Mário de Andrade
Cartas do Modernismo Curadoria: Denise Mattar CENTRO CULTURAL CORREIOS RIO DE JANEIRO 14 de novembro de 2012 a 13 de janeiro de 2013
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“Anita do coração....” A saudação é do poeta, romancista, professor, crítico... Mário de Andrade (1893-1945) em carta datada de 1º de dezembro de 1924 e destinada à pintora Anita Malfatti. Essa e outras cartas – selecionadas da vasta correspondência do escritor paulista – estão postadas no Centro Cultural Correios do Rio de Janeiro e seus conteúdos, abertos ao público na exposição “Mário de Andrade – Cartas do Modernismo”. Entre os correspondentes do atuante modernista, estão também importantes e renomados artistas plásticos, poetas e escritores brasileiros, como Tarsila do Amaral, Cândido Portinari, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Victor Brecheret, Enrico Bianco, Cícero Dias, Henriqueta Lisboa e Di Cavalcanti que expressaram em cartas suas idéias sobre o movimento modernista e seus sentimentos mais íntimos: amores, brigas, disputas... A exposição, que encerra as comemorações dos 90 anos da Semana de Arte Moderna é ilustrada ainda com imagens, fotos, textos e importantes e valiosas obras de arte assinadas por Anita Malfatti, Cícero Dias, Ismael Nery, Zina Aita, Augusto Rodrigues, Lasar Segall e Enrico Bianco. Compõe ainda a mostra, um recorte especial que destaca o curto período em que Mário de Andrade viveu no Rio de Janeiro e sua amizade com Cândido Portinari. Tanto o acervo de correspondências, como o da coleção particular de obras de arte do escritor são guardados pelo IEB - Instituto de Estudos Brasileiros USP. Relíquias que, delineadas com recursos atrativos de cenografia, museografia e de multimídia, podem ser lidas, ouvidas e vistas na exposição, que apresenta ao público um panorama da implantação e expansão do modernismo no Brasil e as personalidades desse momento histórico da arte no País. Prezado público... Esta saudação é dos Correios, que escrevem o seu nome na realização da exposição “Mario de Andrade - Cartas do Modernismo” para prestigiar você estudante, professor, artista, pesquisador... Enfim cada pessoa que tem interesse pela arte e cultura brasileira e ao aprimoramento do conhecimento. Os Correios selam essa escrita que expõe um conteúdo rico do ideário modernista, tanto biográfico e pedagógico, quanto sentimental e emotivo, assinando atenciosamente,
Centro Cultural Correios
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Índice Gigantismo Epistolar Marcos Moraes e Telê Ancona Lopez - IEB/USP................................................................................ 9 Para a Posteridade Celso Rabetti.............................................................................................................................................. 11 Mário de Andrade - Cartas do Modernismo Denise Mattar...........................................................................................................................................15 De Mário para Anita No atelier (1922)......................................................................................................................................28 De Anita para Mário 27 de outubro [1923]..............................................................................................................................30 De Mário para Anita 3 de Janeiro 1924.................................................................................................................................... 32 De Di Cavalcanti para Mário 18 de Dezembro 1925............................................................................................................................. 35 Di Cavalcanti - Amoroso cantador Mário de Andrade...................................................................................................................................36 De Mário para Tarsila 19 de dezembro de 1922........................................................................................................................38 11 de janeiro de 1923.............................................................................................................................. 40 15 de novembro de 1923........................................................................................................................42 De Mário para Portinari Eliane Hatherly Paz................................................................................................................................59 O violinista e o contato com Mário de Andrade Marcelo Téo..............................................................................................................................................64 De Mário para Portinari 30 de Abril de 1937................................................................................................................................66 De Mário para Carlos Drummond de Andrade 30 de Abril de 1937................................................................................................................................68 De Mário para Portinari 23 de Outubro de 1940.......................................................................................................................... 72 23 de Março de 1935.............................................................................................................................. 74 De Mário para Henriqueta Lisboa 11 de julho de 1941.................................................................................................................................... 76 Carta ao pintor moço 11 de julho de 1942.................................................................................................................................. 80 De Di Cavalcanti para Mário 24 de abril de 1922..................................................................................................................................86 1º de setembro de 1930........................................................................................................................ 88 As cartas de Mário de Andrade Affonso Romano de Sant’Anna............................................................................................................96 Dos visitantes para Mário................................................................................................................ 102 Cronologia.............................................................................................................................................. 108
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Gigantismo epistolar “Eu sofro de gigantismo epistolar”, escreve Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade em novembro de 1924. Nas mensagens que se espraiam por muitos cantos do Brasil, entre os anos de 1920 e 1945, para chegar às mãos de escritores, músicos e pintores de várias gerações, vigora o sentido pleno da partilha intelectual, mobilizada pela amizade. Essas cartas, hoje conhecidas em expressivo número de edições, configuram-se como a expressão de um notável projeto intelectual de largo alcance no movimento modernista. A correspondência desenha a rede da atuação empenhada do criador de Macunaíma nos debates de seu tempo, colocando em pauta a literatura, as artes, assim como a vida social e política do país. Entre tantos assuntos presentes nas missivas, em linguagem desataviada, cobrindo páginas e mais páginas, ganham relevo a caracterização do nacionalismo crítico no campo estético, a reflexão sobre patrimônio histórico nacional, os meandros da experiência do artefazer e os caminhos da formação do artista, em bases consistentes e autocríticas. Textos, partituras, croquis seguiam endereçados a Mário de Andrade, com pedido de opinião, alimentando a engrenagem crítica do diálogo epistolar. Tensões e consensos, colaboração e resistências, no debate sobre obras em processo não apenas mostram a configuração de gestos inventivos singulares e o confronto de perspectivas de interpretação, como também resultam na definição de um ideário artístico coletivo, caracterizando as suas linhas de força. Nestas Cartas do modernismo, selecionadas no diálogo do crítico severo com artistas plásticos brasileiros, caminhos e sentidos da arte brasileira são dimensionados, no compasso das amizades que se constroem. Cartas e obras, traços, tintas e palavras trazem à cena a fecunda interlocução de Mário de Andrade com Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, Portinari, Manuel Bandeira, Pedro Nava e Enrico Bianco. Completada nos comentários confiados aos poetas Carlos Drummond de Andrade e Henriqueta Lisboa.
Marcos Moraes e Telê Ancona Lopez Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo
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Para a posteridade Estávamos no início do ano de 2012. Professores e alunos do curso de Crítica e Curadoria da PUC de São Paulo se preparavam para as comemorações dos 90 anos da realização da Semana de Arte Moderna de 1922. Eu, dentre eles. Sabíamos que muito tinha ainda a ser pesquisado e discutido sobre o assunto. Durante todo o primeiro semestre, como previsto, discutimos calorosa e profundamente a Semana de 22 e a sua importância para a arte brasileira. Numa das disciplinas, conduzida pela professora Sônia Régis Barreto, foram apresentados vários textos que tratavam do assunto. Um deles me chamou muita atenção. “Carta ao pintor moço” de Mário de Andrade. Escrita em 1942 e endereçada ao jovem pintor Enrico Bianco, a carta dá uma verdadeira aula, com uma visão extremamente crítica sobre a arte moderna naquele período. O recado de Mário de Andrade ao pintor moço parecia ainda ecoar, causando em mim um profundo estra nhamento. O que de fato ele dizia nesta carta? As palavras nela contida pareciam vivas e me impressionaram. Estranha sensação aquela. Algo em mim começou a pulsar. Um sentimento de “algo por fazer” se assolou em minha mente. Uma urgência se instalou em meus pensamentos. Tinha pressa em amenizar esta angústia. Em outra disciplina, ministrada pela professora Priscila Arantes, tínhamos que apresentar um projeto de uma exposição. Estava ali a saída para minhas angustias. As cartas, pensei! O projeto de uma exposição sobre as cartas de artistas. Por que não? As cartas de Mário! A troca de ideias. Não através de pinturas, romances ou outra forma de expressão artística, mas sim no posicionamento vivo de pensamentos expressos na comunicação verbal, escrita para a posteridade. Mário escreveu suas cartas para a posteridade! Inevitavelmente me dirigi ao Instituto de Estudos Brasileiros da USP. Lá se encontra todo o espólio de Mário de Andrade. Tomei um susto. Fui atrás de algumas poucas cartas e me deparei com milhares de cartas, entre ativas e passivas. Na carta a Bianco, Mário dizia: A beleza não é senão o elemento transpositor de que a arte se serve pra funcionar dentro da vida humana coletiva. E assim, quando da abertura do edital de ocupação do Centro Cultural Correios, sugeri à minha amiga e curadora Denise Mattar que ela apresentasse o projeto das cartas de Mário. Ela se encarregaria de dar a beleza e a profundidade que o projeto merecia. Através de suas mãos, de sua cuidadosa curadoria, meu projeto acadêmico, tornou-se uma realidade. Deixou de ser projeto. Agora é para a posteridade. É como Mário de Andrade gostaria que fosse! Para todos!
Celso Rabetti
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Mário de Andrade Cartas do modernismo
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urante alguns anos empreendi extensa pesquisa sobre o modernismo, que resultou nas exposições Di Cavalcanti (1997), Flávio de Carvalho (1999), Ismael Nery (2000), Anita Malfatti (2001) e D. Olívia Penteado (2002). Cada um destes trabalhos, me proporcionou uma visão muito próxima do período que vai do início do século XX até os anos 30. Posso dizer que vislumbro as pessoas por trás dos personagens e que consigo ouvir os risos, o ritmo frenético das construções e do fox-trot, contraposto à residências com espessos tapetes, gobelins e móveis vindos de Paris. Nas crônicas de Di Cavalcanti, nos textos de Flávio de Carvalho e de Ismael Nery, em jornais e revistas da época é possível delinear esse momento especial dentro da história mundial e brasileira, pleno de mudanças, políticas, artísticas, sociais e comportamentais, e cuja face mais conhecida no Brasil é o chamado Primeiro Modernismo. O protagonismo de Mário de Andrade dentro desse período é inegável: suas poesias, textos, críticas e análises influenciaram artistas, apontaram talentos e abriram os caminhos modernistas. Dono de muitos talentos, foi poeta, escritor, crítico literário, teórico de arte, musicólogo, folclorista e fotógrafo. Dentro de sua extensa produção, nada porém é mais saboroso, revelador e rico em detalhes pessoais, do que suas cartas. Uma das histórias que Mário contava, quase justificando sua extensa produção epistolar, era a de que, por volta de 1914, enviara seus primeiros versos para o poeta parnasiano Vicente de Carvalho, e ficara muito decepcionado por nunca ter recebido uma resposta. Segundo ele, a partir dessa experiência decidiu que, quando ficasse famoso, sempre responderia aos jovens – e, de fato cumpriu essa promessa. A partir de uma conversa com meu amigo Celso Rabetti aceitei sua sugestão de fazer uma exposição sobre essa correspondência, que resultou na mostra Mário de Andrade - Cartas do Modernismo. Como recorte curatorial foquei as artes plásticas, priorizando a correspondência com artistas como Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti e Portinari, ou comentários sobre arte encontrados em cartas a Manoel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Henriqueta Lisboa, entre outros. Dentro dessa proposta seria impossível deixar de mostrar ao menos parte da preciosa coleção de artes plásticas que Mário de Andrade reuniu ao longo dos anos, quase sempre comprando os trabalhos. Em carta a Oneida Alvarenga, datada de 1940, escrevia Mário: quando aos 16 anos e muito, resolvi me dedicar à música, me fez concluir instantaneamente que a música não existe, o que existia era a Arte?... E desde então, desde esse primeiro momento de estudo real (...) assim como estudava piano, não perdia concerto e lia a vida dos músicos, também não perdia exposições plásticas, devorava histórias de arte, me atrapalhava em estéticas mal compreendidas, estudava os escritores e a língua, e, com quê sacrifícios nem sei pois vivia de mesada miserável, comprava o meu primeiro quadro!. E de fato, o jovem Mário comprou um quadro de Torquato Bassi, um artista acadêmico. Em 1917, depois de haver publicado, com o pseudônimo Mário Sobral, o livro Há uma gota de sangue em cada poema, Mário de Andrade conheceu Oswald de Andrade e Di Cavalcanti. A modernidade que já estava latente em sua produção encontrou eco no novo grupo e Oswald levou os escritos de Mário para o Jornal do Commércio. Foi também com os dois que visitou a exposição de Anita Malfatti. Ao ver os trabalhos sua primeira reação foi de um riso incontido, mas depois voltou várias vezes e tornouse amigo de Anita. A artista apresentava obras de tendência expressionista e cubista, entre as quais figuravam “O Homem Amarelo” , “A Estudante Russa” e “O Japonês”, pinturas que posteriormente Mário iria adquirir.
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A vasta correspondência trocada entre Mário e Anita ao longo de 15 anos mostra sobretudo a grande e duradoura amizade que os uniu. Mário era carinhoso e atento à sensibilidade exacerbada de Anita, mas também firme em suas convicções e bastante crítico do trabalho da artista. A partir de 1923, quando ela passa a residir em Paris, ele acompanha passo a passo as atividades da amiga, dando conselhos e sugestões. Anitinha, Anitoca queriquerida, Anitoca do coração, Nitoca são algumas das formas de tratamento que ele usa para se dirigir a ela. Essas cartas não tem o caráter documental que marca a correspondência dele com outros artistas e escritores; em contrapartida, por ela desfilam os principais personagens do modernismo em suas disputas, brigas, sucessos e conquistas. Como é sabido a exposição de Anita Malfatti, em 1917, suscitou o artigo de Monteiro Lobato intitulado Paranoia ou Mistificação? no qual ele criticava violentamente a exposição. Esse ataque fortaleceu os incipientes modernistas, que cerraram fileiras em torno da artista e passaram a se reunir e trocar experiências com frequência. Nos anos 1920 Mário frequentava o atelier de Victor Brecheret, recém-chegado da Europa, e lá fez sua primeira aquisição moderna, a escultura “Cabeça de Cristo”. A obra causou comoção em sua casa por mostrar uma imagem nada doce e suave do messias. Essa reação está na gênese do livro Paulicéia Desvairada, cuja primeira escrita é de 1920, tornando-o um dos textos pioneiros da literatura modenista no Brasil. A amizade de Mário com Brecheret também se estendeu por muitos anos, mas da correspondência entre eles restaram apenas algumas interessantes cartas do artista. Os textos delas são quase ilegíveis, escritos com letra miúda numa pitoresca miscelânea de português e italiano; em contrapartida, as cartas são ilustradas por belíssimos desenhos, esboços de trabalhos que o artista enviava para a apreciação do amigo e crítico, cuja opinião respeitava muito. Nos anos 1920 as esculturas de Brecheret chocavam os acadêmicos, mas o artista era celebrado pelo jovem grupo modernista como um gênio. Dentro desse espírito de profissão de fé em novas idéias, foi realizada a Semana de Arte Moderna no Teatro Municipal de São Paulo de 13 a 17 de Fevereiro de 1922, concebida a partir de uma sugestão de Di Cavalcanti. O evento reuniu pintura, escultura, literatura, poesia e música, e causou escândalo na cidade. Entre os participantes estavam Anita Malfatti, Victor Brecheret, Manuel Bandeira, Guilherme de Almeida, Sérgio Milliet e Heitor Villa-Lobos. O cartaz e o catálogo do evento foram realizados por Di Cavalcanti que trabalhou ativamente para trazer os modernistas cariocas. Mário de Andrade tinha especial carinho por Di Cavalcanti, seu companheiro desses tempos heroicos do Modernismo. Estima-se que a correspondência entre eles deva ter sido grande, mas Di não arquivava nada, e mudava-se com frequência. Assim, nada existe das cartas de Mário para ele, mas restaram cartas enviadas pelo artista, com frases espirituosas como esta, escrita tortuosamente em meio a um belíssimo desenho: Mário, felizmente eu não me apresso, não quero nunca realizar obras primas como [querem] o Brecheret, o Villa e mesmo já o Celso Antônio. O que acontece é que eles sem autocrítica já estão paus e eu me sinto de uma mocidade comovente. Não é orgulho, é vaidade. Eles não amam a vida. E eu amo sobretudo a vida, esta vida que me vem como os calores sexuais de baixo para cima. Delicioso também é o poema-retrato que, entretanto, nunca se transformou numa pintura... Mário divertia-se com o hedonismo do amigo com o qual às vezes se identificava. E, sobretudo, apreciava na obra de Di Cavalcanti a sua brasilidade, tema que defendia ardorosamente. Na coleção de Mário há vários trabalhos do início da carrreira de Di, que também realizou para ele a capa do livro Losango Caqui e um projeto para Paulicéia Desvairada, que não se concretizou.
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Mário... um Homem Desinfeliz Documentário 25 min 1993 Diretor: Adilson Ruiz Produtora: Estúdio AR Cinema e Vídeo Idealizado e realizado pelo Itaú Cultural em comemoração ao centenário de nascimento do escritor
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Logo após a Semana, Anita Malfatti encontrou Tarsila do Amaral. Recém chegada de Paris a artista fazia uma pintura impressionista que pode ser vista na obra “Chapéu Azul” de 1922. Surgiu então uma turma inseparável conhecida como o Grupo dos Cinco, composto por Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Menotti del Picchia. Nesse período Tarsila e Anita pintavam juntas muitas vezes, e Mário de Andrade foi um de seus modelos preferidos. Entre as obras desse momento está “As Margaridas de Mário”, de Anita, retratando as flores enviadas por Mário a Tarsila e que integra a coleção do crítico. Com o mesmo nome e pintada no mesmo dia, a obra de Tarsila pertence hoje ao Museu de Grenoble, França. Naquele período efervescente o Grupo dos Cinco se reunia para discutir arte, ouvir música e dizer poesias. Oswald tinha um Cadillac verde e desfilava pela cidade com todos a bordo. O livro Pauliceia Desvairada, de Mário de Andrade reúne um conjunto de poemas no qual ele espelha esse momento frenético de construção de um ideário modernista. Mas, de repente tudo mudou. Em 1923, Oswald e Tarsila assumiram sua paixão e foram embora para Paris, onde ela foi estudar com Léger. Anita seguiu para a Europa, com bolsa do Pensionato Artístico. Di, Brecheret e Cícero Dias também se foram. Mário de Andrade, sozinho no Brasil, escrevia a todos incessantemente, pedindo notícias e conclamando-os a voltar. A correspondência trocada entre Mário e Tarsila é muito desigual pois foram muito maiores e mais longas as cartas enviadas por Mário do que as respondidas por Tarsila. Mário deixava transparecer toda a sua admiração e encantamento pela pintora, que respondia-lhe muitas vezes de forma bastante sucinta. Algumas são cartas de um homem apaixonado e saudoso, mas em outras ele faz sua perene defesa da brasilidade. Em 1924 D. Olivia Penteado organizou uma viagem a Minas Gerais para visitar as cidades históricas (que Mário de Andrade já conhecia). Segundo ela seria a primeira de uma série de viagens de “descoberta do Brasil”. Com seu poder de convocatória ela chamou Tarsila e Oswald, que vieram de Paris, acompanhados do poeta francês Blaise Cendrars. Essa viagem de fato abriu para eles um novo entendimento do país. Na volta Oswald de Andrade publicou o livro Pau-Brasil, Tarsila iniciou a fase de mesmo nome e Mário de Andrade escreveu Noturno de Belo Horizonte, considerado um de seus mais importantes poemas. Blaise Cendrars, de quem Mário não gostava, encantou-se com a viagem, e, embora sempre mantivesse uma postura um pouco irônica para com os jovens modernistas, convidou Tarsila a ilustrar seu livro Feuilles de Route, editado em Paris. Na viagem, as fazendas e paisagens mineiras foram registradas em desenhos por Tarsila e também por Mário de Andrade, que era bom desenhista. Mas se o escritor os encarava apenas como um diário de viagem, para a artista eram esboços de suas novas pinturas, entre elas “O Mamoeiro”, que integra a coleção de Mário. Em Minas um jovem poeta local veio se apresentar a Mário, e, em 28 de Outubro de 1924, enviou-lhe uma tímida carta: Procure-me nas suas memórias de Belo Horizonte: um rapaz magro, que esteve consigo no Grande Hotel. Ora, eu desejo prolongar aquela fugitiva hora de convívio com seu caro espírito.(...). Mário respondeu com uma longa carta e isso foi o início de uma correspondência literária, criativa e afetiva que durou 21 anos. O nome do poeta era Carlos Drummond de Andrade. Em 1927 Mário de Andrade foi convidado por D. Olívia Penteado a acompanhá-la numa viagem ao Amazonas. A experiência foi marcante para ele aumentando ainda mais seu interesse pela música, lendas e tradições brasileiras. O escritor voltaria ao Norte no ano seguinte. No final de 1926 ele já escrevera Macunaíma - O herói sem nenhum caráter, sobre o qual dizia em carta ao folclorista Luís
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da Câmara Cascudo: Escrevi um romance. Romance ou coisa que o valha, nem sei como se pode chamar aquilo. Em todo caso chama-se Macunaíma. É um herói taulipangue bastante cômico. Minha intenção foi esta: aproveitar no máximo possível lendas e tradições costumes frases feitas etc. Brasileiros. E tudo debaixo dum caráter sempre lendário porém como lenda de índio e negro. O livro tem uma estrutura inovadora e faz um retrato debochado e irônico do povo brasileiro, tornando-se um marco de nossa literatura. Aprofundando sua pesquisa iniciada com “A Negra”, Tarsila pintou, em 1928, a tela “Abaporu” (“homem que come gente” em tupi-guarani). Inspirado por ela Oswald de Andrade descobriu na antropofagia uma metáfora original e surpreendente para legitimar a absorção da cultura europeia e sua transformação em cultura brasileira. Mais do que uma teoria o seu Manifesto Antropófago é um verdadeiro grito de guerra. De maio de 1928 a março de 1929 a Revista de Antropofagia teve duas fases, ou duas “dentições”, como queriam seus autores. Mário participou apenas da primeira; na segunda já estavam rompidas suas relações com Oswald. Em outubro de 1929 a quebra da Bolsa de Nova York iniciou um período político, econômico e social sombrio que se estendeu até 1945. No Brasil a derrocada da economia do café levou à falência a aristocracia rural paulista evaporando as fortunas de Tarsila e Oswald que se separaram. Foi o fim de uma era, e o momento em que se encerrou, melancolicamente, o Primeiro Modernismo no Brasil. No início da década de 1930, o primeiro sopro do modernismo já havia passado, sem ter sido reconhecido no Rio de Janeiro, então capital do país. Em 1931, o arquiteto Lúcio Costa, à frente da Escola Nacional de Belas Artes, mudou esse quadro convidando os principais modernistas do Rio e de São Paulo a participar do chamado Salão Revolucionário. Entre eles havia artistas de diferentes gerações, como Tarsila, Brecheret, Anita, Ismael Nery, Cícero Dias e Guignard. O evento causou polêmica e levou à demissão de Lúcio Costa. Mário de Andrade visitou o Salão onde dois trabalhos chamaram sua atenção: o “Retrato de Manuel Bandeira” e “O Violinista”, ambos do jovem pintor Cândido Portinari. Conhecendo a sua produção o crítico viu no artista as principais qualidades que apreciava: o cuidado com os valores plásticos, a qualidade artesanal da pintura, o interesse pelo assunto nacional e o compromisso com o social. Ficaram amigos, trocaram longa correspondência, e Mário procurou elevá-lo ao posto de maior artista nacional. Entre 1935 e 1938, Mário de Andrade exerceu o cargo de diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo. Abdicando de projetos pessoais criou uma intensa programação cultural para a cidade. Sua demissão, em 1938, por motivos políticos e não justificados, foi um choque ( do qual nunca se recuperou) e Mário decidiu mudar-se para o Rio de Janeiro. Sua chegada coincidiu com a ascensão de Getúlio Vargas e o início da Segunda Guerra. Ele assumiu o cargo de professor de Filosofia e História da Arte, na Universidade do Distrito Federal, onde Portinari tinha a cátedra de Pintura. Apesar de estar em funcionamento, a UDF havia sido nominalmente extinta e já estava em curso sua incorporação à Universidade do Brasil, atendendo à vontade de Gustavo Capanema, Ministro da Educação e Saúde de Vargas. Assim, Mário de Andrade, que chegara ao Rio fugindo de intrigas políticas, veio parar em meio a outras, muito mais complexas, e que tornaram sua situação bastante instável. Com a extinção da UDF Mário tornou-se consultor técnico do Instituto Nacional do Livro e colaborador do SPHAN, do qual foi um dos criadores. Mas ele não se sentia à vontade em participar do governo de Vargas, mesmo cercado de colegas como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Rodrigo de Mello Franco.
