7 minute read

Amar Fritz Lang Os corruptos

Amar Fritz Lang

sobre Os corruptos François Truffaut

Advertisement

Publicado originalmente sob o título “Aimer Fritz Lang”. Cahiers du Cinéma no 31, janeiro de 1954. Traduzido do francês por Alice Furtado. (n.e.) Às vésperas de redigir um artigo que ele gostaria que fosse ao mesmo tempo geral e preciso, exaustivo e documentado, o crítico de cinema começa a invejar, de seu confrade literário, o privilégio da biblioteca onde pesados volumes de obras completas e consultáveis à vontade fazem as vezes de tapeçaria.

É realmente raro que todos os filmes de um cineasta estejam ao mesmo tempo em cartaz; razão pela qual aprecio com o devido valor o acaso que quis que, neste mês de dezembro de 1953, estreasse o novo Fritz Lang, Os corruptos (The Big Heat, 1953), e que nas salas de repertório estivessem passando O diabo feito mulher (Rancho Notorious, 1952) e O grande segredo (Cloak and Dagger, 1946), enquanto o Parnasse reprisava Almas perversas (Scarlet Street, 1945) e a Cinemateca nos apresentava, noite após noite, o último filme alemão: O testamento do Dr. Mabuse (Das Testament des Dr. Mabuse, 1933), legendado em dinamarquês, e o primeiro americano: Fúria (Fury, 1936), legendado em flamenco.

A solidão moral, o homem conduzindo sozinho uma luta contra um universo meio hostil, meio indiferente, tal é o tema favorito de Lang. A esse tema, os próprios títulos de seus filmes testemunham sua fidelidade: M., o vampiro de Düsseldorf (M, 1931), Fúria, Vive-se uma só vez (You Only Live Once, 1936), O homem que quis matar Hitler (Man Hunt, 1941) etc.1

Um homem se engaja num combate seja por dever, se é tira, soldado ou especialista, seja por ociosidade. Chega sempre o momento em que ele se cansa de lutar, em que a causa mostra sua falência. Ele está a ponto de abandoná-la quando uma circunstância o fará retomar o duelo, elevar-se até o sacrifício de si próprio. Esta circunstância é quase sempre a morte de alguém, uma pessoa alheia a tudo isso, frequentemente uma mulher, uma mulher amada às vezes (Joan Bennet em O homem que quis matar Hitler, a velha senhora de O grande segredo, a noiva de Kennedy em O diabo feito mulher, Jocelyn Brando em Os corruptos).

É aí que o conflito se torna estritamente individual, que as razões pessoais substituem as razões sociais ou políticas e que a preocupação única da vingança substitui enfim aquela inicial,

1 O autor faz referência aos títulos que os filmes ganharam na França, respectivamente: M, Le maudit [M, o maldito]; Furie [Fúria]; J’ai le droit de vivre [Tenho o direito de viver]; Chasse à l’homme [Caça ao homem]. (n.t.) do dever. (Walter Pidgeon, em O homem que quis matar Hitler, não dá a mínima para as barbáries nazistas. Hitler matou Joan Bennett: É preciso matar Hitler. Glenn Ford, em Os corruptos, vai se demitir da polícia para assegurar sua vingança.)

Tudo acontece e se tece, em Lang, no coração de um universo altamente moral. Logicamente, a moral convencional não tem aí papel algum, e as forças enquanto tais (polícia, exército, resistência) nos são quase sempre mostradas como baixas, defectíveis e covardes. A sociedade e as pessoas honestas as utilizam com frequência como sua guarda. Os heróis de Lang estão, na realidade, à parte da sociedade. É por isso que a espionagem tem aí um papel tão belo. Nada de melodramático jamais, porque o herói é apenas o justiceiro de si próprio, não defendendo sequer os fracos e oprimidos, não reivindicando nada, vingando-se de uma única vítima por filme; solitário, o ser de exceção preocupa Lang, uma exceção que por pudor soube revestir a humilde aparência de uma instrutora, de uma espiã, de um tira ou de um cowboy grosseiro.

“Universo altamente moral”, eu dizia mais acima; universo de convenção, me responderão alguns, não sem razão, aliás. As intrigas de Fritz Lang se alimentam das convenções e jogam com elas. Lançados num conflito em que o realismo sempre costeia e desafia o inverossímil, os personagens de Lang avançam em sua noite, propulsionados às últimas consequências com tanto vigor que os vilões se tornam infames, os bons ascendem ao sublime.

Sempre solicitada, admito, a emoção é, no entanto, de uma qualidade tal que é preciso ser tristemente blasé para não se sonhar no papel do criador que golpeia uns e salva outros; e se Fritz Lang, no fim das contas, substitui ele próprio o Divino, como criticá-lo quando ele soube tão bem, ao longo de toda a narrativa, ora se submeter, ora reinar, ser dominado e dominar, a cada nova reviravolta?

A uma moda que, até mesmo no cinematógrafo, encontra satisfação em rebaixar, instalando por todo lado a confusão, contentando-se em provocar sentimentos de derrota, agrada-me bastante opor Fritz Lang, moralista à sua maneira, cineasta quase balzaquiano, cineasta que não se indispõe a resolver e concluir. Com Fritz Lang, cada plano responde à questão “como?”: os homens amam as mulheres, que os amam de volta; a Terra é redonda e até mesmo gira; dois e dois invariavelmente são quatro.

Os corruptos é um belo filme. É a réplica precisa em thriller do excelente O diabo feito mulher. Admirável diretor de atores (e sobretudo de atrizes), Fritz Lang dá enfim a Gloria Grahame sua verdadeira chance. Ela se acocora sobre os sofás como gosta de fazer, telefona, dança, faz sua reverência chinesa, é queimada, mascarada e, infelizmente, morre. Sua interpretação afiada é agora continuamente perfeita. A história contada é tão bela quanto simples; a violência é, como sempre, extrema.

“Os corruptos (The Big Heat). Nem ruim, nem muito bom. Fritz Lang não é mais Fritz Lang. Nós o sabíamos já há alguns anos. Não há mais traço de simbolismo nas obras que fabrica hoje o realizador de Metrópolis. E de expressionismo menos ainda.” Essas poucas linhas de Louis Chauvet sintetizam muito bem os sofismas que devemos urgentemente dissipar.

Ao rever a obra de Fritz Lang, ficamos impressionados com o que havia de hollywoodiano em seus filmes alemães (Os espiões [Spione, 1928], Metrópolis [Metropolis, 1927], O testamento do Dr. Mabuse) e com o que ele quis conservar de germânico em sua obra americana (os cenários, algumas iluminações, o gosto pelas perspectivas, os ângulos vivos, a máscara de Gloria Grahame aqui etc.). Entendemos tranquilamente o que poderia haver inicialmente de irritante na partida de nossos melhores cineastas europeus para Hollywood e a tentação pueril de ver desaparecer, com o exílio, o mais claro de seu talento. Mas o chauvinismo não conviria igualmente se nossos críticos quisessem adotar a posição oposta (já que a graça de saber olhar lhes parece para sempre negada) e declarar que o melhor da produção americana é de inspiração europeia (Hitchcock, Lang, Preminger, Renoir etc.)?

Uma outra lenda quer que o diretor americano seja um “astucioso artesão” que “salva como pode” os temas “desconcertantes” que lhe são “impostos”. Nesse caso, não é estranho que todos os filmes americanos de Fritz Lang, apesar de assinados por diferentes roteiristas e rodados sob encomenda das mais diversas firmas, contem, muito sensivelmente, a mesma história?

Isso não permite pensar que Fritz Lang poderia muito bem ser um verdadeiro autor de filmes? E que se seus temas, sua história, tomam emprestado, para chegar até nós, a aparência banal de um thriller em série, de um filme de guerra ou de um western, talvez seja preciso ver aí o sinal da grande probidade de um cinema que não sofre a necessidade de se revestir de etiquetas atraentes? O que segue é uma certeza: para fazer cinema, é preciso fingir, ou se preferirmos este slogan: para falar com o produtor, travestir-se é o rigor. Ora, se é verdade que nos disfarçamos sempre de nosso contrário, não seria surpreendente me ver preferindo cineastas que imitam a insignificância…

É preciso amar Fritz Lang, saudar a vinda de cada um de seus filmes, correr para vê-los, retornar com frequência e esperar impacientemente pelo próximo (desta vez, será A gardênia azul [The Blue Gardenia, 1953]).

Nota Publicado na “Série Noire”, sob o título francês de Coups de torchon, o livro de William P. McGuivern, do qual Os corruptos é adaptado, revela-se muito inferior ao filme, a despeito da fidelidade ao romance. Simplesmente “acreditamos” no filme, em seus personagens e no que acontece, o que não ocorre com os mesmos personagens e os mesmos eventos no livro. O mesmo pode ser observado em À beira do abismo (The Big Sleep, 1946), em Prisioneiro do passado (Dark Passage, 1947) etc. É à censura cinematográfica americana que devemos o fato de que Marlowe não seja mais pederasta e de que os personagens se tornem uns mais amáveis, outros mais detestáveis. Necessidade, então, de uma censura moralista (que exige que uma moral seja proposta). E, no entanto, da forma que é o filme de Lang, um roteiro idêntico feito na França, que colocasse em questão a polícia francesa, a magistratura francesa, mesmo que conservando a última cena (Glenn Ford se reintegra à polícia), pois bem, esse roteiro não ultrapassaria nem mesmo o estágio da pré-censura. Como diz Rossellini: Dov’è la libertà?

This article is from: