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ALOIS VOGEL,
from 55º EDIÇÃO
Uma Personagem No Seu Pequeno Mundo
Alois Vogel, protagonista de Espanto e Encantamento (o novo livro de Pablo d’Ors) propõe-se contar-nos as suas recordações de vinte e cinco anos a trabalhar como vigilante no Museu dos Expressionista em Coblença (Alemanha). A escolha profissional que faz é um dos mistérios do livro. É certo que em determinado momento Alois nos revela que durante anos e anos o seu pai lhe prometeu levá-lo em visita ao local, promessa que se gorou. Contudo, não é evidente que a sua decisão de passar os dias entre os quadros de Matisse, Kokoscha, Chagal, Klee, Modrian, Munch e outros, decorra de uma superação da quebra da promessa parental.
O QUE ME LEVOU A LER ESTE LIVRO?
Eis um pequeno mistério. Tirando as leituras que temos de fazer de forma obrigatória, o que nos conduz a esta ou aquela obra é sempre uma espécie de enamoramento (pelo menos, para mim).
Devo dizer que os vigilantes dos museus sempre me intrigaram. A maior parte deles parece-me totalmente desinteressada das obras que guarda. Em algumas situações, pressinto um certo descaso por aquelas e alguma incompreensão sobre o que leva os visitantes a deslocarem-se a museus e ali passarem várias horas, vendo quadros e legendas, tentando reter o que não pode ser apreendido de imediato, fotografando, arfando e procurando um banco ou sofá onde descansar durantes uns minutos.
Esta minha ideia sobre os vigilantes dos museus é talvez fruto do preconceito. Seguramente, acarreta alguma injustiça, como todas as generalizações. Recordo-me de há alguns anos em Varsóvia ter sido alertada para a parte detrás de um quadro de Rembrant que era ele próprio uma tela apenas parcialmente utilizada (contraface do quadro Uma rapariga à janela). E também há semanas atrás um vigilante do Museu de Arte Antiga em Lisboa indicoume dois percursos alternativos para chegar à sala onde se encontra O Jardim das Delícias, indicando-me com evidente entusiasmo as obras que poderia ver em qualquer dos percursos. De onde se pode talvez concluir que foi a excepcionalidade destes vigilantes em contraste com o aparente descaso dos outros que me conduziu à leitura destas memórias de Alois Vogel.
Flores Na Abiss Nia
Carla Coelho
Por outro lado, tenho de admitir que tenho um fraco por personagens que contam a sua própria vida, sobretudo as que são anónimas e (para quem não tem imaginação) sem grande história.
É com as obras que compõem as várias salas do museu que Vogel vai dialogando ao longo dos vinte e cinco anos em que ali trabalha. Com algumas cria mesmo uma relação privilegiada que dura anos, reconhecendo-lhes o mérito de lhe terem ensinado a olhar para o mundo e a descobrirse a si próprio. Este é um dos pontos interessantes do livro que nos convoca para o poder da arte e a sua lenta capacidade de nos transformar.
Aliás, diria que este é também um livro sobre a lentidão enquanto elemento essencial ao conhecimento de si. Numa sociedade como aquela em que estamos a viver, com constante bombardear de acontecimentos e informação, o encontro desse tempo e espaço é um acto de resistência e de propósito. Ninguém, creio, tem uma vida lenta por acaso. Ela tem de ser cultivada. E, Alois Vogel, faz isso mesmo.
A quase ausência de acontecimentos exteriores que caracteriza o livro resulta de uma opção narrativa. Não tenho dúvidas de que foi esse o propósito do narrador (e do autor), pois certamente que se pretendesse narrar acção não faltariam episódios, entre as pessoas que trabalham no museu e as que diariamente o visitam. Contudo, embora Vogel recorde os vigilantes e outras pessoas com quem partilhou o espaço de trabalho, pouco ficamos a saber sobre elas. Seguramente, por não interessarem a Alois Vogel. O mesmo se diga dos visitantes que frequentam o museu. São referidos, mas com excepção de duas mulheres pelas quais Vogel se sente atraído, não deixam marcas nas quase trezentas páginas que compõem este livro.
Nas suas deambulações pelas salas do museu em que vai sendo colocado, Vogel não está alheado. Está quase sempre é numa dimensão distinta que é a da vida interior. Se ele é tantas vezes por nós negligenciada, Vogel poucas veze a deixa, dando-lhe a sua quase exclusiva atenção. O grande tema do livro é a consciência de si e é sobre isso que Vogel escreve. Sobre o modo como o convívio diário com as obras de arte o vai ensinando a ver o mundo e sobretudo a conhecer-se. Mas será que ter com um museu a grande relação da nossa vida é assim tão rico em termos existenciais?
Fiquei a pensar sobre o tema e sobre Vogel, bem para lá do momento em que terminei a leitura do livro.
Por um lado, ecoa em mim o seu desinteresse e mesmo incapacidade de actuar perante o mundo exterior, mesmo quando este o interpela. É assim quando se sente atraído por uma visitante em particular. E é também assim quando tem a possibilidade de agir de forma directa, alterando circunstâncias com as quais não concorda.
Alois evita o contacto com outros seres humanos, estabelecendo relações directas com quadros e indirectas e vagas com seres humanos. Destes últimos, parece fugir, algo que apenas sofre alteração no fim do livro. Ainda assim, a relação que estabelece com Gabriele pareceu-me cerimoniosa e pouco natural, incompatível com as emoções que Alois pretende fazer crer (ou fazer-se crer) que está a viver. Outro aspecto que me desagradou no personagem é a sua incapacidade de corrigir a sua inércia. Detecta-a, expõe-a, mas nunca se questiona sobre a mesma. Não sabe de onde vem e não procura averiguar a sua fonte.
A meu ver, estar atento e estar presente não é um exercício umbiguista. Deve antes ter reflexos no modo como estamos no mundo. Talvez o longo solilóquio de Alois tivesse mais impacto se conseguisse pensar no motivo pelo qual escolhe viver retirado do mundo. Sim, sai todos os dias para trabalhar, vai à cervejaria, cumprimenta os colegas, faz o seu trabalho, reconhece nas ruas um ou outro concidadão que vê todos os dias (como connosco sucede com aquelas pessoas que vemos à hora de almoço perto do nosso local de trabalho, por exemplo). No entanto, todas estas pessoas são encontros adiados. E aqui reside uma das frustrações de acompanhar Alois. Por muito rico que seja o nosso interior é no encontro com outros seres vivos (e não apenas com a sua representação pictórica) que descobrimos também quem somos. Há dimensões da experiência humana que apenas o contacto com a vida nos pode dar. Sem isso, mesmo o encontro com a arte pareceme um exercício de estilo que não explora todas as potencialidades.
Aconteceu-me com este livro, algo nunca antes registado na minha vida de leitora: oscilei entre a admiração e o tédio. Vejo-o como uma obra que explora a consciência de si no mundo.
Alois Vogel parece achar que sim. Já eu estou certa de que não. E quanto mais avançava nas suas memórias mais me persuadiu de que sendo tentador refugiarmo-nos (no caso dele, num museu) perdemos com isso uma grande parte do que torna a nossa presença no mundo significativa.
Alexandre Paulain
Praticante de yoga desde 2001 e de ayurveda desde 2006, certificado pelo SUDDHA DHARMA MANDALAM, reside e trabalha em Lisboa com atendimentos e aulas particulares. Instagram @ayurvegan