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Nesse período difícil, Portinari e sua esposa Maria tornaram-se a família de Mário e ele teve a oportunidade de assistir ao triunfo do amigo. Sucessivamente o artista foi convidado a criar os afrescos e azulejos do prédio do MEC, teve uma exposição individual no MOMA de Nova York, e foi para os Estados Unidos pintar os painéis da Biblioteca do Congresso em Washington. Em 1941 Mário decidiu voltar para São Paulo, amargurado com a situação política e artística do país, e sem nunca ter se adaptado verdadeiramente à cidade. Deixou no Rio os jovens amigos de farras e conversas, Murilo Miranda, Lúcio Rangel, Carlos Lacerda e Moacir Werneck de Castro, com quem passou a se corresponder intensamente. Mário de Andrade voltou ao Rio em 1942, a convite da Casa do Estudante, para realizar, no Itamaraty, a conferência O movimento modernista. A palestra foi um importante balanço daquele período, mas seu tom já prenunciava a morte de Mário, que ocorreu em São Paulo a 25 de Fevereiro de 1945. Para contar essa história a exposição Mário de Andrade – Cartas do Modernismo foi dividida em núcleos: “Primeiro Modernismo” apresentava uma cronologia do movimento através de reproduções de obras, livros e textos, e, nas cartas para Mário ilustradas pelos artistas. “Segundo Modernismo” tratava da relação de Mário de Andrade com Portinari. Neste segmento, em vitrines, foram apresentadas as cartas originais de Mario a Portinari, analisadas neste catálogo em artigo de Eliane Hatherly Paz. As obras de arte de Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, Portinari e Bianco, majoritariamente da coleção de Mário, eram acompanhadas por cartas gravadas colocadas em totens com fones de ouvido. Interpretadas por João Paulo Lorenzón elas ressaltavam os diferentes tons que Mário usava para os seus correspondentes: carinhoso para Anita, severo com o jovem Bianco, caloroso para Portinari, professoral com Drummond, cúmplice com Manuel Bandeira e apaixonado por Tarsila. O recurso tornou as cartas vivas e de mais fácil entendimento pelo público. Na sala 2 apresentamos o docudrama Um Homem Desinfeliz, de Adilson Ruiz, produzido pelo Itaú Cultural, e uma instalação de Guilherme Isnard que brincava com a enorme quantidade de cartas escrita por Mário, convocando o público a escrever para ele. Em mídia eletrônica, letras giravam no ar, como que expelidas da máquina de Mário, formando palavras, frases e poesias do autor. Na sala do educativo foram apresentados um conjunto de fotografias realizadas por Mário de Andrade na viagem ao Amazonas e um fotovídeo com imagens dos modernistas. Nas mesas de consulta o público tinha acesso à correspondência com Anita, Tarsila, Câmara Cascudo, Drummond, Portinari, Manuel Bandeira, e podia escrever suas próprias cartas. A resposta do público à nossa proposta, apoiada no cuidadoso trabalho dos mediadores, foi surpreendente, e por isso anexamos ao catálogo algumas poucas cartas, das muitas que foram coletadas. Agradeço ao IEB - Instituto de Estudos Brasileiros da USP, instituição que abriga a memória e a herança de Mário de Andrade e ao sr Carlos Augusto de Andrade Camargo, herdeiro do autor, certa de que sem seu apoio esta exposição não seria possível. Agradeço também aos Correios que tiveram a sensibilidade de patrocinar esta mostra, tão afinada com o trabalho da empresa. Igualmente fundamentais foram o Projeto Portinari, o Itaú Cultural e os colecionadores que emprestaram obras. Mas, à equipe, que tanto trabalhou para tornar essa ideia uma realidade, e que são tantos que não dá para nominar a todos, vai meu maior agradecimento.
Denise Mattar - Curadora
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No Atelier Estávamos os dois na penumbra oleosa do atelier. Ela arranjara a tela, preparara as cores, e, gestos nervosos, serpentinos, esboçara o meu retrato. Havia uma alegria, de milagre lá fora. tínhamos-nos encontrado no porão, ridentes, despreocupados, longe da vida como a manhã infantil que cambalhotava pelos morros, em frente, como a própria paisagem silvestre que, numa ironia feminina da natureza, sorria seus lábios verdes junto ao civilizado perfil da cidade. Anita dera-me a mão, num “bom dia” primaveril. Toda de branco! Eu, embora de negro, não trazia o coração “vestu du noir” como o de Charles d’Orleans. Sentia-me feliz. Agora, no crepúsculo do atelier havia como que um desapontamento entre nós dois. É que as alegrias exteriores, passageiras, não cabem nas penumbras. Abandonáramos a nossa, lá, nas mãos da manhã infantil; e sentíamos, na pouca luz que desnuda, um amargor remanescente de vida quotidiana. E eu falei: - Como é bom , Anita, a gente separar-se, assim, por umas horas, da caravana. Abandonar trabalhos e preocupações, abandonar a própria felicidade que a todos abraça num ou noutro instante, para viver esse limbo de lazer em que estamos agora. - Mário, uma senhora disse-me ontem que jamais vira nas águas um reflexo de céu... (...) E o nosso diálogo politonal continuava. A pintora, com as pálpebras semicerradas, trabalhava rápido, febril. Sua mão agílima abandonava pincéis, misturava cores, criava tons inebriantes, imateriais, num frenesi potente de criação. Toda entregue ao prazer de pintar, não me escutava, direi mesmo que não me via. Isso consolava-me um pouco da minha pobre figura esguicho, sem cores, muito morna. Anita criava! Como inconsciente, na exaltação que a possuía, na divina loucura de inspiração, murmurava frases sem sentido, contradiziase, respondia perguntas inexistentes. Às vezes silenciava. Parava. Contemplava a obra ou examinava o modelo. Depois era de novo o trabalho inspirado, feliz. Escondia novamente a luz dos olhos entre as pálpebras apertadas, trementes. Quando descobria um tom mais inédito, mais exato, sorria, cantava frases de ópera fácil, numa clarinada de vitória. (...) Não sei se percebeu minha fuga. Pintava. Pintava sempre. Pintava de cor, trêmula de ânsia, gloriosa de força divinatória. Suas cores eram fantasmagorias simbólicas, eram sinônimos! Por trás da minha face longa, divinizada pelo traço do artista, um segundo plano arlequinal, que era minha alma. Tons de cinza que eram minha tristeza sem razão... Tons de oiro que eram minha alegria milionária... Tons de fogo que eram meus ímpetos entusiásticos... Eu vibrava, como que recoando a ressonância anímica da artista. E o atelier era como que uma sinfonia de vidas incriadas, inexistentes, em acordes físicos sobrefortes, em melodias espirituais sobre-elevadas! Lá fora a manhã infantil cambalhotava pelos morros. Era a vida num momento de rir! Na penumbra do atelier um entusiasmo artificial, um lirismo sem nexo, fantasias sem modelo, colocava-nos para além das alegrias e das dores, Era a arte num momento de sonhar! - Não pinto mais. Estou cansada. (...) S. Paulo - Carnaval de 922
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Anita Malfatti Retrato de Mário de Andrade Carvão e pastel s/ papel 36,5 x 29,5cm Coleção Mário de Andrade Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP
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14 1 bis Hotel Paris 27 de
(AM) Rue du Maine Central XIV outubro [1923]
Caro Mário. Escrevo-te novamente depois de muito ver, e muito mudar. Não reli tua carta, e lia-a mesmo muito depressa. Recebi-a acompanhada de muitas outras do Brasil, ao chegar do teatro. Chove e não saí para jantar fora, estou descansada, sem sono e como vês aproveitando uma hora quieta para dizer-te coisas um pouco difíceis. [...] Acho que fazes mal e que és sentimental para com o teu passado. Cuidado, podes ficar “passadista”. Deve-se nascer todos os dias, para a Arte e para a vida. Bem não danes comigo. Passemos às notícias de Paris. Moro no mesmo hotel com Brecheret o glorioso, Di e Maria. Di, cubista, cheio de coisas, entrevistas ao princípio nos víamos sempre, agora tendo todos o que fazer, quase nunca. Tarsila vejo-a raramente faz cubismo absoluto, vais gostar. Oswald é o Homem da Hora, sempre apressado, não se zangue, adeusinho e some-se no Metro. Tarsila e Oswald são íntimos de grandes modernos. Eles te darão notícias em dezembro. O monumento Mise au tombeau de Brecheret é um colosso – uma vitória definitiva da arte brasileira em Paris – mas o melhor que B. tem é Simone a noiva dele. Não chegamos a tempo para ouvir os versos cantados pela Vera. Paulo Prado ficou danado conosco mas acabamos felizes no Café de la Paix. No concerto da Vera a música do Villa foi muito bem aceita. Vi-o só 2 vezes. Está a compor o bailado. O livro novo do Oswald é engraçadíssimo. Penso porém que ele não nos acha à altura, pois não o lê para nós, também ele vai muito aos dancings e diz que ama uma arquiduquesa russa. Isto tudo distrai muito. O monumento Brecheret tem 2 metros de alto sobre uma base de 2 metros também. 4m. de comprimento e somente 75 cm. de espessura. Ficou colocado entre as 2 grandes escadarias da “rotonde” do Grand Palais. Considerado por todos como “obra prima”. Mandar-te-ei uma foto. Simone é grande e loura e maravilhosamente boa. É moça distintíssima, prevejo um futuro feliz para ambos. Precisam esperar até o fim da pensão, coitados, tenho pena. Não o contou aos amigos de S. P. de medo que isto o prejudique. Outra noite me iniciaram nos cabarés de Montmartre. Fomos todos com o Paulo Prado. Fiquei tão atordoada com tudo, que acabei não falando mais. O Oswald parece um “édredron” dançando. O Vicky (Brecheret) um “tank” sério “qui va jusqu’au bout” e mesmo P.P. está tomando lições de dança. Nos teatros de variedades muitas mulheres completamente nuas. Tive a impressão de precisar aproveitar a pose. Fiquei com um ateliê perto do do Brecheret, mas precisa de tantos consertos e reformas que só confiando na divina providência. Mas, Mário, aqui pintor sem ateliê, não é pintor. Quem não tem coragem não merece viver. Terei portanto a coragem. Mande-me teu livro e tuas poesias, isto me encherá de prazer. Estou tão cansada, escrevo em posição forçada, no colo. Mando-te todo meu carinho num grande abraço, parisiense (sem ser fraternal). Annita [...]
