Ikesaki
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Manter os sonhos vivos e acreditar que é possível realizar mais e melhor permitiram que eu, um imigrante japonês, tivesse forças para lutar e contribuir com a sociedade e com o país que me acolheu. Tenho muita satisfação em ver as realizações das quais pude participar, mas sei que ainda há muito o que fazer. Agradeço à minha família e a todos que contribuíram com esta história.
Hirofumi Ikesaki
Ikesaki
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Prefácio O espelho de uma vida
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ai, vou para São Paulo”. Esta frase, aparentemente simples, mostra a determinação, o arrojo, a persistência, a força e a paixão que marcaram o início da vida empreendedora de Hirofumi Ikesaki, líder que desperta, dia após dia, com a vontade de vencer e de construir um lugar melhor para seus filhos e concidadãos. É esta história impressionante, verdadeiro presente para todos nós, que será apresentada nas próximas páginas. Preparem-se para conhecer a vida de um guerreiro samurai dos nossos tempos. Ser convidado para escrever o prefácio desta obra é uma enorme honra. E, ao mesmo tempo, um grande desafio. Como sintetizar em algumas palavras, uma vida inteira que, ainda hoje, nos premia com lições fundamentais, seja no campo pessoal, seja no profissional. Decidi optar por aquilo que me é mais caro e chamou a atenção assim que o conheci, há 20 anos, quando ainda estava na Associação Comercial de São Paulo: sua simplicidade. Acredito que esta é a base, o sustentáculo do Grupo Ikesaki. O que mais encontramos na história, em especial quando analisamos as vidas dos líderes, são pessoas cujo brilho do sucesso como lideranças ofusca as qualidades do ser humano. Hirofumi é uma exceção. Como poucos, consegue bem equilibrar-se em dois campos vitais: é um ser humano que acredita e propaga os valores da família, da honestidade e da ética, bem como o empresário e líder de sucesso, que não tem receio de trazer para as decisões da vida corporativa estes mesmos valores. Sobre o empresário quase tudo já foi dito. Sua visão privilegiada e de vanguarda à frente dos negócios, somada à liderança indiscutível junto aos seus colaboradores e pares, fizeram deste imigrante veterano construtor de uma das mais importantes empresas de produtos e serviços de beleza da América Latina. Isto tudo sem perder a humildade, virtude que computo como mais poderosa nos dias de hoje. Não aquela que faz o ser humano baixar a cabeça para qualquer ordem – isso é submissão; mas ter a qualidade de não se alterar diante do inusitado, do novo, da excelência. Convivendo com ele e sua família ao longo destes anos, principalmente com sua esposa Michiyo e seus cinco filhos – Carlos, Suzi, Márcia, Ricardo e Roberto –, esta qualidade ressalta ainda mais aos olhos. Em especial porque ele mantém a coerência de pautar suas atitudes e ações por estas virtudes que entende como essenciais. Há de se convir que, num mundo como o de hoje, de tantas incongruências, em que ética, compromisso e humildade estão cada vez mais distantes, a vida de Hirofumi Ikesaki é a exceção que nos tira o direito de perder as esperanças em um mundo mais justo em todas as dimensões da vida humana. Por isso a importância desta publicação. É muito mais que um relato de uma história; trata-se de um legado importante para esta e futuras gerações, pois, ao contrário do que mostram alguns especialistas em administração e negócios, mostra que é possível crescer, superar desafios e alcançar o sucesso, sem sacrificar valores essenciais. Hirofumi nos inspira a ser simples, éticos, compromissados. Ikesaki nos ensina que podemos ser melhores, a qualquer tempo, sob quaisquer circunstâncias. Domo arigatô gozaimasu (muito obrigado).
Alencar Burti, 83 anos, empresário. Presidente do Conselho Deliberativo do SEBRAE-SP, é diretor vice-presidente Secretário da FACESP e membro do Conselho Superior da Associação Comercial de São Paulo (ACSP), entidades que já presidiu
1964
Nasce o primeiro supermercado de cosméticos do Brasil
E
m 1964, Hirofumi Ikesaki, o homem que mudaria os rumos do mercado de beleza no Brasil, era um jovem comerciante que vendia produtos químicos para as tinturarias, um dos primeiros negócios abraçados pelos imigrantes japoneses na cidade de São Paulo. Enquanto entregava os produtos – ele mesmo dirigia um velho furgão Ford –, percebeu que as filhas e esposas dos tintureiros estavam montando salões de beleza, graças às melhores condições sociais e econômicas da colônia japonesa. Captou que havia um negócio promissor e decidiu vender cosméticos e produtos para cabelos para aqueles salões improvisados que estavam surgindo. Ikesaki sempre fez questão de conversar com as clientes que entravam em sua modesta loja na rua dos Estudantes e ainda visitava informalmente escolas de cabeleireiros para conhecer a preferência dos profissionais. Ao entender o desejo das clientes, inaugurou no início dos anos 1970 uma loja maior e mais moderna na rua Galvão Bueno, 37. Nascia bem no coração do bairro da Liberdade o primeiro supermercado de cosméticos do Brasil, um conceito totalmente inovador que transformaria completamente o segmento. Os produtos ficavam distribuídos em gôndolas em um inédito sistema de autosserviço. Não demorou para a loja virar o ponto de encontro dos cabeleireiros da cidade. A inovação e a visão de futuro sempre foram os principais componentes do espírito empreendedor de Ikesaki.
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2014
O Grupo Ikesaki é uma das maiores empresas do setor de beleza da América Latina
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loja que mudou a maneira de se vender cosméticos e estabeleceu uma estreita relação de confiança com os profissionais da área deu origem a um dos mais importantes e sólidos conglomerados do setor de beleza da América Latina: o Grupo Ikesaki. Formado por diversas empresas com forte sinergia entre elas, o Grupo Ikesaki completou 50 anos em 2014, contribuindo continuamente para o crescimento do setor em que atua.
Uma visão de algumas empresas do Grupo Ikesaki (em sentido horário): prédio da Ikesaki Cosméticos no bairro da Liberdade; Beauty Fair, maior feira de beleza das Américas; hiperloja no shopping Tucuruvi; o showroom da Ikesaki Design; superloja de atacado EBC; fachada da fábrica Taiff
Hoje o Brasil já é o terceiro maior mercado de beleza do mundo, atrás apenas de Estados Unidos e Japão. E se encaminha para ocupar a liderança no mercado global de produtos para cabelos, principal foco do Grupo Ikesaki. Suas atividades vão desde o desenvolvimento de acessórios profissionais e a fabricação de aparelhos elétricos de uso profissional até a comercialização de cosméticos e produtos de beleza em geral no varejo e atacado. Graças à filosofia e à visão de negócios implantada por seu fundador, o Grupo Ikesaki tem a missão de ser o principal canal de soluções para toda cadeia do setor de beleza no Brasil. O respeito a esse compromisso permite a Ikesaki ser um dos mais importantes elos de ligação entre indústria, comércio, consumidores e profissionais de beleza.
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Ikesaki Cosméticos
Um jeito inovador de vender produtos de beleza no varejo
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mercado de varejo para venda de produtos de beleza pode ser dividido em antes e depois da Ikesaki Cosméticos. Até a abertura da loja da rua Galvão Bueno, as perfumarias da época “escondiam” os produtos atrás do balcão, dificultando o acesso das clientes. Ao instalar gôndolas, a Ikesaki facilitou o acesso às marcas desejadas e cativou o profissional de beleza, que pôde manusear xampus, coloração e outros utensílios do seu dia a dia antes de comprá-los. Foi uma festa! Em parceria com as indústrias, inovou novamente ao disponibilizar demonstradoras especializadas para orientar a compra. A loja chamava atenção por seu grande luminoso onde se lia em letras garrafais Max Factor, destacando a marca preferida de maquiagem da época. Em seguida, implantou um pioneiro Centro Técnico para cursos de aperfeiçoamento. Foi o início de um dos principais pilares da Ikesaki: oferecer educação técnica para cabeleireiros e manicures, estimulando a inclusão, a qualificação e a ascensão na carreira. A partir de então, a relação de confiança com esses profissionais foi se fortalecendo e estreitando. A marca se consolidou, ganhou força e não para de crescer. Para conquistar abrangência nacional, foi implantado o sistema de televendas que atende cerca de 20 mil salões por mês. A divisão de vendas externas atua em São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Paraná e Santa Catarina. A partir de 2007, seis hiperlojas foram inauguradas, garantindo presença física em todas as macrorregiões da região metropolitana de São Paulo. Com dois mil metros quadrados, em média, e 20 mil itens diferentes, cada nova unidade passou a gerar movimento equivalente ao de algumas dezenas de perfumarias de médio porte. Ao mesmo tempo, os profissionais de beleza ganharam soluções completas às suas necessidades: centro técnico, assistência técnica, área de experimentação, móveis, atendimento especializado e o Top Profissional, espaço que democratiza o acesso a produtos e serviços diferenciados e exclusivos. O próximo passo é o lançamento de uma hiperloja virtual onde será possível fazer compras com as mesmas facilidades de uma loja física. Desde sua abertura, a Ikesaki continua mudando a experiência de se fazer compras, estimulando novos hábitos de consumo das mulheres. Para a Ikesaki, é uma honra fazer parte dos momentos em que elas ficam ainda mais bonitas.
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EBC
O maior atacado de autosserviço de beleza do Brasil
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esde a inauguração de seu inovador supermercado de cosméticos, a Ikesaki ficou famosa por oferecer os melhores preços. Na época da inflação galopante, na década de 1980, por exemplo, fazia ofertas que deixavam um produto mais em conta que o praticado pelas próprias fabricantes. Embora a situação econômica atual seja diferente, a estratégia continua sendo adquirir grandes volumes para que os produtos fiquem acessíveis aos clientes. Um outro fator foi fundamental para atrair os pequenos comerciantes: a variedade de produtos. Diante desta estratégia de sucesso, a venda por atacado acabou sendo um processo natural na expansão do Grupo Ikesaki. Em 1997, surge a EBC (Empresa Brasileira de Cosméticos), na Marginal Tietê, para atender perfurmarias, farmácias e bazares. Em uma área de 7 mil quadrados, a EBC oferece um mix de 17 mil produtos de 300 fornecedores. O sistema de autosserviço criada na loja de varejo foi mantido no atacado. Além disso, a EBC tem canais de venda por telefone para todo o país e um sistema de venda eletrônica que inclui a instalação gratuita de um software na loja do cliente para gerenciar a reposição de estoque. Mantendo a missão do Grupo Ikesaki de ajudar no desenvolvimento do setor de beleza, a EBC disponibiliza um Centro de Apoio ao Lojista onde proporciona treinamentos e palestras sobre aplicações práticas para melhorar o desempenho de vendas e marketing das perfumarias-clientes. Assim o lojista encontra não só um lugar para comprar, mas também soluções e orientações para o sucesso do seu negócio. Uma das propostas mais inovadoras é a Rede Beauty Point, um modelo de negócios que transforma perfumarias simples em lojas modernas de ambiente agradável. Inaugurada em 2009, conta com lojas no interior, litoral e Capital, que continuam com gestões independentes, garantindo o atendimento personalizado, um dos fundamentos do Grupo Ikesaki.
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Taiff
Líder brasileira em secadores e chapas profissionais
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sonho de Hirofumi Ikesaki fabricar em território nacional um secador de cabelo profissional manual nasceu em um dia de garoa na década de 1970. O empresário viu um barbeiro utilizando um pequeno secador manual e, naquele instante, percebeu que o aparelho poderia fazer milagres nas mãos dos profissionais de beleza. Não tirou esta ideia da cabeça. Com recursos próprios, desenvolveu e lançou o primeiro secador manual profissional fabricado no Brasil, modelo caracol, em 1976. Ikesaki foi um pioneiro que transformou a vida dos cabeleireiros. Até então, os salões utilizavam apenas secadores de coluna, onde as mulheres precisavam passar horas até conseguir o efeito desejado. A inovação, no entanto, cobrou seu preço. O endividamento com o projeto e outros incontáveis percalços obrigaram o empresário a adiar (nunca desistir) a continuidade da fabricação, que só foi retomada a partir de 1988. Desta vez, com um novo nome. A Taiff nasceu em um sobrado de 500 metros quadrados no bairro do Cambuci com apenas seis funcionários. A marca, aliás, é mais que apropriada para sua história e os produtos que fabrica. É inspirada na palavra japonesa “taifu”, que significa tufão. A perseverança do empresário, uma de suas marcas registradas, valeu a pena. A fábrica atual ocupa uma área de mais de 20 mil metros quadrados em São Paulo. Hoje a Taiff é a líder no segmento de produtos elétricos profissionais para beleza. São cerca de 70 itens que podem ser encontrados em mais de 5 mil pontos de venda espalhados pelo Brasil. Seus secadores e chapas de última geração primam pelo design arrojado e apelo cosmético, pois, além de secar e modelar, também são capazes de tratar os cabelos sem agredi-los. Para alcançar este nível de qualidade, foi preciso investir em pesquisas de sistemas de emissão de íons e até nanotecnologia. Com produtos que encantam, ela virou a marca mais desejada de secadores profissionais, chapinhas, modeladores e máquinas de corte. Não foram apenas os melhores profissionais que adotaram seus aparelhos. Ao permitir que consumidoras comuns tivessem acesso ao seu portfólio, a Taiff criou um novo mercado, provocando uma revolução no segmento. As mulheres agradecem.
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O tufão É impressionante como em pouco mais de 20 anos o design e a tecnologia dos secadores e das chapinhas mudaram drasticamente. Do modelo Caracol, como o primeiro secador da Taiff ficou conhecido, até os ousados modelos atuais, exigiram muita pesquisa e investimento. A Taiff foi a primeira empresa no Brasil a usar íons em seus aparelhos. A tecnologia elimina a eletricidade estática e ajuda a dar mais brilho ao cabelo. As chapinhas, que são as mais eficientes do mercado, permitem não apenas o alisamento, mas também a modelagem dos cabelos.
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Ikesaki Design
Solução completa para salões de beleza
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evolução dos móveis e equipamentos para salões de beleza no Brasil se confunde com a trajetória do próprio Grupo Ikesaki. Já na inauguração da primeira loja da rua Galvão Bueno, esses produtos para profissionais ficavam expostos no mezanino, onde podiam ser observados como objetos de desejo. A vedete era o moderno secador de coluna Ultrawell. Foi uma inovação: o cabeleireiro que entrasse na loja conseguia montar um salão completo em um único lugar. Mas isso não bastava. O espírito empreendedor de Hirofumi Ikesaki já estava enxergando mais longe. Logo adquiriu uma fábrica e tornou-se a maior fabricante brasileira de móveis do setor. Começou a atuar também no atacado disponibilizando seus equipamentos a revendedores de todo Brasil. Assim, os móveis Ikesaki passaram a decorar salões de beleza em todo o território nacional. Outro fato histórico com forte impacto no setor foi a exibição de Locomotivas, pela Rede Globo, em 1977. Pela primeira vez, uma emissora ambientou a trama principal de uma novela em um salão de beleza. E todos os móveis e equipamentos exibidos diariamente na abertura e nas principais cenas eram da Ikesaki. O prestígio dos seus produtos chegou aos ouvidos de uma das principais fabricantes do Japão, que propôs uma sociedade. Graças ao design e à tecnologia made in Japan, a nova marca impôs um padrão ainda mais alto de qualidade no mercado. A parceria foi desfeita, mas Ikesaki sempre manteve os móveis como um item obrigatório das soluções oferecidas aos salões. A partir da década de 1990, com a liberação das importações no Brasil, a Ikesaki revolucionou novamente o mercado de equipamentos para salão trazendo com exclusividade o que havia de melhor no mundo, principalmente da Europa. Esse movimento deu um novo impulso ao mercado brasileiro de beleza, contribuindo para sua expansão e profissionalização. Hoje seus produtos estão presentes em showroons de todas as hiperlojas de cosméticos do Grupo e na Ikesaki Design Superstore, um espaço com 1,6 mil metros quadrados que se divide em ambientes temáticos para todos os estilos e bolsos, especialmente planejados para facilitar a visualização do salão completo. Ainda oferece consultores em arquitetura que montam projetos especializados e espaço técnico onde são realizados cursos de gestão em negócios de beleza. As soluções completas e customizadas atendem salões de todos os tamanhos com um desejo em comum: montar os melhores ambientes e oferecer serviços que encantem as clientes.
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Beauty Fair
A maior feira de beleza das Américas
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ideia foi ousada. Reunir em um único espaço todos os elos da cadeia do mercado de beleza: indústria, comércio e profissionais da beleza. E principalmente servir e contribuir para o desenvolvimento do setor. O resultado surpreendeu. Em apenas dez anos, a Beauty Fair consolidou-se como a maior feira do mercado de beleza das Américas e a segunda maior do mundo. Quem circula pelos corredores lotados do evento fica facilmente impressionado com a dimensão da sua grandiosidade. Em quatro dias, 150 mil visitantes circulam pelos stands das mais de 500 empresas expositoras que representam cerca de mil marcas nacionais e internacionais. É o ponto de encontro oficial dos formadores de opinião do setor: 85% do público são de profissionais da área e os outros 15%, formados por lojistas, distribuidores, importadores e exportadores. As marcas aguardam a feira para anunciar seus lançamentos mais importantes, mostrando em primeira mão suas novidades, para lojistas e profissionais do setor. São mais de 100 eventos educacionais simultâneos, nas áreas de negócios, cabelos, estética, manicure e maquiagem, oferecendo conteúdo e apontando tendências. O Projeto Caravanas atrai 25 mil pessoas de todo o Brasil para o evento e o Projeto Escola oferece entrada gratuita para estudantes da área no último dia da feira, com o objetivo de proporcionar relacionamento entre esses futuros profissionais e as marcas expositoras, além de usufruir de eventos educacionais desenvolvidos exclusivamente para eles. Somada à visibilidade alcançada nos principais meios de comunicação, a feira tornou-se a principal vitrine para divulgação de marcas brasileiras para o mercado mundial e porta de entrada para marcas internacionais no Brasil.
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Hirofumi
Ikesaki Um homem visionário. A trajetória do empresário que transformou uma modesta loja de produtos para tinturaria em uma das maiores empresas do mercado de beleza da América Latina é inspiradora. Como ele conseguiu tamanho sucesso? Talvez os incontáveis fracassos, as tragédias e as perdas ensinaram-lhe a percorrer o caminho das pedras. O glamour passou longe do seu dia a dia. A coragem e a obstinação com que o imigrante japonês foi superando cada obstáculo que parecia intransponível são lições que revelam a alma empreendedora de Ikesaki. A paixão pelo impossível tornou-se sua marca registrada. Um samurai que passou a vida desafiando a si mesmo. É impossível ficar indiferente à vida de um dos mais importantes empresários brasileiros do nosso tempo. 35
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Para Hirofumi Ikesaki, não há verbos no passado. Ele está sempre fazendo, negociando, inovando. Homem de ação. Do seu tempo. Agora ele está construindo um castelo. Mas não no estilo japonês, como era de se esperar de alguém que faz questão de preservar as tradições da terra dos seus antepassados. Segue a típica arquitetura dos castelos medievais, com muros e torres de pedra. É possível avistá-lo às margens da rodovia Fernão Dias, em Atibaia, no interior de São Paulo. O antigo proprietário já havia erguido uma das torres quando Ikesaki comprou e ampliou o empreendimento. A obra, que se transformou em seu hobby predileto, ainda não está concluída. Ele planeja transformar o local em um gigantesco centro de lazer e esportes, capaz de atrair pessoas de todo o mundo. Ainda há muito a ser feito. Os obstáculos para concluir o projeto não parecem preocupá-lo. O castelo é apenas o símbolo da sua paixão por enfrentar desafios impossíveis. Das tarefas mais simples aos negócios mais complicados, Ikesaki é obstinado em desafiar a si mesmo. Sempre foi assim. Quando menino, ajudava os pais na roça com afinco e disciplina. Mesmo debaixo de um sol de esturricar, se impunha a capinar em um só dia uma distância que costumava ser percorrida em três dias pelos adultos. Quando jovem, foi ajudante-geral em uma empresa. Sua função era apenas retirar rótulos de garrafas de produtos químicos. Estabeleceu como meta cumprir sozinho a tarefa que caberia a quatro funcionários. Para isso, trabalhou em dias de folga e finais de semana. Não fez isso para ganhar tapinhas nas costas do chefe nem para engordar o ordenado. A autossuperação sempre foi sua marca registrada e seu motor propulsor. A obra do castelo é o seu autodesafio do momento. Mas quem o conhece sabe que a qualquer momento pode surgir outra prioridade. Em pontos distantes, há paredes de pedras, blocos e tijolos sendo erguidas, aparentemente desconexas e sem sentido, como muitas das decisões polêmicas que já tomou – e só foram se mostrar acertadas tempos depois. De botas de borracha preta, pisa no barro, vistoria as escadas que estão sendo construídas. Para, olha e chama o encarregado.
Hirofumi Ikesaki em seu castelo em construção em Atibaia
— Não é assim! – diz, firme e seco, como um trator. Manda destruir e refazer. O encarregado abaixa a cabeça e não discute. Na hora do lanche, Ikesaki senta-se no meio dos pedreiros para comer o pão com mortadela. Está à vontade. Eles também estão. Ikesaki não é daqueles líderes que gostam de dar ordens sentado em um escritório com ar condicionado. Não se importa em ser chamado de ultrapassado pelos inimigos. Prefere o velho estilo de estar na linha de frente das batalhas, como um samurai.
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Ele fareja negócios onde ninguém vê nada de atraente. Está sempre atrás de “galinhas mortas”, como costuma dizer, que ainda podem produzir ovos de ouro. Na mesa de reuniões demonstra uma agressividade incomum: a de um leão faminto.
