004) a definir determinados gêneros como gêneros do corpo [2], pois mobilizam um convite ao seu público a reagir sensória e sentimentalmente (e, mais especificamente, com o corpo). Tal convite é articulado na narrativa através do excesso tomado como sistema primordial das estratégias de representação e expressão. A lógica geral do excesso dá conta de uma retórica reiterativa e saturante que busca transformar tudo em imagens, não apenas corpos em ação, mas também emoções e valores corporificados. Assim, seguindo a pista dada por Williams e outros autores, com destaque para Singer (2001), percebe-se que a visualidade espetacular e reiterativa é fundamental para a retórica do excesso. Especialmente a expressão do corpo como foco primordial das máquinas do visível, encarnando assim o fascínio, o maravilhamento e a vontade de saber que estes despertam. Os chamados gêneros do corpo (a saber, melodrama, pornografia e horror) relacionam-se primeiramente ao corpo dado a ver como espetáculo e como ancoragem de uma experiência extasiástica; como atração. É fundamental entender que é o corpo colocado em ação, em movimentos que performam e expressam estados sensoriais e sentimentais, que audiovisualmente inspiram no espectador se não os mesmos estados, algo bem próximo deles. Convidam, afinal, a fluir sensorial e sentimentalmente. Os corpos se movem e se mobilizam, como coloca Williams (2004, p. 730): “the moved and the moving”. A autora ressalta a importância do compartilhamento das sensações e das emoções possibilitado — guiado — pelo encontro “obra e público”. Na minha apropriação das reflexões de Williams, argumento que tal compartilhamento responde a uma necessidade primordial do projeto de modernidade, primordial para a própria construção da ideia de sujeito moderno: as necessidades de personalizar as práticas de consumo em projeções empáticas identificatórias. Nesse sentido, o modo de excesso é pensado como as específicas articulações da narrativa, de maneira que seja possível [2] O termo “gêneros do corpo” é na verdade uma formulação de Carol Clover para o tipo de relação que se estabelece entre obra e público nos gêneros do horror e da pornografia. Williams o toma emprestado e o amplia para incluir também o melodrama, pois entende que a mobilização característica desse gênero é uma dupla articulação do excesso em termos de êxtase e de espetáculo. Assim, embora não exclua a possibilidade de outros gêneros também serem pensados como do corpo (como o musical e certo tipo de comédia), Williams, em artigo de 1991, põe-se a trabalhar os aspectos estilísticos e políticos desse elemento, usado de modo estruturante, comum aos três gêneros.
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mobilizar reações sensoriais e sentimentais da plateia. Nessa direção, funciona, por exemplo, a ideia da reiteração constante das instâncias da narrativa, como se cada elemento da encenação — desde a música, a atuação, os textos, a visualidade e as performances — estivesse direcionado para uma mesma função; ou seja, como se todas as instâncias dissessem, expressassem o mesmo. A expressão visual está, assim, a serviço de uma obviedade estratégica que toma corpo de maneira exuberante e espetacular, e no imperativo de mostrar e dizer tudo ao longo da narrativa, estabelecendo uma estratégica relação com a obviedade. A noção de obviedade deve ser entendida aqui não como um elemento pejorativo, mas como um regime de expressividade que tem papel importante no movimento pedagógico das narrativas de excesso, justamente porque traz em si a marca de uma economia reiterativa (associada ao que Omar Calabrese definiu como estética da repetição) e, com ela, a facilitação do engajamento entre obra e público. Engajar-se na narrativa pressupõe colocar-se em estado de suspensão, ou seja, estar sentimental e sensorialmente vinculado a ela. Para catalisar esse convite ao engajamento, o apelo ao visual (ao narrar a partir de imagens e sons que se estruturam como símbolos constantemente reiterados e saturados ao longo da narrativa) é elemento fundamental. Não por acaso esses gêneros formaram as bases da tradição de um cinema popular e massivo que encontra parte de seu apelo e sucesso na capacidade de traduzir a complexa e ambivalente realidade em imagens de pronta identificação e intensa afetação e engajamento. No universo melodramático, por exemplo, o apelo à simbolização e à obviedade se dá no limite da ação. Os valores devem ser mostrados de maneira exemplar, corporificados (em personagens e/ou objetos) — a virtude e a vilania, o bem e o mal —, e, por isso, são apresentados nas ações dos personagens colocados em situações de limite, ações estas que devem estar submetidas a um olhar público presentificado claramente na narrativa. Dessa maneira, sob o jugo desse olhar público, processa-se, com mais intensidade, todo um convite ao engajamento através da mobilização de sentimentos de compaixão e comoção. No caso do horror, a obviedade parece, à primeira vista, mais problemática, uma vez que uma das vertentes mais importantes do gênero liga-o a certo suspense e mistério. Contudo, para construir as sensações desse mistério, as narrativas lançam mão de simbolizações de fácil identificação e de forte apelo visual e sonoro, recuperando repertórios cristalizados no imaginário sócio-histórico e reatualizando, no nível da obviedade, os clichês do próprio gênero.
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A localização da fonte do medo e da repulsa é claramente delineada no corpo monstruoso e naquilo que Carroll (1999) conceitua como metonímia do horror, na qual a construção espacial (becos escuros e sujos onde o mal habita) agrega valor de monstruosidade ao personagem. Afinal, a construção do monstro deve se dar de modo espetacular para, com isso, posicionar os valores morais, uma vez que “o monstro é algo ou alguém para ser mostrado (monstrare), servindo ao propósito de revelar o produto do vício e da desrazão como um aviso (monere)” (Magalhães, 2003, p. 24-25). Por isso, a iconografia recorrente do gênero investe em closes de fluidos, em especial corpóreos, enquadrados sob uma luz densa que privilegia as sombras e a escuridão. No universo da pornografia, tais marcas de obviedade e simbolização se apresentam de modo um tanto diverso pelas próprias características do gênero, que cada vez mais prescinde de uma estrutura narrativa clássica em favor de uma lógica mais forte de atrações. Nela a obviedade central ao modo de excesso se fará presente no imperativo da visibilidade, que reorganiza o repertório do erotismo como explicitação, intensificando o que Linda Williams (1989) qualifica em seu livro sobre o gênero de o “frenesi do visível”. Conforme estamos argumentando, a construção de uma expressividade visual forte é uma das características fundamentais da matriz do excesso, elemento que se consolida como estratégico para a articulação de uma pedagogia das sensações através da ativação de uma espécie de saber que se processa pelo engajamento sensório-sentimental eficaz enquanto agente da percepção e da experiência da realidade. Nesse sentido, sua eficácia se dá na reiteração e saturação de símbolos que presentificam (dão corpo a) a experiência da realidade e os valores morais — a “moral oculta”, para usar uma noção presente em Peter Brooks (1995), que diz respeito à “superdramatização” da realidade em procedimentos estéticos de reiteração e saturação dos elementos materiais da narrativa. É justamente essa tessitura de excesso que se faz presente no cinema de Errol Morris e torna problemático e eficaz o seu discurso político. Em Procedimento operacional padrão, os diálogos com o melodrama e mais especificamente com o horror são operados para dar corpo e força a um discurso de denúncia da monstruosidade da atuação norte-americana ao longo da intervenção no Iraque. O procedimento operacional padrão de Errol Morris como mobilizações de excesso O norte-americano Errol Morris faz parte de um panorama mais contemporâneo do documentário, em que é a construção do discurso
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que se coloca como problema. A materialidade fílmica é organizada reflexivamente para borrar ainda mais as fronteiras dos gêneros e das tradições cinematográficas. Pastiche e paródia são elementos comuns para intensificar o questionamento, combinando efeitos estéticos diferenciados — tais como fragmentação da narrativa, animações, intervenções e descontinuidades nas imagens e nos sons. Esse cenário se vê produtivamente presente, segundo analisa Bill Nichols (1993), em um conjunto de filmes políticos de inspiração pós-moderna, com destaque para A tênue linha da morte (1987), de Errol Morris. O autor ressalta em sua análise a maneira como as marcas do documentário clássico são usadas ironicamente no filme para internalizar um questionamento do próprio estatuto do documentário como produção de um sentido verdadeiro e unívoco da realidade e sobre ela. “A tênue linha da morte se priva da aliança que prevalece entre documentário e imagens autênticas” (Nichols, 1993, p. 173). Morris consegue tal efeito colocando em uso o que na verdade é uma de suas características marcantes (seu procedimento padrão): o uso de reencenações, estilisticamente marcadas enquanto tais, como modo de questionar o estatuto da evidência e ao mesmo tempo afirmar a verdade de seu discurso fílmico. No caso específico de Procedimento operacional padrão, tais reencenações atuam como inserts de excesso, identificados estilisticamente pelas alusões, bastante óbvias, ao horror e ao melodrama. Uma das mais impactantes delas (cerca de 40 minutos do filme) reencena a tortura psicológica do prisioneiro conhecido como Gilligan (o homem preso a fios que supostamente estariam ligados a correntes elétricas que seriam acionadas caso ele dormisse ou abaixasse os braços). Chamam a atenção a luz e a trilha sonora, que emulam a fotografia do que alguns teóricos contemporâneos do horror têm identificado como torture porn, para lidar com filmes como Jogos mortais (James Wan, 2004) e O albergue (Eli Roth, 2005), justamente pelo grafismo das cenas de tortura e violência — grafismo que ao mesmo tempo explicita e excita o centro da ação violenta (excesso em seu estado clássico). Tais cenas compartilham entre si uma iluminação marcadamente escura com apenas um foco de luz amarela e densa desenhando o centro da ação do quadro: o corpo do torturado. Essa mesma estrutura está constante e obviamente presente nas reencenações do documentário de Morris. Todas as reencenações repetem um mesmo padrão, o que é muito importante para serem reconhecidas enquanto tal, enquanto inserts de excesso, eu diria. Primeiro elas são antecipadas pelas imagens reais e por depoimentos que recontam tais imagens (muito frequentemente depoimentos das agentes femininas);
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uma trilha sonora grave une significativamente a passagem da imagem real/fotografia still à reencenada, em movimento; a já mencionada luz cria uma relação de contraponto à luz branca, clara e o setting asséptico das situações de entrevista. Efeitos de slow motion (sobretudo nos fluidos corporais; por exemplo, uma gota de sangue caindo do nariz a cerca de uma hora de filme, quando um dos prisioneiros acaba morto) e ruídos dos menores movimentos do corpo pontualmente adicionados e equalizados de modo a ficarem nitidamente focalizados são claramente marcas do excesso, tal como venho delineando, amplamente usadas em todas as cerca de oito reencenações ao longo do documentário. Essa estrutura meticulosa é central para a economia do filme e para a sua eficácia no convite à afetação sensorial e sentimental do espectador. Ela aponta para uma questão fundamental: recobre de legitimidade as cenas tão obviamente reencenadas e assim fornece uma moldura autorizada para o choque do excesso das encenações. Assim, os inserts são colocados para algo mais complexo do que meramente deslocar o lugar de fala do documentário; eles não almejam questionar o estatuto do real das imagens, mas, através da sua saturação, a partir da afetação sensorial e por causa dela, bagunçar a tradicional “ordem melodramática de justiça”; questionar, politicamente, o suposto lugar heroico da força militar norte-americana. A crítica política é óbvia e não se tratava de uma voz original ou isolada — um mesmo questionamento da justificativa moral e política da suposta guerra ao terror já era corrente no ano de produção do filme (2008). Basta lembrar do filme de Michael Moore (2004) ou mesmo de menções condenatórias nos tv shows norte-americanos de maior sucesso, como er (2006). Contudo, tais críticas resguardavam a figura dos combatentes como heróis inocentes enganados a tomar parte em uma guerra não mais justificável. No filme de Morris, a crítica se volta forte e diretamente para eles, expondo ao cabo a violência como norma, como norma de guerra que é horrorificamente naturalizada. O filme, em sua dimensão melodramática, esforça-se em não generalizar sua condenação e retrata com certa ambivalência alguns dos personagens (agentes militares que serviam em Abu Ghraib). Os sujeitos que recontam os episódios, que olham e explicam as fotos e as ações apresentam-se ao longo do documentário como omissos — mais que responsáveis ativos pelos acontecimentos. Há, contudo, pelo menos um dos personagens que é constantemente construído enquanto vilão: Charles Graner Jr., personagem cuja ausência visível no documentário é
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altamente significativa (o sargento foi depois sentenciado a dez anos de prisão pela corte marcial que julgou o caso). De modo coerente com a inspiração e com o lugar cultural de fala melodramático que marca os documentários do diretor (em consonância com o imaginário cultural norte-americano), o filme de Morris certamente posiciona Graner como o grande vilão, mas também não deixa de fazer “espirrar a marca da maldade” para todos os agentes envolvidos. E o faz através dos modos como encena e costura os inserts das reencenações das torturas. Os inserts — pelo seu regime excessivo e alusivo — fazem dos militares norte-americanos o corpo monstruoso — fonte do medo e da repulsa. Embora tal construção não seja geral e irrestrita (nem todos merecem condenação; alguns, sobretudo as soldadas, são melodramaticamente traçados de modo a serem quase inocentados), ela está visivelmente presente e expressa. Portanto, o que se coloca como foco de interesse nesse caso é o procedimento pelo qual tal crítica política se apresenta: uma pedagogia das sensações articulada através do excesso e da apropriação das matrizes dos gêneros do corpo (sobretudo o melodrama e o horror). Considerações finais Poderia analisar o filme de Morris a partir de muitas outras abordagens — seu cotejo com o domínio teórico do documentário, seu lugar como peça de uma política espetacularizada, os questionamentos sobre a natureza dos dispositivos imagéticos que a narrativa fílmica e o próprio caso das fotos de Abu Ghraib levantam. Todas as miradas seriam muito pertinentes e sei que corro o risco de operar uma injustiça analítica. Por outro lado, algo se escreveu a partir de tais recortes (cf. Figueiredo, 2009; Nunn, 2004 ou a conferência proferida por Alice Maurice no encontro anual Visible Evidence em 2009). Se me aproprio da obra de forma a trabalhá-la como um caso do conceito de excesso é porque o filme opera, como tantos outros, com o tipo de procedimento estético que caracteriza o excesso. E o faz em especial estruturando-se em inserts de saturação pelos efeitos de choque alinhavados a partir de um regime alusivo que dialoga de modo intenso com o melodrama e o horror. De alguma maneira, o filme de Morris faz enxergar o excesso como potência crítica que fale de outro lugar que não o tradicionalmente moralista associado à manutenção da cultura hegemônica. Faz possível pensar a eficácia moralizante do engajamento afetivo e sensório-sentimental dissociada das constrições moralistas que as tradições dos gêneros do corpo tomaram ao longo da modernidade. Aponto, ao cabo, para as possibilidades de politizar o excesso.
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Mariana Baltar é Doutora em Comunicação, professora do ppgcom da uff e coordenadora do Nex — Núcleo de Estudos do Excesso nas Narrativas Audiovisuais. Publicou diversos artigos em revistas acadêmicas entre eles “Evidência invisível: Blow Job, vanguarda, documentário e pornografia”, na Revista Famecos (2011), e o capítulo “Weeping Reality: Melodramatic Imagination in Contemporary Brazilian Documentary”, no livro Latin American Melodrama: Passion, Pathos, and Entertainment (2009). Atualmente é coordenadora do gt Estudos de cinema, fotografia e audiovisual da Compós (Associação Nacional dos Programas de Pós-graduação em Comunicação). Bibliografia Bakhtin, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec; Brasília: UnB, 1996.
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O caçador do absurdo Paola Prestes
Errol Morris trabalhou por dois anos como detetive em Nova Iorque. Isto foi logo antes de A tênue linha da morte e durou até o dia em que ele conseguiu dinheiro para filmar. A partir desse longa-metragem, a carreira de Morris no cinema decolou e ele pôde finalmente viver de seu trabalho de diretor, sendo inclusive convidado a dirigir inúmeros comerciais de grandes empresas como 7-Eleven, Exxon, Nike, Citibank, aig e até para a bolsa de valores de Nova Iorque, a Nasdaq. Por mais que a atividade de detetive possa ser chamada de bico, ela não é desprovida de sentido na trajetória de Morris. Ele poderia ter dado aulas de música — ele é, afinal, violoncelista —, aulas de história ou filosofia, respectivamente sua graduação na Universidade de Wisconsin-Madison e seu doutorado na Universidade da Califórnia-Berkeley, ou ainda, em caso de desespero agudo, poderia ter se tornado operador de telemarketing. Mas, não. Errol Morris foi ser detetive e, reza a lenda, conseguia extrair confissões como ninguém. No documentário sobre sua vida, A Brief History of Errol Morris, de Kevin Macdonald, Morris explica esse fenômeno sucintamente: “it’s about talking to people”, ou, “trata-se de falar com as pessoas”. E nós, herdeiros e eternos tributários de Eduardo Coutinho, sabemos que falar com as pessoas e, sobretudo, escutá-las, é uma habilidade rara e complexa, além de uma das principais condições para fazer um bom documentário. O detetive Errol Morris precede o cineasta. Ele existe desde quando Morris vai atrás do assassino em série Ed Gein, que teria servido de inspiração para o personagem Norman Bates de Psicose (1960). Em Plainfield, Wisconsin, Morris tenta coletar material para um filme, mas o projeto nunca chega a sair do papel. Cineasta meio Van Helsing, Morris não caça vampiros, mas seus parentes próximos: pessoas que enterram seus animais de estimação em cerimônias esdrúxulas (Portais do céu), assassinam (A tênue linha da morte), projetam cadeiras elétricas (Mr. Death), se automutilam (Vernon, Florida), torturam (Procedimento operacional padrão), e recentemente foi produtor executivo de O ato de matar, de Joshua Oppenheimer. Em Tabloide, de 2010, ninguém mata, morre ou é enterrado. Mas, a personagem principal, Joyce McKinney, não deixa barato: é acusada de ter ameaçado seu namorado mórmon com uma arma de brinquedo, tê-lo sequestrado e acorrentado a uma cama para obrigá-lo a fazer sexo com ela por três dias. Nada mal para uma jovem ex-miss de Wisconsin que alega ter começado a namorar tarde na vida. Talvez o qi de 168, ao qual ela alude com os olhos brilhando,
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explique em parte a maquinação de envergadura transatlântica que mobilizou a imprensa marrom inglesa em 1977. McKinney ressuscitaria na mídia trinta anos depois ao mandar clonar seu cachorro de estimação na Coreia do Sul. Para Morris, um aficionado confesso de tabloides, isto faz de Joyce McKinney um personagem batizado e crismado nas páginas desse tipo de publicação. O adjetivo obsessivo já foi associado a Morris ad nauseam. Contudo, por trás dessa característica que tanto vende ingresso há o Morris ardiloso, que cultiva suas habilidades investigativas para fazer exatamente o contrário de desvendar, que busca aquilo que não faz sentido, atingindo por vezes patamares de dadaísmo cinematográfico. O fato de um dos personagens que fora condenado à morte em A tênue linha da morte ter tido seu processo revisto e ter escapado do corredor da morte por conta da investigação do filme foi mero efeito colateral da roteirização que Morris fazia do caso. A fábula da ex-miss e seu amor obsessivo por um mórmon com crises de consciência satisfaz cinematograficamente a não menos obsessiva natureza do próprio Morris, que viceja ao farejar taras e mentiras sinceras alheias. No documentário sobre sua vida, ele afirma: Acredito que somos todos protegidos da realidade pela fantasia. Nos vemos todos como os protagonistas de um drama que nós mesmos construímos. Não acho que alguém consiga ser imune a isto. Acredito que é a condição humana. O que me interessa não é nada mais que tentar capturar um pouco disso.
A busca pela compreensão dos conflitos internos do ser humano, suas ambiguidades e mecanismos de sobrevivência psicológica e emocional não é novidade seja na pintura, no cinema ou na literatura — Balzac, Flaubert ou Dostoiévsky que o digam. No caso de Morris, Tabloide é um dos exemplos mais significativos da conjugação que o diretor costuma fazer entre a pesquisa rigorosa que serve de embasamento para seus projetos e a fabulação que, em seguida, ele deixa correr solta pelo filme. Esses elementos, à primeira vista excludentes, fluem paralelamente na narrativa e, mais do que isso, confluem para desfechos insólitos. O detetive Morris faz sua lição de casa e, escorado pela abrangência de suas investigações, até certo ponto blinda seus filmes contra ataques. Pode-se não gostar dos filmes que ele faz e até considerar Joyce McKinney uma pífia versão contemporânea de Emma Bovary, mas é difícil acusá-lo de inventar os fatos que estão na origem da narrativa. Como quitutes em um tabuleiro, Morris não os deixa à sombra: coloca suas inacreditáveis descobertas (várias
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delas, aberrações) no proscênio, desviando a atenção do espectador da existência de uma segunda e mais substancial camada narrativa, onde a pesquisa é estrategicamente articulada à montagem e ao videografismo de maneira que, ao final, quem inventa, fantasia e às vezes até alucina são os personagens, não o diretor. Protetor e amigo de Morris, Werner Herzog há anos alude ao conceito de êxtase da verdade ao se referir a uma verdade maior do que a dos fatos comprováveis, ou, do que chama de “a enfadonha e irrelevante verdade dos contadores”. Com algumas décadas de atraso em relação a Ionesco, Breton e Sartre, Morris rebate com o conceito de êxtase do absurdo, que explica como sendo a confrontação do ser humano à falta de sentido da vida. Decerto as grandes questões existenciais não são tantas, e Morris tem o direito, como qualquer um, de tentar abordá-las, por mais gastas que elas estejam. Com muita perseverança, sensibilidade e um pouco de sorte, talvez reste dessas tentativas um vislumbre da eternidade por meio de uma frase, uma imagem ou um personagem que sobreviverá na memória de todos. Em O homem urso, de Herzog, Timothy Treadwell, primeiro devorado por um urso e depois pela mídia sensacionalista, torna-se um grande personagem graças à fina urdidura cinematográfica que o diretor domina como poucos. Nos eloquentes silêncios do filme, Herzog cria espaço para que aflorem as questões internas que nos assombram mansamente, como a loucura, a falta de sentido da vida e a morte. É provável que, sem o tratamento narrativo adequado, não fosse possível distinguir Treadwell de Joyce Mckinney. Mas Treadwell, a aberração, está morto e em seu lugar Herzog nos oferece o paladino da insanidade, o nobre cavaleiro que se dá em sacrifício para o expurgo coletivo do que há de pior na alma humana. Morris não possui a mesma compaixão para com seu personagem e, em vez de sacrificar sua ex-miss em altar sublime, ele a enclausura em uma torre de marfim de muralhas videografitadas. Por esse motivo, Joyce McKinney talvez tenha a longevidade de uma notícia de tabloide, ou pior, permaneça para sempre nessa condição. O que nos resta fazer é, pelo menos, não compactuar com Morris acerca deste fato: o responsável por essa condenação é ele, não Joyce McKinney. Paola Prestes é documentarista pela Serena Filmes e professora de cinema documentário.
