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Brecht por Lang/Lang por Brecht

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Em 1941, Bertolt Brecht chegava aos Estados Unidos, continuando um exílio que já o fizera passar por países como Áustria, Inglaterra, Dinamarca e Suécia. Ele seguia o fluxo de muitos imigrantes europeus diante da ascensão do nazismo e do recrudescimento da guerra. Fritz Lang já se correspondia com Brecht desde que este estava na Suécia, chegando inclusive a enviar ajuda financeira ao dramaturgo numa ocasião. Com a chegada de Brecht a Los Angeles, Lang faz parte do grupo que o ajudará a se instalar em seu novo país, num sinal de fraternidade entre exilados. Sem esconder sua admiração, o cineasta propõe uma colaboração entre os dois num roteiro, o que o dramaturgo incialmente vê com otimismo e como uma solução para as dificuldades financeiras. Nasce daí o projeto futuramente batizado de Os carrascos também morrem (Hangmen Also Die!, 1943), que Lang apresentará ao produtor Arnold Pressburger. A colaboração Brecht/Lang foi marcada por desentendimentos entre os dois e envolvendo o roteirista contratado John Wexley, que acabou levando sozinho os créditos do roteiro. Abaixo, compilamos as visões de Lang de Brecht acerca desta colaboração. (n.e.)

Brecht por Lang1 Brecht morava nos Estados Unidos — eu o trouxera para cá; dei a ideia e lhe perguntei se gostaria de trabalhar nela comigo. Isso ocorreu dez dias depois do assassinato de Heydrich [chefe do Escritório Central de Segurança do Reich, conhecido como O Carrasco]. Brecht e eu trabalhamos num esboço. Você agora sabe que eu admiro muito Brecht, mas eu tinha mais experiência em cinema e sabia melhor o que o público americano podia engolir. Eu tinha algumas ideias, então realmente trabalhamos de maneira muito próxima. Terminamos um esboço exato e, como Brecht não falava inglês, tentamos encontrar um redator. Acertamos com [John] Wexley, que falava alemão perfeitamente, e assim os dois poderiam realmente trabalhar juntos. Infelizmente, muito mais tarde, houve uma tremenda briga entre Wexley e Brecht, pois Wexley queria ficar com os créditos do roteiro sozinho. Ele conseguiu, apesar de o compositor [Hanns] Eisler e eu termos comparecido ao Screen Writers Guild2 e jurarmos que muitas, muitas cenas haviam sido escritas por Brecht, e que ninguém mais no mundo inteiro poderia tê-las escrito, certamente não o sr. Wexley.

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Lang por Brecht3 5 jul 1942. Enquanto dito a story, Lang negocia lá em cima no estúdio com os homens do dinheiro. As cifras e os gritos de agonia podem ser ouvidos cá embaixo, como num filme de propaganda: “US$ 30.000” — “8%” — “I can’t do it.” Saio para o jardim com a secretária. Canhoneio em alto-mar…

16 out 1942. Wexley e eu estamos dedicando “o melhor de nosso talento e de nossa capacidade” ao script Trust the People, título nosso [futuro Os carrascos também morrem]. Agora mesmo, em cima da hora de shooting, Lang arrastou o pobre Wexley para o escritório e, aos gritos atrás de portas fechadas, avisou que quer fazer um Hollywood Picture e que está cagando para as cenas que mostram o povo etc. A mudança do homem ante a possibilidade de descolar US$ 700.000 é extraordinária. Senta-se atrás da mesa do chefe com os ares de ditador e veterano diretor de cinema, cheio de drugs e ressentimento com qualquer sugestão interessante, compilando “surpresas”, pequenas ideias de suspense, toques sentimentaloides espalhafatosos e imposturas, e se permite todas as licenses em favor do box office.