Inquieto, olha em direção ao lago que fica no vale, rodeado pelas montanhas baixas que marcam a paisagem da região onde fica o castelo. Rapidamente associa a cena ao significado do seu sobrenome. Ike = lago e saki = cabo, península. “O cabo do lago”, repete para si mesmo o significado do seu sobrenome. Lembra-se das histórias que seu avô Tomojiro costumava contar sobre as grandes extensões de terra que sua família possuía na aldeia natal de Shingo, no distrito de Amakusa, na província de Kumamoto, sul do Japão. Finalmente estava quitando uma antiga dívida de seus antepassados que, assim como milhares de outros japoneses, perderam tudo, mas recomeçaram uma nova história em uma terra estranha. Não esconde um sorriso de satisfação, enquanto dá mais uma mordida no sanduíche de mortadela. Esse é o homem que começou do zero e transformou seu sobrenome em uma das marcas mais tradicionais e reconhecidas no mercado de beleza: o Grupo Ikesaki, que completou 50 anos em 2014. A ponta do iceberg é a Ikesaki Cosméticos, uma rede que não para de crescer. Só na matriz, na rua Galvão Bueno, 37, no bairro da Liberdade, cerca de 5 mil pessoas – a maioria mulheres – compram um dos 20 mil itens disponíveis todos os dias. O que pouca gente sabe é que existem outras grandes empresas que fazem parte do mesmo Grupo – hoje uma das maiores da América Latina. A Ikesaki Design, fundada em 1985, que importa e fabrica equipamentos e móveis para cabeleireiros. A Taiff, criada em 1988, é a principal fabricante nacional de secadores e chapas profissionais. A EBC (Empresa Brasileira de Cosméticos), aberta em 1997, é o maior atacado de autosserviço de cosméticos do país. A Action Technology, fundada em 1998, importa e distribui motores elétricos. A Pro Art, fundada em 2000, importa e distribui acessórios para profissionais de beleza. A Beauty Fair, criada em 2005, em pouco tempo, tornou-se a maior feira de beleza das Américas. Desde a origem dos negócios, a logomarca do Grupo Ikesaki é representada pelo brasão (kamon) da família. Não deixa de ser intrigante que esse senhor de botas de borracha, incrivelmente à vontade no meio dos pedreiros, que não reconhece a diferença entre rímel e delineador, seja um dos maiores vendedores de produtos de beleza do Brasil. O segredo do seu sucesso não está em entender a delicadeza da alma feminina. Seus atributos são outros. Ele fareja negócios onde ninguém vê
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O castelo é um símbolo da perseverança e do jeito de liderar de Ikesaki
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O queixo duro de Ikesaki precisou ser moldado desde cedo. Sua mãe Yukuno morreu quando ele tinha apenas quatro anos, vítima de complicações no parto após dar à luz a irmã caçula.
nada de atraente. Está sempre atrás de “galinhas mortas”, como costuma dizer, que ainda podem produzir ovos de ouro. Na mesa de reuniões demonstra uma agressividade incomum: a de um leão faminto. Sem contar o ímpeto ao risco, de assumir dívidas maiores que seu patrimônio e apostar na própria capacidade de saldá-las. Foi com esses atributos que ele revolucionou o setor de beleza ao criar o autosserviço em sua primeira loja de cosméticos na década de 1970. Inspirado nos modelos dos supermercados, permitiu que as clientes escolhessem os produtos preferidos sozinhas. Foi uma inovação avassaladora na época, que deu início às mudanças drásticas no mercado de cosméticos. O sucesso nem sempre foi seu amigo. As pedras no caminho não foram poucas. Já foi agricultor, ajudante-geral, faxineiro, entregador, taxista, tintureiro. Cada tropeço evidenciava uma determinação quase inflexível, como um resistente lutador de boxe que apanha em quase todos os rounds, mas vence o adversário pelo cansaço. Nos momentos em que ameaçava ir à lona, parecia se lembrar de um conselho que sua avó Masu repetia em sua infância: “Quando tropeçar em uma pedra e cair, leve-a consigo”, dizia ela para ensinar-lhe que os fracassos, embora inevitáveis, trazem lições, oportunidades e crescimento – é preciso coragem para enxergá-los. E não ficar parado, reclamando dos infortúnios da vida. O queixo duro de Ikesaki precisou ser moldado desde cedo. Quarto filho de uma família de seis irmãos, sua mãe Yukuno morreu quando ele tinha apenas quatro anos, vítima de complicações no parto após dar à luz a caçula. Ele se esforça, mas não se lembra do rosto dela, e o pouco que sabe é dos relatos esparsos que o pai fazia. Desde então, a irmã Kanae e a avó tornaram-se as suas referências femininas e, por isso, mesmo adulto, respeitava as opiniões delas, o que não é pouco para um homem de Kumamoto. Nas províncias de Kyushu, sul do Japão, mais afastadas do centro econômico, de onde vieram boa parte dos imigrantes, o papel das mulheres se restringia ao de esposa e mãe. Cabia a elas a importante tarefa de manter a harmonia familiar. Porém, opiniões e decisões não faziam parte do departamento feminino. Foi assim que Hirofumi aprendeu a enxergar as mulheres. Mesmo casando-se no Brasil, ele acabou reproduzindo o modelo japonês em casa. Ele nunca compartilhou as preocupações dos negócios com a esposa Michiyo, embora ela sentisse quando as coisas não andavam bem. Em uma das inúmeras fases em que o dinheiro evaporou, ela até se prontificou a costurar para ajudar nas despesas domésticas, mas quando ele soube, pegou todos os tecidos e jogou-os pela janela. Para ele, seria um atentado à honra o homem da casa não conseguir
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Os irmĂŁos Kazuto, Toshie, Kanae e Hirofumi (ao centro)
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...em 1934, vieram 21.230 imigrantes, entre os quais estava a família Ikesaki, que aproveitara as facilidades oferecidas pelo governo. Além de Hirofumi, que tinha seis anos, vieram o avô Tomojiro, a avó Masu, o pai Kameyoshi e os quatro irmãos.
sustentar a família. A ausência da mãe sempre foi um vazio não preenchido que o obrigou a se virar desde cedo, aguçando seu senso de sobrevivência e de superação. Dois anos após ficar órfão, o pequeno Hirofumi, juntamente da família, deixou para trás a terra natal rumo ao desconhecido. O Japão vivia sucessivas crises, que foram se agravando desde o catastrófico terremoto de Kanto em 1923, que devastou a região de Tóquio e provocou mais de 100 mil mortes. Em 1929, o país ainda sofreu as consequências da quebra da Bolsa de Nova York, nos Estados Unidos. Mais de 3 milhões de japoneses, principalmente na zona rural, estavam desempregados. Com o colapso da economia, militares ultranacionalistas ganharam mais poder e ordenaram a invasão de outros países asiáticos, começando pela Manchúria em 1932. Para justificar as ocupações, o governo evocou o “espírito nacional” (Yamato damashi), que voltava a cultuar a origem divina do imperador e valorizar a superioridade da raça e da cultura japonesa. Os resquícios desses valores marcariam fortemente a consciência do povo japonês, incluindo a da família Ikesaki. Por outro lado, para amenizar a crise, o Império do Sol Nascente também estimulou oficialmente a emigração para suas colônias e outros países. A partir de 1932, passou a fornecer, além da passagem ao Brasil, uma ajuda de 50 ienes por passageiro acima de 12 anos. O esforço deu resultado. Já em 1933, quando se comemorou os 25 anos do início da imigração japonesa ao Brasil, foi registrado o maior ingresso de japoneses da história: 24.484. No ano seguinte, em 1934, vieram 21.230 imigrantes, entre os quais estava a família Ikesaki, que aproveitara as facilidades oferecidas pelo governo. Além de Hirofumi, que tinha seis anos, vieram o avô Tomojiro, a avó Masu, o pai Kameyoshi e os quatro irmãos: o mais velho Kazuto; a mais velha Kanae; o mais novo Makoto; e a caçula Yukuko. A outra irmã mais velha, Toshie, viria com outra família em outro navio. No passaporte de Hirofumi, não consta o nome de Yukuno, sua mãe verdadeira. No espaço dedicado à filiação materna, está escrito Hatsu Ikesaki. Até a Segunda Guerra, uma das condições para emigrar era que a família tivesse, no mínimo, três pessoas capazes de trabalhar. Por isso, era comum a formação de famílias artificiais. Os Ikesaki cederam uma vaga para que Hatsu pudesse viajar. Ela chegou a acompanhar os Ikesaki, mas foi “devolvida” à sua família original um ano após a chegada. O pai de Hirofumi nunca se casou novamente. A situação que a família encontrou no Brasil, no entanto, não foi das mais receptivas e animadoras.
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“Família unida, vamos à América do Sul”, diz o cartaz para incentivar a imigração (destaque) e o Buenos Aires Maru, navio que trouxe a família Ikesaki ao Brasil
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Embora não fosse o chonan (filho mais velho), Hirofumi assumiu a responsabilidade sobre a família quando recusou-se a mudar para o Paraná, como o pai planejava. Teimoso, bateu o pé para partir sozinho a São Paulo.
À medida que a Segunda Guerra se aproximava, a vida dos japoneses em geral foi se tornando cada vez mais complicada e cheia de restrições. Até o fim da guerra, os Ikesaki moraram em Bastos, uma colônia a 550 quilômetros de São Paulo, fundada e planejada por japoneses e, por isso mesmo, uma das que mais sofreram com o preconceito e as hostilidades do nacionalismo durante o governo Getúlio Vargas. Um professor da escola primária que praticava ijime (maus-tratos) com os filhos dos imigrantes marcou profundamente a formação de Hirofumi, que diz ter crescido com “raiva” dessa época. A experiência na escola não foi a única. As constantes humilhações que testemunhou e de que foi vítima durante 10 anos seguidos, dos 9 aos 18 anos, pelo simples fato de ser japonês, serviram para reafirmar seu orgulho nipônico, sua resistência e sua resiliência. São pedras que foram sendo recolhidas pelo caminho, como sua avó lhe ensinara. Também foi em Bastos onde descobriu sua vocação para o comércio. Quando a guerra terminou, a colônia nipônica se encontrava desorientada, confusa e sem muitas esperanças. Em março de 1946, Ikuta Mizobe, diretor da Cooperativa Agrícola de Bastos, foi morto a tiros pelo grupo extremista Shindo Renmei (Liga do Caminho dos Súditos), que combatia os “traidores da pátria” e rejeitava o fato de o Japão ter perdido a guerra. Naquela noite, policiais entraram nas casas dos japoneses da colônia Esperança, onde Hirofumi morava, atrás do possível assassino. O clima de insegurança, aliado à crise econômica, motivou o pai de Hirofumi a mudar-se de Bastos. Embora não fosse o chonan (filho mais velho), Hirofumi assumiu a responsabilidade sobre a família quando recusou-se a mudar para o Paraná, como o pai planejava. Teimoso, bateu o pé para partir sozinho a São Paulo. O pai então mudou de ideia e todos seguiram Hirofumi. Aquela atitude paterna iniciou a ruptura da hierarquia familiar. Em uma casa japonesa tradicional, o chonan é o herdeiro natural de todos os bens e aquele que vai assumir a liderança e responsabilidade sobre os demais membros. Hirofumi, embora consciente da sua condição na hierarquia, não estava mais disposto a acatar todas as ordens passivamente. O impasse estava posto à mesa e o conflito com o irmão mais velho, que começara ainda na infância, se intensificaria nos próximos anos. Em São Paulo, sentiu-se o típico caipira que pisa pela primeira vez na cidade grande. Aturdido, confuso e, ao mesmo tempo, deslumbrado. Quando conheceu o bairro da Liberdade, o centro comercial dos japoneses, voltou a se sentir um peixinho no aquário. O bairro, que abrigou os
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Ikesaki, já depois de estabelecido em São Paulo, de terno e gravata
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A família entrou para o ramo de tinturaria, uma profissão comum entre os imigrantes (...) A diferença é que ele vislumbrou antes da maioria que o negócio estava prestes a entrar em decadência (...) Ikesaki tinha uma intuição de que a mudança não teria volta já em 1964, quando testemunhou que as filhas dos tintureiros estavam abrindo salões de beleza.
primeiros imigrantes que fugiram das fazendas de café para a cidade, também acolheu Hirofumi, seus negócios e sua família. Daí em diante, ele seguiu seu faro. A família entrou para o ramo de tinturaria, uma profissão comum entre os imigrantes. Depois, Ikesaki se estabeleceu na distribuição de produtos químicos para lavanderias, atendendo também hospitais, quartéis e tecelagens. Com a chegada dos tecidos sintéticos que podiam ser lavados em casa e a tolerância à entrada de pessoas sem paletó e gravata nos cinemas, repartições públicas e fóruns, vislumbrou, antes da maioria, que o negócio entraria em decadência. Até então, nada indicava isso. No início da década de 1970, ainda existiam 3,5 mil tinturarias em São Paulo, das quais 80% pertenciam aos japoneses. Mas Ikesaki teve a intuição de que a mudança não teria volta já em 1964, quando testemunhou que as filhas dos tintureiros estavam abrindo salões de beleza para atender as japonesas, que estavam com mais tempo livre e dinheiro para cuidar da beleza. Abriu sua primeira loja de cosméticos no bairro da Liberdade. Teve a visão do futuro, marca dos empreendedores natos, mas pagou um preço alto. A inexperiência, o excesso de ímpeto e o estilo centralizador causaram conflitos, erros, fracassos. Sua personalidade, oposta à do irmão mais velho para conduzir os negócios familiares, não produziria uma relação totalmente pacífica. Aos olhos do irmão, Hirofumi parecia um kamikaze, como eram chamados os pilotos japoneses suicidas que se chocavam contra os navios americanos na Segunda Guerra. A ruptura da sociedade com os irmãos acabou sendo inevitável. Em voo solo, as duras lições foram fundamentais para que desse a volta por cima e consolidasse o nome da família como símbolo do ramo de beleza no Brasil. O empresário já tem seu legado. Hoje seus cinco filhos (Carlos Takashi, Suzi Hitomi, Marcia Yumi, Ricardo Jo e Roberto Jun) são responsáveis por áreas diferentes do Grupo Ikesaki. Entre eles, todos tratam-se pelo nome em japonês, como um código de intimidade que os une. Os cinco filhos casaram-se com descendentes de japoneses. É odîtchan (avô) de 12 netos. Assim como aconteceu com Ikesaki, não foi o filho mais velho que assumiu a liderança dos negócios da família. Takashi nunca quis tomar a frente dos negócios e cultiva um estilo bastante discreto. Há autonomia e compartilhamento de decisões. Os irmãos se reúnem uma vez por semana em reuniões na sede do grupo para discutir estratégias e definir ações. Os feitos empresariais de Ikesaki foram reconhecidos em 2010, quando recebeu o Prêmio Destaque Empresarial da Associação Comercial de São Paulo. A cidade que o acolheu também fez um
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Seitaro Ishimura foi o primeiro japonês a abrir uma tinturaria em São Paulo, em 1918, apenas dez anos após a chegada do navio Kasato Maru, que deu início oficial à imigração japonesa no Brasil. Nas décadas seguintes, a profissão foi abraçada pelos japoneses na cidade, incluindo a família Ikesaki
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Suas contribuições para a comunidade nipo-brasileira foram reconhecidas em 2011, quando recebeu a Ordem do Sol Nascente, uma importante condecoração do governo japonês (...) em uma cerimônia oficial no próprio Palácio Imperial, em Tóquio, onde moram os imperadores Akihito e Michiko.
gesto semelhante. Em uma sessão de 14 de maio de 2012, a Câmara Municipal condecorou-o com a Medalha de Anchieta, a maior honraria concedida a personalidades que conquistaram o respeito do povo paulistano. Embora sempre tenha participado das atividades da colônia japonesa, sua figura pública passou a ter uma dimensão maior à medida que os negócios ganharam musculatura. Ele se engajou na Acal (Associação Cultural e Assistencial da Liberdade), onde atualmente ocupa a presidência pelo oitavo mandato consecutivo e luta para que as tradições japonesas sejam preservadas e difundidas. Suas contribuições para a comunidade nipo-brasileira foram reconhecidas em 2011, quando recebeu a Ordem do Sol Nascente, uma importante condecoração do governo japonês. Ikesaki ganhou a medalha duas vezes. A primeira, em uma cerimônia oficial no próprio Palácio Imperial, em Tóquio, onde moram os imperadores Akihito e Michiko. De volta ao Brasil, foi recebido em uma grande festa no salão nobre do Bunkyo (Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa e Assistência Social). O prestígio, o sucesso e as homenagens não mudaram a alma do menino órfão de mãe que cresceu em uma colônia japonesa de uma cidade do interior. O menino inquieto chegou até aqui, carregando as pedras nas quais tropeçou pela vida, como sua avó lhe ensinara. Agora ele está construindo seu castelo. Sentado ao lado dos pedreiros, dá a última mordida no sanduíche de mortadela. Levanta-se, limpa as mãos e convoca todos a voltarem ao trabalho. Ainda há muito o que fazer. Para Hirofumi Ikesaki não há verbos no passado.
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Foto da dĂŠcada de 1970. O casal Hirofumi e Michiyo rodeado pelos cinco filhos: Suzi, Roberto, Carlos, MĂĄrcia e Ricardo (da esq. para dir.)
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2014. O casal Hirofumi e Michiyo rodeado pelos cinco filhos: Suzi, Roberto, Carlos, Mรกrcia e Ricardo (da esquerda para direita)
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A vida que eu vivi 53
Cena de imigrantes japoneses na agricultura
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CapĂtulo 1
A vida no interior 55
Hirofumi, vá apanhar as mangas Minha lembrança mais antiga é da fazenda de café em Lins, interior de São Paulo, em 1934, ano de nossa chegada ao Brasil. Havia tanto espaço que um rio corria folgadamente em suas terras. A família Ikesaki trabalhava como colono, igual a outros imigrantes japoneses lá assentados. Os casebres conjugados margeavam a estrada formando um muro. As nossas casas de madeira ficavam dentro de um mangueirão, um grande curral onde os porcos ficavam soltos, cercado por estacas. Não havia banheiro do lado de dentro. Quem quisesse fazer suas necessidades precisava sair de casa, atravessar o quintal, subir uma escada improvisada até o barracão que funcionava como banheiro. Os porcos nos acompanhavam no trajeto, parecendo contentes. Não havia privada. Apenas um piso elevado de madeira, com um buraco no chão. Era possível escutar os porcos grunhindo, esperando por nossa saída. O cheiro dos porcos que brincavam em nosso quintal contrastava com o perfume das mangas que rolavam para o lado de fora da cerca. Certo dia, acompanhei os adultos para recolher as frutas caídas, mas apenas poucas estavam ao nosso alcance. A cerca tinha tantos fios de arame que nem um coelho conseguiria atravessar. — Hirofumi, se levantarmos o arame, você poderá jogar as mangas para nós – alguém sugeriu. Esgueirando-me pelo vão, cheguei ao mangueiral. Havia tantas mangas caídas que mal se via a cor da terra. Pouco tempo depois, começamos a escutar o barulho de cascos de cavalo se aproximando. — É o capataz! Os adultos, assustados, fugiram para todos os lados. E eu fiquei para trás, sem conseguir sair do cercado. O barulho dos cavalos foi aumentando, e pude ver a figura do capataz carregando um grande facão na cintura e uma espingarda na mão. Num repente, resolvi me arriscar e fugir para dentro do mangueiral escuro. Quando calculei que havia escapado, dois cachorros enormes vieram latindo atrás de mim. Percebi que estavam cada vez mais próximos. “Chegou o fim”, pensei, enquando as lágrimas rolavam pelo meu rosto. Assim que me alcançaram, para minha surpresa, os cachorros me lamberam, ganindo, como se quisessem me consolar, entendendo o que estava sentindo. O capataz me alcançou montado em seu cavalo, levando-me para o escritório atrás da fazenda, próximo ao terreno para secar o café. Apareceram pessoas bem-vestidas para me perguntar várias coisas, mas não entendia o que falavam. Na época, eu não falava nada de português. Eu só podia ficar calado enquanto eles tentavam se comunicar comigo. Algum tempo depois, o capataz trouxe sacos carregados de manga, colocou a carga no lombo de um jumento e me montou em outro cavalo. Passamos em cada conjunto de habitação até, finalmente, chegar aonde minha família e os vizinhos estavam reunidos, sem saber como obter notícias do meu paradeiro. Foi aí que eu apareci montado no cavalo, acompanhado por empregados da fazenda. — Ei, aquele lá não é o Hirofumi? Está vivo! — É ele mesmo. Ele está bem. Os brasileiros que me trouxeram entenderam o que estava acontecendo, me colocaram no chão e descarregaram os sacos com as mangas. Fazendo gestos de “podem comer”, distribuíram as frutas. Sem saber falar uma palavra em português, os japoneses tiveram a sensação de que estavam cometendo um grave crime. Se
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eles fossem capazes de explicar que, apesar de serem simples colonos, estavam apenas recolhendo as mangas derrubadas pela chuva e pelo vento, não precisariam sair correndo como criminosos. Foi terrível como a barreira da língua deixou os colonos impotentes diante de uma situação tão corriqueira. Fico imaginando quantos apuros outros não passaram em situações muito mais críticas… Bléim, bléim, bléim, bléim. Às quatro da manhã, o “sino da capela” soava até longe, quebrando o silêncio da manhã. Os trabalhadores sabiam que estava na hora de se dirigirem para a lavoura, carregando suas enxadas. Ao chegar, colonos de diferentes nacionalidades estavam reunidos. Mesmo que os familiares estivessem juntos, eles eram separados em diferentes grupos por indicação do capataz e espalhados pela vasta fazenda. Meu irmão mais velho, com treze anos, contava que os integrantes de uma mesma família podiam ser separados sem qualquer critério. Até o local de trabalho nunca era o mesmo. Ele tinha a tarefa de levar água para os parentes que trabalhavam no cafezal. — No dia em que o pai e o avô ficaram separados, ninguém sabia me dizer onde eles estavam. Corria por todos os cantos até finalmente encontrar alguém para entregar a água. Menino pequeno, seis anos, ainda não trabalhava na roça. Costumava ficar olhando para o grande portão na entrada da fazenda, curioso para saber o que poderia haver do outro lado. Certo dia, escutei o som de madeira rangendo ao longe. Vi diversos bois enfileirados puxando uma carroça maior que um caminhão. As enormes rodas estavam ligadas a um eixo que não girava independentemente. Por isso, era trabalhoso movimentá-las. A carga era tão pesada que as rodas afundavam na terra, dificultando o avanço, mesmo com dez bois puxando. Não imagino de onde vieram nem quanto tempo demoraram para chegar, mas, de tanto sofrerem, deixavam a baba escorrer em grande volume, fazendo um fio que alcançava o chão. Quando a carroça parou em frente à fazenda, as crianças correram para abrir a porteira. Mesmo sendo muito mais novo que elas, fui ver aquela aglomeração. Os empregados usavam um instrumento semelhante a uma lança com diversos aros metálicos para fazer um barulho parecido com um guizo para incitar os bois. Mesmo assustados, eles estavam tão exaustos que não tinham mais forças para seguir em frente. O instrumento pontudo, então, era usado para espetar a traseira dos animais. Apesar disso, eles não avançavam e só estremeciam as nádegas já ensanguentadas. Olhando para aqueles animais indefesos, senti que seria capaz de fazer qualquer coisa na vida. Diferente dos bois, o ser humano é capaz de mudar a condição em que vive com esforço próprio, encarando os desafios. Encarar os desafios. Esse é o meu ponto de partida. Aquilo que me fez o que sou hoje.