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First Person: mais estranho que a ficção Paulo Henrique Fontenelle
Em um determinado momento do filme Magnólia (1999), de Paul Thomas Anderson, o narrador, diante de uma série de coincidências e fatos estranhos retratados no longa, fala para o espectador que “se isso fosse um filme, ninguém acreditaria”. Esse pequeno exercício de metalinguagem do filme de Anderson representa muito bem o mundo invisível em que nós vivemos, onde, diariamente, pessoas cometem atos, têm ideias apaixonadas e possuem manias e desejos secretamente escondidos dentro do sistema de normalidade aparente da nossa sociedade. São situações tão fora dos padrões da nossa limitada noção de cotidiano que quando nos deparamos com elas imediatamente pensamos: “isso não pode ser verdade”, e então elas nos demonstram que a realidade estará sempre dez passos adiante de qualquer obra de ficção, por mais criativa que ela seja. Foi o caso ocorrido em 1978, quando o público que lotava um cinema para assistir uma pré-estreia se deparou atônita com um consagrado cineasta alemão no palco comendo o próprio sapato regado a molho de cebola e uma taça de vinho tinto. O cineasta em questão era Werner Herzog que, dois anos antes, encontrava um entusiasmado estudante de cinema pedindo conselhos para realizar seu primeiro documentário. O tema do filme não poderia ser mais estranho: no momento em que o mundo se encontrava em ebulição com a Guerra Fria, com os Estados Unidos recém-saído da fracassada guerra do Vietnã e do escândalo de Watergate, e com os conflitos do Oriente Médio cada vez mais tensos, o jovem cineasta juntava uns trocados para conseguir filmar a história de um cemitério de animais numa cidade do interior dos eua. Por mais estranho que pudesse parecer aquele tema, Herzog não quis desanimar o rapaz. Ele sabia que o jovem havia abandonado os cursos de história e filosofia e que um dia tentou ser músico, mas largou o violoncelo diante das dificuldades técnicas. Sabia que ele tentava escrever um livro há muito tempo, mas nunca conseguia chegar ao final. Com medo de que ele desistisse mais uma vez, (agora na arte que ele considerava a mais preciosa), Herzog enviou-lhe um envelope com dois mil dólares e propôs uma aposta: se o jovem conseguisse concluir o filme, ele comeria o próprio sapato na noite de estreia. É o que nos remete àquela estranha sessão de cinema de 1978 quando, após o inusitado jantar, o público aplaudia a estreia de Portais do céu e o seu jovem diretor Errol Morris. Mais do que um documento sobre cemitérios de animais, o filme de Morris se utilizava de uma câmera estática para
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retratar a vida de pessoas comuns, seus sentimentos em relação a seus animais e, ao mesmo tempo em que levantava questões filosóficas relacionadas a saudade e solidão, fazia uma ácida critica ao american way of life. Vinte e dois anos depois desse inusitado evento, após uma breve carreira como investigador particular, Morris já era um cineasta consagrado com seis premiados documentários em seu currículo. Seu terceiro filme, A tênue linha da morte, de 1989, havia redefinido a linguagem e a forma de se pensar o cinema documental no mundo de tal maneira que, por conta de seu pioneirismo, foi rejeitado para o Oscar na categoria de melhor documentário daquele ano ao ser erroneamente considerado um filme de ficção. Morris nunca escondeu sua paixão pelo grande cinema de Hollywood, citando constantemente os filmes de Hitchcock e Billy Wilder como fortes referências em sua obra. Nos seus documentários, Morris se utiliza de vários recursos dos filmes de ficção, como o uso da trilha sonora, da montagem, inserções de filmes antigos e recriações de cenas com atores para realçar a emoção da história que está contando. Mas a matéria-prima principal são sempre os depoimentos e as histórias de seus personagens. Pessoas comuns que poderiam ser nossos vizinhos, amigos ou até nós mesmos e que, por algum motivo, partilhavam de ideias, paixões e manias ou foram simplesmente colocadas em situações fora daquilo que costumamos classificar como normalidade. Essa é a base da série televisiva First Person, levada ao ar nos anos de 2000 e 2001 pelos canais Bravo e ifc. Ao longo de 17 episódios, a maioria de meia hora, Morris traz a público uma pequena fração da aventura humana ao contar histórias tão distintas que vão desde um senhor que dedica sua vida a tentar achar uma lula gigante (e deseja morrer sendo comido por ela), passando por um advogado da máfia, uma mulher que limpa cenas de crime, um homem que vive de processar empresas de cartão de crédito, até uma moça que se apaixona por serial killers matadores de mulheres. Apenas um dos episódios não tem como personagem principal um ser humano. Em The Parrot, conhecemos a história de Max, um papagaio que serviu como testemunha-chave num caso de assassinato. Por mais inusitado que o acontecimento possa parecer, a alma do filme se concentra não na ave, mas no depoimento das pessoas que estiveram em volta do caso, suas dores, dúvidas e angústias. Em cada um desses pequenos filmes, os entrevistados começam a contar suas histórias com uma linha de raciocínio perfeitamente lógica. Porém, à medida em que a história se desenrola, nos vemos diante das mais inusitadas justificativas para cada atitude considerada fora dos padrões, como se fôssemos espectadores privilegiados de uma sessão de
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análise. São depoimentos profundamente honestos e sinceros, e dificilmente passamos impunes por eles. Não há como não sentir compaixão, por exemplo, pelo Sr. Saul Kent (episódio I Dismember Mamma), um proprietário de um centro de criogenia que congelou e escondeu da polícia a cabeça de sua própria mãe, na esperança de um dia ressuscitá-la, nem que para isso ele precise esperar cem mil anos. Nesse momento, estamos tão envolvidos com a história daquela pessoa que quando Errol Morris intervém e pergunta pela segunda vez “mas onde está a cabeça da sua mãe?”, demoramos um pouco para perceber o grau de absurdo contido nessa frase. O segredo para a força desses depoimentos e dessas histórias está principalmente na maneira delicada como o diretor conduz suas entrevistas e a forma generosa de tratar seus entrevistados. Mesmo quando ele questiona determinada atitude de um personagem, ele o faz sem qualquer tipo de julgamento ou censura. O objetivo é focar a atenção em como o entrevistado se vê e não em como nós o enxergamos. Segundo as palavras do diretor, “talvez a idéia de pessoas comuns seja apenas algum tipo de imagem de fantasia que temos de pessoas que não corresponde verdadeiramente à vida real. Essa é apenas uma possibilidade”. Outro grande trunfo da série é a estreia do mais novo equipamento de filmagem de Morris: o Megatron, uma evolução do seu invento anterior, o Interrotron, através do qual o personagem é levado a falar diretamente para a câmera numa relação olho no olho com o espectador. Em First Person, o uso dessa tecnologia é levado às últimas consequências, usando um total de dezessete câmeras que possibilitam uma variedade muito maior de ângulos. O invento é uma espécie de teleprompter, no qual o entrevistado vê a imagem do rosto de Morris projetado em frente à lente da câmera, enquanto ele assiste ao inverso em outro local da sala separado por uma cortina. Morris costuma se comparar ao Mágico de Oz ou a “o Homem por trás da cortina” e aponta que a grande vantagem do método, além de estabelecer uma comunicação mais eficaz com o espectador, seria eliminar a inibição entre entrevistado e entrevistador que uma relação face a face poderia causar. Podemos perceber em First Person que, ao contrário dos seus filmes, Errol Morris se mostra muito mais presente não apenas com a sua voz, mas também com a sua imagem refletida no Megatron. A intenção do diretor é revelar não apenas a história daquelas pessoas, mas o processo da entrevista como um todo. Dos 18 episódios gravados de First Person, apenas um acabou não sendo levado ao ar. Sua entrevista com ex-Secretário de Defesa norte-americano Robert McNamara rendeu tanto que acabou sendo transformada no filme Sob a névoa da guerra, que
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lhe rendeu finalmente o Oscar de melhor documentário em 2003. Parece que, enfim, a academia compreendeu que a realidade às vezes pode ser mais surpreendente do que a ficção. Em seu último trabalho para o cinema, O conhecido desconhecido, Morris pergunta ao ex-Secretário de Defesa Donald Rumsfeld o porquê dele ter aceitado dar a longa entrevista e ouve como resposta um sincero “eu não sei”. A dificuldade de satisfazer essa pergunta reside no fato de que a resposta não está nas palavras e sim na alma. As pessoas têm necessidade de falar, expor seus dramas, compartilhar seus sentimentos, seja na busca de aceitação, na necessidade de compartilhar uma alegria, uma dor ou um sonho, ou na busca do perdão e da redenção. E é isso que nos une na estranheza da vida. Estamos todos ligados; eu, você e os personagens da série First Person e dos filmes de Morris na inevitável necessidade humana de nos sentirmos amados. Paulo Henrique Fontenelle é diretor e editor no Canal Brasil. Dirigiu e produziu o curta Mauro Shampoo: jogador, cabeleireiro e homem e do longa Loki: Arnaldo Baptista. Em 2013 assinou a direção, a montagem e o roteiro do premiado Dossiê Jango. Atualmente finaliza o documentário sobre a cantora Cássia Eller.
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Errol Morris em seis movimentos Simplício Neto
Falaremos aqui de meia dúzia de curtas de Errol Morris que podem servir de exemplo para detectar linhas importantes de seu estilo e de sua política, assim como de sua proposta ética e estética. Tais filmes parecem ter diferentes temáticas, mas também apontam para questões comuns. Uns trazem a marca do filme de encomenda de forma mais evidenciada, outros parecem ser proposições mais puramente autorais, mas todos apresentam gradações neste espectro. As fronteiras entre documentário, jornalismo de opinião e material institucional e publicitário se confundem nesses seus curtas mais ainda do que em seus longas-metragens. Survivors (2008) Comecemos com Survivors, de 2008. Nele vemos depoimentos de anônimos que contam suas experiências com o câncer, depoimentos montados de forma a fazer uma comovente reflexão sobre morte e memória. Contudo, é uma reflexão não desprovida de ironia, e uma ironia que emerge tanto dos próprios depoimentos quanto da montagem e da intervenção autoral de Morris. O filme é curto e as falas são extremamente fragmentadas. As mínimas interjeições, comentários de uma só punch line e os balbucios e explosões de choro são costurados uns com os outros como se os entrevistados estivessem fazendo um jogral de frases soltas, que vão passando a fazer sentido conforme a montagem avança, o que poderia apontar para um certo desprezo em relação à construção frasal própria de cada individuo em separado. O encadeamento de frases e ideias de cada um fica reservado ao material bruto, ao que se perdeu de nossa visão. O cirurgião montador Errol Morris desmembrou-os, destacando as partes úteis para o discurso que ele mesmo quer construir, arremedando as dolorosas descrições de desmembramento feitas no filme pelos ex-pacientes de câncer. É uma dor a princípio irrepresentável essa da perda de parentes, de membros da família e mesmo de membros do próprio corpo. Mas em Survivors, o desmembramento é perceptível visualmente não só na montagem, mas dentro de quadro, quando um dos personagens mostra a prótese que substituiu sua mandíbula superior. E o que justifica ver um filme como esse? Essa operação de montagem, segundo o famoso texto de André Bazin, devia ser proibida. Para o crítico francês, os diretores soviéticos que primeiro louvaram o poder da montagem
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cinematográfica dissecaram a integridade do mundo, segmentando-o em fragmentos. É em direção aos teóricos soviéticos elogiadores da montagem, como Eisenstein, que Bazin vai lançar críticas como as que estão presentes no artigo “A montagem proibida”. Bazin aqui defende os cineastas do neorrealismo, seus contemporâneos que consagravam a duração do plano-sequência sem cortes como forma de criar uma estética realista louvável. Já os cortes abundantes e evidentes da montagem preconizada pela escola russa interromperiam o fluxo do real. Só o plano-sequência permitiria ao diretor o respeito à integridade espaço-temporal do mundo e, portanto, permitiria, assim, revelá-lo (Bazin, 1991). Em Survivors, Errol Morris assume e explora as potências recriadoras da montagem para, desmembrando a dor e a comoção individuais, dar força à exposição de uma dor maior coletiva com a qual todos podemos nos identificar, entender e respeitar. Pelo processo narrativo, a dor adquire um caráter de redenção, de luta gloriosa pela sobrevivência de um grande número de pessoas acometidas pelo câncer. São sobreviventes heroicos mais do que vitimas sofredoras os personagens que conseguem, junto com Morris, fazer graça da coisa toda. Daí o óbvio título que resume a mensagem do filme. A reunião de fragmentos de discursos se torna paralela à reconstrução corajosa que essas pessoas fizeram dos cacos de suas próprias vidas. É essa operação vitoriosa que Morris imita por fim, essa empreitada declarada por um dos personagens: se sua vida mudou completamente, mudou para melhor. Constrói-se com isso uma espécie de monumento audiovisual a essa dor e a esse trauma que, de tão grande que é, quando acomete um, acomete toda a humanidade, a quem quer que ouça falar dele. Em Survivors, lembrança é sobrevivência, rememoração é reconstrução. O teórico alemão Andreas Huyssen (2000, p. 67-68) nos lembra a importância deste tipo de trabalho, aliás: A rememoração dá forma aos nossos elos de ligação com o passado e os modos de rememorar nos definem no presente. Como indivíduos e sociedade precisamos do passado para construir e ancorar nossas identidades e alimentar uma visão do futuro. Na esteira de Freud e Nietzsche, contudo, ficamos sabendo o quão escorregadia e suspeita pode ser a memória pessoal; sempre afetada pelo esquecimento e pela negação, a repressão e o trauma.
O medo da morte e do esquecimento é combatido em Survivors em momentos como quando Morris perfila uma sequência de pronunciamentos sobre datas. As datas de quando cada personagem
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descobriu que tinha câncer ou de quando seu parente ou o pedaço do seu corpo foi perdido. É como se lêssemos uma lista de nomes e datas de morte em um memorial de guerra, algo fácil de ser encontrado nas grandes cidades americanas. E a parede de um memorial de guerra não deixa de ser um típico lugar de visitação turística nos Estados Unidos. Diversão catártica para toda a família. Team Spirit (2012) Se Survivors é também entretenimento audiovisual, se como filme ele se junta a outras estruturas de memória pública midiatizada, como as chama Huyssen (2000, p. 20-68), tais estruturas nos ajudam a entender como “hoje, a nossa cultura secular, obcecada com a memória tal como ela é, está também de alguma maneira tomada por um medo, um terror mesmo, do esquecimento”: As próprias ajudam a compreender que este medo do esquecimento articula-se paradigmaticamente em torno de questões do Holocausto, na Europa e nos Estados Unidos, ou dos presos políticos desaparecidos na América Latina. Ambos, é claro, compartilham a crucial ausência de um espaço fúnebre tão necessário para alimentar a memória humana.
Mais do que tudo, o que vemos aqui é uma espécie de monumentalização do trauma. Em Team Spirit acompanhamos histórias sobre funerais temáticos feitos sob medida para os fãs do esporte nesse bizarro filme institucional da espn. Assim, o que para alguns é uma diversão de fim de semana, para os personagens, vivos ou mortos de Team Spirit, é um passaporte para a eternidade. Eternidade vivida sob o manto monumental de um time, uma instituição imperecível na visão destes fanáticos por esporte, ao contrário de seus corpos individuais. Mas a memória coletiva de uma sociedade não é menos contingente e instável (…). Está sempre sujeita a reconstrução, sutil ou nem tanto. A memória de uma sociedade é negociada no corpo social de crenças e valores, rituais e instituições. No caso específico das sociedades modernas, ela se forma para espaços públicos de memória tais como o museu, o memorial e o monumento.