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Anita Malfatti As margaridas de Mário, 1922 Óleo s/ tela 51,5 x 53 cm Coleção Mário de Andrade Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP
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S. Paulo 3 de Janeiro 1924 Anita querida: Recebi ontem um teu recado de boas festas. Tão pequenino! Tão lacônico! Que impiedade essa dos amigos que viajam. Vêem tanto, contam tão pouco! Manda-me dizer como e quanto trabalhas. Que fazes, que fazes, QUE FAZES????? Eu me sinto glorioso. Sei que trabalhas, pelo Oswaldo. Disse-me ele que fizeste já umas coisas muito boas. Que teu último trabalho já recorda o bom tempo do Homem Amarelo, do Japonês... Bravíssimo! Lembras-te? Tu mesmo me confessaste que depois desse período nada fizeras que te satisfizesse totalmente... Foi uma das últimas frases tuas, quando conversamos pela última vez, na tua casa. Creio que agora estarás de novo contente. Eu estou satisfeitíssimo. Paulo Prado, vi ontem. Trouxe um Juan Gris maravilhoso. O Survage, não me agradou. O do Oswaldo é muito milhor. Oswaldo trouxe também um Léger admirável. Milhor que o meu – embora o meu seja bom também. Quem me surpreendeu inteiramente foi Tarsila. Que progresso, para tão pouco tempo! Puxa! Estou entusiasmado. Ainda não vi os quadros dela, que estão presos na Alfândega. Mas vi estudos e magníficos desenhos. E penetrei-lhe sobretudo a inteligência. Aquela Tarsila curiosa de coisas novas, mas indecisa, insapiente que eu conhecera, desapareceu. Encontrei uma instrução desenvolvida, arregimentada e rica. Vê-se que muito ouviu, muito leu e muito pensou. Tu e ela são a esperança da pintura brasileira. Tu no teu expressionismo, ela no teu cubismo. E o Brecheret vencendo... Que prazer! Sinto-me aos pulos. Vivo em eterna dança indígena, tam-tam, chacoalhos de jararacas sagradas, a cantiga bem ritmada e eu aos pulos, a dançar. Vocês fazem a minha felicidade. Trabalho como um doido. Termino o meu romance. Mais umas cem páginas e estará pronto. Não tenho tempo para recopiar o teu Losango Cáqui. Bem sabes, creio, que o livro te é dedicado. Perdoa a falta de tempo. Mando-te aqui o meu último poema. Vê si gostas dele. Ah! dize à noiva do Brecheret, que só ontem, catalogando as cartas de 1923 o delicado cartão dela caiu da sobrecarta em que o mandaras junto com tua carta. Não tive culpa. Peço-lhe perdão. As musicas seguirão breve. Abraços a todos. A ti o mais apertado, o mais íntimo, o mais desejado abraço. Mário
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Anita Malfatti A Chinesa, 1921/22 Óleo s/ tela 100 x 77,3 cm Coleção Particular – RJ
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Di Cavalcanti Mulher sentada com mão no queixo, s.d Nanquim e pastel s/ papel 38,5 x 26,5 cm Coleção Mário de Andrade Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP
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Di Cavalcanti - Amoroso cantador (...) essa fidelidade ao mundo objetivo e esse amor de significar a vida humana em alguns dos seus aspectos detestáveis salvaram Di Cavalcanti de perder tempo e se esperdiçar durante as pesquisas do modernismo. As teorias cubistas, puristas, futuristas, passaram por ele, sem que o descaminhassem. Di Cavalcanti soube aproveitar delas o que lhe podia enriquecer a técnica, e a faculdade de expressar a sua visão ácida do mundo se enriqueceu habilmente, sem perder tempo. Nacionalizou-se conosco, ao mesmo tempo que o modernismo o fazia mudar de hora e estação. Abandonou os tons velados de outono e crepúsculo, pra se servir de todas as vibrações luminosas da arraiada e da possível primavera. Principalmente com sua admirável série de mulatas, de que soube revelar o rosado recôndito, Di Cavalcanti conquistou uma posição única em nossa pintura contemporânea. Em nossa pintura brasileira. Sem se prender a nenhuma tese nacionalista é sempre o mais exato pintor das coisas nacionais. Não confundiu o Brasil com paisagens, e em vez do Pão de Açúcar nos dá sambas, em vez de coqueiros, mulatas, pretos e carnavais. Analista do Rio de Janeiro noturno, satirizador odioso e pragmatista das nossas taras sociais, amoroso cantador das nossas festinhas, mulatista-mor da pintura, este é o Di Cavalcanti de agora, mais permanente e completado, que depois de onze anos, vai nos mostrando de novo o que é. Mário de Andrade, Diário Nacional, São Paulo, 8 de maio de 1932
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Di Cavalcanti Menina de circo, 1937 Óleo s/ cartão 56 x 47 cm Coleção Jones Bergamin – RJ
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São Paulo, 19 de dezembro de 1922 A Exma. Sra. Tarsila do Amaral Querida Amiga, Escrevo-lhe para dizer que evoco de vez em quando sua imagem. É um prazer. Sinto-me tão feliz ao seu lado. Essa felicidade que vem da confiança mútua. Nada de preocupações ou de dúvidas. Uma amizade muito grande, lindo oásis nesta vida de lutas, de ambições, invejas e segundas-intenções. Tarsila, você não imagina o bem que me faz. Sua passagem foi tão leve no meio de nós, não há dúvidas minha amiga. Mas... pense um pouco no destino dos sulcos das barcas no imenso mar. Segue uma barca sem rumo. em torno tudo é mar oceano. E a barca faz um leve sulco nas águas movediças. O sulco desapareceu. Não se vê mais. Acabou. Acabaria? Não. Para destruírem os sulcos as ondas empolaram-se e encheramno. Mas se não existisse o sulco elas não teriam feito aquele esforço, não teriam tomado aquela forma.E as novas ondas que vem depois, também são modificadas no seu aspecto, por encontrarem as ondas, que encheram o sulco, numa forma determinada? E as outras ondas depois? E depois ainda as outras? E todo o mar oceano? de forma, Tarsila, que se poderá dizer sem erro, que um pequeno sulco modificou o aspecto exterior do mar. Você foi como um sulco. Será vaidade comparar minha alma de poeta a um mar? Mário de Andrade.
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Anita Malfatti Grupo dos Cinco, 1922 Oswald e Menotti dormindo no chão, Mário e Tarsila ao piano e ela própria no sofá Tinta de caneta e lápis de cor s/ papel 26,5 x 36,5 cm Coleção Mário de Andrade Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP
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Exma. Sra. Tarsila Amaral Paris São Paulo, 11 de janeiro de 1923. Querida amiga Se é mesmo verdade que os gregos e os romanos tratavam seus deuses com familiaridade amiga, creio que foi o cristianismo que trouxe para os homens ocidentais o temor pelas entidades divinas. Aproximo-me temeroso de ti. Creio que é uma deusa: NÊMESIS, senhora do equilíbrio e da medida dos excessos. Quando um homem da Terra era demasiado feliz, via crescerem-lhe terras e riquezas, e tinha em torno de si braços, lábios de amor, coroas de glória e alegrias somente, Nêmesis aparecia. Vinha lenta, com seu passo lento, sem rumor. Mas ao homem-da-Terra fugiam-lhe riquezas, alegrias. Perdia amor, glória e riso. És Nêmesis, sem dúvida. Eu era são. Alegre, confiante, corajoso. Mas Nêmesis aproximou-se de mim, com seu passo lento, muito lenta. Depois partiu. Doenças. Cansaços. Desconsolos. Ainda todo o final de dezembro estive de cama. Venho agora da fazenda onde repousei 10 dias. Mas será mesmo Nêmesis? Que és deusa, tenho certeza disso: pelo teu porte, pela tua inteligência, pela tua beleza. Mas a deusa que reprime o excesso dos prazeres? Não creio. Tua recordação só me inunda de alegria e suavidade. És antes um consolo que um pesar. A verdadeira, a eterna Nêmesis, são as horas implacáveis que passam dia e noite, dia e noite, sol e escuridão. Estou nos meses da escuridão. Foi a fraqueza que me fez pensar que eras tu Nêmesis. Perdão. Estou a teus pés, de joelhos. Mais uma vez: perdão!
__________________ Espero tua carta longa, contando coisas breves de Paris. Já estou a imaginar a lindeza do meu Picasso. Obrigado. Dize-se alguma coisa da Arte. Já estás trabalhando? Pintas muito? Recebeste KLAXON n. 7? Adeus. Mário de Andrade.
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Tarsila do Amaral Chapéu azul, 1922 Óleo s/ tela 67 x 50 cm Coleção Simão Mendel Guss – SP
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[São Paulo] , 15 de novembro de [1923] - Viva a República! Tarsila, minha querida amiga: (Agora a letra corrente da conversa:) Cuidado! fortifiquem-se bem de teorias e desculpas e coisas vistas em Paris. Quando vocês aqui chegarem, temos briga, na certa. Desde já, desafio vocês todos juntos, Tarsila, Oswald, Sérgio para uma discussão formidável. Vocês foram a Paris como burgueses. Estão épates. E se fizeram futuristas! hi! hi! hi! Choro de inveja. Mas é verdade que considero vocês todos uns caipiras em Paris. Vocês se parisianizaram na epiderme. Isso é horrível! Tarsila, Tarsila, volta para dentro de ti mesma. Abandona o Gris e o Lhote, empresários de criticismos decrépitos e de estesias decadentes! Abandona Paris! Tarsila! Tarsila! Vem para a mata-virgem, onde não há arte negra, onde não há também arroios gentis. Há MATA VIRGEM. Criei o matavirgismo. Sou matavirgista. Disso é que o mundo, a arte, o Brasil e minha queridíssima Tarsila precisam. Se vocês tiverem coragem venham para cá, aceitem meu desafio. E como será lindo ver na moldura verde da mata, a figura linda, renascente de Tarsila Amaral. Chegarei silencioso, confiante e te beijarei as mãos divinas. Um abraço muito amigo do Mário.
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Tarsila do Amaral Esboço para negra, 1923 Lápis e aquarela s/ papel 23,4 x 18 cm Coleção Mário de Andrade Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP
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Mário de Andrade Fazenda do Barreiro, 1924 Lápis s/ papel 10,6 x 15,1 cm Coleção Mário de Andrade Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP
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Mário de Andrade Mateus Leme, 1924 Lápis s/ papel 15,1 x 10,6 cm Coleção Mário de Andrade Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP
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Mário de Andrade Gruta do Capão da Traição, 1924 Lápis s/ papel 15,1 x 10,6 cm Coleção Mário de Andrade Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP
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Mário de Andrade Papel quadriculado n. 1, 1924 Lápis s/ papel 14,4 x 10,3 cm Coleção Mário de Andrade Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP
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Lasar Segall Chaminé de navio, 1928 Gravura em metal s/ papel 27,5 x 32,6 cm Coleção Mário de Andrade Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP
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Lasar Segall Duas mulheres, s.d. Gravura em metal s/ papel 23,5 x 17,5 cm Coleção Mário de Andrade Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP
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Lasar Segall Mário de Andrade na rede, 1930 Gravura em metal s/ papel 25 x 31,6 cm Coleção Mário de Andrade Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP
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Zina Aita Retrato de Mário de Andrade, 1923 Nanquim s/ papel 28,1 x 21,9 cm Coleção Mário de Andrade Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP
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Ismael Nery Duas mulheres pensam em mim, cujo nome viram impresso num jornal e num programa, s.d Lápis s/ papel 25,9 x 20,3 cm Coleção Mário de Andrade Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP
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Ismael Nery Homem e mulher, 1928 Guache s/ papel 22 x 12,2 cm Coleção Mário de Andrade Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP
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Paulo Duarte
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Guilherme Isnard
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Portinari com Mário de Andrade e Oscar Simon, na calçada de sua casa no Leme. Rio de Janeiro, 1941. Foto: Hart Preston Coleção Associação Cultural Cândido Portinari
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De Mário para Portinari Eliane Hatherly Paz1*
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m tempos de correio eletrônico e amizades virtuais, adentrar o mundo epistolar é voltar a uma época em que os laços humanos deixavam rastros por escrito. No Brasil, a tradição epistolar atingiu seu auge com os modernistas. Somente Mário de Andrade trocou mais de sete mil cartas com seus 1.100 correspondentes, material que cobre duas décadas da vida cultural nacional. Missivista tomado de “paixão sublime” pelo fazer epistolográfico, através de suas cartas Mário exerceu uma poderosa influência sobre os artistas mais relevantes de sua época e alçou a epistolografia a gênero literário no país. A Portinari, Mário endereçou 60 cartas. A amizade entre o pintor e o escritor começou no Salão de 1931, quando Mário se encantou pelo retrato de Manuel Bandeira exposto por Portinari. Nessa ocasião, outro retrato do poeta, do pintor alemão Frederico Maron, também participava da exposição, o que gerou uma comparação imediata por parte de Mário a favor do quadro de Portinari. Naquela época, Mário de Andrade, vivendo o segundo momento do Movimento Modernista, buscava um artista brasileiro ideal que correspondesse às novas diretrizes do movimento – dentre elas a questão da identidade nacional nas artes. Apesar de suas restrições iniciais à temática portinaresca – Mário confidenciou ao crítico Antonio Bento, após ver suas obras no Salão de 31, que achava que Portinari “não estava voltado para os problemas de uma arte de temática brasileira. Pintava muitos retratos.”2 –, o escritor, ao reencontrar Portinari em seu ateliê em fins de 1932, reviu sua opinião e passou a apoiar o pintor, em quem identificou a “impulsividade nacionalística” que o Papa do Modernismo tanto procurava nas artes plásticas. As cartas de Mário para o pintor nos introduzem nessa amizade já em andamento, sendo sua primeira missiva datada de 25.3.1935. Mário principia por declarar sua preocupação com a ausência do amigo: “Já estava assustado com o seu silêncio” para, em seguida, desculpá-lo: “Mas tem-se que dar razão aos pintores,
que pintam melhor os setes das belezas plásticas que os agás e jotas tão pouco plásticos da escritura”3. O amigo, esse Outro que é semelhante a nós, através dos quais vislumbramos as nossas próprias qualidades e vulnerabilidades, é afagado dez linhas adiante, quando Mário registra, em tom de confissão, suas impressões sobre o retrato dele que Portinari havia acabado de pintar: “(...) você me revelou o meu lado angélico (...). Porque de-fato você mais que ninguém, não apenas percebeu, mas me revelou que eu... sou bom”4. De início atento às formalidades – “... si já não lhe mandara um cartãozinho foi apenas porque não sabia a sua residência”5 –, o contínuo estreitamento dos laços fraternais de Mário para com Portinari vai sendo percebido à medida que, mais evidentemente, as formas de tratamento vão sugerindo intimidade, com o acréscimo, junto ao nome do destinatário, dos adjetivos caro, querido, amigo, nas mais diversas combinações, além do uso do pronome possessivo meu, que “timidamente” aparece na carta de 25.3.35, em italiano (“Portinari, amico mio”), e assume a língua materna a partir da 11ª carta. “Portinari meu velho”, “Meu querido Portinari”, “Potinari querido” e “Meu caro Portinari” serão os vocativos preferidos por Mário para saudar o amigo. Também o tom da conversa vai se tornando mais fraternal, chegando Mário a assumir “o papel” de irmão mais velho do pintor, dando-lhe conselhos sobre sua vida particular e assuntos financeiros, e até criticando, em tom de “pito”, sua extrema generosidade monetária: (...) Mas eu insisto naquela conversa que tivemos em Brodósqui: você precisa regularizar a sua vida e acabar com essa casa de Orates onde há sempre muita gente que entra a qualquer hora e almoços e jantares diaários que são banquetes. (...) Você precisa regularizar sua vida.6 Eliane Hatherly Paz é jornalista e Doutora em Letras pela PUC-Rio. 2 BENTO, Antonio, p. 68. 3 MA/CP, 25.3.35, p. 47. 4 Idem, ibidem, p. 48. 5 MA/CP, 25.3.35, p. 47. 6 MA/CP, 20.4.41, p. 86.
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Grupo de alunos e colegas de Portinari, na Universidade do Distrito Federal. Entre eles: Mário de Andrade, Roberto Burle Marx, Enrico Bianco, Héris Guimarães e Ignez Correa da Costa. Rio de Janeiro, 1938. Coleção Associação Cultural Cândido Portinari
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Ou sua despreocupação financeira, como revela esta carta enviada a Portinari quando de sua viagem aos Estados Unidos, entre julho e setembro de 1940, para a mostra Potinari of Brazil, no Museu de Arte Moderna de Nova York: Você diz na sua carta que já está pensando na volta. Mais uma vez insisto com você para aproveitar o mais possível e sugar quanto puder dos Estados Unidos. Si receber encomendas aceite e vá ficando enquanto a coisa render. O meu maior desejo é que você volte daí com uns bons cobres que garantam um futuro firme pra você com Maria, para você então pintar descansado o que quiser, livre das imposições financeiras da vida. Não se afobe nem deixe se levar pelas saudades. Você precisa antes de mais nada garantir um futuro mesmo que seja modesto, pra não ter mais que a preocupação feliz de viver e educar o nosso querido João Candido.7 O assunto é recorrente em carta de novembro de 1941: (...) Mas veja si desta vez consegue economizar alguns cobrinhos, pra guardar depois, comprar uma casa, coisa assim. Sempre penso muito em você, e me preocupa essa sua situação de gastar tudo quanto ganha, sem pensar no dia de amanhã. Bom, não quero “passar pito”, que você sabe muito bem o que deve fazer da sua vida.8 As notícias sobre sua saúde são tema constante na correspondência. Acusaçãozinha nos rins, desinteria amebiana, gripe, oeração das amígdas, tratamento dental, erupção na pele, intoxicação alimentar, sinusite, dores internas esqusitas, mal-estar, dores horríveis no fígado, dores de cabeça e úlcera no duodeno constituem a lista das doenças de corpo de Mário, que se somam às doenças de alma que constantemente afligem o poeta: desânimo, falta de vontade de viver, angústia e desgosto moral, e neurastenia. A descrição desses males – pormenorizada para alguns correspondentes – é pouco detalhada para Portinari, como se Mário poupasse o amigo de seus problemas de saúde: (...) vivo numa afobação danada, (...), dormindo quase nada, comendo forçado, e já com uma acusaçãozinha dos rins. [MA/CP, 30.5.35, p. 50] Estive gravemente doente. (...) largado na cama, já sem forças pra nada, já com o médico a todo momento me auscultando o coração, com medo que falhasse. Tudo por causa duma disenteria amebiana que me pegou enfraquecidíssimo. [MA/CP, 8.7.36, p. 55] Tive ultimamente um grande desgosto moral que não vale a pena contar por carta. Faz uns quinze dias que não consigo dormir direito, sempre com a idéia no mesmo sofrimento. [MA/CP, 23.10.43, p. 93] Quanto ao fechamento das cartas enviadas por Mário de Andrade, este evolui do tom casual, onde um simples “Ciao” encerra a missiva, para despedidas mais elaboradas e repletas de emoção, como na carta de 7.7.1942, onde o escritor se despede com um “Sempre você ficando certo que de qualquer forma estou ao lado de você e sou o seu amigo certo, Mário”.
O credo modernista Mário de Andrade sempre praticou a pedagogia modernista através da epistolografia. Entretanto, o escritor pouco registrou nas cartas que escreveu para Portinari suas concepções sobre as artes plásticas em geral e sobre a arte do amigo em particular. O espaço para essa crítica foram outros – os inúmeros artigos para jornais, revistas, livros e catálogos que escreveu sobre o pintor e dos quais sempre lhe deu notícias: (...) já escrevi a nota sobre você prá Revista Acadêmica, que mandei ontem. [MA/CP, 3.5.38, p. 60] Recebi sua carta e fiquei contente de você ficar contente com o artigo. [MA/CP, 8.6.38, p. 66] As ocasiões em que trata nas cartas da pintura de Portinari, criticamente ou não, o faz de maneira corriqueira e coloquial, como quando comenta suas obras, mostras e exposições, ou apóia seus projetos: Portinari, já tive notícia do sucesso da sua exposição e nem esperava outra coisa. [MA/CP, 30.4.35, p. 49] Seus quadros vi (...) no intervalo do concerto. Minha primeira sensação adorou a menina. Lhe direi mais tarde (...) si a sensação se conservou. [MA/CP, s/d, provavelmente maio/junho.37] 7 MA/CP, 23.10.40, pp. 8 MA/CP, 7.9.41, p. 91.
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Grupo de intelectuais e artistas, durante jantar oferecido a Portinari. Entre eles: Guignard, Rachel de Queiroz, Santa Rosa, Ismailovitch, Jorge de Lima, Mário de Andrade, Enrico Bianco e Manuel Bandeira. Rio de Janeiro, 1939. Coleção Associação Cultural Cândido Portinari
Portinari, Antonio Bento, Mário de Andrade e Rodrigo de Melo Franco. Rio de Janeiro, 1939c. Coleção Associação Cultural Cândido Portinari
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(...) recebi as duas remessas de fotografias e fiquei delirando. Há coisas que mesmo assim em ruins fotografias me parecem admiráveis (...). Estou louco para ver tudo isso e também vou escrever sobre para a rotogravura do Estado. [MA/CP, 10.3.41, p. 82] A idéia de um álbum de quadros seus de cavalete é ótima. Mas não deixe de botar umas duas ou três tricomias, é tão importante para se conhecer na verdade um pintor. [MA/CP, 23.5.38, p. 63] Mário também demanda constantemente notícias das atividades do pintor: Mas fiquei morto de curiosidade sabendo que você tem coisas novas e processos novos que ainda não conheço. [MA/CP, 30.4.35, p. 49] Mande sempre contar a marcha dos trabalhos. [MA/CP, 23.5.38, p. 63] (...) Estou numa curiosidade quase esfomeada de ver as pontas-secas: Com a sensibilidade do seu traço imagino o que elas podem ser. [MA/CP, 7.1.41, p. 79] (...) Como vamos de pintura? Mande me contar que quadros novos fez e, si puder, algumas fotografias. [MA/CP, 28.4.41, p. 89] Portinari, naturalmente, comenta com maior frequência os seus trabalhos, mas escreve antes para dar notícias a Mário do que anda fazendo do que para discutir questões estéticas. Nas cartas trocadas entre ambos temos um exemplo bastante consistente do intercâmbio de ideias e, ao mesmo tempo, de demonstração recíproca de profundo apreço intelectual. Nelas, constatamos que Mário não buscou doutrinar Portinari no seu credo modernista: Candido Portinari já era moderno muito antes de conhecer Mário de Andrade. Passando por cima de suas importâncias políticas e sociais – ma non troppo – ambos investiram na construção desse relacionamento, e na elaboração de “verdades” sobre si mesmos, sobre o outro e sobre o mundo nos dez anos em que escreveram e trocaram cartas. O clima íntimo desenvolvido pelos missivistas resistiu aos inúmeros afastamentos e deveu-se ao investimento efetuado por ambos nas palavras e gestos que estão para além das obrigações e das formalidades. O espaço em que se inscreveu essa amizade epistolar nos deixa entrever fragmentos da personalidade de um e de outro, elineada em uma linguagem transparente e direta. Mesmo que, ao contrário de Mário, “correspondente que não se furtava a confidências sobre si próprio”9, Portinari ‘escondesse seus pensamentos em um baú secreto’, como confessou em um de seus poemas, conseguimos vislumbrar sua personalidade passional e apaixonante como artista – na sua dedicação à pintura, sua obsessão pela busca da perfeição, seu apreço pelo conhecimento, sua dedicação ao ensino e sua coerência artística; e como homem – na sua bondade, sua paixão pela família e seu apego aos pais e aos amigos, sua simplicidade, sua fragilidade, seu caráter e sua humildade. Ao longo desse intenso diálogo, Portinari, talvez espelhando-se em Mário, passou a escrever cartas mais detalhadas – mesmo tendo medo de se abrir sem “ter os braços e [a] cara” para ajudá-lo e se declarar “muito burro” para se “expressar escrevendo”. Porém, diferentemente de Mário, que se esparramava nas cartas, Portinari nunca deixou de se resguardar no que o editor José Olympio definiu como um “retraimento de velho urso desconfiado”.10 Envolvidos de maneira intensa nas questões um do outro, Portinari e Mário de Andrade foram amigos até o fim. Mais do que compartilhar segredos e afinidades, depositaram um no outro uma confiança ilimitada.
Referências bibliográficas: ANDRADE, Mário de. Portinari, amico mio: cartas de Mário de Andrade a Candido Portinari. Organização, introdução e notas Annateresa Fabris. Campinhas: Mercado de Letras / Projeto Portinari / Autores Associados, 1995. BENTO, ANTONIO. Portinari. Rio de Janeiro: Léo Christiano Editorial, 1980. PORTINARI, Candido. Poemas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1964.
9 MA/MB, p. 9. 10 OLYMPIO, J.
“Nota da editora”, in Poemas de Candido Portinari, p.7.
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O violinista e o contato com Mário de Andrade Extrato do texto O tocador e o pincel - a música na obra de Portinari de Marcelo Téo V Encontro de História da Arte - IFCH/UNICAMP, 2009
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contato de Mário de Andrade com estas duas obras – O violinista e o Retrato de Manuel Bandeira – é crucial para entendermos não apenas sua atuação como crítico de artes plásticas, sempre permeada por conceitos musicais, mas também sua relação com Portinari, a constituição de suas posições no campo da produção artística e intelectual. Mário vai ao Rio de Janeiro para visitar o Salão de 1931, que ficou conhecido como “Salão Revolucionário” pela inserção, a partir do trabalho do recém-nomeado diretor da Escola Nacional de Belas Artes, Lúcio Costa, de um amplo e representativo repertório de artistas modernos. Suas primeiras visitas ao Salão deram origem a duas impressões contraditórias e definitivas em seu exercício crítico. Na primeira, acompanhado de Bandeira, Mário manifesta uma impressão positiva do retrato do amigo feito pelo alemão Friedrich Maron, que era tema das conversas no ambiente artístico carioca. Na segunda visita, a qual faz sozinho e com mais demoro, Mário impressiona-se com outro retrato de Manuel Bandeira, do então seu desconhecido Cândido Portinari, bem como com outra obra do mesmo pintor, O violinista. (...) Mário encontra em Portinari um classicismo de tom lírico que o agrada profundamente. Embora argumente não conhecê-lo, é presumível que tenha ouvido falar de Portinari através de Manuel Bandeira, cuja percepção sobre o pintor girava em torno da personalidade interiorana que lhe era característica. É possível que a caipirice do pintor, unida ao seu virtuosismo técnico, tenham agradado a Mário de Andrade, abrindo uma nova porta na busca por um continuador de Almeida Júnior. Nesse sentido, Portinari parece responder de perto ao projeto intelectual andradiano, interessado na criação de uma identidade coletiva nacional para a qual, segundo Annateresa Fabris, “deveriam convergir tanto elementos racionais, quanto elementos sentimentais, alicerçados no inconsciente coletivo, na religiosidade e nas crenças populares”. A construção desse projeto incluía não apenas artistas dotados de consciência social, mas “igualmente de uma consciência do próprio ofício e de uma ética refletida na busca constante de aperfeiçoamento”, traço definidor da personalidade de Portinari. (...) Cândido Portinari O violinista – Retrato de Oscar Borgerth, 1931 Óleo s/ tela 100 x 0,80 cm (sem moldura) Coleção Marta e Roberto Siqueira
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Paulo 30 - IV - 37 Portinari Ia, pretendia ir pro Rio hoje, mas estou gripado e tenho ocupação no dommingo aqui no Departamento, não posso ir. Preciso sua colaboração pro Congresso da Língua Nacional Cantada!!! em que um pintor pode contar no Congresso? Cristo: O Congresso vai dar vários concertos na semana dele, pelo menos três. Ora os programas devem ter capa, uma capa única, que quero firmada pelo maior pintor e maior desenhista do Brasil: você. O tamanho da capa é o que vai junto. Você faça o que quiser: desenho em branco e preto, desenho colorido, aquarela, guache, o que quiser. Nessa capa devem estar os seguintes dizeres: “Teatro Municipal” (sem h) e “Congresso da Língua Nacional Cantada”. E além disso o desenho que você quiser desse gênero. E faço questão da sua assinatura. Pagamos pelo desenho 200$000. Não é nada, sei, mas você faz por amizade. Irão os cobres com os últimos quinhentos paus que estou devendo pra você agora e agora já estou, uf! em condições de pagar. Como vai você? e Maria? e todos? Vi seus quadros pro Salão de Maio. O da menina é simplesmente um soco na gente, cem por cento de admirável. Um abraço besta de entusiasmo.
E ciao com abraço fraterno deste seu
Mário
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Cândido Portinari Capa de convite para Congresso da Língua Nacional Cantada, 1937 Nanquim preto e vermelho s/ papel 25,7 x 18,4 cm Coleção Mário de Andrade Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP
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São Paulo, 10 de novembro de 1924 Meu caro Carlos Drummond, (...) Eu conto no meu “Carnaval Carioca” um fato a que assisti em plena avenida Rio Branco. Uns negros dançando o samba. Mas havia uma negra moça que dançava melhor que os outros. Os jeitos eram os mesmos, mesma habilidade, mesma sensualidade, mas ela era melhor. Só porque os outros faziam aquilo um pouco decorado, maquinizado, olhando o povo em volta deles, um automóvel que passava. Ela não. Dançava com religião. Não olhava para lado nenhum. vivia a dança. E era sublime. Esse é um caso em que tenho pensado muitas vezes. Aquela negra me ensinou o que milhões, milhões é exagero, não me ensinaram. Ela me ensinou a felicidade. (...) Mário
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Cândido Portinari Cabeça de mulata, 1934 Lápis s/ papel 21,2 x 16,8 cm Coleção Mário de Andrade Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP
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Cândido Portinari Mãos e Pé, 1937 Carvão s/ papel Coleção particular - RJ
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Cândido Portinari Colona sentada, 1937 Carvão s/ papel Coleção particular - RJ
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Rio 23-X-40 Meu caro amigo Portinari Acabo de receber sua carta a que respondo imediatamente. Aliás não estava esperando carta pra mandar resposta, só não lhe escrevi antes por vadiação besta. Sempre me lembrava de escrever porque você não me sai da lembrança. A verdade é que você deixou um vazio danado aqui em nosso grupo familiar e ficamos assim como baratas tontas, de cá pra lá, meio sem destino. Além disso havia a curiosidade de saber o que estava acontecendo aí com você, até que as primeiras boas notícias nos sossegaram mais. O meu curso na sua casa vai continuando regularmente. Amanhã mesmo dou mais uma aula e depois só ficarão faltando duas. Aliás eu saio deste curso mais convencido que nunca que estas coisas não adiantam nada e que a nossa dinâmica e vibrante Lota está redondamente enganada. No meio de tanta gente as próprias alunas de você que são o que interessa, ficam envergonhadas, não perguntam, não discutem e em vez de aula pra aprender a coisa vira conferência na A.B.I., grã finagem pura. Não interessa.(...) Também o Bianco abriu agora a exposição dele. Muita coisa fraca, muita influência de você, o que é natural, mas o rapaz tem talento e já apresenta algumas coisas bem boas. E uns desenhos excelentes, embora muito escola francesa demais. Vou escrever sobre ele pra animá-lo e pôr em relevo a escola de você. Guardarei o artigo aqui pra você ler quando vier. Você diz na sua carta que já está pensando na volta. Mais uma vez insisto com você pra aproveitar o mais possível e sugar quanto puder nos Estados Unidos. Si receber encomendas aceite e vá ficando enquanto a coisa render. O meu maior desejo é que você volte daí com uns bons cobres que garantam um futuro firme pra você com Maria, para você então pintar descansado o que quiser, livre das imposições financeiras da vida. Não se afobe nem deixe se levar pelas saudades. Você precisa antes de mais nada garantir um futuro mesmo que seja modesto, pra não ter mais que a preocupação feliz de viver e educar o nosso querido João Cândido. Como vai ele? E a Olga que já deve estar valente no inglês? Bem vou parar com estas conversas que já está na hora do meu almoço. A terra vai correndo sem novidade. Infelizmente sem novidades... E eu curtindo essa minha eterna angústia de viver longe da família e dos meus livros. Pra mim, então, a falta de você e de Maria, tem sido enorme, pois era no seu meio que eu encontrava um eco carinhoso da minha vida familiar. Si não fosse a casa da Liddy Chiaffarelli com o Mignone, creio que não me aguentava neste deserto de afeições verdadeiras que é o Rio de Janeiro. Mas sei fazer das tripas coração. Vá ficando aí, meu amigo, quanto puder e enquanto a América... der. Uma lembrança muito afetuosa pra Maria com Olga e que Deus dê saúde ao João Cândido. Com o abraço velho do Mário 72
Cândido Portinari Torso de homem, s.d Litografia s/papel 33,2 x 29,8 cm Coleção Mário de Andrade Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP
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Paulo, 25 - III - 35 Portinari amico mio, já estava assustado com o seu silêncio. Mas tem-se que dar razão aos pintores, que pintam melhor os setes das belezas plásticas que os agás e jotas tão pouco plásticos da escritura. Aliás si já não lhe mandaram um cartãozinho foi apenas porque não sabia a sua residência. Aqui tudo na mesma. Depois de amanhã dou uma reunião aos amigos e uns professores franceses, pra que venham ver o meu retrato que todos anseiam por ver. Lhe escreverei depois contando os gritos de entusiasmo do pessoal. Todos que aparecem por aqui se assombram com o retrato. Si eu pudesse e houvesse uma boa revista que publicasse tricromias, escrevinhava como o Manuel um ensaio sobre os Meus Dois Pintores, você e o Segall. Mostraria então o que foi pra mim uma revelação, um verdadeiro soco na barriga quando descobri: é que você me revelou o meu lado angélico, ao passo que o Segall me revelou o meu lado diabólico, as tendências más que procuro vencer. Às vezes me paro em frente do seu quadro e fico, fico, fico, não só perdido na beleza da pintura, mas me refortalecendo a mim mesmo. Porque de-fato você mais que ninguém, não apenas percebeu, mas me revelou que eu... sou bom. Seu quadro me dá uma confiança em mim, me dá mais vontade de trabalhar, de continuar, é um verdadeiro tônico. Foi um bem enorme que você me fez, palavra. O Carnaval aqui esteve bem divertido, apesar da frieza paulista. Eu pelo menos me diverti à larga e os bailes estiveram colossais, todos dizem. Mas nem assim deixava de imaginar de vez em quando no que estariam fazendo vocês aí os do grupinho. Vejo pela sua carta que a coisa não foi tão divertida assim e lastimo por vocês. Agora aqui está fazendo uma delícia de dias claros, mornos, sem chuva e noites quasi frias, gostosas da gente dormir. Vai chegar a grande época de S. Paulo, abril, maio, com tardes que a gente chega a pensar que vai arrebentar de tanta gostosura. É o tempo aliás em que levo um pouco flauteadamente a vida porque não há meio, para um gozador que nem eu, de ficar encerrado dentro de casa, com um tempo assim lá fora. Viro passarinho, viro flor, não sei o que viro, sei é que me esqueço de ser Mário, nestas tardes sublimes. Venha com Maria apreciar a coisa. No resto, continuo na minha vidinha, sempre com saudades de vocês dois e dos nossos momentos de convívio, infelizmente tão pequenos. Escrevi hoje pro Antônio Bento também, e agora vou trabalhar um bocado, dar conta das correções de provas dum livro que a Revista Acadêmica aí do Rio está publicando. E ciao. Um grande abraço pra você e outro pra Maria. Mário
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Cândido Portinari Retrato de Mário de Andrade, 1935 Óleo s/ tela 73,5 x 61 cm Coleção Mário de Andrade Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP
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São Paulo, 11 de julho de 1941 Henriqueta, (...) Uma coisa que tem me dado horas de pensamento é me contemplar juntamente nos dois retratos que o Segall e o Portinari fizeram de mim. Tenho muitos retratos meus, vários deles completamente sossobrados como o de Tarsila, o de Hugo Adami. O Di Cavalcanti e o Reis Júnior, então, pararam no meio sem poder solucionar os seus problemas. Ou meus problemas, nem sei! Anita Malfatti, nos tempos do Modernismo, talvez tenha feito uns vinte retratos meus. Eu, com a Semana de Arte Moderna, perdera todos os alunos, tinha dias inteiros vazios sem o que fazer. Anita também. Eu ia pro ateliê dela e como não tínhamos o que fazer ela fazia o meu retrato, muitas vezes tornando a me pintar sobre uma tela em que eu já estava e ela reputava inferior. De toda essa retrataria, três ficaram: o primeiro, feito mesmo com a intenção de retrato, creio aliás que anterior a 1922, muito ruim como pintura, mas curioso como época e como... como eu. Sou bem eu e somos bem nós daqueles tempos, gente em delírio, lançada através de todas as maluquices divinas e minha magreza espigada um pouco com ar messiânico de quem já jejuou quarenta dias e quarenta noites. Além desse, guardo um pastelzinho, mais croquis propriamente, mas que é de um flagrante, de uma expressividade desenhística e poética bem forte. Anita, por sua vez, guardou um que preferiu aos mais, um eu mais desiludido, mais “desmilinguido”, já dos fins do nosso excesso de camaradagem e da fase aguda dos combates de arte. A camaradagem fora de fato excessiva assim de dias inteiros homem com mulher. A discrição em mim: paulista, nela: puritana, jamais nos permitira chegar a muito íntimas confissões, ela sabia sem por mim oficialmente saber, das cavalarias que eu andava fazendo por fora, e eu vagamente suspeitava nela a existência de um amor não correspondido. Naquele contato diário prolongado viera se entremeter uma como que... desilusão do sexo. Pra salvarmos a amizade, nos afastamos cautelosamente mais, um do outro. E além dessa razão pra explicar o retrato tão “escorrido” que ela fez de mim, havia também outra desilusão, e esta era de todos nós, a desilusão da vitória. Embora muito combatidos e insultados ainda, o grupo modernista aumentara, as adesões de todo o Brasil chegavam numerosas, três salões dos mais ilustres nos recebiam com carinho e aplauso semanalmente, o de dona Olívia Penteado, o de Paulo Prado e o de Tarsila e era festa muita, alegria muita. Se passara pra sempre o tempo de exaltação em que assustados, batidos de todas as partes e apenas três ou quatro, nós, pela simples e primeira exigência de nos sabermos vivos, nós nos achávamos invariavelmente uns gênios e cada obra que fazíamos uma obra-prima imortal. Ainda não havia sombra de dissolução do grupo, mas era, sim, era exatamente a desilusão da vitória. Já nos examinávamos com maior franqueza e verdade, já nos entrecriticávamos, já chegávamos à frígida calma de não gostar. (...) 76
Lasar Segall Retrato de Mário de Andrade, 1927 Óleo s/ tela 73 x 60 cm Coleção Mário de Andrade Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP
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Carta de Mário para Henriqueta Lisboa 02 de julho de 1941 Coleção Acervo dos Escritores Mineiros da UFMG
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Carta de Mário para Henriqueta Lisboa 02 de julho de 1941 Coleção Acervo dos Escritores Mineiros da UFMG
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Carta ao pintor moço São Paulo, 11 Junho de 1942. Meu caro B.
Você bem sabe o carinho com que tenho seguido a sua carreira artística. Mas estou, no momento, na impossibilidade total de escrever artigo público sobre você. (...) Ora você me aparece com uma exposição só preocupada com problemas estéticos de arte. Isso provocou em mim, aliás em nós, o grupo dos que comigo nos interessamos pela sua arte, um grande desinteresse inicial e uma desilusão.(...) Veja bem, B. : eu não exijo que você faça arte de combate. (...) A bem dizer, não existe uma arte de combate. Mas se não existe uma “arte de combate”, toda arte é essencialmente combativa por definição. Pois ela nunca foi um exclusivo problema de beleza; a beleza não é senão o elemento transpositor de que a arte se serve pra funcionar dentro da vida humana coletiva. Eu não nego que existam exemplares e mesmo pequenas fases de arte (pequenas, note bem) que cuidem da realização exclusiva da beleza e da técnica estética, porém mesmo essas manifestações foram participantes, foram derrotistas, foram não-conformistas, foram anti-acadêmicas, foram sociais. Ora você, preocupado exclusivamente com os seus problemas técnicos, se esqueceu que você existe. A arte, os quadros que você apresenta, neste sentido, são muito piores que os mostrados na exposição anterior! E quer saber por quê? Porque da última vez a sua arte era uma festa, era um cântico de felicidade, era a alegria, era a leviandade, a riqueza das formas sensuais, do gostoso, do bonito. (...) Agora não. (...) Você está em busca da Beleza, fazendo uma arte muito mais séria. Você não está cumprindo a sua função de artista que é viver funcionalmente a vida com a sua arte. (...) Você é muito solicitado pelos prazeres do mundo. E pelas dificuldades econômicas do mundo... Mas a arte nada tem a ver com isso. Mário de Andrade
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Enrico Bianco Retrato de Mário de Andrade, 1941 Óleo s/ tela 72,2 x 59 cm Coleção Mário de Andrade Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP
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Para Mรกrio
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Victor Brecheret Composição - Nú feminino com leque, 1924c Lápis s/ papel 19,5 x 15,1 cm Coleção Mário de Andrade Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP
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Victor Brecheret Madalena e Cristo (carta para Mário de Andrade), 1923 Tinta de caneta s/ papel 32,4 x 25,1 cm Coleção Mário de Andrade Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP
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Victor Brecheret Pietá (carta para Mário de Andrade), 1924 Lápis de cor s/ papel 26,6 x 21 cm Coleção Mário de Andrade Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP
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Rio 24 IV 922 MARIO querido Hoje recebi tua carta de felicitações, que também traz-me a participação que o grupo vae ter uma revista! “Klaxon”. Muito bem, as felicitações eu e Maria agradecemos com todo coração e à revista uma vida eterna. Mandarei breve o desenho pedido com todo prazer. Eu também ando com ideas de fazer aqui uma pequena revista, que absolutamente não prejudicará a do grupo, pelo contrário...mas tudo depende. Tenho trabalhado bastante e com muito amor. Chega-nos da Europa mais um do grupo, é o Alberto Cavalcanti (parente) decorador e architecto. Elle é extraordinário de modernismo. Quando fôr a S. Paulo com exposição irei com elle provavelmente isto lá para Setembro em fuga das festas do Centenário cruel. Verás então o que tenho de novo. Aqui todos vão bem e dahi desejava saber se os illustríssimos SRS: Rubens de Moraes Oswaldo de Andrade Luiz Aranha Guilherme de Almeida Serge Milliet e Pedro Rodrigues de Almeida, ainda existem e se estão dispóstos a responder novas remeças de correspondência. Radiante como esta bahianinha assigno esta carta. Radiante por saber-te feliz e sempre amigo do seu Di Cavalcanti Um abraço da Maria
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Di Cavalcanti Carta ilustrada para Mário de Andrade, 1922 Lápis de cor, tinta de caneta e nanquim s/ papel 33,7 x 17,7 cm Coleção Mário de Andrade Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP
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1 de IX-930 Meu muito querido Mário
saudades
Então velho ingrato nem um bilhete para o seu amigo e mestre nas festanças... mas o melhor é não ligar e ir de vez em quando escrevendo para o mago da rua Lopes Chaves. V. perdeu o enterro do sinhô que eu assisti e vou fazer um quadro para matar o greco na cabeça elle que fez o enterro do conde de Argaz. Manoel está gozando as delícias de Bello Horizonte e Cícero dias apaixonou-se por Miss Russia. Abandonei o gordo Schimidti definitivamente elle possue o ordinarismo de O. Andrade sem nenhum encanto creador. Apenas a persistência na baixeza é que faz que a gente julgue-o engraçado. Abandonando o Schimidti vejo pouco o Ovalle. Agora dedico-me à solidão produtiva nem vou a casa do Alvaro quasi. Espero que os meus trabalhos dêem me qualquer cousa porque parece-me já mereço tempo de realizar o que sei que realizarei: Mário felizmente eu não me apresso, não quero nunca realizar obras primas como quiz o Brecheret o Villa e mesmo já o Celso Antonio o que acontece é que elles sem autocrítica já estão paus. E eu me sinto de uma mocidade comovente. Não é orgulho é vaidade. Elles não amam a vida. Amam a arte como a um mytho. E eu amo sobretudo a vida esta vida que me vem como os calores sexuaes de baixo para cima. recado do Di
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Di Cavalcanti Carta ilustrada para Mário de Andrade, 1930 Nanquim sobre papel 30,4 x 22,4 cm Coleção Mário de Andrade Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP
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Anita Malfatti Carta desenho (com John Graz), 1925c Crayon, nanquim e guache s/ papel 30,5 x 29,8 cm Coleção Mário de Andrade Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP
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Anita Malfatti Carta desenho (com John Graz), 1925c. Crayon, nanquim e guache s/ papel 30,5 x 29,8 cm Coleção Mário de Andrade Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP
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Cícero Dias Carta ilustrada para Mário de Andrade, 1930 Guache s/ papel 27,7 x 21,1 cm Coleção Mário de Andrade Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP
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Cícero Dias Cortejo, 1930 Nanquim e Aquarela s/ papel 47 x 30 cm Coleção Mário de Andrade Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP
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Paulo Duarte
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AS CARTAS DE MÁRIO DE ANDRADE Affonso Romano de Sant’Anna para Otto Lara Rezende, que responde...
Mário de Andrade: não posso chamar-te amigo. Nunca trocamos cartas ou um aperto de mão. Mal aprendia a cartilha em Minas _ e em São Paulo, morrias. Morrias sem deixar epístola ou sermão para o adolescente que carente padecia como outros provincianos vendo que repartias tuas cartas, como um messias a escrita da comunhão. Não ter te conhecido é estar despido e mendigo é ver prosperar no umbigo a indústria da própria fome. Não ter te conhecido é ter perdido o melhor filme, derramar o melhor prato chegar tarde ao teatro abrir a porta da casa e ver um morto no quarto. Não ter te conhecido é ter vivido no exílio de tua literatura, confere com ter nascido em tempos de ditadura. Meço a minha tristeza: que grande autor em ti perderam a literatura alemã _ e a francesa, que voraz leitor em mim perderam tuas cartas _ jamais saídas da mesa. _ A que horas escrevia esse homem? No teclado do piano? enquanto esperava o bonde?
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na na no no na
moldura futurista? canoa do sertão? lombo brabo do dia? fino talher dos Prado? entulhada escrivaninha?
Os homens comprando ações _ e ele escrevendo cartas. Os homens comprando terras _ e ele escrevendo cartas. A Bolsa e o tremendo craque _ e ele escrevendo cartas. Boto jarras na janelas, exponho toalhas, tapetes, enquanto na rua passa _ a procissão dos missivistas de Mário. Os mais velhos causam inveja e exibem nacos de cartas, conselhos do Grande Irmão. _ O que fazem, hoje, na manhã, sem cartas os destinatários de Mário? _ Tornam-se melhores? _ Ou se quedaram avaros? _ Teria o correio literário nacional se pervertido após a morte de Mário? _ Ou acabaram os escribas missivistas-missionários? Como nunca me escreveste me espicho no ombro alheio lendo as cartas que expedias para mil correspondentes: provincianos brasileiros, argentino e uruguaios, europeus e americanos, talvez algum asiático e, quem sabe? alguém em Marte? 97
Lá vou eu, órfão _ não do morto, de vivos destinatários aqueles que mal respondem antes de mim se escondem num envelope de evasivas. Mas que bobagem a minha querer ser amigo de quem só era amigo de Mário, derramando em seu correio minha escrita perdulária, tentando suprir com eles o meu falto epistolário. _ Escreviam eles cartas que dissessem algo a Mário? _ Ou eram só um pretexto de espertos correspondentes coletando selos raros que expõem no frio armário? Penso o que se perdeu nessa não-correspondência, naqueles que como eu ficaram acenando cartas depois que o trem de Mário partiu. Pior que mau aluno, discípulo desperdiçado, bato com a burra cabeça, não na lombada dos livros - na caixa postal fechada. Mas por compulsão escrevo quer tenha resposta ou não, há muito que correspondo com meu próprio imaginário. Não foi de jeito. Não tive o mestre que merecia. Sem guia não sendo Dante, fico num canto da sala olhando a estante por entre as frestas dos livros na espera que de repente encontre a carta perdida.
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Ah, eu bem conheço esse logo e outros jogos de cartas frias no espelho, onde narciso reflete as cicatrizes e medos. Já esperei cartas como um suicida vendo vazar a vida insone na espreita que a aurora surja num envelope de surpresas e no resgate da morte. Já me prostrei no hall, no portão, como um danado cão ou ermitão _ na espera de sinais. Já esperei bondes, amantes, prêmios, esperei Buda e Jesus Cristo sozinho ao pé do monte. E na madrugada alemã após beber todo o Reno num trago de solidão, escrevo um poema-carta para o amigo temporão. Contemplo o branco envelope, o irrespondível endereço lá da Rua Lopes Chaves. Fingindo amizade imensa invento o pai, o amigo, o irmão e envio cartas tardias que um carteiro preguiçoso jogará em qualquer rio. P.S. Aquele que escreve cartas não apenas cola selos num envelope de nuvens lançado sobre o horizonte. Espera que quem recebe saiba ler na linha d’água a sede do eterno instante e jorre afeto e respostas num diálogo de fontes. 99
fotos: Paulo Duarte
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Dos visitantes Para Mรกrio
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Cronologia
Mário de Andrade, 1917
Nasce Mário Raul de Moraes Andrade a 9 de outubro, na casa da Rua Aurora, 320, no centro de São Paulo. É o segundo filho do casal Maria Luísa de Almeida Leite Moraes e Carlos Augusto de Andrade.
1893
A infância de Mário decorre na companhia de tios e primos. Seu irmão Renato nasce em 1899 e sua irmã Maria de Lourdes em 1901. Aos 6 anos, Mário entra para o Grupo Escolar da Alameda do Triunfo. A seguir no Ginásio Nossa Senhora do Carmo dos irmãos maristas, formando-se em 1909. Estuda piano em casa com a mãe e a tia.
1895/1909
“Na rua Aurora eu nasci Na aurora de minha vida E numa aurora cresci. No largo do Paiçandu Sonhei, foi luta renhida, Fiquei pobre e me vi nu. Nesta rua Lopes Chaves Envelheço, e envergonhado Nem sei quem foi Lopes Chaves. Mamãe! me dá essa lua, Ser esquecido e ignorado Como esses nomes da rua.” Mário de Andrade Lira paulistana
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Ingressa na Escola de Comércio Álvares Penteado, mas permanece por apenas dois meses. Frequenta o 1° ano da Faculdade de Filosofia e Letras da Faculdade de São Paulo, no Mosteiro de São Bento. Entra para o Conservatório Dramático e Musical, habilitado para o 3° ano de piano. Deseja ser concertista.
1910/11
Professor de piano e História da Música no Conservatório.
Reservista do exército, faz exercícios militares como voluntário, durante a 1ª Guerra Mundial. Morte do pai, a 15 de fevereiro de 1917. Publica, sob o pseudônimo Mário Sobral, Há uma gota de sangue em cada poema. Encontro com Oswald de Andrade que leva artigos seus para o Jornal do Commercio.
Publica seu primeiro texto na imprensa. Uma crítica musical no Jornal do Commercio.
Visita com Di Cavalcanti a exposição de Anita Malfatti. Volta várias vezes, tornando-se amigo da pintora.
A morte do irmão Renato, a 22 de junho abala muito Mário. Desiste da carreira de concertista, já que, após a grave crise emocional suas mãos ficam trêmulas.
1913/1915
“assim como estudava piano, não perdia concerto e lia a vida dos músicos, também não perdia exposições plásticas, devorava histórias de arte, me atrapalhava em estéticas mal compreendidas, estudava os escritores e a língua, e, com quê sacrifícios nem sei pois vivia de mesada miserável, comprava o meu primeiro quadro!” Carta a Oneida Alvarenga; Rio de Janeiro, 1940
1916/1917
“Depois a Vida me ensinou A vida. Meu pai morreu. Quando Órfão me vi, chora-chorando, Minha miséria se acabou.” Mário de Andrade - Losango cáqui
Mário de Andrade com colegas, em frente ao Conservatório Dramático e Musical, 1918
Mário de Andrade com Prof. Wancole e colegas do Conservatório, 1918
Escreve em A Gazeta como crítico de música. É colaborador de A Cigarra, o Echo e A Gazeta. Viagem a Minas Gerais, onde conhece a obra de Aleijadinho.