Odîchan, o que quer dizer Ikesaki? Nasci em 7 de novembro de 1927, na aldeia de Shingo (atual cidade de Amakusa), no distrito de Amakusa, província de Kumamoto. Amakusa é um conjunto de ilhas localizado a oeste da área central da região de Kyushu, no Mar de Ariake. Suas ilhas principais são Ueshima e Shimoshima. A aldeia de Shingo era um pequeno povoado que ficava nas montanhas do lado sul de Shimoshima. Quando pequeno, perguntei ao meu avô Tomojiro, o quinto patriarca da família Ikesaki, o significado do nosso sobrenome. Ele me sentou na cadeira e contou que o sobrenome Ikesaki tinha surgido há cerca de 200 ou 250 anos, quando o senhor
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Na casa do primeiro patriarca Ikesaki havia cozinheiros, jardineiros e condutores de cavalo. As histórias dos antepassados que meu avô contava eram de difícil compreensão para um menino. Vendo toda minha família trabalhando debaixo do sol, aquela conversa não parecia real.
feudal autorizara a mudança de sobrenome em Kumamoto devido ao grande número de homônimos. Por mais que os pais caprichassem na hora de dar nome a um filho, era praticamente impossível identificar a família da qual ele fazia parte. O sobrenome original da família Ikesaki era Sakamoto. O primeiro patriarca pensou: “Mesmo que eu mude de Sakamoto para Ikesaki agora, certamente vão me identificar pelo antigo até eu morrer”, pensou. Para conseguir que as pessoas fixassem o novo sobrenome, ele elaborou um plano. Naquela época, a posse mais desejada pelas pessoas era um cavalo, provavelmente como ter um bom carro nos dias de hoje. Não era só um cavalo que o primeiro patriarca possuía. Ele também era proprietário de terras, onde corria um riacho que, se fosse represado, poderia formar um pequeno cabo. O patriarca construiu uma bela mansão nesse lugar, fez uma ponte, cercou com muros, jardinou, arrumou tudo e represou a água para formar um lago. Projetou tudo pensando inclusive no nível da água. Depois disso, toda vez que alguém perguntasse “Ano ike no saki ni wa dare ga orunda (Quem mora no cabo daquele lago)?”, todos responderiam, o “Ikesaki”, que significa o “cabo do lago”. Na casa do primeiro patriarca havia cozinheiros, jardineiros, ama de leite e condutores de cavalo. As histórias dos antepassados da família Ikesaki que meu avô contava eram de difícil compreensão para um menino que morava em meio à pobreza da roça. Vendo toda minha família trabalhando debaixo do sol incandescente do interior de São Paulo, aquela conversa não parecia real. Minha avó Masu dizia que os homens da família Ikesaki sempre foram bonitos e elegantes. Meu avô Tomojiro tinha um metro e setenta e cinco, uma estatura alta para os padrões de um japonês da época. Quando ele morreu, em Bastos, foi colocado em um caixão de um metro e oitenta, mas o corpo não coube direito com os sapatos. Meu irmão mais velho Kazuto também era alto e, quando ele cavalgava, as meninas se voltavam para admirá-lo. Meu pai Kameyoshi era baixo. No Japão, ele se aventurou em outras atividades paralelas à lavoura, como beneficiamento de arroz, loja de doces e bicicletaria. Na época em que nasci, ele tinha obtido a exclusividade para vender um artigo raro em Amakusa: bicicletas. Mas os negócios não duravam muito. Muito do seu conhecimento nas plantações e nas demais áreas serviu para ajudar outros imigrantes quando viemos ao Brasil. Não sei como o meu pai conheceu a minha mãe, que morreu durante o parto da minha irmã mais nova no Japão. Ela tinha dado à luz outros cinco filhos: Kazuto, o mais velho; Kanae e Toshie, as mais velhas; eu e Makoto. Não me lembro do rosto dela. — Não me casei de novo pensando em vocês, meus filhos. Se me casasse, isso seria motivo para mais preocupações para vocês – disse ele, que não gostava de tocar no assunto. Minha irmã Kanae ainda se lembrava de passagens de nossa vida no Japão. Ela dizia que, quando nosso irmão mais novo nasceu, fiquei sem abrir os olhos durante uma semana. Pensaram, inclusive, que eu estava cego. Como não havia facilidade de transporte como nos dias de hoje, minha avó me carregou nas costas durante horas até Hondo, a maior cidade da região, para uma consulta no oftalmologista. Quando chegamos, havia muitos pacientes na sala de espera. No corredor, flores ornamentais e diversas gaiolas com canários. — Veja, Hirofumi, lindos pássaros estão cantando para você. Escute – disse minha avó. Minha irmã contou que abri os olhos imediatamente, e o médico não encontrou nenhum problema de visão. Uma outra história que ela gostava de repetir era sobre uma vizinha. — Havia uma menina moderninha, mais ou menos da sua idade, com quem você vivia andando de mãos dadas. Nossa casa ficava ao lado de um riacho de águas limpas ladeado por um dique muito resistente. A rua da frente de casa já dava numa
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O pai Kameyoshi ainda jovem no JapĂŁo
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Um dos momentos mais festejados era quando a gente avistava a carroça trazendo o almoço. Até hoje eu me lembro do sabor delicioso daquele missoshiru simples e improvisado.
ponte. A menina era da casa que ficava do outro lado do rio. Era comum ver os dois andando juntos na ponte. Os adultos brincavam que vocês iriam se casar quando crescessem. — Essa menina era moderninha de que jeito? — A família tinha aparência de quem havia voltado de uma viagem do Ocidente. A menina, por exemplo, não usava quimono e andava sempre de roupas ocidentais. — Será que o papai foi influenciado por essa família? — Não sei… Só sei que nosso pai teve uma encrenca com a família da mamãe… A família de minha mãe, Kurata, era bastante tradicional e influente. Os homens foram chefes da aldeia por várias gerações. O meu tio não era favorável à loja de bicicletas do meu pai. — Enquanto eu viver, nunca permitirei que um filho meu ande nessa coisa! Um ano mais tarde, porém, todas as casas começaram a ter uma bicicleta, inclusive as crianças. A zona rural japonesa passava por mudanças aceleradas. — Ikesaki-san, eu desdenhei de você, mas fiz mal. Me perdoe. Meus filhos querem uma bicicleta para ir até a escola. — Kurata-san, seus filhos são meus sobrinhos. Se eles quiserem andar de bicicleta, podem andar – disse meu pai, que deu a bicicleta de presente. Mesmo assim, parece que a família Kurata, que possuía uma linhagem mais nobre, continuou a tratar nossa família com desdém. A minha avó Kurata, por exemplo, dava mesadas maiores para os outros netos. Ao descobrir esse tratamento diferenciado, meu pai ficou revoltado: — Este ambiente que trata meus filhos de forma inferior vai estragá-los! Ele começou a alimentar a vontade de se afastar de Amakusa. Talvez a personalidade do meu pai de querer estar sempre à frente possa tê-lo levado a emigrar ao Brasil. A província de Kumamoto, alvo de propagandas da empresa de emigração, foi um lugar de onde saíram muitos emigrantes. Assim, em 1934, o meu pai deixou Amakusa, com meus avós paternos, meu irmão mais velho, minhas duas irmãs mais velhas, eu, meu irmão mais novo e a irmã caçula a bordo do Buenos Aires Maru com a intenção de fazer fortuna no Brasil.
Bolinhas de gude Após o término do contrato de um ano, em Lins, meu pai conseguiu comprar um sítio no distrito Esperança, em Bastos, uma região colonizada por imigrantes japoneses, também no interior de São Paulo. A vida na fazenda de café havia sido marcada por muitos sacrifícios. Mesmo assim, meu pai não se cansava de repetir: — É um acordo feito de país para país. Se não cumprirmos o contrato, será uma vergonha para a família – desta forma, aguentamos até o final. Um conhecido dele chamado Yamakawa plantava algodão em um terreno de dezenas de alqueires em Quatá, distante mais de doze quilômetros da nossa nova casa em Esperança. Quando o período da colheita chegou, ele chamou meu pai para ajudá-lo. — Você quer ir? – perguntou-me meu pai. Deixamos meus avós em casa e partimos. A plantação ficava em um terreno extremamente inclinado, cheio de pedras por
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Os irmãos Kazuto, Kanae, Hirofumi, Makoto e a mãe-postiça Hatsu segurando a caçula Yukuko
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Os capulhos de algodão precisavam ser colocados em um grande cesto de bambu. Como o terreno era acidentado, o cesto não parava em pé (...) tropecei numa das pedras e caí no chão, esparramando os capulhos. Era preciso levantar e começar tudo de novo.
todos os cantos. Desde nossa chegada ao Brasil, era a primeira vez que eu via um terreno tão pedregoso. Apesar disso, o algodão crescia de forma magnífica. Os capulhos de algodão precisavam ser colocados em um grande cesto de bambu. Como o terreno era acidentado, o cesto não parava em pé. Apesar de ser cuidadoso, tropecei numa das pedras e caí no chão, esparramando os capulhos. Era preciso levantar e começar tudo de novo. Um dos momentos mais festejados era quando a gente avistava a carroça trazendo o almoço. Até hoje eu me lembro do sabor delicioso daquele missoshiru (sopa de soja fermentada) simples e improvisado. Após três dias de trabalho, quando a colheita estava mais tranquila, o meu pai disse: — Você pode ver como estão o vovô e a vovó? Consegue voltar sozinho? Peguei uma carona no velho caminhão que iria vender o algodão na cidade. Os sacos de sessenta quilos eram empilhados e amarrados por cordas, fazendo um monte alto na caçamba. Subi no topo do carregamento e me segurei na corda, mas aquilo não foi uma boa ideia. Afinal, estava num lugar muito alto, com camadas e camadas de sacos de algodão. Por mais pesado que fosse, ele continuava sendo só algodão. A tremedeira causada por um pequeno buraco na estrada era amplificada no topo da carga. Meu corpo era arremessado de um lado para outro. Agarrei-me na corda para não ser derrubado. O desespero só terminou quando o caminhão parou, após vários quilômetros. Não reconheci o local, mas, segundo o motorista, se seguisse a ladeira encontraria um rio e, depois de cruzá-lo, se continuasse reto, chegaria em casa. Desci a ladeira e fui seguindo as instruções até avistar nosso sobrado de madeira. Chamei pelos meus avós, mas somente o cachorro soltou alguns latidos. A porta estava trancada e esperei pacientemente do lado de fora. Escurecia. Só quando mal se enxergava um palmo de distância, vi dois vultos se aproximando… eram eles. Talvez tão assustado quanto eu, meu avô destrancou a porta, enchendo-me de perguntas. — O que aconteceu, Hirofumi? Por que voltou? Aconteceu algo? Vamos entrar em casa primeiro. Após ouvir minha explicação, ele ficou mais tranquilo. Como um bom japonês, foi tomar um banho de ofurô. Assim que saiu, ele me chamou: — Hirofumi, meu pé está coçando, mas não enxergo direito. Dê uma olhada. Sob o brilho da lamparina vi pequenas bolinhas brancas que lembravam olhos. Era o bicho-de-pé, que abre pequenos buracos quando o inseto penetra na pele. Ao alargar o buraco usando uma agulha, os ovos saltavam para fora. Os pés do coitado estavam repletos deles. Como ele não sabia o que era, passava apenas tintura de iodo, o que de nada adiantava. A partir daí, tirar bichos-de-pé do meu avô passou a ser minha tarefa diária. Meu avô dizia, contente: — Hirofumi, você é a salvação do seu avô. É o especialista em tirar bichos – os pés esburacados de meu avô eram os pés de gente trabalhadora. Nossa família começou a se preparar para fazer o plantio de algodão. Antes de sair para a roça, meu pai me entregou uma dúzia de bolinhas de gude que havia comprado na cidade. Foi uma grande surpresa porque ele não costumava elogiar ou demonstrar afeto pelos filhos. Não me cansava de admirar as várias combinações de cores das bolinhas. Estava tão feliz e orgulhoso que pensei em brincar com o filho do vizinho. A casa dele ficava ao que hoje equivale à distância entre duas estações de metrô em São Paulo. Fui caminhando. Ao nos encontrarmos, brincamos, apostando nossas bolinhas, mas ele sempre vencia a partida. Eu o desafiei sem parar para tentar recuperá-las, mas, no fim, perdi todas elas. Pedi diversas vezes, mas ele não quis me devolver de jeito nenhum. Voltei para casa chorando, desapontado comigo mesmo. Quando a noite caiu, meu pai voltou da roça como fazia todos os dias e, apesar do cansaço aparente em seu rosto, quis brincar comigo. — Hirofumi, traga as bolinhas de gude – disse meu pai. Desconfio que tenha sido a primeira vez que ele comprara um brin-
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Os japoneses em Bastos
Colheita de algodão e criação de bicho-da-seda na década de 1940: principais atividades econômicas dos japoneses em Bastos
O núcleo de colonização de Bastos foi planejado pelo governo japonês, que comprou uma área de 12.000 alqueires na linha Paulista, a 580 quilômetros de São Paulo. O assentamento, onde Hirofumi Ikesaki morou com a família entre 1935 e 1947, não podia ter sido batizado com um nome mais propício: Esperança. Também havia outros chamados de Saúde, Progresso, Alto, Harmonia, Monteiro, União. Em todos os lotes, passava um córrego para que os imigrantes pudessem irrigar a terra. O núcleo foi planejado para que as famílias não passassem por dificuldades depois de assentadas, como ocorreu no início da imigração japonesa. Cada família comprava um lote de, em média, 10 alqueires, o que era suficiente para cultivar uma lavoura pequena. A partir de 1932, o plantio de café foi proibido por três anos devido aos preços baixos. A alternativa encontrada pelos agricultores de Bastos foi a plantação de algodão e criação do bichoda-seda. A Bratac, órgão ligado ao governo japonês que administrava o núcleo, instalou uma fábrica para beneficiar algodão em 1933. Quando a família Ikesaki chegou a Bastos, vivia-se o auge da cultura do algodão, que entrou em decadência após a Segunda Guerra devido ao empobrecimento do solo e ao crescimento da oferta em outros países exportadores.
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Outro hábito comum era comer cobras e lagartos. Se quisesse comer uma cobra, precisava ser peçonhenta. As pessoas diziam que uma cobra não peçonhenta fazia mal à saúde. Ela não tinha medo das pessoas e levantava a cabeça quando alguém se aproximava, por isso era fácil de abatê-la usando um pedaço de madeira.
quedo a um filho sem ser em uma data especial. Ele devia estar tão contente quanto eu quando as ganhei. — Pai, não tenho. — Por que não? — Desafiei meu amigo e perdi tudo. A decepção e a raiva de meu pai na hora em que escutou minha explicação não podem ser descritas em palavras. Ele me bateu com a mão espalmada, arremessando alguém pequeno como eu para longe. A vovó interveio: — Não pode bater numa criança deste jeito. Ele vai ficar aleijado. Corri para fora de casa imediatamente e me escondi na escuridão. Preocupada, vovó ainda me procurou ao redor de casa. Com medo de levar outra surra, fiquei em silêncio. Sem jantar, dormi chorando ao relento.
A infância na lavoura Nas raras vezes em que a plantação de algodão rendia uma safra boa e um ganho extra, meu pai comprava sacas de açúcar de sessenta quilos para fazer doces. Ao vê-lo preparando os ingredientes, me perguntava como ele teria aprendido a técnica. Ao perceber minha cara de curiosidade, vovó contou que meu pai tivera uma doceria em Amakusa. Meu pai fora obrigado a se tornar o chefe da família aos 13 anos, quando meu avô Tomojiro viajou o mundo a bordo de um navio em busca de pérolas por vários anos. Meu pai deve ter ficado com tanta raiva pela enorme responsabilidade sobre suas costas que descontava na irmã. Minha avó não suportou a situação e fez com que a filha deixasse a aldeia e fosse trabalhar em uma famosa doceria de Hondo, maior cidade da região. Parece que ela era quieta, obediente e muito trabalhadora. Poucos meses depois, o dono da doceria e o nakoudo (padrinho casamenteiro) vieram até a casa de meu pai para pedir a mão de minha tia para o primogênito herdeiro da famíllia Egami. Meu pai, o único que não fora informado do paradeiro da irmã, ficou estupefato, mas consentiu o casamento. O mais surpreendente foi que meu pai, que cuidava de um moinho de arroz, quis aprender a fazer doces, e acabou virando aprendiz na loja do sogro da irmã. Depois disso, mais experiente, abriu uma doceria na cidade natal. Enquanto ouvia as explicações da minha avó, reparava na habilidade do meu pai ao colocar o açúcar aquecido no fogão a lenha até ficar com cor de caramelo. A massa era despejada sobre um tronco grosso fixado na horizontal. Quando a massa amolecida escorria, ele usava as mãos protegidas com luvas e panos para apanhar a ponta escorrida para dobrar e jogar de volta por cima. Ele repetia o processo diversas vezes, dobrando a massa sem parar. O segredo estava em avaliar a dureza da massa enquanto ela esfriava aos poucos. No momento certo, ele puxava a ponta até que ficasse com uma espessura de um centímetro para cortá-la em pedaços de um centímetro de comprimento com uma tesoura de poda. Assim ele preparava balas que encantavam não só a mim, mas à família e aos vizinhos. O meu pai também fazia kasutera, o pão de ló levado pelos portugueses ao Japão no século XIV. Ele amassava os ingredientes, como a farinha de trigo, e colocava no fogo. A forma de ferro onde se fazia uma dúzia de kasutera no formato de grou e do tamanho de uma bocada foi trazida do Japão. O fogão a lenha era feito de pedra com uma calha estreita ao meio. A lenha era colocada em uma extremidade enquanto na outra ficava a chaminé improvisada. Sobre a calha era colocada uma chapa estreita de ferro com três buracos de tamanhos diferentes: grande, médio e pequeno. Nelas ficavam as panelas de ferro fundido onde a comida era preparada. O missô e o
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shoyu eram feitos em casa. Além do algodão, café e amendoim, minha família plantava soba (trigo sarraceno), que crescia no meio do pomar de laranjas. Na época em que os grãos germinavam, o céu até escurecia com a enorme revoada de rolinhas. — Hirofumi, venha comigo – dizia meu pai, enquanto saía de casa com sua espingarda antiga. Ele se escondia à sombra de uma laranjeira. Eu ficava quietinho atrás dele. Mesmo desconfiadas, as rolinhas começaram a pousar uma atrás da outra nos galhos de uma árvore seca, próximas ao soba que tanto queriam devorar. — Papai, tem um monte parado daquele lado – dizia. Meu coração se acelerava, aguardando o instante do tiro. Quando as rolinhas estavam prestes a atacar a plantação, meu pai grudou a espingarda no corpo e, sem mirar para qualquer ave em específico, atirou. Assustados, os pássaros alçaram voo fazendo estardalhaço. Ao mesmo tempo, vários caíram dos galhos. Saí correndo antes mesmo que o barulho do tiro parasse de ecoar. As rolinhas feridas se agitavam no chão sem conseguir voar enquanto eu as colocava em um saco. A refeição estava mais que garantida. Outro hábito comum era comer cobras e lagartos. Não por falta de comida, mas por ser uma outra opção farta de carne. Acertava os lagartos com a mira precisa do estilingue. A carne cozida aumentava de volume ao ser colocada na água quente, e o sabor lembrava o de frango. Se quisesse comer uma cobra, precisava ser peçonhenta. As pessoas diziam que uma cobra não peçonhenta fazia mal à saúde quando ingerida. A peçonhenta não tinha medo das pessoas e levantava a cabeça quando alguém se aproximava, por isso era fácil de abatê-la usando um pedaço de madeira. Segurava a cabeça com força, fazia vomitar o veneno e depois a pendurava amarrada com uma corda numa viga com o rabo para baixo. Abria um corte atrás da cabeça e puxava o couro com força, como se tivesse tirando uma meia do pé. A cobra podia ser cozida de diversas maneiras, mas eu gostava da carne cortada e seca ao sol. A espinha é fina e longa, mas depois de seca dava para comê-la como se fosse um sembei, um biscoito japonês. Também diziam que a carne da cobra era um ótimo tônico. Quando mordiscava um pouco, os olhos já ficavam avermelhados. Os adultos colocavam a cobra viva dentro de uma garrafa com pinga, tampavam-na e deixavam curar para beber mais tarde. Outra bebida era um rústico saquê japonês com que os imigrantes se esbaldavam no Ano-Novo. Chamava-se omiki e era ofertada aos deuses e às visitas. Eu experimentei um pouco, mas não gostei. Tenho a impressão de que beber até cair fazia parte do dever do chefe da casa de uma família de imigrante. Nunca gostei desse costume.
Você será meu cozinheiro Vivi uma infância difícil. Cresci com raiva guardada, principalmente pelo que aconteceu na escola primária em Bastos. No segundo ano um jovem professor brasileiro chegou de São Paulo para nos dar aula. A sua primeira reação ao entrar na sala foi dizer: — Ora, ora… Mas são todos japonesinhos! Nunca dei aula em uma escola só com crianças japonesas. Daqui em diante, só para pronunciar seus nomes já vai ser um grande trabalho. Primeiro quero que cada um diga o seu nome, começando por esta fileira. Para cada um que ficava em pé e dizia o nome, o professor fazia algumas perguntas como “o que seus pais fazem?”. A maioria, claro, era filho de agricultor. Assim que a apresentação acabou, o professor chamou o aluno mais alto para o quadro-negro. — Quem tem família que produz ovos? Quatro ou cinco alunos levantaram as mãos. Naquela época, as famílias criavam galinhas que ciscavam no quintal, mas não a ponto de ter o privilégio de comer ovos todos os dias. Não entendíamos por que ele fazia perguntas tão estranhas. As crianças levantavam as mãos inocentemente, sem saber o que viria pela frente.
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Durante um ano, fui cozinheiro do professor (...) Quando terminava de preparar o almoço, voava para a sala de aula, mas não entendia o que havia no quadro-negro rabiscado e mal apagado.