Os símbolos do time são marcas de memória institucional, e como a instituição sobrevive ao indivíduo, nada mais garantidor do não esquecimento do que enterrar seu corpo num campo sagrado devotado ao esporte, com seu sepulcro voltado para o grande estádio, que se torna então um grande monumento, quase faraônico,
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a você mesmo, fã do esporte. Morris faz questão de ressaltar o aspecto de Egito Antigo de tal pretensão, mostrando com um gráfico tal alinhamento dos túmulos em relação ao estádio esportivo, tão perfeito quanto os da Necrópole de Gizé em relação ao poente. Os símbolos do time são também brands, marcas comerciais, e o filme pode ser arrolado ao conjunto de inúmeros filmes publicitários que Errol Morris fez, como os para a Volkswagen e o da cerveja Miller High Life. A retórica de venda do comerciante de caixões se confunde com a do vendedor da marca espn, Errol Morris. Julgamos que, acima dessa dimensão publicitária e institucional, ergueu-se a dimensão autoral de Morris. Ele nos brinda com uma narrativa sobre o que esse amor aos times e aos seus signos significa: uma batalha final contra a morte e o esquecimento. De qualquer forma, produtos midiáticos ou publicitários, calcados na memória afetiva e sentimental das pessoas, como Survivors e Team Spirit, trazem à tona sempre o problema da “oposição da memória séria à memória trivial, do modo como os historiadores às vezes opõem História e memória tout court”. Ou seja, “memória como uma coisa subjetiva”, o que não interessaria a um investigador sério do dado factual, papel que muitos jornalistas ou mesmo documentaristas se impõem sem sucesso. Mas “como não há nenhum espaço puro fora da cultura da mercadoria, por mais que possamos desejar um tal espaço”, é preciso entender que “o trauma é comercializado tanto quanto o divertimento” (Huyssen, 2000, p. 20-68). Em Team Spirit, vemos o divertimento do esporte se imiscuir na dor do funeral para torná-lo mais agradável, palatável, divertido, para “deixar a família feliz”, como diz orgulhoso um dos vendedores de caixões esportivos. “Can I say balls on television?”, diz jocosamente o personagem que perdeu um de seus testículos para o câncer, na abertura mesmo de Survivors, dando o tom do resto do filme. O tal tom errolmorrisiano, de uma ironia trágica, mas redentora. El Wingador (2012) El Wingador trabalha com imagens de cobertura ilustrativas sobre o depoimento único de uma figura humana que é uma estrela dos extraordinários espaços de celebração do ethos competitivo americano: os concursos de quem come mais. Um personagem larger than life. As imagens se tornam necessárias para dar toda a dimensão épica de aventura desse personagem. Vemos o que, de fato, ele é capaz de fazer, comendo centenas de asas de galinha ao mesmo tempo em que presenciamos outros concorrentes menos habilidosos nessa empreitada se rendendo. O espectador é então premiado com um vômito em câmera lenta de um competidor mais
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fraco, o que demonstra quão extraordinária é a habilidade de Wingador e também quão absurdo é o seu mundo. Como em Fast, Cheap & Out of Control, vemos aqui o entusiasmo do diretor pela irrupção do heroísmo na aparente anomalia de um ser humano a princípio medíocre, mas que na verdade esconde um talento, uma característica de semideus e que demonstra uma determinação invejável para alcançar seus objetivos, por mais questionáveis ou mesmo esdrúxulos que estes sejam. Aqui fica claro que seu amor às pessoas e suas idiossincrasias mais admiráveis é o que importa e por isso mesmo o aparente desrespeito e o aparente desprezo em cortar seus discursos à sua revelia, de que já falamos. Como Morris disse numa entrevista dada ao programa de tv 60 minutos: “a história não interessa, o que interessa são as pessoas”. É uma proposta parecida com a que viveu aqui nosso Eduardo Coutinho, mas Morris gosta mais de se apresentar como um garimpador de gente, de pérolas que essa gente diz, do que como um narrador. Mas, sim, por meio dessas pessoas ele narra a grande história humana. No filme tenta-se entender porque o querer vencer, assim como questões sobre o que é vencer, uma guerra ou uma asa de galinha. Como os loucos fascinantes de Fast, Cheap & Out of Control, como El Wingador, como todas essas figuras que, de tão intrépidas, soam ridículas, Morris guarda ele mesmo uma idiossincrasia notável para um documentarista. A vontade de penetrar as consciências dos entrevistados levou-o a construir um sistema técnico próprio, uma engenhoca, o Interrotron. Graças a um jogo de espelhos feito sob medida, falar para o Interrotron é menos intimidador para o entrevistado. No entanto, com o espectador se dá o resultado contrário, a relação com o personagem na tela é mais intimadora, há ali uma pessoa que lhe encara e que abre sua intimidade fazendo contato visual direto com você. O processo da entrevista foi herdado do jornalismo, da ciência, da esfera policial e do campo jurídico, lugares nos quais ele se encarna como depoimento, testemunho, declaração e interrogatório. Destas encarnações, a do interrogatório é uma das mais adoradas por Errol, daí o nome de sua geringonça. Morris assume que adquiriu sua habilidade para a entrevista e para a descoberta de figuras suspeitas nos anos que trabalhou como detetive particular. The Umbrella Man (2011) e November 22, 1963 (2013) O interrogatório como arma de confronto político está na interpelação de Robert McNamara em Sob a névoa da guerra (2003). The Umbrella Man, de 2011, e sua versão estendida, November 22, 1963, de 2013, não deixam de compor, juntos, um completo interrogatório
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sobre um interrogador, o colega de Morris e também detetive particular, Josiah “Tink” Thompson. Ambos os obcecados por crimes unem suas forças arguidoras para investigar o mais famoso crime político do século 20, o assassinato de John Kennedy. Vemos nesses dois filmes uma coleção incrível de evidências visuais: fotos, filmes amadores, materiais de registro visual variado feitos no dia e no local do crime, provas que a princípio formariam a base de toda e qualquer proposição de verdade num processo argumentativo, jurídico, etc, mas que nada, nada mesmo, revelam de relevante, que nada provam sobre o ocorrido. Eis dois filmes que esvaziam a noção do documentário como uma possibilidade de asserção, de afirmação da verdade atrás da disposição de evidências audiovisuais. A mera disposição, a mera profusão de evidências nada revela sobre a verdade histórica segundo o que depreendemos dela. Não há interpretações possíveis sobre o crime que não sejam subjetivas, míticas, por mais que sejam baseadas numa fartura de evidências coletáveis. Mas o que deveria ser frustrante para o ex-detetive Morris, que já havia conseguido libertar um homem da pena de morte, provando que todo um processo jurídico real estava errado, com seu filme A tênue linha da morte (1988), se torna uma divertida crítica a toda e qualquer pretensão de objetividade. Frente à crise das definições entre verdadeiro e falso na arte, Philippe Dubois nos fala de uma “angústia do ilusionismo”. Em relação à imagem fotográfica e cinematográfica, essa angústia gerou três tipos de subdiscursos sobre a representação realista e seus enunciados visuais: ou se assume que as imagens captadas mecanicamente são um “espelho do real” e se cria um “discurso da mímese”, que acredita na capacidade do discurso realista ser análogo à realidade, ou se acusa tais imagens de serem uma “transformação do real”, um “discurso da desconstrução” que vê tudo como pura impressão, simples efeito de codificação, de manipulação (Dubois, 2004). A investigação audiovisual perpetrada por Tink e Morris dá um curto-circuito em ambos os discursos. O discurso da mímese é fortíssimo, pois fica claro pela comparação, verdadeira acareação feita entre os diversos pontos de vista — daqueles registros que mostram a cabeça de Kennedy explodindo sempre da mesma forma —, que há um evento real, um fato ocorrido, e que as imagens em conjunto podem provar isso sem sombra de dúvida. Há objetividade nas imagens, pois o objeto é definido por uma multiplicidade de pontos de vistas que apontam para ele, mas ao mesmo tempo há uma total adesão dos filmes ao discurso da desconstrução, quando se conclui que mesmo assim a imagem pode nada dizer sobre o real e se descolar totalmente de qualquer pretensão a uma representação fidedigna da realidade. Nenhum desses filmes consegue apontar
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de onde vieram mesmo os tiros, nem quantos foram, nem quem os disparou e muito menos, claro, o porquê de tudo aquilo. Só os dois detetives particulares trabalhando em conjunto, Morris e Tink, puderam realizar o primeiro documentário que relata a mais irrefutável verdade sobre o assassinato de Kennedy: este é um crime que nunca será resolvido! 11 Excellent Reasons Not to Vote (2012) Guy Gauthier (2011, pp. 330-331) nos fala dos “interpeladores”, figuras tradicionais na tradição americana dos relatos de não ficção, nos quais “o documentário torna-se ensaio político, um meio de contrainformação, à maneira dos escritos de Noam Chomsky, evidenciando a ideologia de dominação do mundo que explica a política externa” da grande potência. A esses interpeladores Gauthier arrola Michael Moore e Errol Morris. Nos ensaios políticos dos interpeladores vemos “virulência e não conformismo” se juntado a uma “pesquisa do espetacular”, justificada pela necessidade panfletária do “engajamento social e político”. O panfleto é um gênero literário de tradição no ocidente, ligado à afirmação do jornalismo de combate, agente de consolidação do espaço público de debate na democracia moderna. Honoré de Balzac em sua célebre divisão dos gêneros do jornalismo francês pós-revolução de 1789, destaca o subgênero panfletário e não desmerece seu valor, por mais que panfletário tenha se tornado tantas vezes um adjetivo derrogatório. Segundo Balzac (1999, pp. 59-61), “quem diz panfleto, diz oposição” e adverte aos que desdenham desse estilo: “o poder, que dorme em enganosa segurança, só compreenderá seus erros contra a inteligência à luz de um incêndio iniciado” por algum panfleto, por menor que seja. Segue o grande escritor francês em sua dissecação deste tipo de trabalho artístico, informativo, político e militante: O verdadeiro panfleto é uma obra do mais alto talento, se, todavia, não for o grito do gênio (…). O panfleto deve se tornar popular. É a razão com a crítica fazendo fogo como um mosquete e matando ou ferindo um abuso, uma questão política ou um governo. O panfletário é raro; ele deve, aliás, ser impelido por circunstâncias; mas, neste caso, ele é mais poderoso que o jornal. O panfleto quer a ciência real posta sob uma forma agradável, quer uma pena impecável, porque deve ser sem falha; sua fraseologia deve ser curta, incisiva, quente e figurada — quatro faculdades que só indicam o gênio.
Quatro faculdades exercidas por Errol Morris em 11 Excellent Reasons Not to Vote. Conforme o teórico Bill Nichols (2005, p. 78-79),
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na maior parte dos documentários tradicionais, como os vistos na televisão a cabo hoje, há um comentário em voice-over, essa “voz que se dirige a nós diretamente” e que expõe um “ponto de vista de maneira explícita”. O estilo de Morris, que nos priva totalmente da voz de um narrador, no qual o que mais apreciamos é a edição de entrevistas, pode passar a algum incauto a impressão contrária, a de que há uma montagem de pontos de vistas de diversos entrevistados e nenhuma colocação própria, autoral, do diretor. Nichols, contrastando a “voz do comentário” do documentário clássico, insiste em destacar em trabalhos como o de Morris uma “voz da perspectiva”. Em filmes como este, “o argumento e a voz do filme estão incorporados a todos os meios de representação disponíveis para o cineasta, menos no comentário explícito”. Nichols entende que em A tênue linha da morte, Morris “não usa nenhum comentário em voice-over e, ainda assim, da perspectiva que proporciona, defende claramente a inocência de um homem condenado por homicídio”. Contudo, nesse caso, há sim no final de 11 Excellent Reasons Not to Vote um comentário narrativo explícito. Nesse verdadeiro panfleto contemporâneo, publicado pelo órgão de imprensa mais importante dos eua, o The New York Times, há um ataque contra os que se negam a votar na maior democracia do Ocidente. A cartela final prega enfim: VOTE! Eis um panfleto feito pra ser entendido pela massa, pelos que se identificam com as pessoas anônimas e comuns que ali discutem a questão. Trabalhando para a indústria da opinião ou para a indústria da publicidade, há em todos esses filmes a idéia de uma mental landscape, como alcunhou Morris, uma paisagem mental do cidadão comum, que é, de fato, o contínuo objeto a despertar o interesse de Morris. O que o diretor chama de mental landscapes não é só o que a pessoa diz, mas o que a pessoa pensa de si e do mundo. O mental landscape de El Wingador é a competição, o de Tink é a investigação. E todos os filmes de Errol Morris compõem, na verdade, sua mental landscape pessoal. Falamos aqui de filmes intrigantes e inspiradores, formas de apontar em que, mais do que tudo que é falado, o que interessa é a figura humana do entrevistado e sua subjetividade, seu espanto. Muito mais do que a investigação sobre quaisquer verdades históricas. E o que seria essa figura humana idiossincrática que vemos continuamente representada em seus detalhes mais absurdos e idiossincráticos senão uma projeção autoral da própria vida e do próprio trabalho deste cidadão Errol Morris? Como ele também declarou ao 60 Minutos: “Se estou sempre atrás de pessoas em situações desconfortáveis é porque sou uma delas”.
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Simplício Neto é documentarista, roteirista de tv e pesquisador de cinema. Roteirista de Dib e Neurópolis. Codiretor de Coruja e Onde a coruja dorme e diretor de Carioca era um Rio. Doutor em comunicação social pela uff, foi professor substituto em seu departamento de Cinema e Video de 2008 a 2010. Bibliografia Balzac, Honoré de. Os jornalistas. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999 Bazin, André. O cinema: ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991. Dubois, Philippe. O ato fotográfico. Campinas: Papirus, 2004. Gauthier, Guy. O documentário: um outro cinema. Campinas: Papirus, 2011.
Morris, Errol. Entrevista ao programa de tv americano 60 Minutos. Disponível no YouTube. Nichols, Bill. Introdução ao documentário. Campinas: Papirus, 2005. Ramos, Fernão. Mas afinal… o que é mesmo documentário? São Paulo: Ed. Senac sp, 2008.
Huyssen, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.
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2. ENTREVIS– TAS A canção do executor 2 Scott Macaulay Em fragmentos 10 A atuação da morte 15 Crer para ver 17 Lawrence Weschler O conhecido desconhecido: Uma entrevista com Errol Morris 29 Cronologia 33
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A canção do executor Scott Macaulay
Em 1988, Fred A. Leuchter, um engenheiro de Massachusetts que ganhava a vida desenvolvendo cadeiras elétricas mais humanas, foi contratado por Ernst Zündel, editor de vários panfletos hitleristas negacionistas do Holocausto, para conduzir uma investigação forense sobre o uso de gás venenoso em campos de concentração nazistas. Em sua lua de mel, Leuchter viajou para Auschwitz e, com sua esposa no carro lendo romances de Agatha Christie, fez uma raspagem ilegal nos tijolos, coletando amostras de argamassa e trazendo-as para os Estados Unidos. Ao procurar nessas amostras vestígios de gás cianeto, Leuchter provou que o Holocausto nunca aconteceu. A partir dos resultados, Zündel publicou o Relatório Leuchter, que vendeu milhões de exemplares em todo o mundo e que posteriormente foi julgado, no Canadá, como disseminador de “falsidade histórica”. Leuchter, é claro, foi a principal testemunha de defesa, e sua ciência inconsequente e desleixada foi completamente desacreditada no julgamento. No processo, Leuchter perdeu sua esposa e sua reputação, mas, como nos revela Morris em seu filosófico e absurdamente engraçado documentário Mr. Death: A ascensão e queda de Fred A. Leuchter Jr., nunca perdeu sua audaciosa atitude de “eu posso fazer”, tipicamente americana. Fred Leuchter é o mais recente de uma longa galeria de autênticos personagens americanos enquadrados pela câmera amigável e impiedosa de Errol Morris. Seu primeiro filme, Portais do céu, composto basicamente por entrevistas talking head, é uma abordagem clássica de dois concorrentes do ramo de cemitérios para animais que repercute em nível social, político e econômico. Seu filme de 1988, A tênue linha da morte, combina técnicas consagradas de entrevistas off-screen com reencenações dramáticas e floreios visuais surrealistas para resolver o mistério de um assassinato em uma cidade pequena. Em 1997, Morris fez Fast, Cheap & Out of Control, um retrato extremamente comovente de quatro indivíduos obcecados cujos estranhos anseios são combinados a uma impactante reflexão sobre morte e moralidade. Seu trabalho mais recente, Mr. Death, é uma adição valiosa ao cânone de Morris, um trabalho surpreendente e enganosamente simples, no qual o envolvimento de Morris com o seu personagem, Fred Leuchter, estabelece um inteligente e cuidadoso perfil cinematográfico de um homem incapaz de conhecer a si mesmo.
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scott macaulay Mr. Death lida com uma série de questões— epistemologia, sistemas de crenças, como alguém forma a própria identidade — e ao mesmo tempo há todo o tema da negação do Holocausto. Você se preocupou com o fato de estar fazendo um filme no qual boa parte da mídia provavelmente só irá lidar com essa única questão, o Holocausto, que, na minha opinião, não é exatamente sobre o que o filme trata? errol morris Eu concordo com a sua avaliação do filme, mas me preocupa que você já esteja prevendo como as pessoas reagirão a ele, como se tivesse de ser assim. sm Bem, certamente haverá pessoas decidindo se o filme é bem-sucedido ou não na forma como apresenta esse assunto controverso. em Eu tive problemas semelhantes com A tênue linha da morte. Aquele filme é uma tentativa de se ter tudo ao mesmo tempo. Parafraseando o que você disse, foi uma tentativa de fazer um filme sobre a forma como vemos o mundo, sobre várias preocupações epistemológicas, sobre como, para muitas pessoas, ou mesmo para todos nós, crer é ver. E também conta uma história sobre erro judicial. Sem fazer nenhuma comparação específica entre A tênue linha da morte e Mr. Death, eles têm problemas semelhantes. No primeiro, tornou-se absolutamente imperativo na história contada deixar claro que não houve um erro judicial. Que David Harris muito provavelmente era o assassino e que Randall Adams não era. E neste último torna-se absolutamente necessário deixar claro que o Holocausto aconteceu e que o relatório de Leuchter é desprovido de valor. Teria sido irresponsável não deixar. sm Há um paradoxo em andamento aqui. Como assunto, o Holocausto é capaz de minimizar todas as outras preocupações filosóficas do filme. Mas, de certa forma, a enormidade do Holocausto é exatamente o que faz estas preocupações se estabelecerem no nível mais profundo possível. em Eu concordo. Uma pessoa me perguntou: “Por que todo esse interesse em assassinato nos seus filmes?” E, até onde sei, acredito que é porque somos profundamente fascinados pelo porquê das pessoas fazerem o que fazem. Perguntar por que alguém atravessou a estrada em uma determinada data, em um determinado momento não tem dramaticidade. Um assassinato é um evento tão dramático que nos sentimos compelidos a fornecer uma explicação para aquilo ter acontecido. Somos levados a todas essas questões filosóficas sobre como sabemos algo, sobre a natureza
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da explicação. Outro elemento complicado é o fato de que eu nunca, em nenhum momento da realização deste filme ou de A tênue linha da morte, quis transmitir a ideia de que a verdade é subjetiva, ou de que eu acredito que a verdade seja subjetiva, ou que sou de certa forma pós-modernista a esse respeito. Uma coisa que eu gosto de dizer sobre Cambridge, Massachusetts, é que o nome Baudrillard não aparece na lista telefônica. E esse não é um filme sobre como a história e a verdade estão à disposição. É algo muito mais antiquado, no sentido de que eu acredito em fatos, fatos cognoscíveis. Talvez as razões pelas quais as pessoas fazem o que fazem sejam mais complicadas, mas a questão de se o gás venenoso foi usado ou não em Auschwitz não está aberta a conjecturas. É um fato estabelecido com esmagadora evidência histórica. sm Como você encontra pessoas como Fred para seus filmes? em As pessoas sempre me perguntam essas coisas, como se houvesse algum tipo de algoritmo que pudesse ser revelado. Eu vim a perceber que talvez se trate de algum tipo de talento que tenho, para melhor ou para pior. Eu acho que eu compartilho com minha mãe, que morreu há alguns anos, a qualidade de ser realmente interessado nas pessoas. E acho que o interessante numa entrevista é que ela serve como uma espécie de modelo de interação humana em algum tipo de plano formal — a relação de uma pessoa com outra. Sim, as regras mudam. Em alguns casos deve haver muita interação e o drama vem disso. Em uma entrevista de Mike Wallace, por exemplo, pressupõe-se que parte da essência da entrevista seja uma relação conflituosa entre o sujeito e o entrevistador. sm Como você se situa nessa diversidade de entrevistadores? em Eu acho que sou quase o oposto polar [de Mike Wallace], porque a minha intenção é criar monólogos, me retirar do processo de entrevista o tanto quanto possível, mesmo que eu esteja muito lá. sm Mas ao final deste filme em particular, Mr. Death, ouvimos a sua voz fora de campo fazer uma pergunta para Leuchter. em Isso tornou-se uma opção estilística para mim. Fiz isso em Fast, Cheap & Out of Control e neste filme agora por opção. Em A tênue linha da morte eu me fiz presente apenas por necessidade, porque precisava colocar aquele material no filme. Mas eu gosto disso, é um lembrete de que há essa outra pessoa lá fora, e eu acho que isso registra minha perplexidade com o Fred e talvez, ao mesmo tempo, capte a perplexidade da plateia com ele.
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sm Você teve notícias de Leuchter depois de finalizar o filme? em Eu mostrei o filme a ele. Ele gostou. sm Há uma ironia nisso. As pessoas acusam Leuchter de ser megalomaníaco, de ser ingênuo e acreditar que suas próprias faculdades poderiam refutar a evidência histórica do Holocausto. Mas esse mesmo tipo de presunção é provavelmente o que o motivou a aceitar fazer o filme e, talvez, acreditar que se sairia bem nele. em Isso provavelmente é verdade. Quando vejo Leuchter no final do filme em sua pilha de escombros, martelando, isso assume um significado muito triste porque naquele ponto do filme você percebe o quão vazia foi sua empreitada, na verdade. Essa imagem contém uma espécie de consciência existencial que eu acho interessante. É uma das metáforas mais fortes com as quais eu já me deparei. Para mim, as duas imagens centrais do filme são o gerador de Van der Graaf no início, que se repete no final, e as imagens de Leuchter na pilha de escombros. Na verdade, os escombros foram uma reencenação feita no estúdio em Boston, onde recriamos um pedaço de Auschwitz, não é Fred martelando novamente. sm Por que o gerador de Van der Graaf é uma das imagens centrais para você? em: Bem, deixe-me fazer uma pergunta. O que essa imagem faz com você? sm Essa imagem me conecta com a tradição do cientista louco — o inventor dos anos 50 fazendo ciência caseira em seu porão. em Isso foi totalmente planejado. Foi planejado para invocar Frankenstein e um inventor autoinventado. Mas também vi a imagem como esse homem que se vê detentor de certos conhecimentos, que se vê quase como uma versão de Deus, como árbitro do que é a morte e do que é a vida. E colocá-lo no final do filme em justaposição com Fred sobre os escombros é algo como “o que ele está fazendo?” É a imagem quintessencial da humanidade ignorante envolvida em uma empreitada totalmente quixotesca, sem sentido, disparatada — se não fosse também tão profundamente perniciosa. Esta é uma história sobre um narrador sem noção. Ou será que ele mesmo é um narrador sem noção? Eu vejo o filme como uma espécie de Cidadão Kane. Um filme no qual você tem vários personagens que especulam sobre a motivação subjacente [de um personagem], mas nunca sabemos ao certo quem ele é e o que está fazendo, ou, se preferir, por que ele faz o que está fazendo.
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sm Ao longo do filme fiquei surpreso com a falta de interioridade de Leuchter, a falta de qualquer tipo de introspecção filosófica a respeito do que estava envolvido. Sua empreitada pareceu puramente mecânica, divorciada da sociedade, da cultura ou da política. E parecia também haver algo verdadeiramente infeliz em sua aventura. em Para mim, com certeza há algo infeliz em sua aventura, mas não se esqueça que eu pergunto a ele no filme: “Fred, você alguma vez considerou a possibilidade de que pode estar errado?” e ele diz: “Eu estou bem além disso.” Para mim, isso é entrar em uma espécie de território louco, megalomaníaco. O mais interessante na maneira como Leuchter conta sua história é que ele mesmo aponta, na primeira parte do filme, que os funcionários da prisão estavam errados em assumir que por ele ter experiência em uma área, isso se estenderia para outras coisas também. Porque ele era capaz de construir cadeiras elétricas não significava que seria capaz de construir sistemas de injeção letal ou câmaras de gás. Ele os ridiculariza por terem feito essa suposição. E descobrimos logo depois que ele entrou de cabeça nesse projeto de Zündel de ir para Auschwitz em uma viagem de averiguação. Ele não tem experiência, mas consegue se vender, e se vender para si mesmo, como o árbitro final dessas coisas. E para mim isso vai bem além do infeliz. sm A essa pergunta que você faz a ele no final, pessoas mais inteligentes poderiam responder: “sim, eu já pensei sobre isso” ou “talvez eu esteja errado”, mas o que se tem é a sensação de que este cara é incapaz de dizer essas palavras porque isso estraçalharia uma das poucas crenças que ele tem — a crença em si mesmo. Isso seria destruir a própria imagem que ele tem de si. em Sim, acho que é uma boa descrição. sm Poderia estar dando a ele o benefício da dúvida. em Também. Eu realmente não tenho essa compreensão absoluta sobre o Fred, mesmo tendo passado anos com ele. Há algo muito escorregadio, muito evasivo nele. sm E o filme é muito sagaz na forma como brinca com isso, como as imagens dele na pilha de escombros, alheio às consequências do que fez. em Sim. Quero dizer, acho que existe essa ideia de que os cineastas são assistentes sociais — eles não são! Eu pelo menos não sou. Sou grato a Fred por ele ter participado do filme. Por que ele fez isso, eu
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não estou completamente certo. Talvez ele esperasse ter algum tipo de vingança ou talvez simplesmente gostasse de atenção. sm Esta é uma pergunta importante para fazer a você, algo que está presente no processo de produção de seus filmes — por que alguém concordaria em estar em um dos seus filmes? Depois de ter concebido o filme na sua cabeça, investigar a motivação de seus personagens é importante ou não? em Eu diria que é inevitável. Com Leuchter, eu pensei nisso várias vezes, porque é de certa forma uma questão de todo o filme: por que ele está fazendo isso? Eu acredito que há toda essa questão sobre pessoas que fazem coisas más — eles sabem que são maus ou eles se acham bons? Eles constroem a si mesmos, para si mesmos, de tal maneira que chegam a se convencer de que são bons e não maus? No caso de Leuchter, ele me parece ser uma pessoa que acredita em sua própria retidão, em sua própria justeza. sm Há algo muito americano nisso: o self-made man. em Há algo muito humano nisso. Sim, acho que há um aspecto americano nesta história, não vou discordar. A idéia de um self-made man, ou de um inventor autoinventado, ou de um empreendedor louco que encontra uma necessidade e a preenche. Ele percebe que as execuções estão acontecendo nos Estados Unidos e diz: “ah, eu posso ganhar dinheiro com isso!” Mas não acho que o problema seja exatamente um problema étnico! sm Você exibiu uma primeira versão do filme no Sundance e agora existe esta versão revisada. Fale-me sobre o seu processo de edição na construção de um filme como este, porque estruturalmente o filme parece ser muito, muito claro. O filme conta uma história bastante metódica e é organizado em segmentos coerentes. E ainda assim eu sei que você trabalhou nele por um tempo e passou por diferentes versões. em Há muitas decisões sendo feitas quando se monta um filme. Neste caso, a decisão importante era incluir ou não outras vozes além da de Leuchter. Será que deveríamos apenas ouvir Leuchter falar ou entrevistaríamos outras pessoas também? E eu, de fato, editei uma versão do filme apenas com Leuchter e então senti a necessidade de adicionar outras vozes, com o propósito de deixar duas coisas absolutamente claras: que ele estava errado e também mostrar a disparidade dos pontos de vista sobre ele, a perplexidade geral das pessoas.
