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DO LUGAR ONDE ESCREVO
from 55º EDIÇÃO
Depois de um dia imersa a lançar notas - daquelas em que as mais altas podem ser um cinco ou um vinte, consoante o nível de ensino - a preparar reuniões e a rever minutas de actas, já só vejo o ecrã do computador aos quadradinhos. Com certeza, quem inventou as plataformas que vieram substituir os livros de ponto, as cadernetas e as pautas em papel, nunca deu aulas e tem algum amigo numa daquelas ópticas que há por todo o país e onde qualquer pessoa pode entrar.
Levanto-me, e chego à conclusão de que preciso de uma cadeira mais confortável. Janto à pressa qualquer coisa igualmente cozinhada sem esmero e volto para a cadeira que me está a deixar as costas moídas. Ligo novamente o computador que, entretanto, adormeceu.
Tenho, ainda, um artigo para escrever. Não pode passar de hoje. Estou quase no limite e gosto de cumprir datas. Mas o que me irá sair do teclado? Não sei. A inspiração teima em não vir, talvez atordoada pelo cansaço. Continuo a ver quadradinhos em vez de uma folha em branco.
Olho à minha volta e procuro ideias naquilo que me rodeia: quadros pintados por diversas pessoas, fotografias - muitas! -, que me trazem memórias de dias felizes e uma estante com livros, que normalmente deslumbra quem aqui entra. Não percebo bem o porquê, mas imagino que deva ser a mesma sensação que tenho quando espreito por um passaporte repleto de carimbos.
Tal como esse que denuncia por onde o dono deambulou, também os meus livros dizem sobre quem eu sou. Os “da escola” estão noutra divisão, bem como as gramáticas, os dicionários e os de leitura obrigatória ao longo do terceiro ciclo e secundário. Qual pequena biblioteca, esta estante arrecada leituras para quase todos os momentos da minha vida: poesia, romance, desenvolvimento pessoal, marketing digital, livros infantis, de crónicas e de contos, outros que não sei categorizar, de astrologia e - pasme-se - um tarot! Numa palavra apenas: eclética.
“Já leste estes livros todos?” - perguntam-me amiúde. Assim, a olho nu, e da cadeira onde estou sentada, conto cerca de duas centenas. Não são assim tantos e não, não os li todos. Há muitos que gosto de ir lendo - que é como quem diz: abrir, ler, sublinhar e reflectir. Todos os livros trazem algo de novo, mesmo que os leia mais do que uma ou duas vezes. São como as pessoas na nossa vida: há as que estão de passagem e há as que chegam e não mais vão embora. Para os dois casos, o fado encarrega-se de nos dizer o porquê de assim ser.
De regresso aos livros. O último que li? Curiosamente, foi também o mais recente a ser comprado: O Barco das Crianças, de Mario Vargas Llosa. Está catalogado como juvenil e embora já não seja para a minha idade - se é que isso existe -, assim que soube que um dos personagens era o mesmo que aparece noutras duas obras do mesmo autor, tive a certeza de que tinha de o ler: Fonchito! Alfonso, que às vezes é Alfonsito ou Foncho e outras é Fonchito, é, deveras intrigante. Tanto pode ser um dócil e ingénuo menino como uma criatura ignóbil, capaz de deixar os mais sensíveis de estômago revoltado.
Nas três obras em que surge, o pai é o mesmo e em duas delas aparece a figura da madrasta. Numa, vive num apartamento; noutra, numa mansão e na terceira no que parece ser, apenas, uma casa. Será o mesmo Fonchito que leio?
As três obras em causa são:
Llosa, Mario Vargas, Elogio da Madrasta, Dom Quixote, 2012
Llosa, Mario Vargas, Fonchito e a Lua, Editorial Presença, 2021
Llosa, Mario Vargas, O Barco das Crianças, Editorial Presença, 2019