— Quem tem família que cria frangos? – a pergunta era difícil. Naquela época, ninguém conhecia a palavra “frango”. – É galinha. Estou falando de galinha – desta vez, alguns levantaram as mãos. Depois vieram as perguntas sobre frutas e legumes. — Quem planta melancia em casa? Tem poncã? E pera? Tem manga? E cenoura, alface, abóbora e chuchu? – a cada resposta, o professor mandava o aluno mais alto escrever o nome de quem tinha levantado a mão na lousa. — Ótimo. Agora… Quem de vocês sabe cozinhar? Silêncio. — Ninguém sabe cozinhar? Eu me virei para o professor e levantei a mão. Desde que minha mãe morreu, tive de aprender a cozinhar o básico. Em casa, havia uma hagama (panela de ferro com aba) para preparar arroz no fogão a lenha. O meu truque depois de lavar os grãos era colocar a palma da mão dentro da panela sobre a superfície do arroz como se a comprimisse. Em seguida, deixava a água até chegar ao nível do pulso. Assim, independentemente da quantidade de arroz, a água sempre era suficiente. Bastava controlar o fogo. O feijão ficava de molho desde o dia anterior para deixar os grãos inchados. Depois de cozinhar os grãos, passava óleo em outra panela, jogava alho amassado e toucinho picado. — Então você será o meu cozinheiro! – disse ele, mandando os alunos que levantaram as mãos trazerem os produtos listados na lousa no dia seguinte. Um dia, um aluno trouxe uma galinha viva para a escola, causando uma grande confusão. — Eu seguro as pernas, vai no pescoço, no pescoço! — O que faço com o pescoço? — Ai! Levei uma bicada! Num impulso, o professor, que estava hesitante, conseguiu segurar a cabeça da galinha. Ofegante e suando, ele, em vez de quebrar o pescoço, começou a torcê-lo. Torceu, torceu, até finalmente estrangulá-la. Ele tentava puxar as penas, mas elas não saiam. Foi então que um dos alunos deu a ideia de ferver água na panela para depenar a ave. Em seguida, o professor colocou a galinha de bruços sobre a tábua de cortar e tentou fincar a machadinha pelas costas da ave. — Não, não é assim, professor. Precisa cortar pela barriga – ensinou um dos alunos. Durante um ano, fui o cozinheiro do professor. Fui bobo em levantar a mão porque desde que passei a cozinhar, não tinha mais tempo para estudar. Quando terminava de preparar o almoço, voava para a sala de aula, mas não entendia o que havia no quadro-negro rabiscado e mal apagado. Eu me sentia culpado por não estar aprendendo, sem corresponder às expectativas do meu pai, que se esforçava na lavoura para que eu pudesse estudar. Em seguida, ainda começava a preparar a comida do dia seguinte do professor. Por isso, só voltava para casa às três ou quatro da tarde. No caminho de volta, os agricultores que suavam na roça esticavam as costas para me ver andando na estrada. — Aquele não é o segundo filho da família Ikesaki? — De novo? Todos os dias recebendo castigo e ficando até tarde. Deve ser muito cabeça dura. Ninguém da minha família sabia o que realmente acontecia na escola. Minha vergonha era tão grande que eu dava uma volta maior para pegar uma estrada com menos casas no caminho. Para a minha desonra, repeti aquele ano. No primeiro dia de aula do ano seguinte, veio novamente aquela apresentação. Não importava o que o professor dizia, desta vez eu só respondia: — Eu não quero fazer, eu não quero fazer!
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Língua japonesa proibida Enquanto Hirofumi estudava na escola primária, os passos distantes da guerra na Europa e na Ásia já se faziam ouvir em Bastos. Era uma época em que o nacionalismo foi se exacerbando no mundo inteiro, e no Brasil não foi diferente. O governo Getúlio Vargas adotou várias medidas restritivas sob a alegação de integrar os estrangeiros à sociedade brasileira. Em 1938, a campanha de nacionalização anunciou diversas medidas, como a proibição de formação de associações de estrangeiros e fechamento de escolas com alfabetização em língua estrangeira. Foi nesse período que as aulas de Hirofumi passaram a ser em português. Em setembro de 1939, quando ele tinha 11 anos, o governo proibiu jornais e revistas de língua estrangeira. Em 1940, foi instituído o sistema de registro para controlar os estrangeiros residentes no país. Para os japoneses, a vida ficou cada vez mais complicada. Sem lerem em português, sentiram-se cegos, já que não sabiam o que estava acontecendo no mundo. Em 8 de dezembro de 1941, o Japão bombardeou Pearl Harbor, provocando a guerra com os Estados Unidos. O Brasil ficou ao lado dos Aliados, e o Japão, que formava os países do Eixo ao lado de Itália e Alemanha, transformou-se em um país inimigo. Em 1942, foram criadas novas leis repressivas contra os súditos do Eixo. Fazer circular qualquer texto escrito na língua da nação inimiga, falar línguas estrangeiras em público, cantar ou tocar os hinos desses países e fazer qualquer reunião ou festa dentro de casas particulares foram proibidos. Além disso, não se podia mais viajar sem um salvo-conduto. Até os professores da escola primária de Bastos, onde Hirofumi estudava, adotaram uma postura antinipônica.
Governo brasileiro proibiu o uso da bandeira e da língua japonesa nas escolas (foto maior). A polícia apreendia materiais em japonês (acima). Há relatos, como o de Hirofumi, mostrando que livros em japonês foram queimados
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Minha avó me ensinou: quando você tropeçar em uma pedra e cair, leve-a com você. Assim nunca vai se esquecer do momento do tombo e sempre vai tirar uma lição importante para seguir adiante com coragem. Não fique reclamando das pedras no caminho.
Quando tropeçar, leve a pedra A vida na roça exigia que todos se dedicassem à terra com afinco. Até mesmo minha avó não era do tipo que ficava só cuidando da casa e da família. Ela saía antes do sol raiar e trabalhava até depois de escurecer. Sempre estava procurando o que fazer, como poderia contribuir. Por isso, ela não tinha tempo para os pequenos cuidados que uma mãe dá ao filho. Até os doze anos, meu irmão mais velho raspava meu cabelo. As crianças japonesas andavam praticamente carecas para evitar piolhos. Esse hábito parecia ser raro entre os brasileiros, pois os professores nos encaravam com estranhamento. O sítio de meu pai empregava mais quatro famílias de colonos, cujos filhos não frequentavam a escola. Havia apenas crianças japonesas na classe. O professor brasileiro mandou eu ficar em pé. Em seguida, chamou um aluno que usava gravata-borboleta, cujos pais também eram agricultores, mas de uma família em melhores condições financeiras. — Bom, pessoal. Qual dos dois está mais bem-vestido? – perguntou. Claro que era o outro, todos foram unânimes. Minha roupa estava cheia de remendos, fazendo-me parecer um saco de retalhos. — E quem está mais limpo? – a minha roupa fora lavada na véspera e deixada embaixo do lençol antes de dormir para não amassar. Por outro lado, a roupa do outro aluno estava suja. — O que eu quis mostrar é que, por mais nova e bonita que seja a roupa, se ela estiver suja, é pior do que uma roupa cheia de remendos. É preciso sempre manter a higiene, exatamente como o corte careca. Dias depois, o professor pendurou no quadro-negro o desenho de um garoto prestes a cair da sela de um cavalo assustado que empinava as patas da frente. O desafio foi escrever uma história baseada no desenho. A minha era mais ou menos assim: “Era uma vez um menino que gostava tanto de cavalos que ganhou um de presente de aniversário do seu pai. O menino ficou radiante e deu uma volta montado no animal. De repente, algo saiu de dentro do mato. O cavalo empinou assustado e o menino quase caiu de cima dele”. O professor leu a minha redação e avaliou o texto na frente de todos os outros: — A palavra “radiante” é perfeita. Não existe palavra que melhor se encaixe neste trecho – recebi de volta a redação em meio aos aplausos que ecoavam na sala de aula. Como eu tinha dificuldades nos estudos, era raro conseguir uma nota alta. Voltei contente para casa para contar a novidade, mas encontrei apenas um bilhete do meu pai. “A sua avó está na roça, por isso leve este bentô (marmita) para ela.” A mensagem não dizia onde ela poderia estar. Comecei por procurá-la nos lados da mata. Nada. Fui em direção ao rio. Nada. A tarde já começava a cair quando avistei um monte de palha na divisa com a fazenda vizinha. Curioso, cheguei mais perto. Lá estava ela, sentada ao lado do monte. Só encontrei minha avó por acaso. — Procurei a obâchan por todos os cantos desde a floresta até o rio. — Você trouxe meu bentô. Tenho um monte de netos, mas só você me traz bentô. — Obâchan, eu só trouxe porque tinha uma mensagem para mim – disse, sem graça. — Mas só você me procuraria tanto. O normal é desistir depois de tentar um pouco. É por isso que digo que você é o único. — Mas, obâchan, o que vai fazer com a palha? — A obâchan vai cortar esta palha para usar como canudo. Seu pai pode vender na cidade. Por isso, a obâchan trabalha catando palha enquanto todos brincam. Ela parou para pensar um pouco e perguntou:
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— Você tem amigos? — Tenho um monte. — Um monte? Isso é muito bom. — Hoje, por exemplo, todos bateram palmas porque escrevi uma redação… — Que bom. Mas, Hirofumi, você vai crescer. Precisa virar um homem honrado. Você tem certeza de que todas as pessoas que bateram palmas são seus amigos? — São meus amigos, sim. Da outra vez, fui elogiado porque a roupa que eu lavei e estiquei debaixo do lençol estava limpa. A obâchan desembrulhou o bentô enquanto ouvia a minha conversa. Ofereceu um oniguiri (bolinho de arroz) para mim. Ainda não tinha almoçado, mas recusei para que ela pudesse comer mais. — Quando eu ainda era jovem, havia na aldeia um rapaz bonito… – disse ela, colocando um pedaço de tsukemono (legume em conserva) na boca e continuou – As garotas da aldeia viviam comentando sobre esse jovem. Ele e sua mãe eram pobres e moravam afastados da aldeia. Sempre que alguém precisava de ajuda, ele estava à disposição. O rapaz gostava de repetir: ”O maior tesouro são os amigos”. Um dia, porém, a mãe adoeceu e morreu. Ele foi até a aldeia, dando a notícia de casa em casa. Entretanto, nenhum amigo compareceu ao velório. Enquanto chorava, lamentando que ele fosse o único que se iludia acreditando na amizade, um homem, com quem não tinha tanto contato, chegou. “Me contaram que a sua mãe faleceu…” Os dois prepararam o funeral sozinhos. Será que você tem pelo menos um amigo? — Claro que tenho, obâchan. — A gente nunca sabe até o momento chegar. Mesmo quando tropeçar em uma pedra e cair, leve-a com você. Assim nunca vai se esquecer do momento do tombo e sempre vai tirar uma lição importante para seguir adiante com coragem. Não fique reclamando das pedras no caminho. Nunca esqueci dessa conversa com minha avó, que ocorreu bem no dia em que estava eufórico por ter tirado a nota máxima na escola.
Amor de mãe A noite tinha caído quando minha avó mandou que eu buscasse meu pai, que devia estar bebendo na casa de algum vizinho. Eu tinha dez anos. Resmungando por dentro, vesti um sobretudo para me proteger do vento forte e do frio. Saí, segurando o lampião a querosene. Nossa casa ficava próxima à estrada que vinha de Bastos. Entre nossos vizinhos japoneses, estava o excoronel Jinsaku Wakiyama, militar reformado do Exército Imperial. Fui batendo de porta em porta para ver se o encontrava. O mais provável era que ele estivesse na casa do Nishimi-san, a mais distante da estrada. Antes de chegar ao rio, havia um entroncamento em “T” com entrada à direita, bastante utilizada por caminhões que transportavam as colheitas das lavouras. Poderia seguir por um atalho, mas os dois lados eram margeados por cafezais de aproximadamente cinco metros de altura. Os cachorros da vizinhança latiam ameaçadoramente para quem se atrevesse a andar por lá. Sem opção, fui pelo caminho mais longo. No começo, havia uma leve subida, mas, depois da descida, havia um pântano cheio de plantas altas com folhas pontiagudas chamadas tabuas. As pessoas costumavam jogar cachorros e gatos recém-nascidos nesse pântano para diminuir o número de bocas para alimentar. O vento uivava e, para mim, era como se as almas dos animais mortos viessem me assombrar. Toda vez
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A recepção gentil daquela senhora me fez imaginar que seria assim que uma mãe agiria para reconfortar o filho, e as lágrimas escorreram pelo meu rosto.
que o lampião ameaçava apagar por causa do vento, eu me agachava e cobria o fogo, como se fosse meu salva-vidas. Depois de mais outra subida, cheguei até a estrada principal que levava à casa do Nishimi-san, a dois quilômetros da minha. A estrada tinha pés de café em ambos os lados, o que dificultava a visibilidade. Quando me aproximei da casa, reconheci a voz de meu pai. Fui recepcionado pelo latido de muitos cães. Meus pés ficaram paralisados. A senhora Nishimi saiu dos fundos com uma lanterna na mão: — Tem alguém aí? Sem saber o que falar e com medo que os cães me atacassem, apenas agitei o lampião. Quando comecei a andar, os cachorros começaram a latir novamente. Ao levarem uma bronca, paravam, mas recomeçavam logo em seguida. A sequência se repetiu algumas vezes até eu finalmente alcançar a casa. A obasan (senhora) se abaixou com a lanterna na mão. — Nossa! De noite… a esta hora… Você é o filho do Ikesaki-san, não é? Veio aqui buscar o pai com apenas essa idade… Seu pai está aqui. Entre! Em casa, minha avó e irmãs trabalhavam na roça e mal conseguiam cuidar das tarefas domésticas. A recepção gentil daquela senhora me fez imaginar que seria assim que uma mãe agiria para reconfortar o filho, e as lágrimas escorreram pelo meu rosto. Ela abriu a porta da sala de visitas. Ao entrar, reconheci as costas de meu pai, que estava bebendo com Nishimi-san desde o começo da tarde. Ao se virar, ele deu uma rápida olhada em minha direção e gritou, embriagado: — O que veio fazer aqui? Vá embora! Ao escutar essas duras palavras, fiquei imobilizado na porta sem saber o que fazer, com medo de ter que percorrer o caminho de volta novamente. Subitamente senti-me minúsculo. — Esta criança veio até aqui sozinha neste frio… na escuridão… e andando no mato. Não dê bronca no pequeno – defendeume a gentil senhora. — Você vai me dar sermão agora? – o meu pai começou a implicar com ela. — Calma, calma… Venha, menino. Sente-se aí e tome um chá quentinho. Ela devia estar impaciente depois de aguentar meu pai e o marido, que ficaram bebendo a tarde inteira. Sem mostrar qualquer ressentimento, simplesmente tentava acalmar meu pai. Nishimi-san ficava quieto sem tomar o partido de ninguém. Toda vez que a obasan ou o meu pai diziam alguma coisa, ele só balançava a cabeça concordando. Depois de algum tempo, o meu pai pareceu ter ficado sóbrio: — Está certo. Entendi. Vou embora. Vamos voltar para casa, Hirofumi – e se levantou da cadeira. Depois de terminar os cumprimentos, meu pai segurou minha mão com firmeza. Suas mãos me inspiravam confiança. O vento que uivava na escuridão já não me assustava mais, mesmo quando o fogo do lampião ameaçava apagar. Ao receber a atenção de meu pai, voltei para casa feliz, esquecendo as lágrimas que derramei.
Para que serve um sofá? Raramente saía de casa para outros lugares. Por isso, fiquei eufórico quando meu pai fez um convite. — Você quer ir para a cidade amanhã? Por ser uma ocasião especial, acordei ainda mais cedo, busquei o cavalo no pasto, alimentei-o com milho, dei água e escovei
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suas costas. Quando meu pai acordou, já estava tudo pronto. Em Bastos, existia um lugar para estacionar carroças. Os cavalos ficavam amarrados, esperando o dono terminar seus afazeres nessa parada sem cobertura. Dava pena ver os animais debaixo daquele sol. Eu não estava em melhor situação, pois também costumava ficar lá, próximo ao cavalo, esperando o meu pai voltar. Aquele dia foi diferente. — Você quer vir comigo? Nem precisava perguntar. Já estava feliz por ter vindo à cidade e fiquei ainda mais por deixar o ponto das carroças para trás e acompanhar o meu pai. Fomos a uma loja, onde ele comprou uma roupa e cobertor para bebê. Como eram pequenos demais para o meu irmãozinho, não entendia o motivo da compra. Saindo da loja, ele se dirigiu ao bairro residencial, onde parou em frente a uma casa com um quintal de cinco metros de largura e bateu palmas com força. — Oh, Ikesaki-san! Que bom que veio. Entre. Não faça cerimônia – disse Koike-san, o dono da casa. Mesmo tendo 12 anos, era a primeira vez que via uma “residência”. O piso de madeira contrastava com o chão de terra batida da minha casa. A madeira vermelha de boa qualidade brilhava graças à cera. Pela primeira vez, vi um sofá na minha frente. “Será que é uma cama?”, pensei. Só descobri a função porque o dono disse: — Sentem-se. A mesa redonda do centro da sala foi uma incrível descoberta. Até então, achava que todas as mesas eram retangulares. Meu pai e o dono da casa sentaram-se diante dela, mas eu fiquei no canto da sala. Quando olhei para cima, vi um forro liso em vez das telhas de barro. “É como se estivéssemos dentro de uma caixa”, pensei, curioso em reparar em outras diferenças em relação à minha casa. Eles conversavam sobre assuntos de adulto e não havia nenhum espaço para uma criança entrar na conversa. — Arrisquei pensando que seria desta vez. Mas foi outra menina. Cinco filhas, dá para acreditar? Cinco. Por isso eu dei o nome de “Sueko” (última menina) para ela – disse Koike-san. Uma das filhas, que parecia ter quase a mesma idade que a minha, trouxe chás. — Esta é minha filha mais velha. Tenho quatro mais novas além dela, só meninas. Meu pai estava visitando Koike-san para parabenizá-lo pelo nascimento da filha. Depois de um tempo falando sobre seu infortúnio em produzir apenas meninas, ele mudou de assunto. — Já fiz muitas coisas na vida, mas escrever um diário foi uma das mais difíceis. Parece fácil, mas não é, não. Meu recorde pessoal foi três anos. Por isso, penso em casar uma de minhas cinco filhas com qualquer rapaz que tenha escrito um diário todos os dias durante mais de três anos sem impor nenhuma outra condição. Enquanto Koike-san jogava essas conversas fora, a mesma filha voltou trazendo doces. — Venha, experimente! – disse ele, dirigindo-se para mim, que estava “escondido” no canto do sofá, envergonhado. A história do diário grudou em minha cabeça. Fiquei curioso em saber se seria capaz de fazer algo que ele considerava tão difícil. Quando chegamos até o centro de Bastos, o meu pai perguntou se eu queria alguma coisa. — Aproveite, já que viemos até aqui. Tem certeza de que não quer nada? — Quero um diário! – disse, tomado por uma súbita coragem. Meu pai arregalou os olhos. Minha determinação era sustentada por sentir que “se eu fraquejar e parar de escrever o diário, serei uma pessoa fraca”. Quando morava em Bastos, escrevia em japonês e, depois que fui morar em São Paulo, passei a escrever em português. O diário que comecei a escrever naquele dia continua sendo feito até hoje.
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Reprodução de foto da Associação dos Jovens do núcleo Esperança, onde Ikesaki (indicado na seta) morava com a família em Bastos
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Aos 12 anos, não tinha opção a não ser obedecer. Um colega e eu carregamos a pesada lata de 18 litros de querosene até o pátio. O professor começou a escalar o monte de livros (...) Com uma expressão demoníaca, acendeu o fósforo e jogou sobre o papel, que começou a queimar rapidamente.
Queime todos os livros em japonês Nossa escola tinha sido construída com o dinheiro dos pais e do governo japonês. Como parte da nossa educação, o piso de madeira estava sempre brilhante porque os alunos passavam pano molhado. As salas de aula eram ornamentadas com uma bandeira brasileira, outra paulista, mais uma da cidade de Bastos e a foto do presidente da República. Um dos meus lugares preferidos era a biblioteca, cujo piso de madeira estava sempre encerado. No meio da sala havia um tapete, sobre o qual ficava uma magnífica mesa de madeira maciça com encosto alto. Sobre ela, uma agenda de capa preta na qual se escrevia o nome, título e a data, caso alguém quisesse pegar um livro emprestado. As prateleiras, que ocupavam uma parede inteira, estavam repletas de livros japoneses. A parte de cima do móvel era composta de armários com portas de vidro; a de baixo tinha prateleiras simples e, no meio, ficavam suportes para expor livros. Um deles ainda me traz recordações especiais: o atlas geográfico, que continha explicações detalhadas dos países, continentes e até dos mares. Nele constavam o Mar Negro e o Mar Mediterrâneo, a temperatura da superfície da água e sua variação conforme a profundidade, as correntes do mar e um mapeamento de onde vivem os peixes, divididos em regiões. A biblioteca era o lugar que me fazia perceber como o Japão distante era um país avançado. A vida de estudante em Bastos foi uma sucessão de tormentos, a começar pelo azar de ter virado o cozinheiro do professor na segunda série, o que me fez repetir de ano. Na terceira série, estudei na mesma classe da minha irmã mais velha. Meu pai comprou apenas o livro da minha irmã. Quando o professor viu que estava sem o livro, me deixou de castigo. Tive que escrever “eu preciso comprar o livro” em seis páginas do caderno. No fundo, não gostava muito da escola. Não chegava a odiá-la, pois havia matérias que eu adorava, principalmente caligrafia, em que sempre tirava nota máxima. Depois matemática. Enquanto outras crianças ficavam na dúvida, eu resolvia rapidamente problemas como “quantas garrafas são necessárias para esvaziar um barril”. Eu costumava guardar meus cadernos em um depósito que havia em casa. Muitos anos mais tarde, fui procurá-los, mas não encontrei. — Ah, queimei tudo… – disse meu pai. Talvez ele tenha se livrado do material no período de guerra, com medo da polícia nos prender por guardar livros em língua das nações inimigas. Só quem viveu de perto aquela fase sabe como foi. O professor de português ficou ainda mais violento. Ele batia na cabeça das crianças com a régua de madeira, como se estivesse usando uma faca, deixando nossas cabeças machucadas. Quando ele estava mal-humorado, os alunos levavam muitos cascudos, tendo culpa ou não. Ele pegava o mastro da bandeira brasileira e acertava em quem se sentava mais atrás. Um tirano. Agia como se os japoneses não fossem gente. Revoltante. Como os estudantes preparavam o almoço dos professores, cheguei até a ter ideias mórbidas de misturar cianureto na panela, mas não levei a iniciativa adiante, pois não tinha talento para ser um assassino. De qualquer forma, essa experiência me deu a determinação de não querer ficar para trás dos gaijins (não japoneses). Quando a notícia do ataque japonês a Pearl Harbor em 1941 chegou ao Brasil, o professor insultou o Japão na nossa frente. No fim da aula, chamou os alunos: — Tragam os livros da biblioteca no pátio! – Os livros foram amontoados no chão. Já prevendo o que estava prestes a acontecer, me perguntava o que nós tínhamos feito de tão errado. Que mal os japoneses tinham feito ao Brasil? O professor se dirigiu a mim, como se estivesse lendo meus pensamentos:
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— Vá até a loja e traga duas latas de querosene! Aos 12 anos, não tinha opção a não ser obedecer. Um colega e eu carregamos a pesada lata de 18 litros de querosene até o pátio. O professor começou a escalar o monte de livros. O amontoado escorregava e se desmanchava, dando a ele um pouco de trabalho e, ao atingir o topo, espalhou gasolina sobre os livros. Com uma expressão demoníaca, acendeu o fósforo e jogou sobre o papel que começou a queimar rapidamente. Não satisfeito, ainda gritou: — Peguem o resto dos livros e joguem na fogueira durante a minha folga do meio-dia. Como última forma de resistência, carregamos os livros devagar e aos poucos. Quando o professor voltou, ficou furioso. Foi à biblioteca, apoiou um pé-de-cabra contra a estante, derrubando os armários envidraçados. — Agora, levem! – disse, batendo na cabeça dos alunos menores que não podiam contestar. A raiva dos brasileiros parecia generalizada. Antes desse episódio na escola eu já havia testemunhado outro incidente no sítio do meu pai, onde trabalhavam quatro famílias de colonos. Uma delas era a de Misael, um caboclo alegre que tocava violão ao entardecer enquanto a mulher dançava. Quando a guerra começou, começaram a faltar bens de consumo. Meu pai comprava mantimentos de fornecedores irregulares pagando ágio, compartilhando entre os colonos. — Os gaijins não vivem sem óleo. Também precisam de açúcar e farinha, mas nós, japoneses, podemos viver se tivermos sal disponível. Eu separava e entregava os mantimentos, sempre dando prioridade aos colonos. Fiquei responsável pela distribuição porque era o único capaz de conversar em português e fazer a contabilidade do dinheiro que as famílias ficavam devendo. A família de Misael era animada, mas não se esforçava na roça. Nossa família acreditava que, numa plantação, o importante era fazer o trabalho no tempo certo. Porém, a família de Misael arrancava as ervas daninhas de qualquer jeito, sem pensar se estariam prejudicando a colheita futura. Assim, continuariam sendo colonos para sempre. Um dia, quando voltei da escola, encontrei Misael colhendo verduras da horta de minha família. — Você não pode mexer nas nossas coisas só porque minha família não está aqui olhando. — Por que não voltam para o Japão, hein? Nós só estamos pegando aquilo que pertence ao nosso país. Os casos de colonos que vendiam as colheitas dos japoneses viraram rotina. Denunciar à polícia seria pior. O normal era um japonês ser preso sob a alegação de ter ofendido e humilhado algum brasileiro. Um ar pesado envolvia Bastos.
O som da guerra Quando a guerra começou, ainda não se sabia qual seria o desfecho. As informações em língua japonesa pararam de circular na colônia. Nesses momentos de apreensão, os vizinhos se reuniam no sítio para ouvir a opinião do meu avô Tomojiro. Minha tarefa era improvisar assentos com toras de madeira para formar uma roda. — O Japão vai ganhar? – perguntavam a ele. Não havia ninguém em Bastos que tivesse visitado tantos países e que soubesse falar inglês como meu avô. Ele também entendia expressões de origem chinesa e explicava seus significados para os outros traduzindo em japonês da época. Queria saber como ele conhecia tantas histórias de fora do Japão. Foi a minha avó quem resolveu o mistério:
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Quando a guerra começou, ainda não se sabia qual seria o desfecho. As informações em língua japonesa pararam de circular na colônia. Nesses momentos de apreensão, os vizinhos se reuniam no sítio para ouvir a opinião do meu avô Tomojiro. Minha tarefa era improvisar assentos com toras de madeira para formar uma roda.
— Um dia, seu avô viajou para o exterior, deixando para trás nossos dois filhos ainda pequenos, o seu pai e a sua tia, e eu. O seu avô comprou três veleiros e partiu dizendo que encontraria pérolas e ficaria rico. Ele contratou marinheiros e viajou pelo mundo. Ficou sem dar notícias para a família durante dez anos. E assim como sumiu, voltou de repente. Disse que ganhou muito dinheiro, mas que perdeu em acidentes, ataques de piratas e indenização aos familiares dos homens que morreram. Acabou ficando sem um tostão. À medida que a guerra se agravou, os vizinhos procuravam meu avô com mais frequência: — Mesmo com a Alemanha se rendendo, o Japão vai ganhar, não vai? — Lá na Alemanha vi uma plantação de batatas muito, muito grande. Um velho com a barba comprida puxava a enxada sem parar. Não parou de trabalhar mesmo quando fui cumprimentá-lo. “Me perdoe, é que eu prometi a mim mesmo que nunca iria parar para um descanso enquanto não terminasse de capinar”, disse. Ao ver que eu era japonês, pediu novas desculpas. O velho explicou que estava tirando as ervas daninhas antes que as raízes ficassem muito firmes. Depois soube que ele era um cientista. Os senhores entendem aonde eu quero chegar? Dando uma pausa, meu avô olhava para a cara de cada um para se certificar de que todos estavam interessados no desfecho da sua história – e prosseguia: — O Japão ainda vai demorar mais 10 ou 20 anos até que um cientista pegue na enxada ou que um agricultor se forme na faculdade. O Japão está muito mais atrasado do que a Alemanha, que se rendeu na guerra. Com isso, vocês poderão imaginar qual o fim que o Japão deve levar. Um dos ouvintes disse: — Mas o Japão é o país dos deuses! — Não importa o que eu argumente, vocês estão convencidos de que o país vai vencer. E só vão escutar minhas palavras quando eu disser que o Japão vai vencer. Não direi se o país irá ganhar ou perder. Meu avô acreditava que o Japão precisava negociar rapidamente um acordo de paz. — O Japão está se arriscando demais – no fim, o receio dele se mostrou justificado. Meu avô tinha o respeito não só dos adultos. Vizinha à nossa casa, morava uma linda garota chamada Shizuko-chan, que era mais velha do que eu, mas sempre foi apegada ao meu avô desde pequena. Embora nunca tenha tocado no assunto com eles, desconfio que ela e meu irmão mais velho tenham sido namorados. Meu irmão e eu matávamos as saúvas que atacavam a lavoura com um equipamento termonebulizador que injetava o inseticida nos formigueiros. Tinha que tampar os buracos para matar a célula matricial, onde as formigas se reproduziam. Tampando os buracos, as saúvas não teriam como escapar. Durante a aplicação, meu irmão me mandava ficar esperando e seguia para o cafezal do vizinho, onde Shizuko-chan estava trabalhando… E por lá ficava durante algum tempo. Os pais da Shizuko-chan mandaram-na subitamente para São Paulo, onde, mais tarde, ela conheceu o diretor japonês de uma empresa famosa, que começou a namorar. Para os cidadãos de Bastos, São Paulo era a cidade dos sonhos. Se uma moça se casasse com alguém da capital, era alvo de olhares de inveja. Por volta de 1946, Shizuko-chan veio até nossa casa anunciar o casamento e convidar meu avô. — Meu querido vovozinho, eu vou me casar. Gostaria muito que comparecesse na nossa cerimônia e que sentasse ao nosso lado. Meu avô nem tinha roupa apropriada para comparecer a um casamento, mas ele deu um jeito de participar. Morreu menos de uma semana depois daquela cerimônia, aos 76 anos.
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Imagens manipuladas mostrando que os americanos haviam se curvado aos japoneses circularam na colônia japonesa “comprovando” a vitória japonesa na guerra
A derrota japonesa e a divisão da colônia Em 15 de agosto de 1945, o Japão tornou-se o último país do Eixo a aceitar a derrota na Segunda Guerra. Alemanha e Itália já haviam capitulado meses antes. A rendição nipônica entrou para a história por ter sido declarada diretamente pelo imperador Hirohito, que foi obrigado a renunciar à condição de divindade em emissão via rádio. Ele admitiu impotência diante do efeito devastador das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki. Mesmo assim, um grupo de imigrantes japoneses no Brasil recusou-se a aceitar a verdade. Para eles, o imperador continuava a ser um deus e o Japão não tinha sido derrotado. Afinal, o arquipélago nunca havia perdido uma guerra até então. Os próprios noticiários japoneses, ouvidos aqui por interceptação de rádio, maquiavam o cenário real. O acesso às notícias em idioma português era escasso e compreendido por poucos, o que dava margem a muitas dúvidas, boatos e teorias conspiratórias em relação às informações que chegavam. Somente uma pequena parcela mais esclarecida da colônia, como o avô de Hirofumi Ikesaki, aceitou que o Japão havia de fato perdido a guerra. Os mais corajosos ainda tentavam dissuadir os compatriotas de que a vitória era ilusória. Essa situação levou a uma divisão da comunidade entre “derrotistas” (makegumi) e “vitoristas” (kachigumi). Os primeiros eram considerados “traidores da pátria” e passaram a ser perseguidos, ameaçados e até assassinados. 77
Quando Ikuta Mizobe foi morto, a polícia saiu à procura do assassino. Testemunhas disseram tê-lo visto fugindo em um cavalo branco em direção à colônia da seção Esperança, onde morávamos. Naquela época, os vizinhos tinham um código para se comunicar em casos de emergência: batiam em latões para avisar que estavam em apuros. Munidos de paus, foices, bambus, todos se juntaram e foram em direção ao som.
Mate os traidores da pátria Quando Ikuta Mizobe, diretor da Cooperativa Agrícola de Bastos, foi morto, a polícia saiu à procura do assassino. Testemunhas disseram tê-lo visto fugindo em um cavalo branco em direção à colônia da seção Esperança, onde morávamos. Os lavradores não tinham armas, nem espingardas de caças. Os vizinhos tinham um código para se comunicar em casos de emergência: batiam em latões para avisar que estavam em apuros. Na noite em que Mizobe foi morto, o barulho dos latões estava ensurdecedor. Algo grave estava acontecendo. Munidos de paus, foices, bambus, todos se juntaram e foram em direção ao som. A polícia estava fazendo uma revista em um dos sítios vizinhos, onde morava a família Arai, que possuía um cavalo branco. Arai-san mostrou que o dorso do animal não estava suado, sinal de que o arreio não fora usado. Não contente, a polícia entrou na modesta casa, revirou os armários e entrou no quarto, onde só encontrou um assustado menino de cinco anos. Sem conseguir nada de comprometedor, desta vez, a polícia finalmente deixou a família em paz. Naquela época, bastava ter olhos puxados para ser considerado suspeito, o que aumentava ainda mais o clima de insegurança na colônia. Em 2 de junho de 1946, um vizinho foi morto por outro tokkotai, como eram chamados os integrantes da Shindo Renmei. Desta vez, a vítima foi o ex-coronel Jinsaku Wakiyama, que costumava usar o traje de gala do Exército Imperial para passear na cidade, mas tinha aceito a derrota japonesa na guerra. Os assassinos se entregaram para a polícia após cometerem o crime. Eu também fui testemunha da divisão entre kachigumi (vitoristas) e makegumi (derrotistas) em Bastos. Os japoneses sempre tiveram espírito de grupo. Para qualquer situação. Quando alguém precisava construir uma casa, por exemplo, fazia mutirões. Mesmo não sendo marceneiros, erguiam a construção apenas com o material disponível no mato. As colunas e a cumeeira eram feitas com as árvores extraídas da floresta. Já os caibros, de tronco do coqueiro cortado ao meio. A cobertura recebia uma gramínea chamada sapé. O telhado reto não ficava atrás das coberturas feitas com madeira industrializada. Além dos homens que faziam o trabalho pesado, as mulheres também se reuniam para preparar a comida. Tudo muito organizado. A nossa família também participava dos mutirões. Eu descascava as árvores verdes derrubadas que ainda não estavam completamente secas para evitar cupins. Na mesma função estava um jovem chamado Yamashita, morador de outra seção de Bastos, mais velho do que eu. Na hora do almoço, as turmas eram divididas por hierarquia. Primeiro os chefes de família, depois os jovens, e a idade decrescia até chegar a vez das crianças. Por último, as mulheres. Enquanto almoçava, Yamashita me chamou num canto do barracão: — Eu sou tokkotai! Você vai ser um tokkotai! — O que é tokkotai? — Tem de matar os traidores da pátria. Matar! — Eu não consigo matar uma pessoa! — O que está dizendo? Assim você está sendo um traidor do Japão. Cadê o seu yamato damashi (espírito japonês)? – disse, segurando-me pela camisa, chacoalhando-me para frente e para trás. Rapidamente tirou a camisa e me mostrou a bandeira japonesa enrolada no corpo. E batendo no peito com orgulho e arrogância, disse: – Esse é o espírito japonês! Vamos matar todos os traidores da pátria. Tenho uma lista. Vá até a casa de um deles e investigue tudo que ele faz. Quando tiver uma brecha, mate-o! Vou trazer uma pistola para você. Em seguida, encarou-me com dois olhos fulminantes de quem seria mesmo capaz de atirar com uma pistola e partiu. A partir daí, toda vez que o avistava, despistava para não encontrá-lo.
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Shindo Renmei e assassinatos na colônia japonesa de Bastos
Junji Kikawa, líder da Shindo Renmei (acima); Ikuta Mizobe, primeiro japonês morto em Bastos (acima, à direira); lista com os nomes dos “traidores da pátria” (à direita)
Jornais da época em português retratam a divisão na colônia japonesa
Iniciada em agosto de 1942, antes mesmo do final da Segunda Guerra, a Shindo Renmei (Liga do Caminho dos Súditos) era formada por imigrantes japoneses ultranacionalistas que exaltavam seu amor à pátria. Ao longo dos anos, a organização agregou diversas outras associações de cunho semelhante, contando com o apoio de mais de 100 mil sócioscontribuintes espalhados em 64 filiais nos estados de São Paulo, Mato Grosso do Sul e Paraná. Com o fim da Segunda Guerra, seus líderes e membros não acreditaram na rendição japonesa, iniciando uma campanha implacável - por vezes até violenta - para provar que o país não havia sido derrotado. A cidade de Bastos, no interior paulista, tinha uma das filiais mais ativas e radicais da Shindo Renmei. A cidade é, até hoje, um dos principais pólos de concentração de imigrantes japoneses e seus descendentes - na época da guerra, 7 mil dos 9 mil habitantes era nikkeis. Desses, metade fazia contribuições regulares à organização. A cidade recebeu então atenção especial das investigações policiais sobre as ações do grupo. Lá a facção fez sua primeira vítima fatal. Em 7 de março de 1946, o diretor da Cooperativa Agrícola de Bastos, Ikuta Mizobe, foi assassinado em sua casa com um tiro à queima-roupa nas costas. Mizobe havia dado a notícia da rendição japonesa para a comunidade. Apesar de saber que a informação não seria bem recebida por todos, sentiu-se na obrigação de divulgar o fato, provocando ira e indignação daqueles que acreditavam cegamente na invencibilidade nipônica. Dois meses após a morte de Mizobe, a Shindo Renmei de Bastos cometeu outros sete atentados na cidade, enviando pacotes com explosivos às residências de pessoas que consideravam “traidoras da pátria”. Em julho do mesmo ano, deixaram um casal ferido e alvejaram a casa de outra vítima, que escapou ilesa. Foi também em Bastos que a polícia descobriu a existência de uma estação de rádio clandestina da Shindo Renmei para a divulgação de notícias falsas. Havia ainda golpistas ligados à organização. Eles vendiam terrenos fictícios em ilhas do Pacífico - regiões que teriam sido conquistadas pelo Japão na guerra e passagens falsas para uma embarcação “oficial” que viria ao Brasil repatriar imigrantes japoneses. Segundo dados oficiais, a Shindo Renmei assassinou 23 pessoas e feriu mais de 100 nas regiões onde atuou. Após uma batida policial à sede do grupo em São Paulo, seus principais líderes foram presos e, em fevereiro de 1947, a organização foi oficialmente dissolvida.
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Fiquei internado no único hospital geral da cidade. Os carros funerários viviam entrando e saindo. Toda vez que via um deles, me perguntava se eu não seria o próximo. Só percebi que estava melhorando quando consegui comer papa de arroz.
O primeiro trabalho no comércio A vida na roça era puxada. Antes do dia clarear nossa família já estava de pé. Reunidos à mesa, tomávamos café da manhã. Vovó era quem preparava as marmitas que seriam levadas à lavoura. Antes de sair, minha obrigação era deixar a enxada bem amolada, pronta para o trabalho. Depois carregava um corote (barrilete de madeira que ajuda a manter a água fresca) de 20 litros pendurado no cabo da enxada. Uma rotina árdua, sem descanso, de sol a sol. Certa manhã, abri os olhos, mas minhas mãos e pernas estavam paralisadas. Fiquei muito tempo tentando me levantar. Meu corpo continuava imóvel. Meu desespero aumentava porque todos já estavam prestes a sair. Sabia que minha mão de obra era importante para minha família. Joguei-me da cama, arrastando-me até a copa. O piso de terra batida sujou minha roupa. Aos poucos, os movimentos foram voltando, mas o corpo estava completamente debilitado. Meu pai, que estava à espera do lado de fora, gritou: — Hirofumi, você não sabe que horas são? Todos já foram trabalhar. Não seja preguiçoso. Com muito esforço, fiquei em pé, troquei de roupa, e saí sem sequer tomar café. O corote parecia mais pesado do que nunca. O caminho de casa até a plantação começava plano, depois havia uma descida suave até que, no fim, uma ladeira íngreme. Comecei a suar frio. Não conseguia manter a firmeza do corpo. — Ande depressa, Hirofumi. — Otôsan, kitsukute shôganai. (Pai, estou exausto!) — Quem te ensinou essa palavra? Na sua idade, ninguém fica cansado. Quando superei a ladeira usando toda a energia, caí de cara no chão. Quem se assustou na hora foi o meu pai, que mediu meu pulso e carregou-me de volta para casa. Assim que chegamos, trouxe o cavalo para puxar a carroça, forrou-a com almofadas para me levar até o hospital, na cidade de Bastos. Foi só aí, deitado na carroça, que me conscientizei de que a doença era grave. Aquele pai bravo havia mudado completamente de atitude e não parava de perguntar se eu estava bem. Após vários exames, o médico diagnosticou uma séria doença gastrointestinal. Tomei soro pela veia por três dias. Fiquei internado por 45 dias. Enquanto permanecia deitado, assisti um triste espetáculo pela janela: as folhas da trepadeira foram ficando amareladas até caírem completamente. “Será que a minha vida vai acabar como aquela planta?”, pensava. Para piorar, os carros pretos funerários entravam e saíam com frequência. Toda vez que um deles passava, me perguntava se eu não seria o próximo. Eu tinha emagrecido 20 quilos e não tinha forças para nada. Só depois de vários dias, meu corpo passou a aceitar papa de arroz e, então, fui melhorando lentamente. Após receber alta, o médico convenceu meu pai de que eu deveria continuar em repouso na cidade. Ele consultou várias pessoas, e o Nagao-san, dono do comércio onde fazíamos compras, ofereceu trabalho e moradia. A loja só abria às oito da manhã. Mas, acostumado à vida na roça, acordava antes das seis para preparar o banho da família do Nagao-san, como forma de retribuir o acolhimento que recebi. Limpava a banheira por dentro e a enchia com seis latas de 20 litros da água do poço. A casa tinha luz elétrica, mas o banho e o fogão eram aquecidos a lenha: uma mais fina, cortada com serrote, e outra mais grossa, partida só com machado. Eu mesmo rachava as madeiras. O barulho das machadadas incomodava o morador da casa vizinha, o Fujiwara-san. — Quer parar de fazer tanto barulho logo de manhã? – reclamava ele. — Me desculpe, mas trabalho na loja o dia inteiro...
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Os banheiros dessa época eram construídos do lado de fora das casas. As privadas não passavam de buracos no chão de aproximadamente um metro de diâmetro com três metros de profundidade. Certa vez, o Fujiwara-san deixou a carteira cair no buraco: — Por favor, você é a única pessoa que pode me ajudar – e me implorou: – poderia recuperar a minha carteira? – e eu tive de descer na fossa com uma corda presa a uma roldana, segurando uma lanterna. Por mais que tivesse emagrecido, fiquei inseguro se o Fujiwara-san aguentaria o meu peso. Quanto mais descia, mais o cheiro ficava insuportável. Sentia dificuldade de respirar. Equilibrando-me para não cair, enfiei a mão para localizar a carteira. O Fujiwara-san ficou muito agradecido depois disso – e parou de reclamar do barulho das machadadas de manhã. Após preparar o banho da família, fazia faxina da loja antes da abertura aos clientes. Deixava as prateleiras sempre limpas e organizadas. Nagao-san nunca me obrigou a nada. Fazia parte da minha educação, do que eu achava certo. Naquela época, com o fim da guerra, Bastos e muitas outras cidades sofreram com o desabastecimento de produtos básicos como farinha, açúcar, óleo de cozinha e querosene para as lamparinas. Fazia-se racionamento dos mantimentos para que todos pudessem comprar. Mas havia um funcionário arrogante da prefeitura que trazia uma garrafa de cinco litros e dizia: — Encha com óleo. — Só vendemos um litro – replicava. — Nós é que ditamos as regras por aqui – dizia, enquanto saia com a garrafa cheia, sem pagar a conta. O Nagao-san, que não ficava no balcão, escutava a gritaria dos fundos da loja. Era uma época difícil, a Justiça não funcionava para os japoneses, havia muito preconceito. Não adiantava denunciar para a polícia. Por isso, quando fechava a loja, ele sempre recomendava não abrir a porta para nenhum gaijin. Eu dormia em uma cama improvisada sobre os sacos de farinha amontoados no depósito da loja. Um tecido de cânhamo recobria os sacos sobre os quais colocava as almofadas. Conforme a farinha era vendida, minha “cama” ficava mais baixa. Às vezes, os ratos passeavam sobre meu corpo enquanto dormia, mas não me importava. O problema era quando as ratas entravam no cio dando guinchos sem parar. Certa noite, perto de uma hora da madrugada, fui acordado pelo barulho de alguém batendo na porta do depósito. Nagaosan havia saído para fazer compras em Marília e Bauru – e demoraria para voltar. Aproximei-me sem fazer ruído. Pela fresta na parte de cima da porta, pude reconhecer um quepe, bastante utilizado pelos motoristas de caminhão. Assim que o vi, o homem começou a falar. — Não precisa desconfiar, não. Viemos entregar farinha. O homem parecia saber que eu estava ali. Não havia telefone na época e as entregas eram feitas sem nenhum aviso prévio. Nem todas as mercadorias que estavam em falta na época vinham por vias legais. A farinha de trigo era uma delas. Abri a porta. Espiei. Cinco caminhões carregados estavam parados em frente ao depósito. — Por favor, vocês poderiam me ajudar um pouco? Eu estava doente... O motorista estava com pressa, mas não queria ajudar. Apenas descarregava o saco de farinha na minha cabeça. Como a pilha teria de ficar bem alta, empilhava as sacas formando uma escada. Precisava atirar o volume no chão para ele ficar na posição correta de armazenamento. O problema é que, se continuasse carregando um de cada vez, não daria tempo. — Ei, coloque mais um em cima da minha cabeça. Eu estava pesando apenas 50 quilos, recém-saído do hospital, e estava carregando 100 quilos de farinha de trigo na cabeça. Não dava para arremessá-las da cabeça usando a força dos braços. Eu jogava na posição correta abaixando a cabeça. Já estava
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A loja abria às oito. Eu acordava às seis para limpá-la. Apenas desejava retribuir o acolhimento de Nagao-san. Mesmo debilitado, programei-me para que todas as prateleiras ficassem limpas. Antes preparava o banho da família dele. Limpava a banheira e a enchia com seis latas de 20 litros da água do poço.
encharcado de suor e com a respiração ofegante. Ainda assim, faltavam muitas sacas para serem descarregadas. — Ei, vá mais depressa. Se nos pegarem, vamos pra cadeia! Apressado pelo motorista e com medo da polícia, disse, desafiando a mim mesmo: — Mais um, mais um – até chegar a cinco sacas, totalizando 250 quilos. Mal conseguia mexer os olhos, e o corpo começou a tremer involuntariamente, como se o pescoço fosse quebrar. Foi o teste da minha vida. Quando finalmente acabei todo o serviço, joguei-me exausto em cima da pilha de sacas. Para tirar a sujeira e o suor, “tomei um banho” com um balde de água do poço. Mal tive tempo de descansar, pois já estava quase na hora de levantar. Apesar de todo esforço para descarregar sem chamar atenção, quando abri a loja havia uma fila que dobrava a esquina para comprar a farinha de trigo.
