7 minute read

Liliom: uma vez é nenhuma vez João Bénard da Costa

Next Article
Metrópolis

Metrópolis

Liliom: uma vez é nenhuma vez

João Bénard da Costa

Advertisement

Publicado na coletânea Os filmes da minha vida/ Os meus filmes da vida. Lisboa: Assírio & Alvim, 1990, pp. 15-18. (n.e.) Liliom (1934)1 é um dos mais ignorados filmes de Fritz Lang. Data da sua breve passagem por França (abril de 1933 a junho de 1934) depois de fugir a Hitler e antes de se fixar nos Estados Unidos.

É um estranhíssimo filme, adaptado de uma peça de teatro do húngaro Ferenc Molnár, em que metade das coisas se passam no Além. Liliom é nome do protagonista, interpretado por Charles Boyer, então muito novinho, muito bonitinho e ainda sem os tiques que apanhou em Hollywood quando o puseram a fazer de Napoleão e a seduzir quantas Greta Garbo por lá havia.

Liliom, nas categorias de Kundera (leiam o livro mas não vejam o filme), era um “ser insustentavelmente leve”. Festas, copos e mulheres, sustento e glória de sua humanidade. Além disso, desordeiro e ladrão, com algum cadastro às costas.

Até que encontra Julie, “ser insustentavelmente pesado” que lhe conhecia bem o curriculum. Julie surpreende-o, quando aceita viver com ele. “Não tens medo?”, pergunta-lhe Liliom. “Quando amo uma pessoa, não tenho medo de nada.”

Se Liliom percebe que Julie é um caso diferente, a total dedicação da rapariga começa a dar-lhe complexos de culpa. Passa as noites fora de casa, gasta em copos o dinheiro que ela se esfalfa a arranjar e um dia, mesmo, chega-lhe valentemente a roupa ao pelo.

Até que a “leveza” de Liliom vai longe demais. Ao saber que Julie está de esperanças, decide-se a ganhar muito dinheiro para a criança ter vida fácil e aceita a proposta de um amigo de assaltar um cidadão de carteira supostamente recheada. Era armadilha da polícia, decidida a ajustar as contas. Tiros, fuga e Liliom, em cima de um monte e recortado contra o céu baço, prefere cravar no próprio peito uma faca do que ser preso. Eis, pois, o protagonista, insolitamente morto, a meio do filme.

Mas é nessa altura que se passa para “outra dimensão”. Junto ao corpo, aparecem três “polícias de Deus”. Se a morte resolvesse tudo, era cômodo. Que seria da justiça, se morrer fosse tão fácil solução para fugir a ela? E levam-no céu fora, ou céu acima, deixando Julie a chorar junto do cadáver assim desdobrado.

O Além parece-se singularmente com a esquadra de que Liliom era habitual frequentador. A única diferença é que os polícias têm asas. Para o julgarem, recorrem a um método assaz original e assaz premonitório em 1934, mesmo considerando que estamos em Sítio onde não há tempo.

1 No Brasil, Coração vadio. Optou-se por manter aqui o título original do filme, como utilizado pelo autor. (n.e.) Projetam-lhe em ecrã de televisão o filme da vida dele, graças, certamente, a antenas hiperparabólicas. Volta-se a ver a cena das estaladas. Mas em double-band. Isto é, não só se vê e ouve o que Liliom fez e disse, mas também o que pensou enquanto fazia e dizia tais coisas. E “quando aquilo que a gente sente/ cá dentro passa a ter voz”, ouvimos Liliom autochamar-se alguns nomes feios e admitir que Julie tinha toda a razão e ele nenhuma. E em vez de, como diz a cantiga, muita gente, toda a gente passar a ter pena dele, Liliom fica em piores lençóis. Ele próprio se autocondenara. Uma pena de 16 anos de Purgatório. Findo esse prazo, poderá voltar à Terra, por um dia, para ver a filha e, eventualmente, Julie.

Dezasseis anos depois, Liliom consideravelmente envelhecido, volta a este mundo com os três guarda-costas. Conhece a filha, que obviamente o não conhece a ele, e lhe diz que o pai morreu na América e era homem de sumas virtudes. Liliom, em conhecimento de causa, permite-se duvidar. A rapariga não admite ao desconhecido tais reservas. Não só lhe responde espevitada e malcriadamente, como se recusa a aceitar “o mais belo dos presentes”: uma estrela que Liliom roubara do céu para lhe dar. Atira-a para uma sarjeta e a estrela apaga-se. Sempre impulsivo e sem pachorra, Liliom usa do direito paterno e dá-lhe um tabefe.

Logo os guardas o agarram e o voltam a levar “para cima”. Dezesseis anos de amarelas chamas não serviram para o emendar e lhe corrigir o feitio. Debalde, Liliom se queixa da maldita justiça. Os “carcereiros” são implacáveis. Mas nova “transmissão”, desta vez “em direto”, vem mudar a situação. É a “reportagem” da chegada da filha a casa, a contar à mãe o caso do dia. Quando refere à bofetada, observa, com espanto, que não lhe doeu nada. Como é possível, pergunta. Nostálgica, recordando o marido e a sova, Julie responde com doce sorriso. “Houve um homem que me bateu e foi tão bom.” Liliom, ao ouvir desta, sorri triunfantemente para os anjos. A balança dos seus feitos começa a equilibrar-se.