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sm Todos os seus filmes são engraçados em diferentes níveis. E há momentos no filme que são realmente engraçados, mas engraçados em todo o seu horror, como Leuchter vagando em um campo de concentração parecendo um turista norte-americano com a sua esposa em sua lua de mel. Na exibição em que eu estava, houve risadas nervosas, algumas pessoas rindo alto e outras incapazes de rir. O humor seria um subproduto não intencional de suas histórias? Ou você se utiliza disso conscientemente, como um contador de histórias? em Humor é complicado, não é um ingrediente que você simplesmente acrescenta em alguma coisa como se fosse sal. sm Na verdade, em muitas maneiras de se fazer cinema, é algo que se acrescenta como sal. Em um filme hollywoodiano, alguém pode dizer: “Esta cena não funciona. Precisamos de uma risada aqui.” E alguém vai e escreve uma piada. em Eu acho que boa parte do humor nos meus filmes é um humor absurdo. São filmes absurdistas, surreais, entre outras coisas. E parte do humor neste filme em particular vem da disjunção absoluta entre o que Fred está falando (ou o que ele pensa que está falando) e a realidade do que ele está falando. Suas histórias loucas sobre penas de morte, suas execuções fracassadas, a lua de mel em Auschwitz, que é totalmente surreal, absurda e grotesca. E ele é totalmente inconsciente desse fato. Se eu uso conscientemente esse tipo de coisa? Sim! sm Você falou anteriormente de criar monólogos, mas neste filme há também o dispositivo formal das telas escuras que pontuam os diálogos de Leuchter. em É algo que eu comecei a usar em Uma breve história do tempo. [Neste filme] havia algo de metafórico para mim, ligado ao estranho clique de ligado/desligado da comunicação de Steven Hawking e a possibilidade dele ser apagado. Tinha algo nisso que me agradava — informação sendo entrecortada. Neste, era como captar a maneira fragmentária como conhecemos as pessoas ou as coisas. sm Houve alguma reação ao filme vinda de comunidades revisionistas ou neonazistas? em Acredito que o filme já tenha sido atacado em vários lugares. Este filme certamente não tem a intenção de convencer os negadores do Holocausto de que o Holocausto aconteceu. Não acho que alguma coisa poderia convencê-los. Mas eu acho que ele demole o Relatório Leuchter nos seus próprios termos. Fred Infeliz, como você o chama, vai para Auschwitz. Ele retira essas amostras.
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Coloca-as em sacos. Testa-as. Por que ele não encontra cianeto? Sabemos que as câmaras podem ter sido cobertas de gesso. Ele pode não ter feito testes de superfície [que são exigidos em casos de cianeto] na superfície. E retirou as amostras de tal forma que elas ficaram terrivelmente diluídas. E isto foi dito pelos químicos contratados por Leuchter para fazer o teste. Mas por que estou dizendo isso tudo? Olha, agora eu caí na cilada de falar sobre o filme entrando no mérito do Holocausto! E é tudo culpa sua! Publicado originalmente na Filmmaker Magazine, 1999.
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Em fragmentos
michel negroponte Quero começar citando um comentário de Jean-Luc Godard sobre como o mundo ocidental não sabe mais quais histórias contar ou quais ficções inventar. O que tanto te fascina nesta tênue linha entre a ficção e a realidade? errol morris Bem, não é totalmente claro que exista de fato uma linha tênue entre realidade e ficção ou sequer que exista alguma linha. Na verdade, traçar esta linha entre os dois pode ser chamada de uma tarefa indescritível. Eu sempre gosto de pensar em meus filmes como várias tentativas de analisar essa questão de uma forma ou de outra. A história de Dave Hoover em Fast, Cheap & Out of Control é, em parte, sobre sua obsessão pelo lendário domador de leões Clyde Beatty, que participou deinúmeros filmes de Hollywood, seriados, programas de rádio e revistas em quadrinhos. Durante minha pesquisa por toda esta matéria de Beatty, eu encontrei o seu primeiro filme, The Big Cage. Nele, há uma luta realmente louca entre um leão e um tigre. Os animais simplesmente rasgam um ao outro em pedaços. Bem, na autobiografia de Clyde, ele conta a história de como a cena se deu: aquilo era uma luta da qual se perdeu o controle. O leão matou o tigre. E a pergunta que eu faço sobre este trecho é: isto é um documentário ou uma ficção? Ele está, é claro, em um filme que é de ficção, mas este trecho não deixa de ser um documentário sobre essa luta em especial – uma luta que termina em animais se matando. The Independent, outubro de 1997
nick poppy Considerando o fato de que pessoas em geral têm diversos motivos para contar ou não a verdade, você, como cineasta, sente a responsabilidade de capturar isto de forma específica, levando isso em conta? Como esta responsabilidade se aplica em seu trabalho? errol morris Encontrar a verdade implica em realizar algumas ações. Vale destacar que a verdade não é algo que te entregam de bandeja. Não é algo que você pode encontrar em uma cafeteria onde eles só te servem um prato. É uma busca, uma pesquisa, uma investigação, um processo contínuo de olhar e buscar evidências enquanto tenta descobrir o que exatamente aquelas evidências significam. É importante destacar que muitas pessoas confundem a ideia de que a verdade é subjetiva com o fato de que a verdade é perecível. Um exemplo óbvio é a História… As pessoas podem queimar arquivos, destruir provas, mas dizer que a História é perecível,
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que a evidência histórica é perecível, não faz dela subjetiva. Tive sorte com A tênue linha da morte. Havia um monte de novas provas a serem descobertas. E estas novas evidências descobertas por mim — às vezes com a câmera, outras não — apontavam claramente para a inocência de Randall Adams e para David Harris como responsável pelo crime. Eu tenho certeza que Randall Adams é inocente e David Harris é culpado? Não, eu não tenho. Mas sei que existem evidências bastante relevantes para apoiar esta versão. np Parece, então, que foi algo natural você se tornar o tipo de documentarista que se tornou. Você sempre soube que era este o caminho que deveria seguir? Isto só te ocorreu quando você, enfim, conseguiu ir a fundo em uma de suas investigações ou foi o interesse por esta linguagem que fez você começar seu trabalho como cineasta? em Bom, eu nunca quis ser documentarista. Acho que me tornei documentarista porque tinha dificuldade em escrever e problemas em terminar as coisas que começava. np Eu não estou convencido de que fazer filmes é mais fácil… em Bem, é mais fácil no sentido de que quando você pega dinheiro com alguém para fazer algo, é importante você terminar o seu projeto para que a pessoa consiga reaver seu dinheiro. A culpa torna-se um fator de motivação. E não há nada como a culpa. Mas, enfim, eu nunca me vi como um documentarista. Eu me vejo como um cineasta. Ponto. Me interesso tanto na encenação, quanto no documentário. Há muitas ficções que gostaria de fazer: ficções baseadas em histórias reais. (…) The Believer Magazine, abril de 2004
paul cronin Você se sentiu confortável trabalhando com atores em A brisa da morte? errol morris Eu nunca tive problema algum em trabalhar com atores. Atores são pessoas bem como pessoas são atores também. Persuadir um depoente e fazê-lo pôr para fora algo no improviso não é tão diferente de persuadir um ator com um roteiro. Você, como diretor, está sempre criando uma situação para que as pessoas se sintam confortáveis e desejem atuar para você. Errol Morris Interviews, 2003
roy grundmann Olhando para First Person, Mr. Death ou até mesmo para seus filmes mais antigos, torna-se claro
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que seus entrevistados não são exatamente pessoas comuns. errol morris Em primeiro lugar, talvez sequer existam pessoas comuns. Talvez esta ideia que temos de pessoas comuns seja apenas uma fantasia de que pessoas fora do padrão não são tão fáceis de encontrar lá fora, no mundo real. Isto certamente é uma possibilidade. rg Como você encontra seus personagens? Você se utiliza de algum método padrão ou cada história é encontrada à sua maneira? em Não existe um depósito de lixo mágico ou algum lugar secreto para onde eu possa fugir e encontrar um depósito de histórias. Na maior parte dos casos, elas vêm de lugares muito rotineiros. Ou óbvios, se preferir. Quando Mr. Death: A ascensão e queda de Fred A. Leuchter Jr. foi exibido pela primeira vez no Sundance Film Festival — o que agora já tem anos — Janet Maslin me perguntou de onde veio a história de Fred Leuchter. Eu respondi: primeira página, The New York Times. Cineaste, junho de 2000
paul cronin É verdade que você sequer escuta o que seus entrevistados te dizem? errol morris Não. Eu escuto, mas tento fingir que não estou escutando. Quando você olha para alguém como se estivesse prestando atenção há uma tendência em reagir ao que se está ouvindo. Você pode contorcer-se ou desviar o olhar até a altura em que o entrevistado se torne consciente destas ações e sinta necessidade de perguntar no que você está pensando. Se você deixar alguém falar sem interrupções, rapidamente ela te mostrará quem realmente é. Eu acredito que pessoas irão dizer praticamente a mesma coisa independente do que eu perguntar a elas. Errol Morris Interviews, 2003
nubar alexanian Você faz essas entrevistas e as fitas são transcritas. Você edita a partir daí, certo? errol morris Não, eu não edito a partir das transcrições, nunca. Eu edito diretamente no filme. Fazemos a transcrição e adicionamos a indicação da minutagem, esta é uma maneira de criar um índice do material por assuntos. Assim, enquanto editamos, podemos achar rapidamente os trechos dentro do material. na Mas a forma não vem da transcrição. Em outras palavras, você não edita por ela?
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em Editar papéis? Não, nunca, nunca. O que está no papel nos dá uma ideia falsa. Isso é o que há de tão interessante nisso. Em meus dois primeiros filmes, eu mesmo fiz as transcrições. Hoje não faço mais, alguém faz para mim. E então você vê as várias representações sobre um mesmo material: há a entrevista inicial; há o áudio, apenas o áudio separado da imagem; há a imagem; há a transcrição de palavras faladas em um papel; e então há o filme. The Transom Review, outubro de 2002
ron rosembaum Você está interessado na questão de qual é a natureza do mal? Os serial killers te abriram esta pergunta? errol morris Há algo realmente fascinante sobre assassinatos porque nos levam à pergunta fundamental do porquê certas pessoas fazem certas coisas. Eu imagino que nós podemos nos dedicar a fazer perguntas sobre por que alguém atravessa uma rua em determinado dia ou determinada hora. Mas assassinatos elevam os riscos. Torna-se de suma importância — até mesmo essencial — para nós chegarmos a uma resposta. (…) Eu não acho que o mal é uma competência exclusiva dos assassinos. Acho que todos nós compartilhamos de uma capacidade para isso. A diferença é que assassinos se permitem a possibilidade de examinar o mal em um contexto extremamente ambíguo. Mas eu acho que todos nós somos capazes de fazer coisas realmente ruins. The Museum of Modern Art, outono de 1999
paul cronin O que você pensa sobre as escolas de cinema? errol morris Estou citando Godard aqui, eu acho que a verdadeira faculdade de cinema é a sala de cinema. Se você quer aprender sobre filmes, vá ao cinema. Assista a muitos e muitos e muitos filmes. Quando eu era estudante em Berkeley, eu tomei minhas lições mais importantes no Pacific Film Archive, onde eu assistia dois ou três filmes por dia. Errol Morris Interviews, 2003
nubar alexanian E o que tem influências em seu trabalho? Ou, pelo menos, na sua abordagem para contar histórias? errol morris Documentaristas. Wiseman. Os surrealistas. Jean Vigo, Dziga Vertov, Georges Franju. Fui influenciado por todo tipo de diretor. Sirk, Lang, Bresson… Eu penso cinema como uma forma de experimento. Eu odeio a ideia do cinema como apenas um clichê, e muitas vezes parece que foi isso mesmo que ele
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se tornou — pessoas fazendo o mesmo filme. Filmes às vezes parecem horrivelmente ambiciosos para mim. Minha experiência em Hollywood foi desastrosa e não acho isso surpreendente. Surpreendente foi pensar que poderia ter sido de outra forma. Mas eu tenho sorte, sou uma cara muito, muito sortudo. Eu faço meu próprio tipo de filme do meu próprio jeito. Eu tenho meu próprio laboratório do cinema e eu amo isso. The Transom Review, outubro de 2002
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A atuação da morte
Errol Morris tornou-se produtor executivo do documentário O ato de matar no começo de 2010, depois de Joshua Oppenheimer mostrar a ele, em seu escritório em Cambridge, Massachussets, uma primeira versão de duas horas do material editado. Fascinado, Morris comparou o que viu ao seu filme favorito de todos os tempos, The Emperor’s Naked Army Marches On, de Kazuo Hara. Desde então, Morris é um produtor executivo apaixonado, e trouxe ao filme diversas colaborações linguísticas em seu método de filmar. “Como todos os grandes documentários, O ato de matar exige uma outra forma de olhar para a realidade. Ele funciona como uma sala de espelhos onde pessoas reais se tornam personagens de um filme para depois saltar novamente à realidade. Então se fazem a pergunta fundamental: o que é real?” “Acho que há uma loucura inerente à abordagem de Joshua. Aqui nós temos o diretor indo atrás dessas pessoas e pedindo para que elas participem de um filme. Não de um filme em que você relata esse evento histórico (a ditadura militar na Indonésia em 1965), você pede para que eles participem de um “filme de ficção” baseado em eventos reais no qual elas reencenam esses assassinatos. Esses assassinatos que eles mesmos cometeram. E eles aceitam com todo o prazer. Com ênfase em prazer.” “Chamar de surreal não é suficiente, acho que não está à altura do filme. No seu âmago, o filme é ultrajante, que é uma das coisas que o torna muito, muito, muito interessante. Os filmes devem ter mistérios e esse tem muitos. Por que essas pessoas estão repetindo seus crimes na frente da câmera? Com que finalidade? O que isso nos diz sobre elas? E sobre nós? É tudo encenado? É tudo uma farsa? Trata-se das mentiras que contamos a nós mesmos para seguir a vida dia a dia? Onde está a culpa e a vergonha ali? Eu não sei se sei. O que gostaríamos de ser por dentro como pessoas? E o que realmente está dentro de nós? E esses questionamentos podem continuar até o infinito. É um estranho corredor de espelhos. O que Joshua fez foi manter um estranho limbo entre a fantasia e a realidade.” “Discuti com um crítico sobre O ato de matar quando ele disse que saiu do filme sabendo menos sobre o genocídio na Indonésia do que sabia antes de assisti-lo. Eu tentei explicar a ele que, seja documentário lá o que for, não é educação para adultos. Supõe-se
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que seja uma forma de arte em que tentamos comunicar alguma coisa sobre o mundo real. Tem um componente jornalístico, mas, para mim, é corretamente considerado jornalismo e algo mais, alguma coisa maior que o jornalismo. Você está entrando na ideia de alguma coisa, explorando esta ideia. Nesse exemplo específico: e se você cometer um crime terrível mas for recompensado por isso? E se passarem quarenta anos e as memórias do que você fez ainda estiverem com você? Que efeito isso tem em você, se tiver? Será que você pode cometer um crime terrível e não ser punido? Não estou simplesmente falando de punição criminal ou legal, estou falando de punições psicológicas. Qual, no fim das contas, é o efeito que isso tem sobre a sua vida? E quem você é e como se vê? São essas as questões que estão na essência desse filme. E isso é o que, para mim, o torna excelente e realmente poderoso.” “A última cena é uma das coisas mais poderosas que já vi. E me deixa com uma pergunta estranha, uma pergunta muito profunda pra mim: é encenação ou é real? O que dizer sobre ele? Ou sobre nós? Ou sobre a nossa própria conexão com o passado? É muito poderoso. E é tão poderoso por ser tão inerentemente ambíguo e estranho. É um momento “Que porra é essa? O que está acontecendo aqui?” E eu não sei dizer o que é. Não sou capaz de dizer se é real ou não; se é fabricado ou não é fabricado; se é encenação ou não. Eu não sei. E acho que, por esse motivo, ele se torna um momento incrível. O Josh talvez seja muito mais otimista do que eu no sentido de acreditar que nós aprendemos algo com a experiência, que, de alguma forma, saímos disso tudo com mais entendimento, mais autoconscientes. Eu tenho uma visão um pouco diferente. Acho que não aprendemos nada. A maioria dos filmes tenta matar o pensamento. Eles pegam a reflexão e dão uma facada pelas costas. Esse é um filme que encoraja as pessoas a pensarem.” Trechos da entrevista de Errol Morris para o vídeo Werner Herzog and Errol Morris Talk About The Act of Killing, realizado pela revista Vice, julho de 2013.
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Crer para ver Lawrence Weschler
Com faro apurado e curiosidade insaciável, Errol Morris desafiou a história da fotografia e do jornalismo ao mostrar que nem sempre vemos o que acreditamos ver. Seus artigos saborosos e polêmicos, publicados no blog do New York Times e no livro Believing Is Seeing, põem em xeque imagens consagradas para tentar definir a natureza da fotografia e da visão. lawrence weschler O primeiro capítulo de seu novo livro representa bem todo o resto — você passa mais de 70 páginas examinando duas fotos de uma estrada depois de uma batalha da Guerra da Criméia. E logo no começo do livro você cita seu amigo Ron Rosenbaum: quer dizer que você foi até a Criméia só por causa de uma frase da Susan Sontag? errol morris Na Verdade, foram duas frases. Primeiro ela diz que agora se sabe que muitas das imagens canônicas das primeiras fotos de guerra tinham sido encenadas, ou posadas, seja lá o que isso queria dizer. E então dá como exemplo o caso de Roger Fenton, “que, depois de chegar ao vale muito bombardeado perto de Sebastopol, fez duas exposições com o tripé na mesma posição; na primeira versão da celebradíssima foto, as balas de canhão estão concentradas na vala à esquerda da estrada, mas, antes de tirar a segunda, a que é sempre reproduzida, ele se assegurou de que as balas de canhão fossem espalhadas na própria estrada”. lw E o que te incomodou tanto nisso? em O que me irrita na maior parte das coisas que se escreve sobre fotografia é que o escritor simplesmente viaja: a foto me fez sentir isso, me fez sentir aquilo ou aquilo outro; a intenção do fotógrafo era essa, era aquela, era aquela outra. Enfrentei problemas tremendos por ter criticado Roland Barthes e Susan Sotag — os mitos intocáveis da teoria fotográfica —, mas o que me incomodou naquelas duas frases é o fato de Sontag sugerir que sabia o que Fenton estava pensando. Eu me perguntei: mas como Sontag sabe que a foto com as balas de canhão na estradada, que vou chamar de COM, era posterior à foto com as balas fora da estrada, que vou chamar de SEM? Como ela sabe disso? lw E como toda essa autoridade absoluta. em Com qualquer autoridade. Aquilo me deixou irritado.
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lw O livro deixa muito claro para qualquer leitor que você não só ficou irritado, ficou louco da vida. A questão te fez ir até a Criméia! Por quê? em Por várias razões. Vamos formular um problema: o que dá para saber a partir de uma fotografia? Por exemplo, qual veio primeiro: SEM ou COM, COM ou SEM? Como estabeleço isso? A afirmação de Sontag me pareceu quase ex cathedra. Como se fosse óbvio. Talvez até seja, mas pra mim não era. Então a pergunta era: posso determinar empiricamente a ordem das fotos? Falei com os mais variados especialistas e percebi que a solução talvez fosse ir até a Criméia na mesma época do ano, encontrar o local exato e registrar as sombras em horas diferentes da tarde, no começo e no fim, usando as balas de canhão que eu levaria junto. Como deu pra ver, a viagem à Criméia não trouxe a solução. É engraçado. Quer dizer, ter ido até o fim do mundo não resolveu o problema. E a solução veio inesperadamente. lw Como assim? em Veio de um amigo da região de Boston, Dennis Purcell, que é muito habilidoso com o Photoshop. Em resumo, ele sobrepôs perfeitamente as fotos, de maneira que pudesse alternar facilmente entre uma e outra. lw E no final a resposta nem estava nas balas de canhão. em Aí está a ideia ingênua. A ideia ingênua é que, se quer saber algo sobre a ordem das fotos baseando-se na presença ou na ausência das balas de canhão na estrada, você vai estudar as balas. Mas, na verdade, isso se mostrou, não digo um erro, mas não se mostrou parte da solução. lw Então ele olha o quê? em Ele olha as pedras ao lado da estrada. Até dá nome a elas: Fred, Oswald, Marmaduke, Lionel… O que se presume, claro, é que, qualquer que seja a ordem das fotos, alguém teve de mover as balas de canhão. E que, para tanto, talvez essa pessoa tenha deslocado pedras próximas. E, de fato, você consegue ver um padrão no descolamento das pedras, porque elas rolam para baixo, o que estabelece a ordem das fotos de maneira conclusiva. Sontag tinha razão. lw Droga! em COM vem mesmo depois de SEM. lw E quanto às intenções de Fenton, o que isso significa? em Não sei bem. Há inúmeras razões possíveis para que as balas
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fossem mudadas de lugar. Porque estavam sendo recolhidas para serem reutilizadas, ou porque Fenton, como afirma Sontag, achava que a foto seria melhor se elas aparecessem na estrada. O que me parece um mistério é que Fenton tenha conservado as duas fotos, tenha dado o mesmo título e exposto as duas às vezes uma ao lado da outra. Ele não tentou ocultar a existência de uma segunda fotografia. Não se trata de alguém que armou uma cena e depois destruiu os indícios que mostrariam que a foto foi encenada. lw Mesmo assim, chega uma hora no livro, lá pela página 50, mais ou menos, que o leitor começa a perguntar: e daí, que importância tem isso? Ou: por que esse cara está tão preocupado com isso? Esse Morris perdeu uns parafusos? Talvez sejam os parafusos dele espalhados pela estrada. Sério: e daí? em Eu defendo que podemos encontrar se não todas, pelo menos a maioria das questões que importam para a fotografia no exame dessas duas fotos. A questão da encenação — o que queremos dizer quando afirmamos que uma foto é posada. A questão da verdade e da falsidade na fotografia — uma foto pode ser verdadeira ou falsa? A questão das intenções do fotógrafo e se essas intenções são capturadas de alguma maneira nas fotos que ele tira. lw E a questão da nobreza dessas intenções? em Também. O fato é que existe isso de foto verdadeira, foto falsa. A verdade e a falsidade são, a rigor, propriedades da linguagem, não das imagens. Acho que acabamos criando uma infinidade de problemas quando falamos das imagens como se fossem verdadeiras ou falsas. lw É mesmo, e essas questões aparecem várias vezes ao longo do livro. Como exatamente entender aquelas fotos de Abu Ghraib, por exemplo — no livro, você amplia pontos levantados em seu filme Procedimento operacional padrão. Ou se Walker Evans mudou de lugar ou até introduziu um despertador numa daquelas fotos de Elogiemos os homens ilustres. Se, em data mais recente, fotojornalistas que estavam em Beirute, na hora em que Israel bombardeou a cidade, mudaram de lugar ou de posição um boneco do Mickey Mouse; como entender o boneco e a posição dele, seja qual for, independentemente da legenda ou do lugar no jornal matutino onde a foto foi publicada? em São questões epistêmicas, todas elas. lw O grande neurologista Oliver Sacks às vezes diz que
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é um ontologista clínico, para quem, muitas vezes, a pergunta diagnóstica é literalmente: Como vai você? Ele lida constantemente com pessoas para as quais a pergunta apropriada seria: Como você é? Como é ser você?, pois o cerne do trabalho dele é um exame da natureza, da qualidade daquela maneira de ser. E me ocorre que, da mesma forma, você é uma espécie de epistemólogo forense. em Bela ideia. lw Ou talvez também um patologista epistemológico. em Também uma bela ideia. lw Porque você pega essas fotos e as submete a um exame — uma espécie de csi: Kodak — para saber como somos levados a acreditar nas coisas, a saber das coisas, até que ponto é possível conhecer alguma coisa, até que ponto as coisas podem ser fingidas ou encenadas, ou até que ponto tudo é, em certo sentido, encenado. Se e como é possível chegar à verdade de qualquer coisa. em Parece que esquecemos um dado muito importante sobre a fotografia. As fotos estão fisicamente ligadas ao mundo. E uma parte do estudo da fotografia tem de ser o resgate, a recuperação dessa ligação física com o mundo de onde elas foram tiradas. É algo que raramente faz parte da tarefa de estudar fotos. Pegue uma foto do Einstein, por exemplo. A questão é: não importa quem eu penso que está naquela foto. O que é importa é: Einstein estava na frente daquela câmera? Aquele homem. Há uma ligação física entre a imagem naquela chapa fotográfica e/ou no dispositivo digital, seja o que for, e o homem que está ali? Não importa o que eu pense. O que importa é aquela ligação física. lw O que realmente aconteceu. Mas a pergunta permanece: e daí? Por que você se importa tanto? Pois acho que você realmente se importa. em No fundo, por que as pessoas se importam com a referência? Vamos pôr dessa maneira: se importa para você qual é a nossa ligação com o mundo ao redor, então você se importa com questões básicas. Questões sobre a verdade. Questões sobre referências. Questões sobre identidade. Questões filosóficas básicas. Vamos voltar às fotos de Fenton. Quero saber para o que estou olhando. Acho que as fotografias têm uma espécie de caráter subversivo. Elas nos fazem achar que sabemos para o que estamos olhando. Posso não saber para o que estou olhando, mesmo nas melhores circunstâncias. Mas tenho todo esse contexto à minha
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disposiçãoo. Sei que você é o Ren Weschler. Já te vi antes. Na verdade, somos amigos. E tenho todo o contexto do mundo ao redor. Mas as fotos fazem algo complicado. Elas descontextualizam as coisas. Arrancam imagens do mundo e, por isso, nos deixam livre para pensar o que quisermos sobre elas. lw Achamos que as conhecemos assim como conhecemos os amigos. em Exato, que temos algum conhecimento profundo só porque estamos olhando para elas. Tem uma frase que, em certo momento, alguém me pediu para tirar de um dos ensaios do livro. Falei: não posso tirar, é uma das minhas frases favoritas. A frase é: “Falsas ideias grudam nas fotografias como moscas num papel mata-moscas”. E acho que é verdade. Acho que existe alguma coisa na natureza da fotografia que convida ao especioso, ao espúrio. É um convite explícito para você pensar o que quiser. lw Tudo isso explicaria porque você teria virado um poeta. Mas não virou. Por que virou cineasta? em Não sei. Porque não sabia escrever. Virei documentarista porque não sabia escrever. E foi o que me restou como forma de expressão artística. lw Não sabe escrever, pois sim… Diga isso aos leitores desses seus textos recentes, até exaustivos às vezes, nos dois sentidos. Vamos deixar um pouco a linha dessa discussão, por agora quero propor uma teoria biográfica a seu respeito. Minha ideia é que o fato de você ter ficado cego de um olho é o acontecimento central de sua vida. Em primeiro lugar, conte o que aconteceu. em Meu pai morreu quando eu tinha dois anos, quase três. Não guardo nenhuma lembrança dele. E aí, pouco depois, um médico amigo da família me operou a vista, porque eu era vesgo. lw E não adiantou. em Não adiantou. Volta e meia essas operações não adiantam. E nos anos 1950 se sabia-se muito pouco a respeito. Existe o estrabismo e existe a ambliopia. O estrabismo, se não me engano, é apenas a dimensão física dos olhos mal alinhados. Vesgo para fora ou vesgo para dentro, como era o meu caso. Já a ambliopia é a tentativa do cérebro lidar com isso. Se o cérebro não consegue alinhar as imagens dos dois olhos, ele elimina uma das imagens, pois a alternativa seria uma visão dupla. É esta a explicação. Naquela época, a solução era vendar o olho bom com um tampão e forçar
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o olho com defeito a funcionar. Claro que eu sempre arrancava o tampão. E aí meu olho esquerdo, o olho preguiçoso, nunca desenvolveu uma visão completa. Consigo enxergar com ele, não tem nada de errado, o problema é a tentativa do cérebro de lidar com a incapacidade de alinhar os dois olhos. lw De qualquer forma, anos depois, sua mãe acabou se casando com esse amigo da família, o oftalmologista. Sua mulher faz aquela piada dizendo… em É, a Julie diz que é a história do Édipo ao contrário: o cara me deixa cego e se casa com a minha mãe. lw E ainda por cima logo depois que seu pai morreu. Fica meio mítico mesmo. em Devo ressaltar que meu padrasto era um bom sujeito. lw Em todo caso, o que sugiro é que a monocularidade resultante se revelou fundamental no seu caso. Não que você não tenha percepção da profundidade, mas te falta a estereoscopia, que é a maneira habitual como a maioria dos bifocais consegue ter percepção de profundidade. Você precisa usar todas as outras indicações. E isso te permitiu, talvez até tenha te obrigado, a ficar hipersensível à constituição do senso de profundidade. Em outras palavras, você tem que ficar se perguntando continuamente sobre o que está vendo, sobre como está vendo. em Tendo a concordar com isso. Me deixou hipersensível à natureza da visão. lw À maneira como se forma a visão. em Acho que é verdade. Mas eu diria inclusive que é melhor ser cético sobre a natureza da visão do que aceitá-la acriticamente. Um dia me saí com uma frase que ainda me agrada muito: “Melhor ser humiano do que humano”. A frase expressa meu entusiamos por David Hume, um dos grande céticos quando à natureza da experiência. lw Antes, quando você estava falando que pensa muito na pose, na encenação, me ocorreu outra conotação das palavras, como na expressão posing a riddle, “propor uma charada, um enigma”. A gente fala em posar, ou em alguma coisa ou alguém que assumiu uma pose. Mas o cético é aquele para quem tudo é uma charada. Ou pode se tornar uma charada. em E encenação sempre me incomodou. Susan Sotag tem razão
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num aspecto sobre as fotos de guerra mais famosas, as que se tornaram icônicas — as pessoas questionam as circunstâncias em que foram feitas. Não só as de Fenton. Joe Rosenthal e a bandeira que os soldados erguem em Iwo Jima, Robert Capa e a foto famosa do soldado tombado na Guerra Civil Espanhola, a foto famosíssima de Alexander Gardner com um atirador de elite rebelde em Gettysburg. Todas elas são objeto de questionamento — em certa medida, teriam sido fotos posadas. Mas o que queremos dizer com isso? Digamos que Fenton tenha carregado aquelas balas de canhão para a estrada porque queria uma imagem mais expressiva. Não sei o que aconteceu, mas suponhamos que ele tenha movido as balas. Em que sentido a foto resultante é de fato encenada? Não estamos em 1855? Não é a Guerra da Criméia? Não é o Vale da Sombra da Morte? Essa área não sofreu um intenso bombardeio russo? E por aí afora. lw Sem dúvidas as balas de canhnão estiveram na estrada em algum outro momento. Pode ser que tivessem sido removidas por uma ou outra razão e ele apenas as colocou-as de volta. em Isso. A questão é: o perigo é simplesmente olhar uma foto e pensar que sabemos o que estamos olhando. O mais provável é que não façamos a menor ideia. lw Parece que sua monocularidade, no sentido em que falávamos, a maneira como ela te deixou excepcionalmente sensível ao que constitui a visão, também te imbuiu de uma espécie de monomania. em Monomania? Faça-me o favor… lw Vou insistir que a palavra é essa. Mas uma monomania bifurcada. De um lado, parece que você diz que toda essa discussão sobre se as coisas são posadas ou não — Fenton, Rosenthal etc. — pode ficar um pouco ridícula. Pois houve uma guerra, houve um bombardeio, crianças morreram no bombardeio de Beirute e assim por diante. Ao mesmo tempo, você quer dizer que o que estava realmente acontecendo na frente da câmera tem importância, e uma importância fundamental. em Tudo isso tem importância. lw Mas tem como sustentar as duas coisas ao mesmo tempo? em A questão é que as pessoas criaram todas essas regras, porque perceberam, talvez de maneira meio inconsciente, como é fácil ser enganado por uma fotografia. E então criam essas regras para nos proteger, todas essas regras tão conhecidas. Não mexa em nada.
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Não toque em nada. Observe a cena como ela é. Seja como a mosca proverbial na parede. Examine, mas não altere. Use a luz disponível. Não tente realçar a cena. E por aí vai. E, no final, supostamente, você terá algo verídico. Seguindo essas regras, de alguma maneira espera-se que a verdade salte ali. Bom, está errado, claro. Porque há aí todos aqueles outros pressupostos, problemas e confusões. O fato de que existe o recorte e não enxergamos além dele, de nenhum dos lado, nem em cima, nem embaixo… lw E não só o recorte espacial, mas o recorte temporal também. O fato de que havia coisas acontecendo antes e depois e de que o fotógrafo escolhe apenas um clique entre as centenas possíveis. em Exato. E todo o contexto onde a foto aparece. O bloco de texto e a legenda têm, de fato, uma influência muito maior que a decisão de mexer ou não numa bala de canhão. O que realmente estamos nos perguntando em tudo isso é qual é a relação entre nossas imagens e o mundo. lw Que é a preocupação que te ocupa. Você conhece a velha distinção de Isaiah Berlin entre o ouriço e a raposa? Ele pegou de Arquiloco, o poeta grego antigo: a raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço só sabe uma grande coisa. Mesmo com a variedade de assuntos que aborda, creio que você é essencialmente um ouriço — na verdade, um ouriço-turbo, um ouriço-perfuratriz. Cava, cava, cava. É como um arqueólogo de fotografia, não tanto da história do médium, mas da estrutura profunda e da natureza do significado de qualquer foto. E o engraçado é que, quanto mais fundo, digamos assim, você cava a verdade de uma foto qualquer, mais estranhas ficam as coisas, e geralmente mais incertas. em Mais incertas em alguns aspectos, menos em outros. Graças a Dennis Purcell, sei com segurança que COM veio depois de SEM. Mas, sim, fico com mais dúvidas sobre outras coisas. lw Vamos falar de mais coisas. Por exemplo: The Umbrella Man. Para quem ainda não viu no site do New York Times, é um curta-metragem de Errol, de sete minutos — se você puder descrever… em Bom, comecei muitos filmes que ficaram sem terminar. Geralmente em forma de entrevista. E nesse caso era uma entrevista com uma figura extraordinária: Josiah Thompson, conhecido como Tink Thompson. Ele tinha se doutorado em filosofia com uma tese sobre Kierkegaard, era professor em Haverford College e deixou
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o emprego por causa de sua obsessão com o filme de Abraham Zapruder sobre o assassinato de John Kennedy. Foi trabalhar na Time Life e acabou virando detetive particular no norte da Califórnia. Uma carreira bem execêntrica. lw Na época, muita gente estava obcecada com a morte de John Kennedy. Ele era um desses. em E muita gente continua. Mas ele era um entre muitos. E seu livro Seis segundos em Dallas ainda é um dos melhores sobre o assassinato, ou pelo menos sobre o filme de Zapruder. Há aquela frase famosa, daquele general argentino antissemita, que dizia que os judeus foram responsáveis por destruir, sucessivamente, a ideia cristã de família: Freud. A ideia cristã de Estado: Marx. E a ideia cristã de universo: Einstein. Ao que eu acrescentaria a ideia cristã de Estados Unidos: Abraham Zapruder. lw Voltemos ao Umbrella Man. em Isso, o Homem do guarda-chuva era uma obsessão de muita gente. Pois no filme de Zapruder, e em várias fotos tiradas na Dealey Plaza em 22 de novembro de 1963, aparece um homem sozinho, parado, segurando um guarda-chuva preto aberto, que ele fecha logo depois dos disparos. lw Isso num dia de tempo bom. em Um dia absolutamente maravilhoso. lw O único guarda-chuva em Dallas naquele dia. Estava parado bem ali, na curva da descida, a poucos metros de onde ocorreu o assassinato. em Exato. Bem ali de onde saíram os disparos. Então muita gente se perguntou: Mas que raios é isso? O que significa? Quem é o homem de guarda-chuva? lw Devia ter algum significado obscuro. em Muito, muito obscuro mesmo. Que o guarda-chuva, como Tink descreve, seria um sinal para coordenar o assassinato entre vários atiradores independentes. Ou que o guarda-chuva seria algum tipo de arma disfarçada. lw Um guarda-chuva armífero. em Que teria sido responsável pelo ferimento na garganta que aparece no momento crítico do filme de Zapruder. É uma história sobre as teorias da conspiração e nossas tentativas de explicar os acontecimentos históricos em vista dos poucos indícios
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materiais, e como então aparecemos com as teorias conspiratórias mais desvairadas. lw Mas nenhuma mais desvairada do que o que estava realmente acontecendo. em Nenhuma mais desvairada que a história real. lw A saber? em Que o Homem do guarda-chuva — quando ele se revelou, muitos anos depois, respondendo aos pedidos do Congresso para que se identificasse — na verdade estava protestando contra as políticas de Joseph P. Kennedy, pai de John Kennedy, que tinha incentivado a pacificação e a aceitação de Hitler quando foi embaixador de Roosevelt na Inglaterra, nos anos que culminaram na Segunda Guerra Mundial. Era uma referência a Neville Chamberlain, que virou o bode expiatório da história. Neville Chamberlain com seu guarda-chuva fechado. lw O que, por sua vez, leva Tink a citar John Updike e sua teoria quântica da verdade. em Bom, o que ele falava no começo é se existe isso que chama de verdade. Desconfio que sou daqueles que acreditam na verdade. No fundo, sou um realista. Acredito sinceramente que existe um mundo real lá fora. lw John Keats. Que ele define como aquela condição “quando um homem é capaz de existir entre incertezas, mistérios, dúvidas, sem sentir nenhuma coceira de ir atrás dos fatos e das razões”. Você me dá a impressão de sentir uma coceira doida de ir atrás de fatos e razões. E ao mesmo tempo você também tem uma espécie de capacidade negativa. É capaz de existir entre incertezas, mistérios e dúvidas. Mas só depois de se coçar, coçar, cavar, cavar, explorar, até chegar ao ponto em que alcança essa noção de dúvida e mistério, ao ponto em que finalmente se acalma e se sente centrado. Isso faz algum sentido pra você? em Um pouco… lw Você não me dá a impressão de ser alguém com muita capacidade negativa de saída. Você acha que tem uma capacidade negativa inata? Quer dizer, afinal, você é aquele que tanto se coça e cava durante 75 páginas sobre meia dúzia de balas de canhão. em Uma das coisas que me incomodam em relação ao livro é que
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as pessoas ficam meio insatisfeitas. Eu faço tudo isso e ela pensam: ué, ficou por isso mesmo? Não sei o que querem. Será que vão mesmo ficar deprimidas se souberem que as fotos não são falsas nem verdadeiras? Que você não pode fazer nada para dar mais — ou menos — verdade a uma foto? É só uma foto. E todas as fotos são posadas. E ainda assim as pessoas se empenham em nos enganar com fotos, porque tentam nos enganar com praticamente qualquer coisa que esteja ao alcance delas. O desejo de enganar o outro talvez seja o desejo mais profundo e mais sincero da humanidade. lw Tem quem pense que foi por isso que se inventou a linguagem, para poder enganar os outros. em Era uma das minhas frases: inventamos a linguagem para poder mentir melhor. “A fera foi por ali.” “Achei que tinha ido por lá.” “Não, não, foi por ali.” lw Em seu Tractatus, Wittegenstein, quase com a mesma quantidade de páginas que você fala sobre as benditas imagens das balas de canhão, discorre em pontos enumerados sobre a natureza da relação entre o mundo e a linguagem, e finalmente chega ao ponto número 7 — que, na Criação, é o dia em que Deus descansa. Aí ele declara, de modo simples e desconcertante: sobre o que não se pode falar, deve-se silenciar. Mas sempre achei que, quando alguém diz meio à toa, por exemplo, “O que se pode dizer sobre o Holocausto, sobre a maldade Humana, ou sobre o que for? Devemos ficar em silêncio.”, sempre achei que o genial do ponto de Wittgenstein é que você tem de fazer por merecer o silêncio. Você tem de chegar a um silêncio honesto. E, em certo sentido, o que me impressiona em seu trabalho de ouriço é que você cava, cava, cava como uma perfuratriz turbinada até chegar à dúvida, ao espanto, ao assombro real e profundo. Você chega lá. Isso faz sentido. em Ah, faz. Legal o que você disse. lw Esteja dito. em É a busca do inefável… lw Ou de fazer por merecer o inefável. Aliás, quando estávamos falando da pose, percebi que temos o terceiro sentido da pose: P-O-E–apóstrofe-S. Poe’s. A pose de Poe. As perguntas difíceis, as posers, de Poe. em E não esqueça a citação que estou usando para meu próximo
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livro: o título vem da minha citação preferida entre todas. E vem a propósito do que você estava falando. Poe discorre sobre seu personagem William Wilson, que procura “um oásis de fatalidade num deserto de erros”. lw É um oásis de fatalidade? Ou um oásis de facticidade? em Em Poe, é fatalidade. Mas não sei bem o que ele quer dizer… tem isso também… Sempre achei, mas é muito possível que eu esteja errado, que significa um oásis de certeza. Um oásis de algo que você sabe com certeza. lw O que para Poe, aliás, seria a morte. em Isso, a certeza da morte. Um oásis de fatalidade, que expressão incrível. Eu tinha aquela edição Belknap das obras completas de Edgar Allan Poe, e no final tem um fac-símile do último conto. Você conhece “O farol”? lw Não. em Vale a pena olhar o conto e o fac-símile, porque o conto não termina, talvez nem pudesse jamais terminar. Vem bem ao acaso. Foi a última coisa que Poe escreveu. E ele fala desse farol. E naquele supremo detalhismo que é o estilo de Poe, ele discorre longamente sobre o farol: que se situa em algum lugar do mar, furiosamente açoitado pelas ondas e pelos ventos. Mas não há por que se preocupar, pois o farol se ergue sobre uma fundação indestrutível, inexpugnável, em leito de rocha e com âncoras de ferro. A estrutura jamais cederia sob o impacto de coisa alguma. E ele continua, vai em frente. Tem um parágrafo sobre a resistência indestrutível do farol e outro parágrafo sobre a fúria dos temporais e das correntes oceânicas em torno do farol. E há montes de reticências. O texto é lindíssimo. E ele avança e recua assim — a fundação incrível, o mar terrível. E aí, na hora em que ele começa outra celebração dos alicerces, vem uma segunda frase: “Mas, pelo que parece, a fundação pode ser de calcário”. E aí vêm reticências. Termina assim. lw É bem uma fatalidade no deserto de erros. em Pode existir coisa melhor? lw Sabe o que também é engraçado nisso? Um farol é monocular… em Meu Deus! Publicado originalmente na revista de fotografia Zum #2, abril de 2012, Instituto Moreira Salles. www.revistazum.com.br
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O conhecido desconhecido: Uma entrevista com Errol Morris
O conhecido desconhecido começa com o plano de um oceano aparentemente infinito. Por quê? No meu filme Vernon, Florida, há um homem chamado Albert Bitterling que conta uma história sobre dois marinheiros que estão olhando para o oceano, quando um marinheiro diz ao outro: “Sabe, há um monte de água lá fora” — e o outro marinheiro responde: “Sim, e isso é apenas a superfície”. A água é uma expressão do desconhecido. Você olha para aquela superfície cintilante e se pergunta: “o que está por baixo de tudo isso?”. Este é o mistério que sempre investigo em meus filmes — o que está acontecendo na cabeça dessas pessoas? O que costumo encontrar é o autoengano, a autoimportância e a autossatisfação — um pensamento fantasmagórico. Passei 33 horas com Donald Rumsfeld e descobri que ele é o “personagem Errol Morris” por excelência. Por que você quis entrevistar Rumsfeld? Muitos podem dizer que ele já teve mais do que oportunidades suficientes para contar sua história. Rumsfeld desagrada a tantos que muitos sequer se dão ao trabalho de olhar para ele e ouvir o que ele tem a dizer. Talvez seja muito sofrido. É mais fácil rejeitá-lo do que desenvolver alguma reflexão sobre quem ele é e o que diz. Tive vontade de filmá-lo depois de ler sua autobiografia, Known and Unknown: A Memoir — um verdadeiro tijolo — em 2011 e descobrir que ele havia produzido dezenas de milhares de memorandos. Vinte mil só durante o governo Bush. Esses memorandos exercem um fascínio estranho sobre mim. Eu não consigo precisar para que eles existem. Seriam eles apenas instruções a seus colegas e associados? Trata-se de uma tentativa genuína de compreender política, decisões e ideologias? Ou será que foram escritos para que Rumsfeld continuasse com o domínio de sua história determinando como ele poderá ser visto no futuro? Ou todas as anteriores? Estes memorandos nos dão um caminho sobre como enxergar o que se passa por dentro de sua cabeça. Eu vi isso como uma chance de construir a história a partir dessas anotações, explorando a disjunção entre a forma como Rumsfeld quer e espera ser visto e o que ele realmente é, do que ele é feito. A oportunidade de
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tê-lo lendo estes memorandos, enquanto contextualiza e discute-os comigo foi, para mim, a razão mais poderosa para realizar o filme. Afirmar que eu cheguei ao filme sem ideias concretas sobre Rumsfeld e suas políticas seria falso e hipócrita. Eu fui fortemente contra a guerra do Iraque e ainda sou — acho que foi um erro terrível. Mas acredito que fiz este com espírito investigativo, a partir de um desejo genuíno de investigar e descobrir algo que eu não poderia ter tomado conhecimento antes ou de outra forma. “O conhecido desconhecido” foi um termo usado em uma famosa declaração de Rumsfeld dada durante uma coletiva de imprensa em 2002, antes da invasão do Iraque. Por que você decidiu usar este termo como título de seu filme? Rumsfeld é uma figura que todo mundo conhece, sua imagem foi onipresente durante os primeiros anos de administração. E, ainda assim, a pergunta persiste: quem é Donald Rumsfeld? Quem é esta pessoal que todos nós conhecemos em algum nível? Eu vejo Rumsfeld como um conhecido desconhecido. Poucas pessoas perceberam que estas palavras “Conhecer, saber, conhecidos, desconhecidos” estavam em um memorando chamado To Discuss with P. datado do dia 21 de maio de 2011 — meses antes do aniversário de 10 anos do 11 de setembro. Também está neste memorando a frase “a ausência de evidência não é evidência de ausência”. Rumsfeld notoriamente ironizou os “conhecidos” e “desconhecidos” no dia 12 de fevereiro de 2002, em uma resposta à pergunta de Jim Miklaszewski da nbc News sobre a ligação entre Saddam Hussein e grupos terroristas. Em vez de responder à pergunta de Miklaszewski, Rumsfeld se esquiva em uma espécie de evasão filosófica: “Você sabe, existem coisas que nós conhecemos, coisas que não conhecemos e coisas que nós sequer nos damos conta de que não conhecemos”. Um outro repórter o interrompe e diz: “Mas ele não te perguntou sobre algo desconhecido. Ele perguntou se você conhece evidências de que o Iraque forneceu, ou está disposto a fornecer, armas de destruição em massa a terroristas”. Em outras palavras, nós não queremos discutir a natureza da guerra — nós vamos à guerra! Para mim, a coisa mais marcante do filme é como a Guerra do Iraque está claramente “indo para o Sul” — ao invés de admiti-la, Rumsfeld fala por horas e horas sobre o significado das palavras, sobre semântica, sobre este dicionário versus o outro dicionário, esta definição versus aquela definição. Eu acredito que George Orwell teria olhado com bons olhos para este esforço.
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Muitas das máximas de Rumsfeld são contraditórias. Ele afirma algo para em seguida dizer o oposto. Ele diz: “Se você quer a paz, prepare-se para a guerra” ou “A crença na inevitabilidade do conflito pode se tornar sua principal causa”. Uma amiga minha matemática assistiu a um corte do filme e disse: Você está ciente de que ele está constantemente se contradizendo?” — e eu disse: “Sim, este pensamento me ocorreu, sim”. Então ela apontou para algo que eu também estava ciente e que é absolutamente verdade — na lógica, se você partir de uma contradição, você pode provar qualquer coisa. Muitas das crenças de Rumsfeld — como a necessidade de uma defesa agressiva para ter paz — parecem ter raiz em suas idéias sobre Pearl Harbor como uma “falha de imaginação”. Fiquei muito assustado com essa fala. Devemos simplesmente imaginar as coisas? E agir desse jeito? Ele cita essas palavras de uma introdução escrita por Thomas Schelling para o livro de Roberta Wohlstetter Pearl Harbor: Warning and Decision, sobre as falhas da inteligência que desencadearam em Pearl Harbor. Mas essas palavras não estão na introdução de Schelling. E o que você ganha? A Guerra do Iraque. Você não precisa usar o petróleo, o desejo de uma hegemonia mundial ou do “facismo islâmico” como desculpa para entrar em guerra. Tudo que você precisa é de um pensamento louco. Você imagina o pior e age como se ele de fato fosse acontecer. Ele diz “Eu gostaria que nós pudessemos enxergar além”. Bem, para enxergar além é preciso olhar. Algumas vezes quando Rumsfeld conta histórias sobre outras pessoas, parece que ele está falando de si mesmo. E ele não parece ter consciência disso. É porque todos nós temos uma capacidade de negação enorme. Sempre tentamos evitar olhar para nós mesmos. Não é isso que torna a vida possível? Você acha que foi duro o suficiente com ele? Ele teria te contado mais coisas se você o tivesse pressionado mais? Eu nenhum momento disse a ele: “Eu acho que o que você fez foi incrivelmente errado e contra as leis internacionais. E eu posso defender a decisão de não ter feito isso em diversos níveis. Se a intenção fosse terminar a entrevista rapidamente ou criar uma fricção onde o personagem se levanta e vai embora em um segundo, isso seria fácil de conseguir em qualquer momento. Essa não era a minha ideia. Eu queria aprender algo nas entrevistas — não oferecer apenas o esperado confrontamento dramático.
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Eu percebi que ele estava respondendo minhas perguntas do jeito dele. Ele estava me contando uma história poderosa sobre si mesmo e sobre sua visão de mundo, e tudo estava ali. Agora, existe essa noção inocente sobre jornalismo investigativo que é a de que receberemos uma chave que abre uma caixa trancada e vamos poder ouvir os segredos mais obscuros e profundos da história. E frequentemente o que é mais aterrorizante é que abrimos a caixa trancada e ela está vazia. Qual é a conexão entre O conhecido desconhecido e seu filme anterior Sob a névoa da guerra? Entre Robert McNamara e a Guerra do Vietnã e Donald Rumsfeld e o Iraque? Sob a névoa da guerra levanta a questão: “McNamara sente muito? E sentir muito faz diferença quando estamos falando sobre a morte de milhões de pessoas?”. Não há essa dúvida quando tratamos de Rumsfeld. Ele não está arrependido. Ele gostaria que acreditássemos que o governo Bush fez o melhor que podia fazer em um momento estressante de nossa História. Mas mais do que isso, ele não quer mostrar fraqueza ou duvidar de si mesmo. O filme que fiz com Rumsfeld é extremamente diferente de Sob a névoa da guerra. É um estudo de personagem acerca de um tipo distinto de personagem: é sobre uma mente que pode parecer ser aberta, mas pode, na realidade, ser encarada como um cofre. Para mim, O conhecido desconhecido é um filme mais profundo. Faz a pergunta: “Nós, enquanto pessoas ou enquanto país, realmente sabemos quem somos ou o que estamos fazendo? Ou estamos trancados em uma rede de ideias, dentro de uma imagem de nós mesmos que nos protege de ver a verdade até que seja tarde demais?” Minha esposa, Julia, compara Robert McNamara com o navio fantasma Flying Dutchman, viajando ao redor do mundo procurando por uma redenção que nunca encontrará. E ela vê Rumsfeld como o gato Cheshire, da Alice — tudo que resta no fim é seu sorriso.
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Cronologia
Errol Mark Morris é filho de Cinnabelle Burzinsky e Abner Morris. Abner era médico, cresceu na cidade de Far Rockaway, Nova York, e estudou na Escola de Medicina da Universidade de Edimburgo. Cinnabelle, professora de francês e de piano, foi criada no Lower East Side e estudou na Universidade de Columbia. 1942 Nasce em Hewllet, Nova York, Noel Morris, o único irmão de Errol. Formado pelo prestigiado Instituto de Tecnologia de Massachusetts, ele faleceu em 1984. Noel foi cientista da computação e um dos inventores do e-mail. Era considerado por Morris (e por diversas outras pessoas) o gênio da família. 1948 No dia 5 de fevereiro, também em Hewllet, nasce Errol. 1950 Morre Abner Morris. 1954 Errol estuda violoncelo na Escola Julliard e recebe 87 em um teste de QI. Mr. Flick, seu orientador, garante que ele parece ser mais inteligente do que de fato é. 1964 Estuda harmonia e violoncelo no Conservatório Americano em Fontainebleu, na França. Lá têm aulas com Nadie Boulanger. 1965 Se forma pela escola Putney, em Vermont, depois de ser punido com uma expulsão de três anos.
1969 Se forma em História pela Universidade de Wisconsin. Durante o período, estudou com George Mosse, Harvey Goldberg e William Appleman Williams. Passa a maior parte do seu tempo escalando montanhas. Escreve o Guia do Escalador de Devil’s Lake. Compõe o seguinte provérbio para seu frontispício: “Aquele que não sobe, não cai.” 1971 Cursa um programa superior de ensino no Departamento de História, Filosofia e Ciências da Universidade de Princeton. Assiste ao seminário “Nomeação e Necessidade”, de Saul Kripke. Estuda com Thomas Kuhn, responsável por sua expulsão do programa. 1973 Estuda no Departamento de Filosofia da Universidade da Califórnia, em Berkeley. Acha o departamento deprimente e passa a se dedicar à programação de filmes de Tom Luddy, diretor do Pacific Film Archive. 1974 Sob a proteção de Bernard Diamond, supervisor da Escola de Criminologia de Berkeley, Morris dá início a uma série de entrevistas com Ed Gein e Ed Kemper, dois assassinos em massa. É preso ao tentar invadir um hospital psiquiátrico em Winnebago, Wisconsin. 1975 Faz suas primeiras tentativas no cinema. Grava diversas cenas de um filme que nunca chegou a concluir: A Chance to Live, a Chance to Die. O projeto envolvia personagens excêntricos que fascinavam Morris à época, como um cantor soprano que canta apenas uma nota.
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1976 Trabalha como produtor no filme Stroszek, de Werner Herzog. Os dois planejam a exumação do corpo da mãe de Gein (entrevistado por Morris em 1972) de sua sepultura no cemitério Plainfield. Morris faz a primeira de suas várias viagens a Vernon, na Flórida, também conhecida como Nub City. Sua ideia é investigar os extraordinários incidentes envolvendo fraude nos seguros sociais e automutilação. 1978 Realiza seu primeiro longa, Portais do céu, eleito um dos 10 melhores filmes de todos os tempos pelo crítico Roger Eberts. 1981 Lança Vernon, Florida. O filme ganha uma nova abordagem depois de Morris receber diversas ameaças de morte durante sua temporada na cidade. 1982 Não consegue encontrar nenhum investidor para seus filmes e acaba se tornando detetive particular em Nova York. 1984 Morre Noel, irmão de Errol. 1985 Casa-se com Julia Sheehan, formada em História da Arte. 1987 Nasce Hamilton, primeiro filho de Morris. 1988 Dirige seu mais importante filme, A tênue linha da morte. O longa toma de assalto a opinião pública ao provar de maneira legítima que um homem estava condenado erroneamente à cadeira elétrica. Randall
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Adams, o inocente, é libertado três meses após o lançamento nos cinemas. E três meses depois de libertado, Adams processaria Morris alegando que o diretor ganhou muito dinheiro a partir da história de sua vida. Morris provaria em tribunal que, ao contrário de lucrar, teve prejuízo financeiro com o filme. O documentário é votado como um dos 10 melhores filmes do ano pelo jornal Washington Post, além de receber o prêmio de melhor documentário pela Associação de Críticos de Nova York. 1990 Recebe as concorridas bolsas de estudo MacArthur “Genius” e Guggenheim. 1991 Seu filme Uma breve história do tempo, inspirado no livro homônimo de Stephen Hawking, recebe o grande prêmio no Sundance Film Festival. Morris conclui as filmagens de seu único filme de ficção, A brisa da morte. Após seguidos desentendimentos com os produtores, perde o direito de montagem do filme. Morris diz nunca ter assistido A brisa da morte. 1997 Dirige Fast, Cheap & Out of Control, primeiro filme em que Morris usa seu Interrotron, sistema de entrevistas mediado por teleprompters que faz com que os entrevistados olhem para o centro da lente em seus depoimentos. O Interrotron jamais seria abandonado. O longa foi eleito o melhor documentário do ano pela National Board of Review e melhor filme não ficcional pela Associação de Críticos de Nova York. Morris se torna o primeiro documentarista a receber o prêmio de melhor diretor na IFP Gotham Awards.
1999 Lança Mr. Death: A Ascensão e Queda de Fred A. Leuchter Jr. Ganha uma mostra retrospectiva de sua obra no Museu de Arte Moderna e no lacma.
congelando cadáveres para reanimá-los no futuro, e seria engavetado no ano seguinte. Chega às livrarias seu primeiro livro como único autor, Believing is Seeing (Observations on the Misteries of Photography).
2000 Estreia a primeira temporada de sua série de tv First Person no canal Bravo. Vira tema de documentário no filme A Brief History of Errol Morris, de Kevin Macdonald.
2012 Ao lado de Werner Herzog, atua pela primeira vez como produtor executivo em um filme não dirigido por ele: o longa O ato de matar, de Joshua Oppenheimmer. Dirige os curtas El Wingador e 11 Excellent Reasons Not to Vote para o jornal The New York Times, além de Team Spirit, para o canal de esportes espn. Lança seu segundo livro, A Wilderness of Error: The Trials of Jeffrey MacDonald. Aqui, Morris volta às raízes de A tênua linha da morte, mas, desta vez, analisa um caso de pena de morte dos anos 1970, no qual prova, através da análise de milhares documentos, como a execução de Jeffrey MacDonald por assassinato de sua mulher grávida e suas duas filhas foi equivocada. O livro levou 10 anos de trabalho.
2003 Dirige Sob a névoa da guerra, sobre o mais notório Secretário de Defesa americano, Robert McNamara. O filme, uma derivação da série de tv First Person, é vencedor do Oscar de melhor documentário. 2008 Lança Procedimento operacional padrão durante o Festival de Berlim, onde recebe o prêmio especial do júri. Dirige comerciais para a campanha presidencial de Barack Obama e o curta Survivors para a Fundação Stand Up to Cancer. 2009 Estreia Tabloide, documentário sobre a ex-miss Joyce McKinney, durante o Festival de Toronto. Após o lançamento, Morris é processado por sua protagonista, que alega ter sido enganada. O diretor foi absolvido em todas as instâncias. 2011 Dirige o curta The Umbrella Man para o jornal The New York Times e They Were There para a companhia ibm. Anuncia seu primeiro filme de ficção, Freezing People is Easy, que lida com o mesmo tema de um dos episódios de sua série First Person. O projeto envolvia as memórias de Bob Nelson, um dos primeiros cientistas a testar a criogenia
2013 Exibe no Festival de Veneza o longa O conhecido desconhecido: A era Donald Rumsfeld, no qual novamente conversa com um ex-Secretário de Defesa dos Estados Unidos. Dirige o curta November 22, 1963 para o jornal The New York Times. 2014 Trabalha na pré-produção de seu décimo segundo longa, a ficção Holland, Michigan, com estreia prevista para 2015. O filme trará no elenco nomes como Bryan Cranston e Naomi Watts.
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3. FILMES longas-metragens Portais do céu 2 Vernon, Florida 4 A tênue linha da morte 6 Uma breve história do tempo 8 Fast, Cheap & Out of Control 10 Mr. Death: A ascensão e queda de Fred A. Leuchter Jr. 12 Sob a névoa da guerra 14 Procedimento operacional padrão 16 Tabloide 18 O conhecido desconhecido: A era Donald Rumsfeld 20
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curtas-metragens Survivors 22 The Umbrella Man 23 They Were There 24 El Wingador 25 11 Excellent Reasons Not to Vote? 26 Team Spirit 27 November 22, 1963 28 série de tv First Person 29 programação extra Werner Herzog come seu sapato 35 O ato de matar 36 A Brief History of Errol Morris 38
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Portais do céu Gates of Heaven eua, 1978, cor, 85’ direção Errol Morris produção Errol Morris George Csicsery direção de fotografia Ned Burgess montagem Errol Morris Charles Laurence Silver música Dan Harberts com Lucille Billingsley Zella Graham Cal Harberts Dan Harberts Phil Harberts Scottie Harberts Mike Koewler Floyd McClure Ed Quye Florence Rasmussen
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Em sua estreia como documentarista, Errol palavras de morris Morris acompanha as histórias de dois “Portais do céu reúne, de forma perversa, cemitérios de animais em situações distintas. tudo que existe em minha mente anti-vérité, Enquanto o estabelecimento de beira de no sentido de imaginar todas as exigências estrada do inocente Floyd McClure vai mal, de estilo e fazer rigorosamente o oposto. Ao a família Harberts aplica os mais modernos invés de discreto, sou o mais invasivo possíconceitos de marketing para o sucesso de vel. Coloco as pessoas em frente à câmera, seu negócio. Através do olhar de Morris, a olhando diretamente para a lente, tudo com história dos dois cemitérios de animais na muita luz. Reenceno, adiciono outros mateCalifórnia transforma-se em um excêntrico riais. Atribuem a Godard a frase ‘filme é verretrato do sonho americano. dade em 24 quadros por segundo’. Eu prefiro ‘filme é mentira em 24 quadros por segundo’.” Portais do céu está na lista dos 10 maiores outras palavras filmes de todos os tempos segundo Roger Ebert, o mais respeitado crítico americano, “Em seu primeiro trabalho, o diretor Errol Morris faz seus antecessores parecerem desde os anos 80. deselegantes, desajeitados e equivocados.” Foi a partir da incredulidade de que um Alan Berger, Boston Herald filme com este assunto jamais seria feito que Werner Herzog levou à frente sua aposta “Algumas pessoas acreditam que Portais de comer o próprio sapato no dia que do céu é um filme sobre animais. Outros este documentário estreasse. O histórico apostam que é um filme sobre a vida e a momento deu origem ao curta-metragem morte. Uma vez, mostrei-o a um grupo de Werner Herzog come seu sapato. banqueiros, que acreditou ser um verdadeiro tratado sobre sucesso e como iniciar Errol Morris, cineasta de primeira viagem, um pequeno negócio. Se uns pensam que ainda na faculdade, demitiu três fotógrafos Morris amava seus personagens, outros até chegar em Ned Burgess. classificam sua conduta como tremendamente cruel. (…) Um filme sobre esperança — esperança alimentada pelas mais solitárias pessoas já retratadas no cinema.” Roger Ebert, Chicago Sun-Times
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Vernon, Florida eua / Alemanha, 1981 cor, 56’ direção Errol Morris empresa produtora Television Laboratory wnet/Thirteen zdf Errol Morris Films
produção Errol Morris David Loxton diretor de fotografia Ned Burgess montagem Brad Fuller música Claude Register com Albert Bitterling Claude Register Snake Reynolds Henry Shipes
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Os habitantes da remota e pantanosa cidade de Vernon, na Flórida, discutem assuntos diversos e peculiares como a caça de peru, o grunhir dos crocodilos, o sentido da palavra portanto ou da vida. Em seu segundo trabalho, originalmente intitulado Nub City, Morris pretendia investigar os diversos casos de amputação voluntária que aconteciam na região em troca de benefícios do seguro-saúde. O projeto original foi sendo modificado diante das inúmeras ameaças de morte sofridas por Morris durante as gravações. Além das ameaças dirigidas a Morris a fim de desencorajá-lo a dar continuidade às filmagens de Nub City, um policial local — uma espécie de “Rei dos Nubbies” — teria tentado atropelar o diretor de fotografia do filme, Ned Burgess, durante sua estadia em Vernon. Aclamado pela crítica em seu lançamento, foi largamente atribuído ao filme por parte da crítica norte-americana a responsabilidade de ter trazido novamente filmes de não ficção à atenção do público nos anos 1980.
