FREDERICK WISEMAN: O DOCUMENTÁRIO ALÉM DA OBSERVAÇÃO

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Notas sobre Frederick Wiseman

Por Ruy Gardnier

1. Frederick Wiseman não é bobo. Ele sabe que não faz documentários. Ou, ao menos, não documentários da maneira que se imagina, o homem que vai com sua câmera e registra A Verdade dos fatos, dando-se conta de si mesmo como uma presença “não presente” no momento da filmagem. Seus filmes são, sim, registros frios, analíticos, sub-reptícios de realidades fechadas em si mesmas: instituições. Sem poesia, os títulos de um film by Frederick Wiseman são Modelo, Previdência social, Ensino médio, Juizado de Menores. Mas não se pense que se verá um cinema “documental”, “bonzinho”, de boas intenções com aquilo que ele filma.Assim, faz piada o fato de o festival É Tudo Verdade ter sido aberto por um equivocado Amir Labaki dizendo que “o documentário é o cinema de cidadão”. Nada menos “cinema de cidadão” do que a obra de Wiseman, no fundo um questionador da cidadania. Nada da escola Grearson de cinema, nenhum elogio do Estado como empreendedor de avanços na sociedade, e tampouco algo do cinema como aquele amigo bem-aventurado que chega para trazer as boas novas do mundo. O cinema de Frederick Wiseman se infiltra nas entranhas do Estado, mas sempre pela contramão: ele não vem para resolver problemas, ele aparece para criar questões. O cinema grearsoniano é institucional, ele fala a partir do ponto de vista das instituições e assume a voz dela enquanto fala.Tudo que será mostrado, logicamente, tratará o poder como uma relação de cima para baixo, evidentemente iluminista, elidindo dessa forma qualquer possibilidade política do discurso documentário. Sob esse aspecto, nada mais antigrearsoniano do que o cinema de Frederick Wiseman. O cinema de Wiseman trata das instituições, mas não é institucional. Ele fala a partir das instituições, mas não assume seu ponto de vista – ele antes coloca o ponto de vista das instituições em crise. Todo o cinema de Frederick Wiseman gira em torno de um único conceito: o poder. Não o poder sob qualquer aspecto, mas enquanto exercido pelas instituições. Em nenhum momento Wiseman se preocupa em perguntar algo que qualquer cineasta com anseios documentários Notas sobre Frederick Wiseman Ruy Gardnier

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