Liliom: uma vez é nenhuma vez João Bénard da Costa
Publicado na coletânea Os filmes da minha vida/ Os meus filmes da vida. Lisboa: Assírio & Alvim, 1990, pp. 15-18. (N.E.)
Liliom (1934)1 é um dos mais ignorados filmes de Fritz Lang. Data da sua breve passagem por França (abril de 1933 a junho de 1934) depois de fugir a Hitler e antes de se fixar nos Estados Unidos. É um estranhíssimo filme, adaptado de uma peça de teatro do húngaro Ferenc Molnár, em que metade das coisas se passam no Além. Liliom é nome do protagonista, interpretado por Charles Boyer, então muito novinho, muito bonitinho e ainda sem os tiques que apanhou em Hollywood quando o puseram a fazer de Napoleão e a seduzir quantas Greta Garbo por lá havia. Liliom, nas categorias de Kundera (leiam o livro mas não vejam o filme), era um “ser insustentavelmente leve”. Festas, copos e mulheres, sustento e glória de sua humanidade. Além disso, desordeiro e ladrão, com algum cadastro às costas. Até que encontra Julie, “ser insustentavelmente pesado” que lhe conhecia bem o curriculum. Julie surpreende-o, quando aceita viver com ele. “Não tens medo?”, pergunta-lhe Liliom. “Quando amo uma pessoa, não tenho medo de nada.” Se Liliom percebe que Julie é um caso diferente, a total dedicação da rapariga começa a dar-lhe complexos de culpa. Passa as noites fora de casa, gasta em copos o dinheiro que ela se esfalfa a arranjar e um dia, mesmo, chega-lhe valentemente a roupa ao pelo. Até que a “leveza” de Liliom vai longe demais. Ao saber que Julie está de esperanças, decide-se a ganhar muito dinheiro para a criança ter vida fácil e aceita a proposta de um amigo de assaltar um cidadão de carteira supostamente recheada. Era armadilha da polícia, decidida a ajustar as contas. Tiros, fuga e Liliom, em cima de um monte e recortado contra o céu baço, prefere cravar no próprio peito uma faca do que ser preso. Eis, pois, o protagonista, insolitamente morto, a meio do filme. Mas é nessa altura que se passa para “outra dimensão”. Junto ao corpo, aparecem três “polícias de Deus”. Se a morte resolvesse tudo, era cômodo. Que seria da justiça, se morrer fosse tão fácil solução para fugir a ela? E levam-no céu fora, ou céu acima, deixando Julie a chorar junto do cadáver assim desdobrado. O Além parece-se singularmente com a esquadra de que Liliom era habitual frequentador. A única diferença é que os polícias têm asas. Para o julgarem, recorrem a um método assaz original e assaz premonitório em 1934, mesmo considerando que estamos em Sítio onde não há tempo.
1 No Brasil, Coração vadio. Optou-se por manter aqui o título original do filme, como utilizado pelo autor. (N.E.)
Projetam-lhe em ecrã de televisão o filme da vida dele, graças, certamente, a antenas hiperparabólicas. Volta-se a ver a cena das estaladas. Mas em double-band. Isto é, não só se vê e ouve o que Liliom fez e disse, mas também o que pensou enquanto fazia e dizia tais coisas. E “quando aquilo que a gente sente/ cá dentro passa a ter voz”, ouvimos Liliom autochamar-se alguns nomes feios e admitir que Julie tinha toda a razão e ele nenhuma. E em vez de, como diz a cantiga, muita gente, toda a gente passar a ter pena dele, Liliom fica em piores lençóis. Ele próprio se autocondenara. Uma pena de 16 anos de Purgatório. Findo esse prazo, poderá voltar à Terra, por um dia, para ver a filha e, eventualmente, Julie. Dezasseis anos depois, Liliom consideravelmente envelhecido, volta a este mundo com os três guarda-costas. Conhece a filha, que obviamente o não conhece a ele, e lhe diz que o pai morreu na América e era homem de sumas virtudes. Liliom, em conhecimento de causa, permite-se duvidar. A rapariga não admite ao desconhecido tais reservas. Não só lhe responde espevitada e malcriadamente, como se recusa a aceitar “o mais belo dos presentes”: uma estrela que Liliom roubara do céu para lhe dar. Atira-a para uma sarjeta e a estrela apaga-se. Sempre impulsivo e sem pachorra, Liliom usa do direito paterno e dá-lhe um tabefe. Logo os guardas o agarram e o voltam a levar “para cima”. Dezesseis anos de amarelas chamas não serviram para o emendar e lhe corrigir o feitio. Debalde, Liliom se queixa da maldita justiça. Os “carcereiros” são implacáveis. Mas nova “transmissão”, desta vez “em direto”, vem mudar a situação. É a “reportagem” da chegada da filha a casa, a contar à mãe o caso do dia. Quando refere à bofetada, observa, com espanto, que não lhe doeu nada. Como é possível, pergunta. Nostálgica, recordando o marido e a sova, Julie responde com doce sorriso. “Houve um homem que me bateu e foi tão bom.” Liliom, ao ouvir desta, sorri triunfantemente para os anjos. A balança dos seus feitos começa a equilibrar-se. Há, neste filme, pelo menos, duas coisas assaz extraordinárias. A primeira é a “visão celestial” de Fritz Lang. Iniciando uma moda — que depois surgiu em variadíssimos filmes dos anos 40 — o Além é tudo menos um lugar aprazível. É o mundo da supertecnologia, com um aparato de sofisticação eletrônica que, à época, nem em filmes de ficção científica se via. Essa informatização serve a eficiência e a eficiência serve a justiça. Por isso, o Além é mundo de regulamentos e proibições, em que de nada vale — como tenta Liliom — apelar para a Administração. Como já lhe tinham respondido na terra — nas esquadras — a Administração é, por definição, irresponsável. 95