palavras de morris “Minha regra de ouro é deixar as pessoas sozinhas, deixá-las falar e, em dois minutos ou três, elas nos mostrarão o quão loucas elas realmente são.” outras palavras “Na superfície, este é um simples retrato de diversos moradores excêntricos de uma pacata cidade. No entanto, há algo de Samuel Beckett, um tom divertido de esperança e desespero; algo de Buster Keaton em seu timing cômico. Vernon, Florida não é sociologia, e sim um pastelão filosófico, um filme tão estranho e misterioso quanto os assuntos que aborda.” David Ansen, Newsweek “Nenhum outro cineasta tem o dom de registrar pessoas malucas como Morris. Até mesmo os seminormais parecem ser alienígenas através de seu olhar.” John Nesbit, Old School Reviews
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A tênue linha da morte The Thin Blue Line eua, 1988, cor, 103’ direção Errol Morris empresa produtora American Playhouse
produção Mark Lipson Lindsay Law diretor de fotografia Robert Chappell Stefan Czapsky montagem Paul Barnes música Philip Glass com Randall Adams David Harris Gus Rose Jackie Johnson Marshall Touchton Dale Holt, Sam Kittrell Hootie Nelson Dennis Johnson Floyd Jackson Edith James Dennis White Don Metcalfe Emily Miller R.L. Miller
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Em 1976, o assassinato de um policial durante uma abordagem rotineira de trânsito provoca comoção pública em Dallas, no Texas. Mais de dez anos depois, Randall Adams, preso e condenado à morte pelo crime, está prestes a ser executado. Morris soube da história por acaso. Convencido da inocência de Adams, ele se lança à reconstituição da cena do crime e acaba evitando a tragédia. De uma lógica perturbadora, esta radiografia de um erro do sistema judicial americano é responsável por fundar um novo formato não ficcional, reproduzido até hoje no cinema e na televisão. Após provar a inocência e libertar Randall Adams do corredor da morte, Errol Morris foi processado por seu personagem. Adams alegou que o diretor havia feito fortuna explorando sua história. Morris foi absolvido ao comprovar que perdeu dinheiro durante a realização do filme e não o contrário. Errol Morris passou dois anos e meio apenas convencendo os envolvidos no caso a participar do filme. A tênue linha da morte foi eleito um dos mais importantes e influentes filmes da década de 1980, segundo a revista Première.
palavras de morris “As reencenações de A tênue linha da morte não pretendem levar o espectador a crer que está olhando para o mundo real. Elas são, na verdade, reencenações irônicas, em conflito entre elas, são reencenações que demonstram falsidades, versões do que as pessoas acreditam ter visto e não do que eu acho que elas viram de fato. O artifício aprofunda o mistério mais do que revela o que aconteceu. A ideia era aumentar o conflito entre as alegações feitas pelas várias testemunhas e a realidade. Porque, no final das contas, há um mundo lá fora onde as coisas acontecem e não acontecem.” outras palavras “Se houvesse um inferno na terra, ele seria em Dallas.” Randall Adams “Um filme poderoso e estranhamente eletrizante. Morris parece querer elevar nossa habitual apreensão em relação ao mundo real ao campo da paranoia, nos induzindo ao estado de espírito de um detetive cujo exame minucioso das evidências aos poucos se torna uma alucinação febril.” Terrence Rafferty, The New Yorker
Suas diversas reencenações de múltiplos ângulos e de diferentes versões de um crime tornou o filme inelegível à disputa do Oscar de melhor documentário. Os critérios de seleção foram reavaliados no ano seguinte.
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Uma breve história do tempo A Brief History of Time eua, 1992, cor, 84’ direção Errol Morris empresa produtora Anglia Television Gordon Freedman
produção David Hickman Gordon Freedman Rory Johnston diretor de fotografia John Bailey Stefan Czapsky montagem Brad Fuller música Philip Glass com Stephen Hawking Isobel Hawking Net Humphrey Mary Hawking Basil King Derek Powney Norman Dix Robert Berman Gordon Berry Roger Penrose Dennis Sciama John Wheeler Brandon Carter John Taylor Kip Thorne Don Page
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O documentário coloca em paralelo algumas palavras de morris teorias do homônimo best-seller de Stephen “O mais belo filme que já realizei.” Hawking e a própria história de vida do físico, tido como uma das mentes mais brilhantes outras palavras de todos os tempos. Errol Morris lança mão “Algumas teorias de Hawking são ilustradas de gráficos, entrevistas e material de arquivo por belos e claros gráficos. No entanto, as em uma série de perguntas como “de onde ideias se tornam menos importantes diante veio o universo?”, “o tempo chegará um dia da presença de mentes ágeis trabalhando, ao fim?”, “quem veio primeiro foi o ovo especulando, teorizando, pesquisando ou a galinha?”, mas, sobretudo, “o tamanho ou questionando. Uma Breve História do da mente de um homem pode ser maior que Tempo é uma espécie de aventura que rarao tamanho do universo?”. mente chega às telas, um filme revigorante.” Vincent Canby, The New York Times Uma breve história do tempo foi original“Morris é um homem íntegro, coisa pouco mente idealizado pelo produtor Gordon frequente no mundo do cinema.” Freedman. Foi Steven Spielberg quem Stephen Hawking sugeriu o nome de Errol Morris para a direção. Vencedor do grande prêmio do júri no Sundance Film Festival 1992. Primeiro documentário de Errol Morris a ter todas as entrevistas filmadas em um cenário construído especialmente para o filme.
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Fast, Cheap & Out of Control eua, 1997 cor e p&b, 82’ direção Errol Morris empresa produtora Fourth Floor Productions
produção Errol Morris Lindsay Law diretor de fotografia Robert Richardson montagem Shondra Merrill Karen Schmeer música Caleb Sampson com Dave Hoover George Mendonça Ray Mendez Rodney Brooks
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Quatro homens e suas obsessões envolvendo animais. Dave Hoover é domador de leões e partilha as suas teorias sobre a mente de animais silvestres; George Mendonça é um jardineiro que dedicou uma vida inteira para cuidadosamente moldar ursos e girafas em heras e árvores; Ray Mendez é um aficionado por ratos-toupeira-pelados enquanto Rodney Brooks, cientista do Massachusetts Institute of Technology, concebeu robôs autônomos que podem rastejar como bichos.
palavras de morris “Os dois últimos filmes que fiz tratam de conceitos extremos: um homem inocente na cadeia e o cientista mundialmente famoso que, confinado em uma cadeira de rodas, estuda o universo. Fast, Cheap & Out of Control realmente não é este tipo de filme. Ele funciona de uma forma totalmente distinta, baseado em formas diferentes de se contar histórias. (…) Um filme que se presta a toda uma variedade de abordagens.”
Primeiro filme em que Morris usa seu Interrotron, sistema de entrevistas mediado por teleprompters que faz com que os entrevistados olhem para o centro da lente em seus depoimentos. O Interrotron jamais seria abandonado.
outras palavras “Cada um dos personagens é fascinante a seu modo, mas são as justaposições e conexões criadas por Morris — mistura de entrevistas e imagens de arquivo de um circo ou cenas do kitsch Clyde Beatty e leões domesticados — que disparam fogos de artifício em nossas cabeças.” David Ansen, Newsweek
Também foi o primeiro documentário escancaradamente cômico da carreira de Morris. No filme, Morris utilizou diversos formatos e resoluções como 35mm, 16mm, Super 8 e vídeo, assim como imagens de arquivo, filmes antigos e animações. Primeiro documentário para o cinema do fotógrafo Robert Richardson.
“Bem-humorado, inventivo e extremamente original, Fast, Cheap & Out of Control é ainda mais inclassificável que qualquer um dos filmes anteriores do iconoclasta Errol Morris.” Todd McCarthy, Variety
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Mr. Death: A ascensão e queda de Fred A. Leuchter Jr. Mr. Death: The Rise and Fall of Fred A. Leuchter, Jr. eua, 1999, cor, 96’ direção Errol Morris empresa produtora Independent Film Channel Productions
produção Errol Morris David Collins Dorothy Aufiero Jonathan Sehring John Sloss Michael Williams diretor de fotografia Peter Donahue montagem Karen Schmeer música Caleb Sampson com Fred A. Leuchter Jr. Robert Jan Van Pelt
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Fred A. Leuchter Jr. pretendia se tornar um herói humanitário do corredor da morte, para o qual tinha a missão de desenvolver cadeiras elétricas, injeções letais, forcas e câmaras de gás. Em 1988, Ernst Zündel, editor de livros como The Hitler We Loved and Why, confiou a Leuchter a tarefa de conduzir uma investigação forense a fim de provar que o Holocausto nunca aconteceu. O que Leuchter via como uma oportunidade para coroar sua carreira acabou por arruiná-la. Morris ignora o discurso mais óbvio sobre o fanatismo para examinar as origens do mal, da vaidade e do autoengano. Mr. Death é amplamente tratado por Morris como o melhor filme de sua carreira. Morris detesta o título Mr. Death. Ele gostaria que o filme se chamasse Honeymoon in Auschwitz (Lua de mel em Auschwitz). O filme é, de longe, o mais controverso do diretor, que foi acusado de dar voz a um homem de ideias extravagantes, inventor de inúmeros métodos eficazes de pena de morte, e que, de maneira mais ostensiva, acreditava que o Holocausto não passava de uma farsa. Errol Morris levou cerca de cinco anos e meio para conseguir um patrocinador interessado em associar sua marca ao projeto. Morris é judeu e teve parentes mortos durante o Holocausto.
palavras de morris “Após uma sessão, um espectador furioso me perguntou: ‘Como você ousa ligar a pena de morte americana ao Holocausto?’ E a minha resposta — e eu gostaria de ter dado uma resposta um pouco diferente — foi que não sou eu quem está fazendo esta ligação, mas sim Fred, e que pra mim existe uma enorme diferença entre as duas coisas. Existe uma diferença entre ser julgado, condenado e executado e em ser assassinado. E todo o nosso sistema judiciário é baseado nesta diferença. Colocar homens, mulheres e crianças num vagão, transportá-las por milhares de milhas através da Europa e assassiná-las em câmaras de gás não é a mesma coisa que as execuções americanas. Porém, existe uma mesma ideia da qual ambas as situações comungam: a ideia de morte como solução.” “Não é por acaso que duas pessoas obcecadas pela por morte, ou seja, eu e Fred Leuchter, nos encontramos em Auschwitz, o epicentro da morte do século 20.” outras palavras “Uma reflexão brilhante e provocante sobre a natureza do mal, da inocência e da verdade. (…) Após Mr. Death, será impossível até mesmo para o mais estúpido dos criminosos clamar por inocência novamente.” Ron Rosenbaum, New York Observer “Leuchter é um animal estranho e ao mesmo tempo comum, que se lambuza no mal pela crescente convicção de que seu destacamento o mantém distante das áreas mais obscuras do espírito humano. (…) Morris tem o dom de fazer seus entrevistados se exporem para sua câmera e o ego de Leuchter não deixa esta oportunidade passar.” Paul Tatara, cnn
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Sob a névoa da guerra The Fog of War eua, 2002, cor, 95’ direção Errol Morris empresa produtora @Radical.Media Senart Films
produção Michael Williams Julie Ahlberg Errol Morris diretor de fotografia Peter Donahue Robert Chappell montagem Karen Schmeer Doug Abel Chyld King música Philip Glass com Robert S. McNamara
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A história militar recente dos Estados Unidos do ponto de vista de Robert S. McNamara, ex-Secretário de Defesa nos governos Kennedy e Johnson. Um dos mais controversos políticos americanos, McNamara, que também já presidiu o Banco Mundial, tenta explicar o motivo do século 20 ter sido tão violento. Desde o bombardeio de centenas de milhares de civis em Tóquio, em 1945, até os efeitos da guerra do Vietnã, o filme examina a combinação de fatores políticos, sociais e psicológicos que envolvem os conflitos armados. No longa, McNamara desenvolve onze lições para situações de enfrentamento. McNamara, a princípio, aceitou conceder uma entrevista de uma hora a Errol Morris, que faria dela um episódio de sua série de tv First Person. A entrevista acabou durando cerca de oito horas e ficou acordado para o dia seguinte mais uma diária de conversas. Outras duas entrevistas aconteceram um mês depois. Sob a névoa da guerra, assim como a série de tv, conta apenas com um personagem que, sentado em uma cadeira, tem sua vida e excentricidades revistas.
palavras de morris “Minha ideia era reconstruir a história a partir da perspectiva de McNamara. O que gosto de lembrar às pessoas é que a consciência é sempre uma reencenação, nós estamos constantemente reconstruindo o mundo para nós mesmos.” outras palavras “Distanciando-se das excentricidades para resolver alguns dos principais problemas de uma grossa fatia da história, Errol Morris realiza um documentário convincente, reflexivo e absolutamente envolvente. Muitos irão assisti-lo com opiniões já formadas a respeito de sua figura central, o ex-Secretário de Defesa McNamara, mas logo se sentirão encorajados a se abrirem à exploração complexa de Morris sobre questões morais, fraqueza humanas e evidências históricas que podem não mudar a posição do espectador, mas irão enriquecê-la.” Todd McCarthy, Variety “Um retrato devastador do autoengano. (…) Um dos filmes mais complexos e instigantes que vi em muitos anos.” Ron Ronsenbaun, New York Observer
O filme recebeu o Oscar de melhor documentário em 2003. Antes de estrear no Brasil, o filme circulou por festivais de cinema com o título provisório de As brumas da guerra.
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Procedimento operacional padrão Standard Operating Procedure eua, 2008, cor, 118’ direção Errol Morris empresa produtora Participant Productions
produção Laura Ahlberg Julie Ahlberg Errol Morris diretor de fotografia Robert Chappell Robert Richardson montagem Andy Grieve música Danny Elfman
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Uma imagem é capaz de mudar o mundo? Fotografias tiradas por soldados na prisão de Abu Ghraib transformaram a Guerra do Iraque e a imagem das forças armadas norte-americanas junto ao público. No entanto, o mistério central permanece. Serão as notórias fotografias de Abu Ghraib uma evidência dos abusos sistemáticos do exército americanos em território iraquiano ou as imagens apontam apenas para a conduta reprovável de algumas maçãs podres da corporação? Esta é uma minuciosa investigação sobre o que está por trás destas fotografias. Procedimento operacional padrão foi o primeiro documentário a concorrer ao Urso de Ouro no Festival de Berlim em 2008 e saiu com o prêmio especial do júri e vencedor do prêmio da crítica. Após a realização deste filme, Morris se debruçou sobre pesquisas relativas à ilusão da fotografia. Sua obsessão deu origem a dois livros: Procedimento operacional padrão e Believing Is Seeing. Dois fotógrafos assinam o filme, mas suas funções foram bem delimitadas. Robert Chappell cuidou apenas e tão somente das entrevistas. O responsável por todas as reencenações ultraestilizadas foi Robert Richardson, vencedor de três Oscars.
palavras de morris “Durante uma guerra baseada na humilhação sexual, alguém fotografa um homem iraquiano sendo humilhado por uma mulher norte-americana. A foto vaza e humilha o governo que, por sua vez, deseja humilhar o autor da fotografia, colocando-o na cadeia e condenando-o por todos os problemas que existem na guerra. Se algum gênio do mal fosse chamado para inventar um mundo mais depravado e perverso, ele não conseguiria fazer melhor do que isso.” outras palavras “E Errol Morris continua o mesmo: é um cineasta investigativo, um profissional da especulação. Em Procedimento operacional padrão, ele exercita seu talento para reunir e ordenar evidências e informações e para explorar a relação sempre problemática e fascinante entre a realidade e a ficção, entre o fato e suas versões, fazendo uma investigação epistemológica a respeito da natureza da fotografia, um escrutínio sobre suas limitações.” Julio Bezerra, Revista Cinética “Este não é um filme político, nem mais uma betonilha sobre a administração de Bush ou a Guerra do Iraque. É dirigido, de forma simples e poderosa, pelo desejo de compreender o que são estas fotos.” Robert Ebert, Chicago Sun Times
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Tabloide Tabloid eua, 2010, cor, 88’ direção Errol Morris empresa produtora Moxie Pictures
produção Robert Fernandez Errol Morris Angus Wall Julie Bilson Ahlberg Mark Lipson diretor de fotografia Robert Chappell montagem Grant Surmi música John Kusiak com Joyce McKinney
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Trinta anos antes das travessuras de Lindsay Lohan e de Paris Hilton e Britney Spears tomarem as manchetes de jornais, Joyce McKinney deixou sua marca insuperável como a rainha dos tabloides. Errol Morris segue as aventuras picantes desta ex-miss de qi 168 durante sua cruzada pelo amor do homem dos seus sonhos: o sequestro de um mórmon, um laboratório de clonagem canina na Coreia do Sul e outras tantas façanhas e versões sensacionalistas da vida de Joyce. Após o lançamento do filme, Morris foi processado por Joyce McKinney, a figura central do documentário, por supostamente tê-la enganado para convencê-la a participar do filme. O diretor foi absolvido. Diversos relatos dão conta de que Joyce frenquentava sessões de festivais escondida, (e posteriormente sessões comerciais do filme), e se dispunha a responder perguntas do público ao final da projeção, além de acusar Morris de distorcer os fatos. Em Tabloide, Morris investe em um rebuscado trabalho de desenho de sons fora da tela, um recurso até então nunca utilizado pelo diretor e que veio a ser muito presente em seus três curtas seguintes.
palavras de morris “Tabloides são sensacionalistas e gráficos. Eles te cativam pela estranheza e peculiaridade. Quando você embarca em uma dessas histórias, invariavelmente vai descobrir algo de novo. (…) Eu não gosto de documentários que não são investigativos. Gosto da alegria do inesperado, de não saber se vai ou não encontrar algo de extraordinário. Com este filme em particular, eu sabia de todos os detalhes que a história me traria? Não, eu não sabia.” outras palavras “Tabloide é um filme louco das melhores formas possíveis — um retorno bem-vindo de Morris ao retrato perverso depois de uma longa estada no reino dos assuntos sérios.” Peter Debruge, Variety “Morris simplesmente permite que a tagarela McKinney fale, e ela nunca, nunca para. E ela nunca, nunca desaponta.” Bill Goodykoontz, Arizona Republic “Você sabia que é possível contar tanto uma mentira até acreditar nela?” Joyce McKinney
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O conhecido desconhecido: A era Donald Rumsfeld The Unknown Known: The Life and Times of Donald Rumsfeld eua, 2013, cor, 96’ direção Errol Morris empresa produtora Moxie Pictures produtor Errol Morris Robert Fernandez Amanda Bransan Gill diretor de fotografia Robert Chappell montagem Steven Hathaway música Danny Elfman com Donald Rumsfeld
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Donald Rumsfeld, ex-Secretário de Defesa dos eua na primeira década do século 21 e um dos arquitetos da Guerra do Iraque, aparece aqui como escritor de sua própria vida ao ter revisitado alguns de seus milhares de memorandos. Munido de vasto material de arquivo, Morris faz um retrato enigmático de um homem que serviu fielmente a quatro presidentes e segue firme em suas convicções, mesmo que repletas de contradições. Em um de seus primeiros contatos com Donald Rumsfeld, Morris questionou se o ex-Secretário de Segurança havia visto e gostado de Sob a névoa da guerra (2000, filme também sobre um ex-Secretário de Defesa americano). Rumsfeld respondeu que sim e completou: “Eu detestei, o homem (Robert McNamara) não tinha nada do que se desculpar.”
palavras de morris “Mesmo após trinta horas de entrevista, sigo sem entender quem é Donald Rumsfeld.” outras palavras “Divagando sobre um material já familiar, Morris realiza um filme vibrante, gerado por suas associações e floreios estilísticos revigorantes.” Scott Foundas, Variety “A maravilha do filme está na lucidez fria da luz, no invariável close-up sobre a testemunha. Morris acredita no rosto humano.” David Thomson, New Republic
O documentário participou da mostra competitiva do Festival de Veneza 2013.