1918/1919
Foto da Semana de 22 no saguão do Teatro Municipal. Em sentido horário: René Thiollier, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Manoel Vilaboin, Francesco Pettinati, Motta Filho, Paulo Prado, Graça Aranha, Afonso Schmidt, Goffredo da Silva Telles, Couto de Barros, Tácito de Almeida, Luís Aranha, Oswald de Andrade ( sentado no chão), Rubens Borba de Moraes
Colabora em várias revistas; entre elas, Papel e Tinta; Revista do Brasil e Ilustração Brasileira. Frequenta o estúdio do escultor Victor Brecheret e compra um exemplar do bronze Cabeça de Cristo. Em dezembro escreve os poemas de Paulicéia desvairada, primeiro livro modernista e moderno brasileiro.
1920
“(...) Eu estava aparentemente calmo, como que indestinado. Não sei o que me deu. Fui até a escrivaninha, abri um caderno, escrevi o título em que jamais pensara, ‘Paulicéia desvairada’. O estouro chegara afinal, depois de quase ano de angústias interrogativas. Entre desgostos, trabalhos urgentes, dívidas, brigas, em pouco mais de uma semana estava jogado no papel um canto bárbaro, duas vezes maior talvez do que isso que o trabalho de arte deu num livro.”
Reunião dos Modernistas. Mário de Andrade (de chapéu), Baby e Guilherme de Almeida, Antonio Carlos Couto de Barros, Rubens Barbosa de Moraes, Yan de Almeida Prado, Tácito de Almeida, frente à casa de Guilherme de Almeida
Mário de Andrade no chão, atrás dele Zina Aita ( à esquerda) e Anita Malfatti, 1922
Ajuda a organizar e participa da Semana de Arte Moderna lendo trechos de Paulicéia desvairada e A escrava que não é Isaura. Ante a repercussão da Semana perde seus alunos particulares de piano. Publica Paulicéia desvairada às suas custas. Faz parte de Klaxon, revista modernista de São Paulo. Escreve, Losango cáqui, durante os exercícios de reservista. Forma com Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Oswald de Andrade e Menotti del Picchia o Grupo dos Cinco.
Muda-se para a casa da Rua Lopes Chaves em companhia da mãe e da tiamadrinha, com quem viverá até o final da vida. A 27 de maio Oswald de Andrade publica “Meu poeta futurista”, no Jornal do Commercio, elogiando Mário, que responde em 6 de junho com o artigo “Futurismo?”
Escreve o poema “Carnaval carioca”. Publica “Crônicas de Malazarte” e dois contos de Belazarte na América Brasileira, revista carioca. Escreve para a revista Ariel. Completa a redação de A escrava que não é Isaura, poética modernista.
Conhece Manuel Bandeira no Rio, em outubro. Uma amizade que motivará longa correspondência.
Professor catedrático de Estética e História da Música, no Conservatório.
1921
1922/23
“Mário de Andrade, intransigente pacifista, internacionalista amador, comunica aos camaradas que bem contra-vontade, apesar da simpatia dele por todos os homens da Terra, dos seus ideais de confraternização universal, é atualmente soldado da República, defensor interino do Brasil.” Mário de Andrade - Losango cáqui
Mário de Andrade. “O movimento modernista”
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Integra a caravana modernista que vai a Minas conhecer as cidades históricas. Blaise Cendrars faz parte do grupo. Encontra Anibal Machado, Pedro Nava e Carlos Drummond de Andrade, com se corresponderá por muitos anos. Compra a máquina de escrever Remington, batizada Manuela, em homenagem ao amigo Bandeira
1924
Mário de Andrade, Praia do Chapéu Virado, Belém, 1927
Faz a primeira redação de Macunaíma. Publica Losango cáqui, poesia e Primeiro andar, contos. Colabora na Revista do Brasil e em Terra Roxa e outras Terras; tornase crítico do jornal carioca A Manhã, suplemento de São Paulo. Inicia sua experiência de fotógrafo que irá até 1931. Viaja para a Amazônia, chegando a Iquitos no Peru e à fronteira da Bolívia.
Mário de Andrade à bordo do “São Salvador, 1927
Colabora n’ A Revista do modernismo de Belo Horizonte. Publica A escrava que não é Isaura”. Compõe “Louvação matinal” e “Louvação da tarde”, de Remate de Males.
1925
Realiza mais de 500 fotografias registrando aspectos arquitetônicos, paisagísticos, e retratos da população local. Escreve o diário do Turista aprendiz, mas não o publica em vida. Colabora na revista Verde de Cataguases. Publica à suas custas, Amar Verbo Intransitivo e Clã do Jabuti. Escreve críticas de arte, literatura e música, crônicas, poemas, contos para o Diário Nacional (até 1932).
1926
“Fui na fazenda passar um mês. Pois me veio o saci de uma idéia pra um romance na cabeça, escrevi o tempo todo, teve dias em que escrevi até duas da manhã! trouxe mais um livro na mala mas porém não descansei nem um bocadinho.” Mário de Andrade. Carta a Anita Malfatti. 9 fev. 1927
Realizada por Denise Mattar a partir da cronologia completa de Telê Ancona Lopez e Tatiana Longo Figueiredo, da Equipe Mário de Andrade do IEB Instituto de Estudos Brasileiros USP.
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Casa de Mário de Andrade na Rua Lopes Chaves, São Paulo
Sombra Minha, Santa Tereza do Alto, 1928
Publica Macunaíma o herói sem nenhum caráter, 800 exemplares. Redige o libreto de Pedro Malazarte, ópera cômica. Entre dezembro de 1928 e março de 1929, segunda viagem ao nordeste, destinada a recolher dados sobre a música, o folclore e a cultura popular da região.
1928
Mário de pijama, 1929
Publica o “Compêndio de história da música”. Escreve os “Poemas da negra” e os “Poemas da amiga”. Inicia o romance “O café”, que ficará inacabado. Rompimento da amizade com Oswald de Andrade. Publica “Modinhas imperiais” e “Remate de males” e o ensaio “Origens do fado”.
1929/30
Escreve os poemas de “Rito do irmão pequeno” e de “Girassol da madrugada”. Dirige com Paulo Prado e Antônio de Alcântara Machado a Revista Nova. Início da correspondência com Oneida Alvarenga. Apoia a Revolução Constitucionalista. Completa 40 anos; adoece com nefrite. Angústia e doença moldam os poemas escritos nesse ano: “Grã Cão do outubro” e “O Grifo da Morte”.
1931/34
A convite do Prefeito de São Paulo, Fábio Prado torna-se Diretor do Departamento Municipal de Cultura. Inaugura a Discoteca Pública, cria parques infantis e projeta casas de cultura. Elabora com Paulo Duarte o anteprojeto do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) e inicia correspondência com Rodrigo Melo Franco de Andrade. Cria a Sociedade de Etnografia e Folclore; organiza o Congresso de Língua Nacional Cantada. Eleito membro da Academia Paulista de Letras. Deixa a direção do Departamento de Cultura. A frustração de ver seu trabalho interrompido lança Mário em dura crise. Sua saúde piora. Muda-se para o Rio de Janeiro.
1935/38
Mário de Andrade, entre alunos de Portinari na Universidade Federal, 1938
Em julho de 1938 assume a diretoria do Instituto de Artes da Universidade do Distrito Federal, no Rio, onde ministra o Curso de Filosofia e História da Arte. É consultor técnico do Instituto Nacional do Livro, onde elabora projeto para uma enciclopédia brasileira. Participa da programação cultural do Ministério Capanema. Frequenta grupo de jovens escritores: Murilo Miranda, Carlos Lacerda, Moacir Werneck de Castro, da Revista Acadêmica. Viaja a Belo Horizonte para pronunciar conferências. Inicia correspondência com Henriqueta Lisboa e Moacir Werneck Castro.
1938/40
“A vida é para mim, está se vendo, Uma felicidade sem repouso; Eu nem sei mais si gozo, pois que o gozo Só pode ser medido em se sofrendo. Bem sei que tudo é engano, mas sabendo Disso, persisto em me enganar... Eu ouso Dizer que a vida foi o bem precioso Que eu adorei. Foi meu pecado... Horrendo Seria, agora que a velhice avança, Que me sinto completo e além da sorte, Me agarrar a esta vida fementida. Vou fazer do meu fim minha esperança, Oh sono, vem!... Que eu quero amar a morte Com o mesmo engano com que amei a vida.” Mário de Andrade . Grã Cão do Outubro
Mário de Andrade, Portinari e Oscar Simão em frente à casa do artista, 1941
Regressa a São Paulo, à casa da rua Lopes Chaves e ao cargo de professor no Conservatório. Trabalhando no SPHAN, inicia a pesquisa sobre o pintor e padre Jesuíno do Monte Carmelo. Publica “A Nau Catarineta” e “Música do Brasil”.
1941
Conferência “O movimento modernista”, importante balanço, no Itamaraty, a convite da Casa do Estudante, no Rio de Janeiro. Reassume o cargo de Catedrático no Conservatório. Contrata com a Editorial Losada, de Buenos Aires, livro sobre Portinari. Inicia a publicação das “Obras Completas”, “Aspectos da literatura brasileira”, “Os filhos da Candinha”, “O baile das quatro artes” e “Obra imatura”, esta reunindo “Há uma gota de sangue em cada poema”, “Contos selecionados de Primeiro andar” e “A escrava que não é Isaura”. Escreve “Lira paulistana”, poesia. Inicia a redação do poema “Meditação sobre o Tietê”, que termina às vésperas da morte. Participa do I Congresso Brasileiro de Escritores (São Paulo, 22-26 jan.). A 25 de fevereiro, em sua casa, em São Paulo, morre Mário de Andrade, de infarto do miocárdio. É enterrado no Cemitério da Consolação. Neste ano sai Lira paulistana.
1942/45
“Quando eu morrer quero ficar, Não contem aos meus inimigos, Sepultado em minha cidade, Saudade. Meus pés enterrem na rua Aurora, No Paiçandu deixem meu sexo, Na Lopes Chaves a cabeça Esqueçam. No Pátio do Colégio afundem O meu coração paulistano: Um coração vivo e um defunto Bem juntos. Escondam no Correio o ouvido Direito, o esquerdo nos Telégrafos, Quero saber da vida alheia, Sereia. O nariz guardem nos rosais, A língua no alto do Ipiranga Para cantar a liberdade. Saudade... Os olhos lá no Jaraguá Assistirão ao que há-de vir, O joelho na Universidade, Saudade... As mãos atirem por aí, Que desvivam como viveram, As tripas atirem pro Diabo, Que o espírito será de Deus. Adeus.” Mário de Andrade. Lira paulistana
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CuradorIa: Denise Mattar
Agradecimentos:
Cenografia: Guilherme Isnard
Carlos A. C. Camargo
Programação Visual: Kaminari Comunicação
Instituto de Estudos Brasileiros USP
Locução: João Paulo Lorenzón
Maria Angela Faggin Pereira Leite
Iluminação: BeLight
Marina de Mello e Souza
Design de luz: Samuel Betts
Telê Ancona Lopes
Multimidia: Rafael Renzo
Marcos A. Moraes Elizabeth Ribas
Produtor Executivo: Celso Rabetti
Projeto Portinari
Produtor Local: Claudio Fernandes - Clan Design
João Cândido Portinari
Assistente de curadoria: Gabriela Albuquerque
Noélia Coutinho
Assessoria de Imprensa: Raquel Silva
Marta e Roberto Siqueira
Educativo: Bernardo Almeida (coordenação)
Jones Bergamin
Mediadores: Fabiana Arruda
Luis Antonio de Almeida Braga
Karla Cristina Gomes
Simão Mendel Guss
Gilson Maia
Acervo de Escritores Mineiros - UFMG
Lucas Trindade
Marcus Vinicius de Freitas Elaine Caramella
Fotos da exposição: Guilherme Isnard
Priscila Arantes
Sonia Régis Barreto
Paulo Duarte
Fotos históricas: Arquivo IEB
Izabel Ferreira
Aracy Amaral
Associação Cultural Cândido Portinari
Museologia: Bianca Dettino - IEB Acervo
Lúcia Elena Thomé - IEB - USP
Eduardo Saron
Thereza Kahl Fonseca - RJ
Kety Fernandes
Raul Carvalho - SP
Adilson Ruiz
Site: Wagner Bartoletti Junior Montadores: Renato das Dores
João Batista Silva
Fábio Francisco de Paula
Impressões: FXImpressões Transporte: Millenium Transportes Seguro: Affinite Corretora de Seguros Produção: Facto Arte
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Itaú Cultural
Celeste Bartoletti