Há, neste filme, pelo menos, duas coisas assaz extraordinárias.

A primeira é a “visão celestial” de Fritz Lang. Iniciando uma moda — que depois surgiu em variadíssimos filmes dos anos 40 — o Além é tudo menos um lugar aprazível. É o mundo da supertecnologia, com um aparato de sofisticação eletrônica que, à época, nem em filmes de ficção científica se via. Essa informatização serve a eficiência e a eficiência serve a justiça. Por isso, o Além é mundo de regulamentos e proibições, em que de nada vale — como tenta Liliom — apelar para a Administração. Como já lhe tinham respondido na terra — nas esquadras — a Administração é, por definição, irresponsável.

O Além é sistema policial, arquivo de confissões e sentenças e onde o amor não mete bedelho (quando o mete é transgressor).

Já sabíamos, desde o século XV e da história da pintura ocidental, que qualquer visão do Inferno (e nem é preciso ir até Bosch) excitou muito mais a imaginação dos artistas do que homólogas visões do céu. Apesar dos tormentos e suplícios (ou por causa deles) tais quadros e frescos — que, entre outras coisas, permitiram mostrar corpos nus, impensáveis noutras paragens — foram sempre mais sugestivos do que representações celestiais, castas e estáticas, sem sexo nem vida. Fra Angelico foi um grande pintor, mas nem todos os seus azuis e dourados deram resposta, estética e ética, às delícias do paraíso ou à “eterna felicidade”. Asinhas e muita música parecem pouco para preencher tempos infinitos. Nisso os mulçumanos foram talvez mais sagazes, embora eventualmente mais contraditórios. Dante, na Divina Comédia, também se deu conta dessa dificuldade e teve que inventar Beatriz para que o poema não decaísse de ação e interesse ao chegar ao canto celestial.

O cinema ainda não nos deu Caldeiras de Pêro Coelho ou Campos Elíseos. Mas, de cada vez que foi para essas zonas (e pensem em todos os filmes do céu que viram) deu dos Aléns uma visão decalcada da de Lang em Liliom. No fundo, a parábola de Liliom é a que serve de justificação à própria ideia de inferno e subjaz a múltiplas querelas teológicas acerca da incompatibilidade entre o Deus supremamente bondoso e o Deus supremamente justiceiro. Para lá da morte, o que nos espera é uma omnivisão implacável. Especularmente, a ordem moral, com a permanência da culpa, aciona idênticos mecanismos de destino, sem as liberdades (falhas técnicas ou humanas) que nesta vida ainda podem acontecer.

E daqui decorre a segunda e ainda mais insólita surpresa deste filme.

Para julgar a vida, os “polícias de deus” recorrem ao cinema, como infalível testemunho do real. O céu é audiovisual e há “cassetes” prontas para responder a todas as dúvidas. Só que não respondem a dúvidas nenhumas, porque o filme apenas repete, mecânica e eternamente, a visão que já conhecíamos. Mesmo quando lhe acrescentam a double-band, esse acrescento é parcial. Porque se ouve o que Liliom pensou (e só confirma o que tinha dito), mas não o que os outros pensaram, neste caso o que Julie pensou. As representações parciais são sempre mais totalitárias e mais implacáveis do que as representações integrais. Quanto mais se fixa mais se condena. O cinema é, nesse sentido, uma arma mortal.

Se as cenas da Terra são fugazes, o filme delas não o é. A única mudança só pode vir de mais vida, ou seja do que acontece de novo.

Essa é a suprema astúcia de Lang. Quando Liliom já não tem salvação chega ao Além a “transmissão em direto” que modifica a “transmissão” fixa. O que o salva não é o filme dele, mas o filme de Julie, o filme de outra vida.

No fundo — e daí a aproximação que fiz com Kundera — a tragédia de Liliom é que a sua vida só se pode repetir além e aquém. Voltar à Terra de nada lhe serve, porque ele é sempre o mesmo. Viver uma vez não é viver vez nenhuma (“Einmal ist keinmal”). E isso é tão verdade para a vida, como para o cinema. Só que neste — a transmissão em direto — são possíveis surpresas que podem fazer vacilar a balança do destino. Sem essa novidade (a novidade do amor) a única possibilidade de Liliom — ou para Liliom — era o eterno retorno. Outra forma de não haver nenhuma possibilidade.

Mas, devido a uma outra nova vida, uma segunda vida, é Julie, ao contrário de Eurídice, quem vai aos Infernos salvar Orfeu. O cinema é a única variação possível do mito, porque, ele próprio, anula o mito. Com Liliom tudo se repete na vida e nada se repete no cinema.

This article is from: