Interferências no real
por Leonardo Sette
“(...) O tipo de documentário que faço só é possível através da descoberta de aspectos banais, cômicos, trágicos, da nossa existência cotidiana e por sua organização dramática. Um escritor teria que ter uma imaginação incrível para inventar os diálogos e a ação de uma cena como (por exemplo) a do rapaz que vomita em Hospital”. (Entrevista a François Niney - Catálogo da retrospectiva Frederick Wiseman - Bibliothèque Centre Pompidou, novembro 2006) O que acontece com você quando alguém lhe aponta uma câmera? Depende. Se você estiver completamente bêbado – de álcool, de tensão, de desespero ou de mescalina, como o rapaz de Hospital (1969) citado por Wiseman, há uma bela possibilidade de que a câmera lhe desperte pouco interesse. Mas, e se você é uma ambiciosa funcionária de uma fantástica loja de departamentos (A loja, 1983), filmada em pleno expediente profissional? Ou ainda: como reage um ator a uma câmera que o filma nos bastidores de sua companhia de teatro (La Comédie-Française, 1996)? Uma das coisas mais comuns numa conversa sobre o cinema de Frederick Wiseman é discutir se a presença da câmera influencia o comportamento das pessoas filmadas. Outra, é reclamar que seus filmes iludem o espectador insinuando que o que está na tela é a verdade. A questão mais séria, certamente, é a segunda. Se filmes como os de Fred Wiseman podem fazer alguém crer que está vendo o real, o problema não está nos filmes. Se alguém que sabe detectar aspectos tendenciosos em um texto de jornal, por exemplo, não é capaz de considerar a presença do que está fora de quadro na imagem (nesse caso, a câmera), se esse espectador precisa ver um microfone ou alguém da equipe de filmagem para lembrar que isso existe e lá está, falta-lhe evidentemente um posicionamento reflexivo e alerta diante da imagem. Nada impede a observação de que os filmes de Wiseman representam, tanto quanto os de Eduardo Coutinho, encontros de
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