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Suvivors eua, 2008, cor, 8’ direção Errol Morris empresa produtora Moxie Pictures produção Laura Ziskin Julie Ahlberg Bilson Robby Fernandez
Neste poderoso e tocante documentário, Morris coloca seu talento a serviço de uma causa não controversa: a luta contra o câncer. Uma reunião de sobreviventes e o relato de suas vitórias triunfais. Curta realizado a pedido da fundação Stand Up to Cancer.
diretor de fotografia Errol Morris montagem Rock Paper Scissors música John Kusiak
CURTAS- METRAGENS errolMorris_catalogo_miolo.indd 22
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The Umbrella Man eua, 2011, cor, 7’ direção Errol Morris empresa produtora Fourth Floor Productions produção Linda Carlson Angus Wall Julie Ahlberg Mark Lipson
Errol Morris e Josiah “Tink” Thompson investigam a história por trás de uma misteriosa figura presente nas últimas imagens de John F. Kennedy antes de morrer: um homem que, sob um guarda-chuva preto, assistia ao desfile presidencial em um belo dia de sol. Curta produzido para o jornal The New York Times, jornal que tem Morris também como colaborador.
diretor de fotografia Robert Chappell montagem Grant Sumi música Philip Glass com Josiah “Tink” Thompson
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They Were There eua, 2011, cor, 30’ direção Errol Morris empresa produtora IBM Moxie Pictures produção Julie Ahlberg Robert Fernandez diretor de fotografia Robert Chappell
No aniversário dos 40 anos da ibm, uma das maiores empresas americanas, Morris revisita os principais personagens de sua história e repassa as relevantes contribuições da empresa. Em 30 minutos, o diretor deixa sua assinatura em uma aula de como entregar arte a um cliente. No final de 1990, Errol Morris foi contratado para fazer um filme para uma conferência de funcionários da ibm. No entanto, a empresa cancelou o evento e o filme jamais foi concluído.
montagem Grant Sumi música Philip Glass com Homer Ahr Fred Brooks Gregory Chaitin
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El Wingador eua, 2012, cor, 9’ direção Errol Morris empresa produtora Fourth Floor Productions Moxie Pictures produção Julie Ahlberg Robert Fernandez diretor de fotografia Robert Chappell
Errol Morris revela os excessivos hábitos alimentares de Bill “El Wingador” Simmons, cinco vezes campeão do Philadelphia Wing Bowl, popular campeonato onde glutões são desafiados a comer gigantescas porções de asinhas de frango. O filme nasceu a partir de um comercial do kfc dirigido por Morris e estrelado pelo hoje aposentado Bill Simmons. Curta produzido para o jornal The New York Times, jornal que tem Morris também como colaborador.
montagem Steven Hathaway música John Kusiak com Bill “El Wingador” Simmons
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11 Excellent Reasons Not to Vote? eua, 2012, cor, 11’ direção Errol Morris empresa produtora Jason Spingarn-Koff/ The New York Times
Team Spirit eua, 2012, cor, 8’ direção Errol Morris
Errol Morris conversa com jovens norte-americanos sobre a importância do voto enquanto tenta compreender a resistência de alguns em votar. Curta produzido para o jornal The New York Times, jornal que tem Morris também como colaborador.
Team Spirit explora a natureza obsessiva de fãs de esporte que carregam consigo o espírito de suas equipes de coração. De torcedores que morreriam para serem lembrados pela devoção a seus times até um proprietário de uma funerária especializada em caixões com escudos oficias de clubes, Morris explora estas doentias e muitas vezes mórbidas paixões de forma terna e bem-humorada. Curta produzido para o canal de tv espn.
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November 22, 1963 eua, 2013, cor, 14’ direção Errol Morris empresa produtora Fourth Floor Productions produção Linda Carlson Angus Wall Julie Ahlberg Jason Sterman
Errol Morris e Josiah “Tink” Thompson têm em comum a obsessão sobre a natureza das evidências fotográficas. Neste curta eles conversam sobre as fotografias e registros em vídeo do assassinato do presidente americano John F. Kennedy, caso que Thompson investiga desde 1963. Curta produzido para o jornal The New York Times, jornal que tem Morris também como colaborador.
diretor de fotografia Robert Chappell montagem Steven Hathaway Austyn Daines Grant Sumi música Philip Glass com Josiah “Tink” Thompson
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First Person eua, 2000/2001 cor, 23’ e 60’ direção Errol Morris empresa produtora Fourth Floor Productions produção Dorothy Aufiero Alison Palmer Bourke David Collins Caroline Kaplan Errol Morris Jonathan Sehring John Sloss Michael Williams diretor de fotografia Robert Chappell Martin Albert montagem Doug Abel Shondra Burke Schuyler Cayton Tom Hill Chyld King Juliana Peroni Karen Schameer Sylvia Waliga música John Kusiak Caleb Sampson
Num total de 17 episódios, as duas temporadas da série trouxeram Morris em pleno domínio do Interrotron e de todos os recursos necessários para extrair o máximo de pessoas peculiares simplesmente sentadas numa cadeira. A segunda temporada tem episódios com o Megatron, um avanço do sistema de entrevista onde 17 câmeras apontam simultaneamente para o entrevistado. palavras de morris “A televisão nos acostumou a ver pessoas sendo entrevistadas no estilo 60 Minutes. Há o Mike Wallace, o Larry King e uma câmera sempre de lado, assim como nós, o público. Ficamos basicamente como moscas assistindo a duas pessoas conversando. (…) Eu coloquei meu rosto no teleprompter estritamente falando. Pela primeira vez, os entrevistados poderiam estar falando comigo e, ao mesmo tempo, olhando para a lente da câmera. Agora eles não olham mais para o lado, não há mais uma falsa primeira pessoa. Esta é a verdadeira primeira pessoa.” outras palavras “First Person pode ser interpretado como um desenvolvimento de ideias exploradas em filmes como A tênue linha da morte e Mr. Death. Em última análise, Morris questiona a natureza da primeira pessoa no âmbito do documentário reflexivo e nos apresenta uma verdade que levanta tantas perguntas quanto respostas.” Philippa Campey, Senses of Cinema “Mais inquietante do que nunca.” Sam Adams, Entertainment Weekly
SÉRIE DE TV errolMorris_catalogo_miolo.indd 28
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Primeira temporada
obsessivamente a criatura mítica há mais de trinta anos. Para encontrar o bizarro animal que tem o comprimento de um campo de futebol, Roper está disposto a pôr em risco sua própria vida.
episódio 1 Mr. Debt — Andrew Capoccia, advogado prodígio para devedores de cartões de crédito Exibido pela primeira vez na tv em 16 de fevereiro de 2000. Empresas de cartão de crédito, agências de cobranças, bancos e seus agentes lutam freneticamente para colocar Andrew Capoccia atrás das grades. Tudo porque o “revolucionário do cartão de crédito” sonha em derrubar o sistema de crédito do país. O advogado está ficando rico ao levar milhares de pessoas perdidas na infinita espiral de crédito a processar seus credores — e a ganhar. Apesar do sucesso, ele foi multado em mais de um milhão de dólares pelos tribunais, processado pelo procurador-geral por fraude e condenado por um conselho de advogados. Afinal, ele é um altruísta ou um oportunista? Um gênio ou uma fraude?
episódio 2 Eyeball to Eyeball — Clyde Roper, autoridade em caça de lulas gigantes Exibido pela primeira vez na tv em 23 de fevereiro de 2000. Clyde Roper vive para ser a primeira pessoa do mundo a ver uma lula gigante viva. O pescador de lagosta, que posteriormente se tornou especialista em invertebrados pelo Instituto Smithsonian, persegue
episódio 3 Stairway to Heaven — Temple Grandin, professora universitária autista e especialista em técnicas de abate de gado. Exibido pela primeira vez na tv em 1º de março de 2000. Temple Grandin, autista diagnosticada, projetou um terço dos abatedouros dos Estados Unidos. Seu projeto de maior notoriedade é sua “escada para o céu”, um sistema de rampa em uma alta parede curva que se utiliza de ilusões de ótica para conduzir o gado calmamente ao abatedouro. Em suas horas vagas, Temple investe no desenvolvimento de um novo sistema para imobilizar animais para inoculação.
episódio 4 The Killer Inside Me — Sondra London, groupie de serial killer e escritora. Exibido pela primeira vez na tv em 8 de março de 2000. Sondra London perdeu o contato com seu amor do colegial, Gerald. Anos depois, ela se vê em um casamento infeliz e em um beco sem saída profissional, escrevendo tediosos manuais de processamento de texto. Mas Gerald reaparece, agora nas manchetes
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de jornal como suspeito pelo assassinato de quarenta mulheres. As notícias sobre o antigo amor reacendem a paixão dos dois, mas o relacionamento dura pouco. Sondra agora tem um novo homem em sua vida, Danny Rollins, o assassino de Gainesville.
lutador de kickboxing obcecado por armas que logo se tornou um assassino em massa. No fim da carnificina, Kinsley sobreviveu, mas seu pesadelo não acabou. Hoje ele vive com medo, esperando por alguém lá fora que, no meio da noite, poderá matá-lo.
episódio 5 I Dismember Mama — Saul Kent, promoter e entusiasta da imortalidade através da criogenia.
episódio 7 The Parrot — O assassinato de Jane Gill tem uma possível testemunha ocular.
Exibido pela primeira vez na tv em 15 de março de 2000. Saul Kent não preparou um funeral comum para sua mãe. Para uma futura ressuscitação, ele preferiu preservar em casa sua cabeça decepada congelada. Mas o condado de San Bernardino não está convencido de que a mãe de Kent morreu mesmo por causas naturais e prepara uma autópsia com seus restos mortais. Para isso, eles terão que achar Saul, que fugiu da cidade levando a cabeça.
episódio 6 The Stalker — Bill Kinsley, funcionário dos correios americanos e vítima de violenta perseguição no trabalho. Exibido pela primeira vez na tv em 22 de março de 2000. Bill Kinsley tinha uma carreira promissora nos correios. Seu sonho era se tornar gerente, até o dia em que conheceu o colega de trabalho Thomas McLlave, um
Exibido pela primeira vez na tv em 29 de março de 2000. Jane Gill foi encontrada morta por asfixia em sua mansão de 21 quartos. Perto de seu corpo sem vida, a polícia encontrou Max, seu papagaio de 16 anos. Naquela noite, o brilhante pássaro teve seu vocabulário de mais de 450 palavras reduzido a apenas uma frase: “Richard, no, no, no, no…” Max estará mesmo repetindo o que ouviu na noite do assassinato? O juiz deixará o falante papagaio testemunhar na corte californiana? E se o pássaro souber o que aconteceu? Quem será Richard?
episódio 8 Smiling In a Jar — Gretchen Worden, diretora do Museu Mütter da Filadélfia, que apresenta estranhezas médicas. Exibido pela primeira vez na tv em 5 de abril de 2000. Localizado na Filadélfia, o Mütter Museum é um museu de espécimes médicos negligenciados e curiosidades. Lá, Gretchen Worden,
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a perversa diretora da instituição, passa os dias entre modelos com deformidades dermatológicas, monstruosidades que flutuam em vidros e outras aberrações. A luta de Worden contra a doença de Hodgkin a levou a este museu de esquisitices. Para ela, cada espécime tem sua própria história e todas precisam ser contadas.
episódio 9 In the Kingdom of the Unabomber — Gary Greenberg, amigo de correspondência do Unabomber e seu possível biógrafo. Exibido pela primeira vez na tv em 12 de abril de 2000. Gary Greenberg, um psicoterapeuta obcecado com a ideia de se tornar escritor, não consegue fazer com que seu trabalho seja reconhecido. O que poderia ser melhor para realizar seu sonho do que se aproximar de um escritor que não apenas tem um editor, mas que ainda é tido como uma espécie de celebridade? O único inconveniente de seu plano perfeito era a identidade de seu novo parceiro: Ted Zaczynski, mais conhecido como o Unabomber. As inofensivas cartas e trocas de impressões logo se tornam um pesadelo paranoico.
episódio 10 The Little Gray Man — Antonio Mendez, mestre do disfarce. Exibido pela primeira vez na tv em 19 de abril de 2000. Durante 25 anos como agente secreto da cia, Antonio Mendez teve de manter uma vida dupla. Ou será vida alguma? Em seus esforços para se tornar invisível — ou “o pequeno homem cinza” esquecido por todos — ele precisou se desfazer de sua identidade não apenas para os outros, mas para si mesmo. Para os amigos, Antonio era um burocrata do Departamento de Defesa. Para os líderes da cia, ele era o mestre do disfarce, alguém capaz de criar uma nova identidade para qualquer um, a qualquer hora, em qualquer lugar. Seu lema: “Uma vez é acidente, duas vezes é coincidência, três vezes é ação inimiga.”
episódio 11 You’re Soaking In It — Joan Dougherty, faxineira de cenas do crime. Exibido pela primeira vez na tv em 1ºde maio de 2000. No dia do trágico suicídio de seu enteado, Joan Dougherty se viu em uma repugnante e desconfortável bagunça sangrenta. Sem ninguém para ajudar, Dougherty buscou esfregões, baldes e panos e começou a trabalhar. Com a intenção de ajudar outros que se encontram na mesma situação que viveu anos atrás, ela começou seu próprio
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negócio, uma empresa especializada em limpeza após crimes violentos e decomposições. Como uma legítima empreendedora, Joan agora se dedica a oferecer de forma eficaz seus serviços, enquanto constrói o perfil de sua nova marca e atrai clientes.
por crime hediondo? Não se preocupe. Murray e sua assessoria jurídica especializada em bandidos, gangsters e chantagistas resolvem. Estranhamente cínico para um idealista e estranhamente idealista para um cínico, será Murray o último defensor da liberdade ou apenas mais um mafioso?
Segunda temporada
episódio 1 Mr. Personality — Dr. Michael Stone, patologista forense e aficionado por homicídios.
episódio 3 Harvesting Me — Josh Harris, empreendedor da internet, protagonista de We Live in Public e viciado em televisão.
Exibido pela primeira vez na tv em 1º de agosto de 2001.
Exibido pela primeira vez na tv em 15 de agosto de 2001.
Michael Stone acredita ter descoberto a psique humana. Classifica traços negativos, elabora listas, gráficos e diagramas de Venn. Preenche livros, compara-os com outros e faz disso uma ferramenta de diagnóstico. Como alguém se torna um serial killer? Por que algumas pessoas são propensas a acessos de raiva? Stone construiu um mundo autorreflexivo no qual classifica psicopatas, sociopatas ou narcisistas patológicos enquanto se perde de si mesmo.
O terceiro milênio chegou sem grandes surpresas. Nada de Apocalipse nem Quatro Cavaleiros ou fim do mundo. Nada. No entanto, Josh Harris, empresário da internet e aspirante a ator, garante que a Segunda Vinda está próxima e que o “nosso Messias” é Gilligan. Sim, o Gilligan da série de tv americana Gilligan’s Iland (A Ilha dos Birutas), exibida no canal cbs durante a década de 1960. Para ele, Bob Denver, o ator que interpretava Gilligan, é um avatar para a força messiânica do seu personagem. Harris acredita que a vida não passa de um triste cabo de guerra entre os que controlam a realidade e os que são controlados por ela. A mídia é a arma. Convicto de sua teoria, Harris está decidido a criar sua própria religião.
episódio 2 The Only Truth — Murray Richman, advogado de gangsters nova-iorquinos. Exibido pela primeira vez na tv em 8 de agosto de 2001. O ser humano é uma espécie violenta. Mata, tortura e mutila. Murray Richamn é um especialista neste lado sombrio. Culpado
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episódio 4 One in a Million Trillion — Rick Rosner, estudante profissional e participante de programa de perguntas e respostas.
forçado foi um milagre. Dos 296 tripulantes, 186 sobreviveram. Mas será que a memória dos 111 que morreram nunca deixará este herói em paz? Mesmo tendo feito o impossível, Finch vive assombrado pelo sonho da aterrissagem perfeita.
Exibido pela primeira vez na tv em 22 de agosto de 2001. Rick Rosner é obcecado por acertar. Para a escola, voltou não apenas uma, mas quatro vezes. Em sua última experiência, foi necessária uma combinação de identidades fraudulentas, perucas e próteses para disfarçar seus 34 anos. Mas uma participação fracassada no programa televisivo Quem Quer Ser um Milionário? tornou sua vida ainda mais complicada. Após dois anos de obsessivas análises estatísticas, Rick arruinou sua própria vida. Agora, no limite da sanidade, ele prefere as perguntas repetidas, para que possa copiar infinitamente a si mesmo.
episódio 6 The Smartest Man in the World — Chris Langan, segurança de bar e dono do maior qi do mundo. Exibido pela primeira vez na tv em 5 de setembro de 2001. Membros de sociedades como Mensa e Triple Nines são considerados perfeitos idiotas quando comparados a este raro ser humano detentor de um qi tão alto que novos testes precisarão ser concebidos para que possa ser medido. Chris Langan, fisiculturista e segurança de boate, tem o mais alto qi já registrado na história. Algo na faixa de 190-210, segundo suas contas.
episódio 5 Leaving the Earth — Denny Fitch, piloto de avião e herói. Exibido pela primeira vez na tv em 29 de agosto de 2001. O avião estava fora de controle. Com o sistema inoperante, nem o piloto, nem a equipe de manutenção, nem os projetistas da aeronave e nem os próprios fabricantes sabiam como proceder. Danny Fitch, um dos passageiros da primeira classe, seguiu para a cabine e conseguiu controlar o avião usando apenas os propulsores. O pouso
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Werner Herzog come seu sapato Werner Herzog Eats His Shoe eua, 1980, cor, 20 min direção Les Blank empresa produtora Flower Films produção Les Blank Tom Luddy diretor de fotografia Les Blank montagem Maureen Gosling com Werner Herzog Tom Luddy Alice Waters
Em 1980, o diretor Les Blank interrompeu sua agenda para filmar o alemão Werner Herzog honrar uma promessa feito alguns anos antes: comer seu próprio sapato caso o estreante Errol Morris conseguisse concluir seu primeiro filme. O resultado é um verdadeiro manifesto sobre a coragem necessária para se realizar um projeto em uma pequena aula ministrada pelo diretor alemão enquanto devora suas botas. Les Blank é diretor de Burden of Dreams, documentário sobre a caótica produção de Fitzcarraldo, de Werner Herzog. palavras de morris “Eu não fiz Portais do céu para que Werner Herzog comesse o próprio sapato. (…) Eu inclusive pedi para que ele não fizesse isso.”
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A Brief History of Errol Morris eua, 2000, cor, 48 min direção Kevin Macdonald empresa produtora Minerva Pictures produção Paula Jalfon Caroline Kaplan Colin MacCabe Jonathan Sehring diretor de fotografia Neve Cunningham
Através de extratos de filmes, entrevistas e making ofs, Kevin Macdonald documenta a linguagem inovadora de Errol Morris e a construção do revolucionário dispositivo Interrotron. Aqui, o próprio Morris disserta sobre sua fascinação pela morte e pelas imagens, acompanhado de parceiros constantes em suas obras, como o diretor Werner Herzog, o produtor Tom Luddy e o compositor Philip Glass. Kevin Macdonald é diretor de filmes como O último rei da Escócia, que deu a Forest Whitaker o Oscar de melhor ator.
montagem Stephen Devlin música Alex Heffes com Errol Morris Werner Herzog Philip Glass
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O ato de matar The Act of Killing Dinamarca/Noruega/ Reino Unido, 2012 cor, 160 min direção Joshua Oppenheimmer empresa produtora Final Cut for Real aps produção Errol Morris Werner Werzog Signe Byrge Sorensen diretor de fotografia Carlo Sarango de Montis Lars Skree montagem Niels Paghandersen, Janus Billeskov Jansen Mariko Montpetit Ariadna Fatjo-Vilas Mestre Charlotte Munch Bengtsen Erik Andersson Com Anwar Congo Haji Anif Syamsul Arifin Sakhyan Asmara Jusuf Kalla
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Na Indonésia, o golpe militar de 1965 promoveu um exército paramilitar nacional ao posto de um autêntico esquadrão da morte. Em menos de um ano, mais de um milhão de pessoas foram executadas. Décadas depois, alguns membros desses esquadrões vivem como heróis e desejam contar orgulhosamente sua própria versão da história. Eles concordam não apenas em narrar seus assassinatos brutais, mas em reencená-los diante das câmeras, inspirados pelos filmes americanos que tanto adoram. Com produção executiva de Werner Herzog e Errol Morris. Único longa-metragem produzido por Errol Morris fora da posição de diretor. O ato de matar levou dez anos para ser concluído. O projeto original previa entrevistas com os sobreviventes do golpe de 1965 e não com os assassinos. Mas assim como Morris em Nub City, o diretor Joshua Oppenheimmer foi obrigado a desistir da abordagem original de seu projeto depois de receber diversas ameaças de morte enquanto filmava na Indonésia.
palavras de morris “Como todos os grandes documentários, O ato de matar exige uma outra forma de olhar para a realidade. Ele funciona como uma sala de espelhos onde pessoas reais se tornam personagens de um filme para depois saltar novamente à realidade. Então se fazem a pergunta fundamental: o que é real? Gabriel García Márques, em uma entrevista para a Paris Review, escreveu sobre sua sensação ao ler pela primeira vez A metaformose, de Kafka: ‘Eu não sabia que você estava autorizado a fazer isso’. Eu tenho a mesma sensação sobre este filme extraordinário.” outras palavras “Há pelo menos uma década que não vejo um filme tão poderoso, surreal e assustador… sem precedentes na história do cinema.” Werner Herzog “Joshua Oppenheimer faz o impossível: ele confronta um gigantesco e incompreensível mal e coloca um rosto humano sobre ele.” Rene Rodriguez, Miami Herald
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Presidenta da República Dilma Rousseff Ministro da Fazenda Guido Mantega Presidente da caixa Jorge Fontes Hereda Realização e produção Sobretudo Produção Coprodução Jurubeba Produções Idealização e curadoria Angelo Defanti Coordenação geral Bárbara Defanti Coordenação executiva Alessandra Castañeda Coordenação editorial Patricia Froes Produção local Julia Mariano Beatriz Knipfer Produção de cópias Fabiana Comparato
Agradecimentos especiais Errol Morris Skip Skinner Steven Hathaway Brianne Reedy — Ogilvy & Mather / IBM Jenny Kuntz — Entertainment Industry Foundation / Stand Up to Cancer Joshua Oppenheimer Philippa Kowarsky — Cinephil Agradecimentos Bárbara Arraes Chaz Ebert Cristina Alves Eduardo Aquino Felippe Schultz Mussel João Candido Zacharias Júlia Vanini Juliano Gomes Marianna Olinger Marina Bedran Neusa Defanti Nina Kopko Olívia Brenga Rodrigo Savastano Sarah Orazio Scott Macaulay Tiago Lyra
Design visual Thiago Lacaz Revisão de textos Ludmila Monassa Vinheta Bernardo Uzeda Clarice Saliby Assessoria de imprensa Liliam Hargreaves Registro videográfico Luiz Guilherme Guerreiro Registro fotográfico Maria Eduarda Tavares Legendagem eletrônica 4 Estações Impressão gráfica Gráfica Stamppa
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CAIXA Cultural Rio de Janeiro Cinemas 1 e 2 22–27 abril 2014
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ISBN 978-85-63086-02-0
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