Amar Fritz Lang sobre Os corruptos François Truffaut
Publicado originalmente sob o título “Aimer Fritz Lang”. Cahiers du Cinéma no 31, janeiro de 1954. Traduzido do francês por Alice Furtado. (N.E.)
Às vésperas de redigir um artigo que ele gostaria que fosse ao mesmo tempo geral e preciso, exaustivo e documentado, o crítico de cinema começa a invejar, de seu confrade literário, o privilégio da biblioteca onde pesados volumes de obras completas e consultáveis à vontade fazem as vezes de tapeçaria. É realmente raro que todos os filmes de um cineasta estejam ao mesmo tempo em cartaz; razão pela qual aprecio com o devido valor o acaso que quis que, neste mês de dezembro de 1953, estreasse o novo Fritz Lang, Os corruptos (The Big Heat, 1953), e que nas salas de repertório estivessem passando O diabo feito mulher (Rancho Notorious, 1952) e O grande segredo (Cloak and Dagger, 1946), enquanto o Parnasse reprisava Almas perversas (Scarlet Street, 1945) e a Cinemateca nos apresentava, noite após noite, o último filme alemão: O testamento do Dr. Mabuse (Das Testament des Dr. Mabuse, 1933), legendado em dinamarquês, e o primeiro americano: Fúria (Fury, 1936), legendado em flamenco.
do dever. (Walter Pidgeon, em O homem que quis matar Hitler, não dá a mínima para as barbáries nazistas. Hitler matou Joan Bennett: É preciso matar Hitler. Glenn Ford, em Os corruptos, vai se demitir da polícia para assegurar sua vingança.) Tudo acontece e se tece, em Lang, no coração de um universo altamente moral. Logicamente, a moral convencional não tem aí papel algum, e as forças enquanto tais (polícia, exército, resistência) nos são quase sempre mostradas como baixas, defectíveis e covardes. A sociedade e as pessoas honestas as utilizam com frequência como sua guarda. Os heróis de Lang estão, na realidade, à parte da sociedade. É por isso que a espionagem tem aí um papel tão belo. Nada de melodramático jamais, porque o herói é apenas o justiceiro de si próprio, não defendendo sequer os fracos e oprimidos, não reivindicando nada, vingando-se de uma única vítima por filme; solitário, o ser de exceção preocupa Lang, uma exceção que por pudor soube revestir a humilde aparência de uma instrutora, de uma espiã, de um tira ou de um cowboy grosseiro. “Universo altamente moral”, eu dizia mais acima; universo de convenção, me responderão alguns, não sem razão, aliás. As intrigas de Fritz Lang se alimentam das convenções e jogam com elas. Lançados num conflito em que o realismo sempre costeia e desafia o inverossímil, os personagens de Lang avançam em sua noite, propulsionados às últimas consequências com tanto vigor que os vilões se tornam infames, os bons ascendem ao sublime. Sempre solicitada, admito, a emoção é, no entanto, de uma qualidade tal que é preciso ser tristemente blasé para não se sonhar no papel do criador que golpeia uns e salva outros; e se Fritz Lang, no fim das contas, substitui ele próprio o Divino, como criticá-lo quando ele soube tão bem, ao longo de toda a narrativa, ora se submeter, ora reinar, ser dominado e dominar, a cada nova reviravolta?
A solidão moral, o homem conduzindo sozinho uma luta contra um universo meio hostil, meio indiferente, tal é o tema favorito de Lang. A esse tema, os próprios títulos de seus filmes testemunham sua fidelidade: M., o vampiro de Düsseldorf (M, 1931), Fúria, Vive-se uma só vez (You Only Live Once, 1936), O homem que quis matar Hitler (Man Hunt, 1941) etc.1 Um homem se engaja num combate seja por dever, se é tira, soldado ou especialista, seja por ociosidade. Chega sempre o momento em que ele se cansa de lutar, em que a causa mostra sua falência. Ele está a ponto de abandoná-la quando uma circunstância o fará retomar o duelo, elevar-se até o sacrifício de si próprio. Esta circunstância é quase sempre a morte de alguém, uma pessoa alheia a tudo isso, frequentemente uma mulher, uma mulher amada às vezes (Joan Bennet em O homem que quis matar Hitler, a velha senhora de O grande segredo, a noiva de Kennedy em O diabo feito mulher, Jocelyn Brando em A uma moda que, até mesmo no cinematógrafo, encontra Os corruptos). satisfação em rebaixar, instalando por todo lado a confusão, É aí que o conflito se torna estritamente individual, que as contentando-se em provocar sentimentos de derrota, agradarazões pessoais substituem as razões sociais ou políticas e que a preocupação única da vingança substitui enfim aquela inicial, -me bastante opor Fritz Lang, moralista à sua maneira, cineasta quase balzaquiano, cineasta que não se indispõe a resolver e concluir. Com Fritz Lang, cada plano responde à 1 O autor faz referência aos títulos que os filmes questão “como?”: os homens amam as mulheres, que os amam ganharam na França, respectivamente: M, Le maudit de volta; a Terra é redonda e até mesmo gira; dois e dois [M, o maldito]; Furie [Fúria]; J’ai le droit de vivre invariavelmente são quatro. [Tenho o direito de viver]; Chasse à l’homme [Caça ao homem]. (N.T.)
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