Venda tudo, vamos com você Após três meses trabalhando na loja do Nagao-san, senti que tinha descoberto minha vocação no comércio. Aquilo se encaixava em mim. Na família japonesa, o segundo filho não tem direito a nada. Por isso, queria seguir meu próprio destino. Mas quando voltei para casa, fui recebido por uma notícia que me deixou chocado. Meu pai revelou que planejava vender tudo e se mudar para Maringá, no Paraná, para recomeçar na lavoura. — Bastos tornou-se um lugar muito perigoso para os japoneses. Somos mandados para a cadeia por qualquer motivo. Se formos até Maringá para desbravar uma nova terra, não vamos ter esse tipo de problema. Como o período do plantio se aproxima, vamos ter de nos apressar. Não concorda comigo? Nada respondi, mas meu pai continuou a falar. — Você não disse que conhece o fazendeiro Macedo, que estava interessado em comprar um sítio? Freguês da loja do Nagao-san, Macedo era um fazendeiro que enchia um caminhão de mercadorias todos os meses. Corpulento, quase dois metros de altura, tinha barbas compridas e usava um chapéu de abas largas. Tinha uma aparência que intimidava os outros, mas, ao conversar, revelava um lado bem amigável. Toda vez que parava na loja, enchia uma caneca de vinho e bebia num gole só. Enxugava o bigode com o dorso da mão e, logo em seguida, já estava completando a caneca novamente. Quando a primeira garrafa esvaziava, ele pedia outra em voz alta. Ele bebia com tanto gosto que levei seis garrafas do mesmo vinho quando voltei para casa para dar ao meu pai, seus amigos e vizinhos. Eu não queria continuar na lavoura. Embora na loja do Nagao-san também houvesse muito trabalho, era um paraíso comparado à vida no sítio, onde a terra parecia queimar. Eu tinha medo de levar uma surra do meu pai se o contrariasse. Por isso, não sabia o que responder. Apenas balançava a cabeça negativamente sobre os planos de mudança a Maringá. — Você ficou desobediente depois de morar um tempo na cidade. Conhece a expressão “oya fukô”? Significa “desobediente aos pais” e se refere a você. Existem famílias que perderam o contato com entes queridos, e a nossa, felizmente, não passou por tamanho infortúnio até hoje. É uma grande decisão que estou tomando e é assim que você reage? – gritou o meu pai. Embora tenha aprendido muitas coisas novas na loja de Nagao-san, o que mais me atraiu foi conhecer o mecanismo do comércio: comprar produtos em grande quantidade no atacado e revender cada unidade com lucro aos clientes. Há sempre dinheiro vivo circulando. Como a loja era pequena, eu cuidava da entrada e saída de mercadorias, acompanhando todo o movimento de dinheiro da loja. Sinceramente, aquilo era a coisa mais divertida que eu já tinha conhecido. Não aguentava mais ser filho de lavrador. Queria ser comerciante. A tristeza e a raiva do meu pai ao escutar a minha recusa eram fáceis de entender. Ele dependia de mim para continuar a
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Comércio japonês alimenta as cidades
Em Bastos, onde Hirofumi morava, havia japoneses que se dedicavam ao comércio, como o bar da foto acima. Em São Paulo, as lojas de secos e molhados ofereciam uma variedade maior de produtos (abaixo)
Nas cidades do interior, a atividade comercial partia de pequenos armazéns. Lá encontravam-se moradores de diversas localidades para conversas informais regadas a bebidas, vendidas e consumidas ao balcão. A movimentação de gente levou ao surgimento de outros estabelecimentos ao redor, como farmácias, barbearias, bares e pensões. As aglomerações logo dariam origem a vilas e cidades. Era o início da urbanização da imigração japonesa no interior. Na maioria das cidades do Sudeste, as atividades comerciais eram exercidas por sírio-libaneses. Só nos locais com muitos imigrantes japoneses, distribuídos pelo interior de São Paulo e norte do Paraná, os nikkeis controlavam o comércio local. Aventuravam-se nesse ramo os sitiantes e agricultores independentes que já haviam acumulado certo capital na lavoura e dominavam razoavelmente o português. Havia, contudo, certa resistência contra a atividade - os primeiros imigrantes a viam como desonrosa, pois baseava-se na aquisição supostamente fácil de lucro obtido à custa do trabalho de outros. Com o tempo, os armazéns evoluíram para mercearias, que, além de produtos agrícolas, passaram a comercializar itens de uso doméstico e artigos japoneses. Apesar das transformações, os nomes desses estabelecimentos permaneciam como “Armazém de Secos e Molhados” ou apenas “Secos e Molhados”. Os clientes expandiram-se também para clientes nãodescendentes. Faziam parte da vida urbana nascente as pensões japonesas, que acolhiam imigrantes recém-chegados antes de eles seguirem para os núcleos de colonização. A maioria funcionava também como bares e restaurantes de comidas típicas, reunindo os conterrâneos que desejavam saber de notícias de outras cidades ou da capital. Ao redor das pensões surgiam casas especializadas em refeições rápidas japonesas, como udon (macarrão grosso de trigo) e shiruko (sopa doce de feijão azuki com moti).
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O que mais me atraiu foi conhecer o mecanismo do comércio: comprar produtos em grande quantidade no atacado e revender com lucro. (...) Sinceramente aquilo era a coisa mais divertida que tinha conhecido (...) Não aguentava mais ser lavrador. Queria ser comerciante!
trabalhar na lavoura. Era eu quem fazia o registro das contas, desde o empréstimo feito ao “camarada” até o balanço com o rendimento da colheita, pois tinha aprendido português na escola. Nas manhãs de sábado, eu jogava no time de beisebol juvenil de Bastos. Antes do treino, saía para cortar lenha bem cedo. Não recebia ordens para fazer isso, mas agia como se fosse minha obrigação. Nishimi-san, amigo de meu pai, me procurou: — Hirofumi, você voltou rebelde da cidade? Seu pai está tentando criar uma nova vida no Paraná, fazendo um esforço para comprar um terreno grande onde a família inteira possa morar. Você está dizendo que não quer ir. Por que não quer ir? Por ser jovem, não tinha coragem de encarar nem retrucar. Ficava calado, apenas balançando a cabeça. Na semana seguinte, em nosso terceiro encontro, ele perguntou o que eu queria fazer. Finalmente tomei coragem. — Odisan (tio), pude ajudar no comércio durante 90 dias e descobri que a essência do comércio é vender as mercadorias adicionando um lucro para sempre obter ganho. A vida de agricultor é de sacrifícios. Quando a colheita é ruim, não se ganha. Mesmo quando a terra é generosa, a produção é alta, e os preços caem. O resultado de todo esse esforço são diversos anos sem obter nenhum lucro. — Ora, mas que criança atrevida querendo falar que nem adulto. Sabemos muito bem que existem riscos! Os adultos só sabiam se reunir, beber e lamentar a própria condição num concurso para ver quem era o mais infeliz: “Eu vim ao Brasil sonhando em voltar rico ao Japão, mas vejam só, amigos, como estou agora!” Não entendia por que continuar se esforçando por uma coisa que sabiam que não daria certo. — Então, Hirofumi, o que você quer fazer? – indagou Nishimi-san. — Quero ir para a cidade grande. Quero ir até São Paulo. — São Paulo? Você sabia que os japoneses estão sendo perseguidos em São Paulo? A situação também está muito perigosa. — Nishimi-san, vou de qualquer jeito. Só tenho passaporte japonês, mas eu irei até São Paulo nem que seja agarrado na carroceria de um caminhão. — O que pretende fazer sem dinheiro e teto? — Quero estudar! Se for preciso, limparei o jardim das casas ou lavarei pratos num restaurante, mas vou para São Paulo. Nishimi-san ficou me encarando calado. Após quatro ou cinco dias, estava afiando as enxadas, como sempre fazia antes de trabalhar na plantação. Meu pai saiu de casa cantarolando como se tivesse obtido uma boa notícia. Ele me olhava com um sorriso que parecia se fundir àquele céu matutino. — Vamos, Hirofumi. Vamos todos para São Paulo! – disse ele, com firmeza. — Como…? Papai, quando disse que iria a São Paulo, não me referia a todos. Não estava falando em nome da família! — Não permitirei que vá sozinho. A família inteira vai com você. Venda o terreno, a casa, os cavalos, as carroças, tudo.
Adeus, Bastos! Andei os cinco quilômetros que separavam minha casa até o centro de Bastos para pegar uma jardineira em direção à fazenda do senhor Macedo, o possível comprador das terras do meu pai. “Biii, biii”. O barulho da buzina indicava que a jardineira estava dando a volta na cidade, trazendo as pessoas da periferia da zona rural. Quando parou no ponto final, fui conversar com o motorista. — Esta jardineira passa pela fazenda do sr. Macedo?
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— Macedo… Ah, sim. Passo lá perto da “cabeceira”. Mas ainda vai estar meio longe. A jardineira só partiria às quatro da tarde – e ainda não eram nem nove da manhã. Sem dinheiro para o almoço, pedi para ficar esperando no banco, onde meus pensamentos se perdiam em descobrir como seria o futuro em São Paulo. Partimos no horário. O céu escureceu repentinamente. Quando o coletivo saiu do centro, a chuva já estava caindo torrencialmente. Diante de uma subida, a roda atolou na terra roxa. O motorista pisou no acelerador diversas vezes, mas o motor só rosnava. — O sr. tem corrente para enrolar no pneu? – perguntei. Ajudei o motorista e conseguimos vencer o morro. Já estava escurecendo quando passamos no meio da mata densa. Os galhos das árvores se projetavam, e eu tinha a sensação de que o ônibus estava atravessando um túnel na selva. A luz dos faróis parecia estar sendo engolida pela escuridão. A jardineira, que avançou por entre chuvas e trovões durante uma hora, parou do lado esquerdo da estrada. — Ei, japonesinho, é aqui. Essa estradinha estreita é o caminho que dá para a casa do Macedo. Tome cuidado. No instante em que pisei fora do carro, fiquei molhado até a cueca. Não tinha outra opção senão seguir em frente. A terra grudava na sola do sapato até virar uma bolota. O que vou fazer? As corujas que subitamente alçavam voo do chão me davam susto. A escuridão parecia não ter fim e só vislumbrava a estrada quando os raios iluminavam o céu. O único barulho que escutava era o som incessante da chuva e dos trovões. Sem perceber, estava recitando um mantra: “Namu Amida Butsu. Namu Amida Butsu…” Depois de mais ou menos uma hora, cheguei a uma plantação de algodão. Andei, andei, identifiquei a luz de uma lamparina brilhando do lado esquerdo. Quando um raio iluminou o céu, enxerguei uma estradinha. Parei de recitar mantras e só me apressei em ir em direção à luz, que de vez em quando sumia atrás de algum pé de algodão. Quando me aproximei, ouvi os latidos de um cachorro grande, o que chamou a atenção de alguém da casa. A porta da casa se abriu, deixando a luz escapar. Corri para me abrigar debaixo do telhado da casa, onde vi uma mulher negra segurando a lamparina. — Esta é a casa do sr. Macedo? — Ah, não. A casa do sr. Macedo é mais longe ainda. Aqui é só um cantinho da fazenda dele. Precisa seguir a estrada que pegou até chegar aqui, atravessar um riacho e um morro. Está bem longe. A casa do sr. Macedo é um casarão. É fácil de reconhecer. Durma antes de continuar. Se andar uns dois quilômetros pela estrada, vai encontrar um barracão onde o algodão colhido fica guardado. Ao chegar lá, arranquei toda a roupa molhada. Enterrei meu corpo no algodão e fechei os olhos. Logo, os insetos começaram a rastejar sobre o meu corpo. Vesti as roupas enxarcadas novamente, esperando o chuva passar. Sem dormir, parti antes do sol nascer. Atravessei o riacho e continuei andando. Quando o céu clareou, cheguei a um ponto onde dava para enxergar até bem longe. Atrás da plantação, vi uma mansão linda. Lá estava a casa do sr. Macedo… Meu coração e meus pés aceleraram. Ao parar na frente, um sr. negro alto saiu de casa com um guarda-chuva na mão. — Aqui é a casa do sr. Macedo? – berrei. — O sr. Macedo não está. O homem explicou que ele tinha viajado à Europa. E sem data prevista para voltar. Aquela informação me deixou atordoado. Fiquei um momento confuso, mas logo lembrei da jardineira que passaria às sete horas. Não havia mais nada a fazer. Corri o caminho de volta, sem me preocupar com as pedras ou as poças d’água. Atravessei o túnel de árvores e alcancei a estrada no tempo exato de ver a jardineira chegando. — Por acaso passou a noite aqui na estrada por causa da chuva? – perguntou o motorista ao me reconhecer. Contei o que
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Minha família seguiu viagem até São Paulo na carroceria apertada do caminhão, sem poder dormir direito, sacolejando na estrada em péssimas condições. Em Bastos, deixamos para trás os móveis que não couberam, as sepulturas de meu avô e de minha avó, e minha infância.
aconteceu, e ele me deixou dormir no banco. Depois que a jardineira parou no centro de Bastos, não tive outra opção senão andar mais cinco quilômetros para casa. Assim que me viu, o meu pai foi direto ao assunto: — Vendeu? Naquele instante, pela primeira vez, eu senti a limitação de meu pai e dos japoneses. Vender um terreno como aquele não era como se desfazer de um porco ou uma galinha. É impossível imaginar alguém comprando um terreno sem ao menos ver o local. — Ele está viajando pela Europa. Não sei quando vai voltar. Nem as pessoas que moram lá sabiam responder. — Mas eu já me despedi de nossos vizinhos. Todos prometeram ajudar a carregar nossas coisas no caminhão. Amanhã você vai contratar um caminhão. — Papai, nós vamos sem vender o terreno? — Deixei tudo por conta do Fukuma-san – disse meu pai. Meu irmão mais velho havia se casado com a filha da família Fukuma, que morava a umas três casas da nossa. No final, como não consegui vender a fazenda, o primogênito da família Fukuma, o Masanobu-san, ficou administrando-a do jeito que achasse melhor. — Papai, já temos lugar para morar lá em São Paulo? — Tem uma pessoa chamada Kaneko, que também veio de Amakusa. Ele está em São Paulo e irá nos apresentar um lugar bom. Por isso, precisamos nos apressar. Depois que voltei da casa do sr. Macedo, minha exaustão estava no limite. Finalmente pude colocar um pouco de comida no estômago: as sobras do jantar. Na manhã seguinte, meu pai me deu um trocado, e fui a pé novamente a Bastos para contratar um caminhão para carregar nossa mudança a São Paulo. Os seis motoristas japoneses da cidade recusaram o trabalho porque tinham medo de serem presos. Mesmo com o fim da guerra, o espírito antinipônico ainda era grande. As condições da estrada também não ajudavam. Peguei uma jardineira até a cidade vizinha de Tupã, cuja população era maior, perguntando por todos os lugares onde encontrar uma transportadora. Desci na avenida Tamoios, onde havia uma longa fileira de mangueiras. Na metade da descida, encontrei uma pensão com um cartaz que anunciava “sortido”, um prato que misturava sobras de comida e era tão barato quanto um sanduíche. — Tio, eu quero sortido, mas não tem “meio” sortido? – o homem começou a rir — Coma tudo. Pode pagar só metade. De barriga cheia, continuei em minha busca por um caminhão de mudança. Estava disposto a passar a noite na cidade até encontrar um. Entrei numa pensão de uma viela. Havia um quarto vago e comida barata. — Na verdade, eu vim de Bastos para fretar um caminhão para fazer a mudança até São Paulo. — Tente ir até uma oficina que fica na esquina. Fui imediatamente para lá, onde encontrei um motorista mexendo no seu caminhão velho e pequeno. — Ouvi dizer que tem um caminhão que poderia levar a mudança da minha família até São Paulo. — Para quando? — Se possível amanhã cedo! Onde está o caminhão? – Está olhando para ele. – Esse caminhão velho não aguenta fazer uma mudança. O homem se sentiu ofendido e bateu na carroceria:
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— Que é isso? Este caminhão é que nem eu. Muito resistente. — Tem certeza? — Ele não irá parar no meio do caminho. Está em ótimas condições. — Podemos partir amanhã cedinho? Como estava sem dinheiro, pedi para me deixar dormir na carroceria. — Eu arranjo um lugar para você dormir – e me levou justamente para a pensão que o indicara, que era de um parente dele. Ele me buscou antes do sol raiar. Quando cheguei em casa, todos os móveis de casa estavam amontoados em frente de casa cobertos com pano. — O que vamos fazer com um caminhão tão pequeno? Você devia saber quanta coisa nós temos em casa – disse meu pai aos gritos. Em vez de ficar indignado, minha primeira reação foi ficar incrédulo com a precipitação e falta de planejamento da minha família. Eles podiam muito bem ter esperado o caminhão chegar antes de tirar as coisas de dentro de casa. — Papai, ninguém de Bastos quis aceitar. Ninguém. Por isso fui até Tupã. Finalmente encontrei este homem que aceitou. Se não quiser, pode mandá-lo embora. Só vamos ter de pagar por ele ter vindo até aqui. Foi só aí que meu pai pareceu ter compreendido a situação. Mesmo com um irmão mais velho já casado, ele deu a missão a um moleque porque deve ter apostado que eu conseguiria. Meu pai vivia me dizendo: — Quando você promete fazer, você faz… Carregamos o que pudemos no caminhão e partimos. Minha família seguiu viagem até São Paulo na carroceria apertada do caminhão, sem poder dormir direito, sacolejando na estrada em péssimas condições. Em Bastos, deixamos para trás os móveis que não couberam, as sepulturas de meu avô e de minha avó, e minha infância.
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Cena da cidade de SĂŁo Paulo na dĂŠcada de 1950
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Capítulo 2
A vida em São Paulo 89
Os passos apressados, as roupas elegantes, bem diferente das pessoas do interior, deixavam-me intimidado. Quando cheguei ao topo da ladeira, a insegurança foi totalmente substituída pela determinação de alcançar o sucesso.
Caipira na cidade grande Às seis da manhã de um dia de março de 1947, em meio à garoa fina, nossa família chegou a São Paulo, sentada em um espaço apertado na carroceria de um caminhão atulhado de móveis. O caminhão estacionou em um posto de gasolina na esquina do Vale do Anhangabaú com a avenida Nove de Julho, conforme as instruções de um velho conhecido da família, Kaneko-san, dono de uma fábrica em São Paulo, que ficou de nos encontrar para nos levar até o bairro do Tremembé, onde iríamos morar. Olhei ao redor, mas não vi nenhum japonês. — São Paulo é um lugar perigoso. Um passo fora do caminhão e você estará andando lado a lado com o perigo. Fique aqui dentro – alertou o motorista. Enquanto esperávamos o Kaneko-san, olhei a expressão séria do meu pai, imaginando o que ele poderia estar sentindo, agora que estava prestes a recomeçar a vida na cidade grande. — Pai, vou subir a rua e ver se o Kaneko-san está por lá – disse, depois de mais de meia hora esperando. — Tá bom. Só tome cuidado. Estamos em São Paulo. Não pense que é como Bastos – disse ele, repetindo os conselhos do motorista. Desci da carroceria. Eu tinha pressa em ver a metrópole com meus próprios olhos. Deixei o caminhão para trás e subi pela rua Asdrúbal do Nascimento. Já era horário do rush. As pessoas com quem eu cruzava na ladeira pareciam cavalheiros e damas aos meus olhos. Os passos apressados, as roupas elegantes, bem diferente das pessoas do interior, deixavam-me intimidado. Quando cheguei ao topo da ladeira, a insegurança foi totalmente substituída pela determinação de alcançar o sucesso. Lá em cima, a rua Asdrúbal do Nascimento cruza com a avenida Brigadeiro Luiz Antônio, onde vi um bonde pela primeira vez, igualzinho aos cartões-postais. Fiquei parado, olhando, assustado, ao ver as pessoas penduradas nos estribos, com meio corpo para fora. “Então esta é a metrópole”, pensei. Mesmo abarrotado, fiquei surpreso com a facilidade com que o bonde vencia a ladeira. Quando o vagão passou na minha frente, faíscas saltaram do pantógrafo e das rodas de aço. No lusco-fusco da manhã, a centelha refletiu no asfalto molhado pela garoa. Como que atingido por um raio, fiquei paralisado ao perceber o poder da eletricidade. Naquele momento decidi que, se quisesse vencer na cidade, precisaria estudá-la. Apesar de assombrado com a agitação, senti uma coragem desconhecida crescer em mim e depositei minhas esperanças na energia efervescente da cidade de São Paulo. Lá embaixo, o Kaneko-san provavelmente devia estar esperando para nos levar até a nossa nova casa.
Vida no porão Recomeçamos nossa vida em São Paulo do zero. Descarregamos nossa mobília na “nova casa”: o porão da família Masuda, dona de uma tinturaria no Tremembé, na zona norte, e de quem seríamos empregados. Logo nos primeiros dias, descobrimos à custa de muita coceira que aqueles que trabalham numa lavanderia voltam para casa carregando pulgas das roupas dos clientes. Como a loja funcionava na parte da frente, a casa do Masuda-san estava infestada de pulgas que se escondiam nas frestas do piso de madeira. Na primeira tarde de sábado que minha família se mudou, sua esposa começou a lavar o piso para se livrar dos insetos.
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Cruzamento da avenida São Luiz com rua da Consolação, no centro de São Paulo, na década de 1950
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Na primeira tarde de sábado que minha família se mudou, sua esposa começou a lavar o piso para se livrar dos insetos. Como morávamos em um porão, o ar mal circulava pelo quarto, deixando a umidade acentuada. (...) Diante da situação, meu pai rezava mantras budistas todos os dias pedindo desculpas aos antepassados.