22 out 1942. Vejo agora que este trabalho em torno do filme quase me deixa doente. Estas “surpresas” que consistem em fazer com que coisas impossíveis aconteçam, estes “momentos de suspense” que consistem em sonegar informações à plateia, estes líderes do movimento clandestino que se esvaem em sangue atrás das cortinas enquanto a Gestapo vasculha a casa, estes gritos indignados de “por que tenho de dar esta frase a um operário que recebe US$ 150 quando ao lado dele está um professor a quem estou pagando US$ 5.000!”, estes efeitos do teatro Rose anno 1880,4 estas erupções de uma imaginação depravada, de um sentimentalismo que cheira a dinheiro, de arraigada reação triunfante, do persistente e desvairado ressentimento de ter de supostamente fazer um grande filme quando na verdade apenas se é parte de uma produção heterogênea… E depois eles borram as imagens que você se esmerou em criar, distorcem os personagens, revertendo-os a tipos arquimanjados, e edificam sólidos pilares numa estrutura onde não há nada para apoiá-los, os inteligentes se tornam

1 Fritz Lang entrevistado por Peter Bogdanovich. Fritz Lang in America. Nova York: Praeger, 1967. Traduzido do inglês por Calac Nogueira. (n.e.) 2 Sindicato de roteiristas, criado em 1921. Foi substituído pelo Writers Guild of America em 1954. O sindicado inicialmente representava apenas os roteiristas de cinema, passando a agregar os roteiristas da televisão em 1946. (n.e.) 3 Bertolt Brecht. Diário de trabalho, volume II, América: 1941-1947. Rio de Janeiro: Rocco, 2005. (n.e.) 4 Teatro berlinense em que farsas e operetas eram montadas. (n.e.)

broncos, os progressistas reacionários, os nobres indignos, os indignos simpáticos.

2 nov 1942. Depois de duas semanas em que não tive notícia de Lang (…), [sua] secretária telefonou para dizer que a filmagem estava começando e que eu era “invited, more than invited”. A primeira cena filmada por Lang era uma que Wexley e eu havíamos cortado; a heroína está discutindo com uma tia a respeito de seu vestido de noiva: ela quer um decote mais cavado. A heroína é feita por uma atriz inglesa de quinta classe, uma boneca melíflua sem nenhuma qualidade marcante. O senhor das lentes está sentado ao lado da câmera, inabordável, enquanto a meu lado um médico alemão refugiado espera o momento de lhe dar injeções de vitamina. Lang, como era de se esperar, me faz um aceno nada convincente e diz a meia voz um “Oi, Brecht! Você receberá um roteiro amanhã!”

4 nov 1942. Por causa de dois cheques-salários semanais (US$ 3.000), Wexley demoliu o que levou dez meses para construir. Eu tinha quase conseguido eliminar as principais imbecilidades da história e agora estão todas de volta. (…) Em Hollywood tudo é de um brilho e esplendor da pior espécie.

Que não se veja estas duras palavras de Brecht para com Lang como algo mais do que um desabafo pessoal, escrito em seu diário particular, sem a intenção de ser tornado público. Uma das principais razões para o desentendimento entre o dramaturgo e Lang passava também pelo elenco do filme: entre outras indicações, Brecht queria que Helene Weigel, sua esposa, interpretasse o papel da vendedora de legumes (especialmente escrito para ela); Lang optou por outra atriz sem se justificar, postura que Brecht caracteriza em seu diário como “brutal”. Por fim, numa carta não enviada a Lang, Brecht procura, de maneira bastante equilibrada, entender os desencontros da colaboração entre os dois: “Percebia cada vez mais em você a suspeita de que, a despeito de todas as considerações comerciais, eu estaria me esforçando para fazer um filme puramente político. (…) O que eu propunha me parecia sempre estar no interior dos limites a partir dos quais o filme poderia ter sucesso. As cenas populares e o tratamento sério do movimento clandestino, em minha opinião, não só não teriam prejudicado o filme, como o teriam favorecido, quero dizer: comercialmente também. Pois já do puro ponto de vista da tensão, a eficácia da história pessoal depende da fidelidade à realidade neste domínio. Não teríamos absolutamente necessidade de utilizar o infeliz e rebelde povo tcheco unicamente como pano de fundo para uma história de soldados e de ladrões: poderíamos também ter usado a história de soldados e de ladrões para mostrar o povo tcheco.”5 (n.e.)

5 Carta de Bertolt Brecht. Bertolt Brecht-Archiv, Akademie de Künste, Berlim. Citada por Bernard Eisenschitz em Fritz Lang au Travail. Traduzido do francês por Calac Nogueira. (n.e.)

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