Apenas se esqueceu de um detalhe: nós. Como morávamos no porão, o ar mal circulava pelo quarto, deixando a umidade acentuada. De repente, a água começou a cair em cima de nossas cabeças por meio das frestas do teto de madeira. Fiquei assustado com aquilo: “Os japoneses de São Paulo são esquisitos e insensíveis em relação aos outros”, pensei. Para nos prevenir da molhadeira dos sábados, fazíamos uma tenda com lona, evitando que a água caísse sobre o ihai (tabuleta mortuária) da família Ikesaki. Diante da situação, meu pai rezava mantras budistas todos os dias pedindo desculpas aos antepassados: — Como sexto chefe da família Ikesaki, sinto-me envergonhado por morar em um lugar encharcado de água suja. Provavelmente o meu irmão mais velho devesse sentir o mesmo na condição de sétimo chefe da família. Como deixamos o sítio nas mãos da família da minha cunhada, tampouco tínhamos dinheiro. Eu sabia que essa situação humilhante se devia à minha decisão de vir a São Paulo. Ninguém jogou isso na minha cara, mas eu carregava sozinho o peso da responsabilidade nas costas. Ao mesmo tempo, sentia uma força de vontade indestrutível de que venceria na cidade grande. O excesso de umidade do meu quarto fazia com que eu tivesse uma tosse que não passava. Sem dinheiro para ir ao médico, caminhava cerca de cinco quilômetros até Cantareira, às cinco horas da manhã, respirando aquele ar puro, para cuidar da saúde por minha conta. A vida naquele porão durou cerca de três meses, até alugarmos uma casa na rua Almeida Mercês, 110, no Tremembé. A comida continuava insuficiente e não tínhamos roupas para vestir quando a madrugada esfriava. Quando lavávamos as poucas peças, estendíamos no quintal da frente. Como não havia ninguém durante o dia em casa, os ladrões as levavam tranquilamente do varal. Em Bastos, isso nunca havia acontecido. Nem mesmo quando saíamos para a roça sem trancar as portas. Foi algo inesperado para a nossa família. Mas também mostrava o quanto éramos caipiras. Um dos raros momentos de lazer foi quando Masuda-san trouxe ingressos de luta-livre para o meu pai. — Assim que acabar o trabalho no sábado, leve a família para se divertir. Meu pai havia se destacado como lutador de sumô em Bastos e foi responsável pela organização dos eventos por vários anos. As entradas da luta-livre eram para sábado à noite. Por mais que os lutadores fossem arremessados e socados, a luta prosseguia enquanto eles tivessem algum fôlego, bem diferente do sumô, que dura só um instante. Aquilo me deixava tão empolgado que já queria assistir à próxima como se fosse um filme. Ela me dava ânimo para enfrentar a vida com um espírito inflexível. Em um dia de trabalho, pedi ao Masuda-san: — Posso sair meia hora mais cedo, não importa quantas horas eu tenha de trabalhar de manhã para compensar? — O que vai fazer? — Quero estudar. Estou pensando em frequentar a escola noturna. — Hirofumi, preste atenção: não adianta estudar. Os ricos são ricos, e os pobres são pobres. As coisas são assim e isso não vai mudar. O tempo foi passando, uma semana, um mês, e, aos poucos, fui aprendendo a argumentar e insistir. O almoço de sábado era sempre macarronada. De vez em quando, Masuda-san vinha comer com os funcionários. — Se pudesse sair meia hora mais cedo, eu poderia entrar na escola… — Como você é persistente. Tendo ou não estudo, isso não influencia na vida das pessoas. — Masuda-san, por mais cedo que precise trabalhar de manhã, eu farei todas as tarefas. Só estou pedindo meia hora. Não poderia me dar essa chance? Minha família é pobre. Estamos no fundo do poço, mas não consigo acreditar que este seja o nosso destino. Se fizermos um esforço, acho que encontraremos um caminho. Masuda-san finalmente cedeu à minha insistência e, nos anos seguintes, pude frequentar e concluir o colégio técnico de eletricista, como havia planejado quando cheguei a São Paulo.
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Só talento não basta Kaneko-san, amigo do meu pai, tinha uma tinturaria na rua Conselheiro Furtado, 200, na Liberdade. Para minha admiração, aquela loja, que contava com dez jovens para passar a roupa, era uma das poucas na cidade que fazia entregas de carro. — Hirofumi, em São Paulo, o motorista precisa acompanhar a velocidade do carro da frente. Você sempre corre tanto quanto o da frente. Claro que, de vez em quando, tem de ultrapassar uma tartaruga. O que importa é que em São Paulo você precisa correr muito – e ria. A modernidade daquela tinturaria e a vida acelerada dos paulistanos chegavam a me dar tontura. Foi uma das primeiras vezes em que pisei no bairro japonês. Senti uma alegria grande, como se um novo mundo tivesse se aberto ao ver tantos japoneses no comércio. A veia de comerciante começou a pulsar forte. Entre os passadores da loja, havia um rapaz que se chamava Yasuo, de 18 anos. Sempre na moda, seu terno impecável e os sapatos engraxados e brilhantes. Quando saía para a rua, carregava uma mala no ombro e uma câmera, parecendo repórter de algum jornal. Sua educação refinada me deixava retraído, mas ele era uma pessoa muito simpática que se abriu facilmente para um caipira como eu. Logo tornamo-nos amigos. Hábil com as mãos, Yasuo dominava muitas técnicas, como a de fazer joias. Se ele visse algum anel bonito em um canto, conseguia imitar com facilidade. Na época, ele carregava anéis, brincos e broches dentro de um pano de veludo e oferecia as peças aos clientes da tinturaria quando saía para entregar as roupas. Na minha visão, ele parecia um multitalento que desperdiçava seu dom trabalhando como passador de roupas. — Com licença, moças. Poderiam dar uma olhada aqui, por favor? – dizia abrindo o rolo de veludo azul-marinho sobre a mesa. – Quero que só deem uma olhada. Só precisam comprar se gostarem de algo. Os olhos das mulheres brilhavam ao ver as peças. Com vozes alegres e agitadas, as moças colocavam os anéis nos dedos e fixavam os broches na roupa. Eu ficava admirado olhando para a qualidade das joias dele, mas reparei num aspecto do negócio. No caminho de volta, criei coragem para perguntar: — Yasuo, você sabe exatamente quantas joias trouxe, quantas vendeu e quantas sobraram dentro do veludo? — Por quê? — Hoje tinha umas seis moças, não é verdade? Acho que com esse número de pessoas olhando e pegando, é fácil perder o controle do que você entregou e para quem. E é difícil conferir se recebeu de volta o produto que entregou. Sou um caipira que acabou de vir de Bastos, mas mesmo para mim, que sou meio devagar, dá a impressão de que o seu jeito de vender tem muitos furos. — Talvez… O Yasuo só coçava a cabeça e, no fim, nós dois estávamos rindo meio sem jeito. As joias dele eram disputadas, mas ele ficava só reclamando de falta de dinheiro. Anos depois, ele saiu da tinturaria do Kaneko-san para abrir seu próprio negócio: uma oficina de conserto de máquinas. Era uma época em que as mulheres estudavam em uma escola de culinária ou de costura como parte de sua formação para o casamento. Atualmente, as mulheres modernas podem se casar mesmo sem saber pregar um botão solto. Naquela época, elas seriam consideradas ignorantes. Na década de 1950, mesmo nas casas de japoneses ou de nikkeis (descendente de japonês) havia obrigatoriamente uma máquina de costura. O Yasuo viu uma oportunidade aí. A ideia dele parecia ser razoável, embora eu tivesse minhas dúvidas. — Eu admito que você seja muito hábil, Yasuo. Mas vai ter dias em que passará por dez ou até cinquenta casas e não receberá
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A modernidade daquela tinturaria e a vida acelerada dos paulistanos chegavam a me dar tontura. Foi uma das primeiras vezes em que pisei no bairro japonês. Senti uma alegria grande, como se um novo mundo tivesse se aberto ao ver tantos japoneses no comércio. A veia de comerciante começou a pulsar forte.
nenhuma encomenda. Se tiver de andar muito será que vai valer a pena? Esse negócio vai funcionar? — Nada disso, só vou trazer a máquina para a oficina quando me pedirem. — Se tiver de trazer, vai precisar de um carro. Uma máquina de costura é pesada à beça. Será que esse modelo de negócio funcionaria? O talento não garante o sucesso do empreendimento. E ele não sabia como equilibrar as contas. Talvez pudesse chamá-lo de “kiyô bimbô”, a expressão japonesa para o “hábil-pobre”, ou o faz-tudo que não conquista nada. Como previra, a oficina acabou não dando certo.
Fazendo “bicos” O dinheiro que eu ganhava trabalhando na tinturaria do Masuda-san era entregue ao meu irmão mais velho, que administrava as finanças da família. Por isso, eu precisava fazer “bicos” para os meus próprios gastos. Sábado à tarde, após sair da tinturaria, reparei em uma fila que se formava em frente a um ponto de ônibus na avenida Nova Cantareira, onde funcionava uma bicicletaria. Ao me aproximar, fiquei observando os empregados e acabei aprendendo a fazer ajustes, como conserto de pneus, regulagem dos freios, altura do guidão e do selim e a tensão da corrente. Recusava gorjetas porque não tinha autorização do dono da loja para estar lá. Mas sempre um ou dois clientes empurravam uma nota dentro de meu bolso. Quando o número de clientes diminuiu, fui até o caixa, propus dividir o dinheiro da gorjeta de forma igual entre todos os empregados, incluindo aqueles que ficavam dentro da loja e não podiam atender diretamente os clientes. Passei a ajudar aos finais de semana. Em um domingo, meu amigo e vizinho Azuma-san pediu minha ajuda para fazer sua mudança, por isso, acabei faltando na bicicletaria. No sábado da semana seguinte, enquanto consertava uma bicicleta com a chave de boca, o dono da loja bateu em meu ombro: — Ikesaki, semana passada procurei por você. Sabia que você tinha ajudado a loja nas semanas anteriores, mas nunca disse bom-dia nem obrigado. Na semana passada, ficamos muito atrapalhados sem você. Por favor, venha trabalhar sempre aqui aos sábados, domingos e feriados. — Aprendi a regular uma bicicleta de graça. Sempre que tiver um tempo livre, virei ajudar. — Então por que não veio na semana passada? — Fui ajudar uma mudança de um amigo – respondi ao proprietário. — Nos dias em que não puder, avise antes. Você gosta de bicicletas? — Adoro. Havia fileiras de bicicletas na loja, desde as novas até as usadas. — Mas não tenho dinheiro… — Quanto você pode pagar? Fiz as contas levando em conta as gorjetas que recebia. — Como ganho dois cruzeiros por semana, posso pagar oito cruzeiros por mês. — Ótimo. Pode levar o modelo que quiser. Assim comprei a primeira bicicleta da minha vida. O único problema é que eu não sabia pedalar. Levei-a empurrando para casa. Mesmo assim, fiquei tão contente que mal consegui dormir na primeira noite. Acordava várias vezes para lustrá-la com flanela. O brilho da lâmpada que refletia no quadro só realçava a sua beleza. — Onde você arrumou esta bicicleta? – perguntou meu pai.
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Lojas japonesas na Liberdade Foi ao redor da rua Conde de Sarzedas que, em ainda em 1914, surgiram os primeiros estabelecimentos japoneses no bairro da Liberdade, em São Paulo. Hoje conhecida como a “Rua dos Crentes”, pelo grande número de lojas de artigos evangélicos, a via recebia imigrantes recém-chegados do Japão ou que vinham do interior visitar a capital. Eles alojavam-se em modestas hospedarias familiares e faziam compras em pequenas mercearias, onde tinham acesso a preciosidades como shoyu e missô, na época praticamente inexistentes o Brasil. Inicialmente as lojas eram instaladas nos porões das casas e não tinham letreiros indicativos nas fachadas. Alguns dos produtos não eram importados legalmente, mas trazidos do Japão na bagagem de amigos e conhecidos dos comerciantes. O aumento da comunidade incentivou o aparecimento de lojas especializadas em doces e tofu, por exemplo, além de carpintarias e marcenarias - atividades em que os japoneses tinham habilidade. Assim, a Conde de Sarzedas tornou-se um protótipo do que viria a ser o bairro da Liberdade. A partir da década de 30, quando os primeiros imigrantes começaram a deixar a lavoura para ingressar na vida urbana, os comércios dos japoneses ampliaram-se para as ruas adjacentes da Liberdade. O centro comercial transferiu-se para a rua Conselheiro Furtado, a algumas dezenas de metros de distância. Aí brotaram lavanderias, tinturarias e casas de costura, além de quitandas, empórios, doceiras e bazares de produtos importados. Também restaurantes típicos, muitos deles concatenados com hotéis e pensões. Algumas lojas adotaram letreiros metálicos em idioma japonês. Na década de 40, o Brasil alinhou-se com os países Aliados na Segunda Guerra. Os japoneses, oriundos de nação inimiga, foram obrigados a abandonar suas habitações na Liberdade e só puderam regressar após o fim do conflito. Mas muitos acostumaram-se aos bairros e cidades para onde haviam se mudado e acabaram não retornando.
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Mesmo sendo um dos negócios mais baratos no qual os imigrantes investiam, nossa família precisou de todo dinheiro economizado por um ano para comprar a decadente tinturaria do Masuda-san. Por saber japonês e português, foi natural que eu tenha me tornado o responsável pela administração da loja.
Quando expliquei que o dono da bicicletaria me ofereceu por eu estar ajudando a loja, ele disse: — Recuse. Não pode fazer isso. Só quando expliquei novamente que não estava recebendo de graça, mas que pagaria em prestações, ele concordou que eu ficasse com ela. — Empreste-me, Hirofumi – e montou em minha bicicleta. Foi uma sequência surpreendente. O meu pai chutou o chão e pôs os pés sobre o garfo dianteiro e depois de andar em círculos por algum tempo, deu uma acelerada, empinou a roda dianteira e andou só com a roda de trás. — Nossa, papai, mas como? Enquanto olhava boquiaberto, meu pai contou que fora dono da primeira bicicletaria de Amakusa. “Quando conseguirei andar como ele?”, pensava. Determinado, fui treinar em uma estrada plana às margens de um rio. No começo, o guidão tendia a virar justamente para a direção que me concentrava em não ir. Quando pensava que devia tomar cuidado para não cair no rio, batia contra a grade de proteção e rolava no chão. Após treinar por três horas, consegui dar as primeiras pedaladas. Na segunda-feira seguinte, comecei a entregar os ternos lavados usando a bicicleta. O Masuda-san ficou surpreso com a novidade. — Onde conseguiu essa bicicleta? – perguntou. Ao contar a história, disse que, graças à bicicleta, o trabalho da loja passaria a render mais. Mas ele não se cansava de repetir: — Isso é um esbanjo. É incrível como ele não investia na tinturaria. A secadora era antiga e vivia quebrada. Toda semana eu precisava dar um jeito apertando a parte da prensa e prendendo com um arame. Muitas vezes, as roupas tinham de ser secas naturalmente com o tecido ainda pingando. A forma de ele administrar consistia simplesmente em cortar gastos para sobrar mais dinheiro no fim do mês.
À frente da concorrência Mesmo sendo um dos negócios mais baratos no qual os imigrantes investiam, nossa família precisou de todo dinheiro economizado por um ano para comprar a decadente tinturaria do Masuda-san. Por saber japonês e português, foi natural que eu tenha me tornado o responsável pela administração da loja. Apesar de os equipamentos estarem sucateados, a loja foi rebatizada de Tinturaria Moderna de Santana. Em pouco tempo, fizemos juz ao nome e compramos as mais modernas máquinas de lavar e secar. Para aumentar a velocidade de entrega e a área de cobertura, adquirimos um furgão velho. A eficiência melhorou, mas não previmos que um novo tecido entraria na moda: a camurça, que exigia lavagem a seco. A moda incluía usar luvas e coletes com aquele tecido sofisticado. Só havia uma loja, a Tinturaria Nevada, na rua da Consolação, que dominava essa tecnologia. Como os pedidos para lavar camurça aumentavam todos os dias, as lavanderias de São Paulo precisavam terceirizar os serviços para a Nevada. Eu sabia que precisava oferecer lavagem a seco se quisesse ganhar mercado. Na época, as informações não transbordavam como agora, e a técnica era quase um segredo industrial. Cada vez que entregava as peças de camurça na Tinturaria Nevada, tentava olhar por dentro do balcão, mas o canto onde se fazia a lavagem a seco não ficava visível. Como obter a nova técnica? Comecei a levar o serviço na hora do almoço, quando os funcionários saíam de uma só vez. Provavelmente, o funcionário que não enxergava do balcão devia ser o responsável pela lavagem a seco. Fiquei investigando até que, um dia, escolhi um alvo certo.
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Os tintureiros japoneses A tinturaria foi, sem dúvida, uma das primeiras profissões adotadas pelos japoneses que deixaram as lavouras. O primeiro a montar uma tinturaria no Brasil foi Seitaro Ishimura, em 1918, apenas dez anos depois da chegada do navio Kasato Maru. Como exigia baixo investimento para os padrões da época, tornou-se uma das principais opções para quem desejava montar um negócio próprio. Bastava alugar uma casa e comprar um ferro, que funcionava a carvão. Na década de 1940, os classificados dos jornais da colônia publicavam vários anúncios oferecendo emprego em tinturarias de São Paulo, atraindo principalmente jovens que saiam do interior. “Tintureiro!, tintureiro!”, gritavam os japoneses nas ruas em busca de clientes. No anos 1970, quando a profissão atingiu o auge, existiam 3,5 mil tinturarias em São Paulo, das quais 80% pertenciam aos imigrantes nipônicos. Muito da fama de “profissionais responsáveis” que os japoneses conquistariam se deve às mãos destes prestadores de serviços que contribuíram para a história dos comerciantes da cidade.
Tinturaria japonesa em 1958, ano do 50º aniversário da Imigração Japonesa no Brasil
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O primeiro descendente de japonês eleito foi o vereador Yukishige Tamura, que discursava tão bem que até os brasileiros ficavam admirados (...) A ação conjunta e articulada só era possível graças à conexão dos tintureiros, que subiam em seus calhambeques caindo aos pedaços para fazer caravanas em apoio a Tamura.
— Oi, é você que lava as camurças, não é isso? — Sou, sim. Por quê? — Eu sempre venho pedir para lavar as peças de camurça. Como já é hora do almoço, que tal conversarmos enquanto comemos? Eu pago. Sentamos à mesa do restaurante. — Eu não imagino quanto que você ganha de salário, mas ofereço o dobro para trabalhar na minha tinturaria. Só aviso que minha loja fica no Tremembé. Ele aceitou prontamente. E assim compramos o equipamento e dominamos a técnica de lavagem a seco. Com isso, pudemos ampliar o serviço, aceitando encomendas das lavanderias da região. Em menos de dois anos, a nossa tinturaria passou a ter os equipamentos mais modernos de toda a região norte. Também renovamos o carro de entregas. A técnica de nossa tinturaria ficou melhor que a das outras lojas que já atuavam há dezenas de anos, o que ajudou a ampliar as vendas. Aprendi que é importante andar um passo à frente da concorrência. Não foi fácil pagar pela modernização, mas eu fazia o máximo para convencer minha família. — Não é dívida, é investimento – explicava. Na década de 1950, havia o programa de rádio Hora do Japão, que tocava músicas japonesas. De noite, quando o programa começava, os empregados paravam para prestar atenção no som do rádio. Só depois, todos voltavam a trabalhar com o ferro de passar roupa na mão até por volta de meia-noite. Não acreditava que a sorte bateria à porta sem esforço. Sentia que seria possível prosperar se tivesse perseverança.
A força dos tintureiros
[1] Monte Tennô, o monte que foi conquistado por Hideyoshi Toyotomi na guerra contra Mitsuhide Akechi e que, devido à sua posição estratégica privilegiada, foi fator decisivo na vitória do primeiro sobre o segundo. Desde então, o nome do monte é evocado nos momentos cruciais que podem decidir a vitória.
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A primeira eleição após a guerra ocorreu em janeiro de 1948, um ano depois de nossa família se mudar para São Paulo. Eu sou testemunha do surgimento dos políticos nikkeis. O primeiro descendente de japonês eleito foi o vereador Yukishige Tamura, que discursava tão bem que até os brasileiros ficavam admirados. Ainda não havia uma associação que representasse japoneses e nikkeis como o atual Bunkyo (Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa e Assistência Social). A ação conjunta e articulada só era possível graças à conexão dos tintureiros, que subiam em seus calhambeques caindo aos pedaços para fazer caravanas em apoio a Tamura. Até nas lojas fazíamos campanha aos clientes: — Vote em Yukishige Tamura para vereador – e entregávamos um folheto de propaganda política com a roupa lavada. Os tintureiros nikkeis da região de Santana, zona norte de São Paulo, se reuniram para dividir as tarefas de campanha. Eu fui encarregado de colar cartazes nos postes do bairro. Para me preparar, fervi a água numa panela japonesa yukihira (panela de alumínio com tampa, um bico e uma pega) e dissolvi polvilho para fazer bastante cola. Durante algumas noites, colei cartazes próximo à escola pública primária da região, onde haveria a votação. Como ainda restavam alguns, voltei na última noite, a apenas algumas horas de terminar o prazo para se fazer propaganda política. Após a meia-noite, seria crime eleitoral. Em japonês dizemos que seria o meu “Tennôzan [1]”. Precisava ser rápido. Uma neblina densa envolvia a cidade. Não se via nada além de 10 metros de distância. Diferente da agitação do dia, as ruas estavam silenciosas. Apoiado em uma escada dupla extensível contra o poste, passava a brocha sobre os cartazes dos outros candidatos. Escutei vozes abaixo de mim. Apesar da pouca visão devido à neblina, vi cinco ou seis vultos reunidos. — Desça aqui! – gritavam.
Político pioneiro da colônia Em 1948, um ano depois da família Ikesaki chegar a São Paulo, os japoneses começaram a ganhar força política ao eleger o primeiro vereador nikkei: Yukishige Tamura. Filho de imigrantes japoneses de Kochi, que chegaram ao Brasil em 1910, Tamura nasceu em São Paulo e morou muitos anos na rua Conde de Sarzedas, na Liberdade, onde jogava futebol na várzea do Glicério. Numa época em que a maioria dos filhos dos imigrantes ainda precisavam se dedicar
à lavoura, Tamura foi o terceiro descendente a formar-se na Faculdade de Direito da USP em 1939. O pioneirismo de Tamura, no entanto, iria mais longe. Conhecido por seus discursos contundentes, ele conquistou apoio da colônia japonesa em geral, com destaque para os agricultores e tintureiros, que estavam indignados com uma medida imposta pelo governo paulista: tabelamento de preços. O valor de lavagem de um terno havia sido
reduzido de 25 para 16 cruzeiros. Como a maioria dos tintureiros não podia votar por ser de origem japonesa, tornaram-se eficientes cabos eleitorais de Tamura. Após a lavagem dos ternos, os tintureiros recheavam os bolsos com a propaganda do candidato, pintavam muros e penduravam faixas. Deu certo. Em 1950, ele foi eleito deputado estadual. Ele ainda se tornaria o primeiro deputado federal nikkei em 1954.
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A austeridade sempre foi um lema na minha família e, talvez, na maioria das casas dos imigrantes que vieram antes da guerra. Quando chegamos a Bastos, não havia sequer eletricidade. O fogão e o ofurô improvisado funcionavam a lenha. Só quando chegamos a São Paulo compramos uma geladeira. Foi uma felicidade.
Eles me xingavam com raiva e, antes que pudesse ter descido, chutaram a escada e eu caí sentado no chão. Depois pisotearam e destruíram a panela e a brocha: — Japonês desgraçado! Estragou nosso trabalho… Vamos mandá-lo para a cadeia! Todos carregavam pistolas. Eu tremia assustado, pois havia colado os cartazes por cima do trabalho deles. — Eu não sabia. Só me mandaram colar… — Quem foi que mandou você colar? — Ele não está aqui e eu não conheço a pessoa! — Arranque fora os cartazes que colou e cole os nossos de volta! Eles tinham acabado com meu material. Além disso, já havia passado da hora limite. Nesse horário, nem eu nem eles poderíamos fazer qualquer atividade eleitoreira por imposição da lei. No final, eles me liberaram e eu voltei voando para casa. Nunca cheguei a comentar essa história com o Tamura-san, mas imagino que não tenha sido o único japonês ou nikkei que arriscou o pescoço para dar uma mão à vitória dos políticos nikkeis no Brasil.
Nossa primeira TV A austeridade sempre foi um lema na minha família e, talvez, na maioria das casas dos imigrantes que vieram antes da guerra. Quando chegamos a Bastos, não havia sequer eletricidade. O fogão e o ofurô improvisado funcionavam a lenha. Só quando chegamos a São Paulo compramos uma geladeira. Foi uma felicidade. Mas quando meu pai bebia um pouco além da conta, costumava reclamar: — Vocês esbanjam muito. A luz do quarto fica acesa e essa geladeira, então, nem dá para desligar! É preciso economizar! Quando meu pai ficava de mau humor, havia o risco de quebrar tudo. — Vocês estão ficando acostumados ao luxo e não criei vocês para isso! Vou me livrar dessa geladeira! Apesar de conhecer a possível reação do meu pai e ter consciência de que estávamos longe de esbanjar, comprei um dos primeiros aparelhos de televisão do Brasil em vinte e quatro parcelas. Eu havia concluído o curso técnico de eletricista e sabia que aquela novidade seria muito importante no futuro. Para evitar o pior, deixei o aparelho escondido no meu quarto coberto por um pano, esperando o momento certo de dar a notícia ao meu pai. A oportunidade surgiu quando recebemos a notícia de que o Nishimi-san, o antigo companheiro de copo do meu pai que morava em Bastos, viria nos visitar. Imaginei que, se Nishimi-san visse a novidade, meu pai ficaria orgulhoso e não tentaria destruir o aparelho. Coloquei a TV na sala, cobri-a com um pano e coloquei um vaso de planta por cima. A claraboia de ventilação do banheiro parecia uma chaminé e era perfeita para apoiar a antena. Esperei todos dormirem e subi no telhado para parafusar as peças. O quarto de meu pai ficava logo embaixo. Escutei a porta da frente se abrir. Fiquei escondido e sem me mexer atrás da claraboia até escutar a porta se fechar. Isso se repetiu duas vezes naquela noite. Desci o cabo da antena pela claraboia, abri um buraco na parede usando a chave de fenda e levei até a sala. Executei tudo com muito cuidado para não acordar ninguém. Trabalhei a noite inteira e fiquei com as mãos cheias de bolhas. No dia seguinte, enquanto tomávamos o café da manhã, meu pai comentou com minha cunhada. — Ontem à noite eu não parava de escutar um barulho no telhado. Pensei que fosse um ladrão invadindo em uma noite enluarada e saí de casa para verificar duas vezes mas não encontrei nada. Ao reencontrar seu velho amigo de copo, meu pai ficou eufórico e esqueceu rapidamente o assunto do “ladrão no telhado”.
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Aproveitei a ocasião para apresentar a TV. Ele estava tão bem-humorado que me autorizou a manter o aparelho na sala e ainda convidou todos a se sentarem para assistir à novidade. Eu desconfiava que a visita deveria ter um motivo importante. Na época, não era comum alguém viajar de Bastos a São Paulo sem uma boa razão. O assunto que o trouxera foi para pedir que nossa família cedesse a escritura do sítio em Bastos para Masanobu Fukuma, da família da minha cunhada. Como não tínhamos conseguido vendê-lo antes da partida a São Paulo, a família Fukuma ficou encarregada do sítio. — É desperdício deixar como está. Tem que pagar os impostos também. Que tal ceder tudo ao Fukuma-san? Fukuma-san nasceu em 1922 e veio ao Brasil com a família em 1926 a bordo do Kanagawa-Maru. O pai, Masazo, era marceneiro e morreu em 1939, vítima de pneumonia. Depois disso, o Masanobu-san e a mãe sustentaram a família cuidando da terra como agricultores arrendatários. Eles vieram até nossa terra e, durante três anos, criaram bicho-da-seda. Quando escutei o pedido, fiquei revoltado: “Por que precisamos entregar um terreno que a nossa família sofreu tanto para obter?”, pensei. Como eu era mais novo do que eles, nada pude fazer. Meu pai e meu irmão concordaram e cederam o sítio definitivamente.
Uma visão de fé Desde criança, eu já me questionava e duvidava sobre minha fé. Lembro que, para continuar os estudos a partir da quarta série, fui transferido para a escola, no centro de Bastos, onde uma das novas disciplinas foi a de religião. Ficava assustado com a imagem de Cristo sangrando na cruz, os altorrelevos de anjos e estátuas de santos da igreja. Nessas horas, o padre subitamente aparecia ao meu lado: – Está prestando atenção na aula, menino? – A verdade é que aquele realismo excessivo das imagens me fez odiar entrar na igreja. Nas aulas, eu me perguntava incrédulo como era possível a Virgem Maria ter engravidado. Mesmo depois que nos mudamos a São Paulo, nunca aceitei as verdades que as religiões pregavam, até que um episódio mudou minha crença sobre Deus. Eu já administrava a tinturaria, mas o dinheiro ficava com meu irmão mais velho, como manda a tradição japonesa. Não recebia um tostão. Para ter meu próprio rendimento trabalhava como motorista de lotação. Acordava de madrugada, antes da loja abrir, saía com o recém-comprado Chevrolet 41 e seguia pelo mesmo itinerário do ônibus até a Praça dos Correios, no centro. Com o trocado que recebia dos passageiros ainda pagava as prestações do carro. Estava voltando à zona norte, quando comecei a sentir um mal estar, uma dor aguda na barriga. Doía cada vez mais. Tentava manter firme o volante. Estranhamente, um pensamento passou por minha cabeça: será que eu estava sendo castigado pela minha falta de fé? Cheguei em casa, já me contorcendo de dor. Gritava. Rolava pelo chão. — Aguente firme, Hirofumi. Mandei chamar o médico do sindicato dos motoristas. Pare de se debater e fique quieto! Ele me ofereceu um copo d’ água e me deitou na cama. Fechei os olhos. Já não sentia mais dor – e dois homens desconhecidos estavam ao meu lado: — Existe uma tarefa que só você pode fazer. Por isso, vá e resolva. Nós viemos de longe para buscá-lo porque nos disseram que só você seria capaz. — Mas eu tenho muito trabalho, não sei se poderei ir. — Esses senhores vieram de muito longe e estão aqui para pedir uma coisa que só você pode resolver. Não demore, logo o sol vai se pôr – respondeu meu pai. E assim, quando comecei a caminhar, notei que estava na mesma casa onde havia morado na infância em Bastos. Fui andando pela estrada ao lado da casa onde, do lado direito, ficava o mangueirão (curral dos
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Nossa tinturaria começou a ganhar uma boa reputação. Em qualquer negócio, a credibilidade é fundamental para o sucesso. As pessoas comentam “aquele tintureiro é bom”. Propaganda boca a boca. Começamos a virar sinônimo de “serviço rápido”, “caprichado”, “eficiente”.
porcos) e, do lado esquerdo, um bambuzal, onde costumava brincar quando criança. Andamos cerca de um quilômetro em direção ao rio Ipê, que passava aos fundos do nosso terreno. Quando olhei para os lados, os dois estranhos haviam sumido e o sol já tinha se posto. Na escuridão, não sabia mais onde estava – apenas que precisava seguir adiante. Avancei até chegar às margens do que parecia ser um rio. Enfiei os pés naquele líquido, mesmo sem saber a profundidade. A correnteza foi ficando mais forte. Se levantasse muito a perna, poderia perder o equilíbrio. Arrastei os pés para avançar, mas as pedras no fundo rasgaram meus sapatos e cortaram a sola dos pés. Percebi que a água na altura do peito estava viscosa e mal cheirosa. Aquilo não era água. Era do sangue das pessoas que tentavam - e não conseguiram – atravessar o rio. Escutava vozes agonizantes por todos os lados. Onde eu estava? Parecia o inferno. Com esforço, finalmente atravessei até a outra margem, onde havia um penhasco alto se interpondo diante de mim. Havia pedras pontiagudas e afiadas que se enfileiravam até sumir de vista. Assim que toquei nelas, as palmas da mão e a sola dos pés ficaram encharcados de sangue. Eu sabia que minha única chance de sobreviver seria vencer o penhasco. “Eu não vou desistir”, pensava. Toda vez que meu corpo tocava nas pedras afiadas, a pele sangrava, a carne era raspada e meu corpo foi pouco a pouco se reduzindo a um esqueleto. Minha determinação sem fim não me deixava desistir. Quando, finalmente, coloquei parte do meu esqueleto no final da ribanceira, senti uma luz brilhante. Uma paz e harmonia tomaram conta de mim. No instante em que perguntei “onde podia estar”, comecei a me transportar para onde imaginava. Bastava pensar “Japão” ou “Amazonas” para estar nesses lugares. Bastava pensar para ser capaz de estar em qualquer lugar. Dizem que Deus está em todos os lugares e aquela experiência parecia ser exatamente isso. Esse lugar só pode ser o próprio Paraíso. “Paraíso… Quer dizer que estou morto? Se estou, onde estarão os meus antepassados?” Assim que pensei nisso, vi todos eles reunidos em minha frente. O vovô, o pai de meu avô, o avô de meu avô e outros mais remotos que nunca conheci. Fiquei feliz porque todos eles tinham conseguido atravessar o rio. A voz de meu antepassado vibrou em minha mente: – Você deve ir para um lugar… — Sim. Me disseram que eu devia ir para algum lugar. Mas onde era para eu ir? Era para ser aqui? Eu quero ir para o lugar onde devo ir… – No instante em que pensei nisso, despertei. O médico que segurava meu pulso estava com os olhos arregalados. Em volta da cama, minha família, assutastada. Disseram que meu coração havia parado e acreditavam que eu não teria mais salvação. O médico estava prestes a assinar meu óbito. Por que eu tinha ressuscitado? Depois desta jornada da vida, todas as minhas dúvidas sobre dos mistérios da religião sumiram. Desde então, eu aprofundei minha fé. Deus existe. E, talvez, Ele seja o antepassado que nos protege. Talvez Ele seja a força que nos faz superar as dificuldades e que ajuda as pessoas que se esforçam. A religião é uma coisa que cada um interpreta segundo suas experiências e nos ajuda a aprofundar a nossa condição através do sentimento de gratidão.
Fama e discórdia Nossa tinturaria tinha conquistado uma boa reputação. Em qualquer negócio, a credibilidade e a confiança dos clientes são fundamentais para o sucesso. As pessoas comentam “aquele tintureiro é bom”. Faziam propaganda boca a boca. Viramos sinônimo de “serviço rápido”, “caprichado”, “eficiente”. Para chegar neste estágio, sempre reinvestia na modernização, diversificava os serviços. Não ficava parado. Tínhamos fregueses fiéis que traziam de cinco a seis roupas a cada semana. Dr. Marçal era um deles. Só não entendia em que ocasião ele usava tantos ternos, já que trabalhava de avental branco. Ficava muito grato por ele nos confiar suas roupas. Uma tinturaria familiar lavava cerca de 80 ternos em uma semana. A nossa conseguia uma
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O jovem Ikesaki, anos depois de ter chegado a SĂŁo Paulo
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Eu tinha a sensação de que havia alguma força maior que me impedia de me matar. Finalmente uma ideia iluminada se fixou: “Se me matar, como ficará minha família?”. Quando pensei nisso, a esperança se converteu em força de vontade.
média de 150 devido ao auxílio de secadoras mecânicas e produtos químicos. Para dar conta da demanda, trabalhávamos os três irmãos, quatro lavadores e três passadores de ferro. Quando escurecia, eu dizia: — Aniki (irmão mais velho), vamos trabalhar até às onze – e quando eram onze horas, esticávamos uma hora e, depois, mais uma hora. E trabalhávamos até tarde da noite. — Não aguento você! – dizia meu irmão. A vida na cidade nem se comparava à lavoura, onde tomávamos chuva, sofríamos debaixo do sol escaldante e nunca víamos a cor do dinheiro. Na lavanderia, o trabalho era recompensado quando entregávamos a roupa lavada. Apesar de não ser muito, aquele dinheiro era real. Quando o movimento aumentou, ficou difícil gerenciar todo o processo. De vez em quando, um funcionário desleixado rasgava, queimava ou manchava uma roupa. “Estava assim mesmo” ou “isso não é culpa minha” foram as desculpas que mais escutei. Outros funcionários simplesmente penduravam a roupa queimada no cabide como se estivessem perfeitas. Só descobríamos o erro na vistoria final antes da da entrega. Nessas horas, era preciso ter jogo de cintura para se desculpar com o cliente. — Desculpe, mas houve um acidente. Não se preocupe. Pode deixar que providenciaremos o terno completo – e assim tínhamos que arcar com os prejuízos para não perder o cliente. A filosofia sempre foi oferecer um serviço completo. Se houvesse um botão prestes a cair, já entregava costurado. Não existe nada mais chato do que pegar uma roupa recém-lavada e descobrir que o botão está solto. Todo esse cuidado se convertia em credibilidade. Um dia, fomos procurados pelo proprietário de uma empresa de ônibus em Botucatu, que nos fez uma proposta. — Precisa ser esta loja. Quero comprar a sua tinturaria – disse ele ao meu pai. Não sei onde ele escutou sobre a fama de nossa tinturaria, mas parecia nos conhecer muito bem. Eu não tinha a menor vontade de vender a loja agora que ela finalmente tinha entrado nos eixos. Fizemos uma reunião familiar, que teve um desfecho completamente diferente do que esperava. Meu irmão mais velho disse: — Eu não aguento mais acompanhá-lo, Hirofumi. A nossa loja está rendendo, mas o dinheiro que entra de um lado sai do outro e não sobra nada nas nossas mãos. — Aniki, o que fazemos é investimento. Não misture isso com gasto. Os investimentos alimentam o futuro da tinturaria. — Nós só queremos viver normalmente. Mas você só traz trabalho sem parar. — No entanto, se nós ficarmos parados enquanto as outras empresas crescem, seremos engolidos. É por isso que precisamos ficar sempre adiante da concorrência. Apesar da minha insistência e argumentos para não vendermos o negócio daquela maneira, fui voto vencido. Assim ficou decidido que nossa família sairia do ramo da tinturaria.
Apoio paterno Após a venda da tinturaria, a primeira providência foi comprar uma velha casa em frente a uma praça na rua Tuiuguê, 294, no Bosque da Saúde, cujo dono era um português que estava se mudando para a região de Santo Amaro. Embora fosse própria, a casa era menor que a anterior. Tinha apenas dois quartos, por isso, construímos uma edícula para comportar toda a família. Os móveis que não couberam ficaram cobertos com uma lona provisória no jardim. Como parte do pagamento, recebemos um belo Mercury azul, modelo 1948, que colocamos à venda por cem mil cruzeiros nos classificados do jornal. Não podia ficar parado. Embora fosse um carro particular, tinha placa de táxi, o que me permitiu
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trabalhar de taxista até ser vendido. Logo dois brasileiros vieram nos procurar. Eles queriam oferecer cento e vinte mil cruzeiros, mas em notas promissórias. — Não podemos aceitar notas promissórias porque precisamos do dinheiro. — Se levar para uma câmara de compensação, poderá trocar por uns cento e dez mil cruzeiros em dinheiro. Não acha um bom negócio? — Não conheço nenhuma câmara de compensação. — Tenho um parente que é advogado na Praça da Sé e também empresta dinheiro. Podemos trocar por dinheiro vivo. – Subimos no Mercury e seguimos ao Centro. Mas o escritório do tal parente ficava no cruzamento das avenidas Ipiranga e Rio Branco, onde não havia estacionamento. Parei em um terreno baldio ao lado de um ferreiro. No início da década de 1950, os cavalos ainda eram usados para recolher o lixo da cidade. O tal escritório estava fechado porque era hora do almoço. — Tenho um parente no Bom Retiro que tem uma fábrica de guarda-chuvas. É perda de tempo buscar o carro. Eu pago o táxi, vamos lá. Subimos uma escada de madeira até o primeiro andar de um escritório onde muitas moças trabalhavam. Os dois foram para os fundos para conversar com um senhor careca que aparentava ser o responsável pelo lugar. Mas ele expulsou os dois. — Conheço um amigo que trabalha num cartório na rua Quintino Bocaiúva. Ele é especializado em emprestar dinheiro. Vamos. De um lado, eu estava desconfiado. A conversa desses dois era esquisita. Ao mesmo tempo, guardava uma tênue esperança de receber o dinheiro para poder abater do preço da casa. Os dois levaram os documentos de transferência do carro assinados e as notas promissórias para o escritório enquanto eu fiquei na sala de espera. Dez, vinte, trinta minutos… E eles não voltavam. Eu criei coragem e fui perguntar à recepcionista: — Aqui tem outra saída? — Tem sim, fica do outro lado. Os dois tinham fugido. Não encontrei mais o carro onde estava estacionado. Fiquei desesperado. Os dois tinham dito que moravam na rua Chico Pontes, 185. Pedi um guia de rua emprestado de um taxista e encontrei duas ruas de nomes iguais: uma na Vila Guilherme, na zona norte, e outra no Itaim Bibi, na zona sul, para onde fui. A numeração das casas da época não era organizada como agora, o que me obrigou a verificar todas de ponta a ponta. Não encontrei o número 185. “Então só pode ser a que fica perto do Tremembé, onde morávamos…”, pensei, acreditando que ainda encontraria os dois. Começava a escurecer, obrigando-me a conferir os números de olhos arregalados. Nada do número 185. O que poderia fazer? Caminhei até o fim da ladeira, avistei um pântano que se estendia até onde a vista podia alcançar. Era a área onde hoje fica o Shopping Center Norte, usado como lixão. Andei até lá, onde vi a lua brilhando sobre a região pantanosa. “Eu fiz uma coisa irreparável para a minha família… Trouxe desgraça para a família Ikesaki…” – ao ter este pensamento, minha força de vontade desapareceu como uma vagalume que se apaga. Perdi a esperança e a força que me mantinham em pé. Sentei. Pedi perdão pelos meus atos. Como salvar minha honra? Fui sendo tomado pela ideia de pular no pântano para me matar. Algo inexplicável, no entanto, me mantinha paralisado. Será que estava sem coragem? Eu tinha a sensação de que havia alguma força maior que me impedia de me matar. Finalmente uma ideia iluminada se fixou: “Se me matar, como ficará minha família?”. Quando pensei nisso, a esperança se converteu em força de vontade. O céu ainda não havia clareado, mas sentia que o fim da madrugada estava se aproximando. Andei até a avenida Voluntários da Pátria e abri o portão da Paróquia Sant’ana. Fiz um cumprimento diante do altar e deitei no banco. Queria dormir, mas as pessoas vinham rezar antes de ir ao trabalho. “Até agora, eu não fiz nada digno para receber
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Estávamos no fundo do poço. Até os conhecidos nos evitavam na rua. (...) — Hirofumi, tenho uma proposta de meio salário mínimo. Não quer ver? Existe alguém que não se importa de contratar um caipira que só cometeu erros? (...) E assim fui contratado como faxineiro do Comércio Lira (Rira Shôkai), uma empresa que vendia produtos químicos para tinturarias.
a proteção de Deus. Eu não mereço ficar aqui por culpa de minha descrença”. Sem dinheiro para pagar uma passagem de ônibus, decidi andar os mais de dez quilômetros que separavam a paróquia até o Bosque da Saúde. Entrei em casa abrindo a porta em silêncio e reconheci as costas de meu pai. Ele estava orando em frente ao altar budista. Ao perceber minha presença, ele se virou lentamente. Já estava preparando o espírito para receber uma grande bronca, mas, em vez disso, ele me abraçou fortemente. — Que bom… que bom que você está vivo… Eu cresci sem conhecer o carinho de uma mãe. Minha avó também nunca foi de fazer afagos e meu pai era do tipo que erguia o braço antes de abrir a boca. Aquela foi a primeira vez que ele me abraçou de um jeito que quase me sufocou. “Como ele soube que pensei em me matar?”, pensei. Ele disse que teve uma intuição e passou a noite recitando mantras em nome de minha salvação. — Hirofumi, não se preocupe. Vai dar tudo certo! Se estiver vivo, o resto pode ser recuperado com nosso próprio esforço – disse meu pai, confortando-me. — Você deve estar exausto depois do que passou! – disse meu irmão. Semanas depois, a delegacia de polícia da rua Brigadeiro Tobias nos avisou que haviam encontrado o carro. Tivemos que brigar na justiça com o dono que alegava ter feito “uma compra justa com todos os documentos”, mas conseguimos recuperar o carro. Desta vez, vendemos para uma loja de usados.
Recomeçando no comércio: faxineiro A vida da família Ikesaki descia ladeira abaixo, como um caminhão desgovernado. A venda da tinturaria tinha se revelado um desastre, sem ser suficiente para reconstruirmos a vida. Meu irmão mais velho foi obrigado a pedir dinheiro emprestado a Yamamoto-san, empresário que fabricava equipamentos para tinturaria, e confiava em nossa família, pois éramos clientes fiéis. Enquanto voltava no ônibus lotado, os cinco mil cruzeiros recém-emprestados tinham sumido. — Nossos antepassados devem estar decepcionados. A família Ikesaki não está conseguindo sair desta crise – disse meu pai. Quando as coisas ficam ruins, os problemas chegam um atrás do outro. O português, antigo proprietário da casa que compramos, veio cobrar a prestação pela terceira vez. De nada adiantou explicar a nossa situação dramática. Sem saída, devolvemos o imóvel. Estávamos no fundo do poço. Até os conhecidos nos evitavam na rua. Sentia uma dor que não sabia como expressar em palavras. Nossa sorte parecia estar na região norte. Fui a uma imobiliária chamada Caiubi para alugar uma casa na rua Leôncio de Magalhães, 87, no Jardim São Paulo. Expliquei toda a história para a funcionária da imobiliária. — Roubaram o carro de vocês? E ainda levaram o dinheiro emprestado… Não tínhamos fiador nem como pagar os três meses adiantados de aluguel. — Vamos, anime-se. Eu acredito em você – e me trouxe a chave, oferecendo uma mão caridosa. “Suteru kami areba hirou kami ari” (se um deus te abandona, outro te acolhe) é uma expressão japonesa que diz que sempre existe alguém disposto a ajudá-lo. Quando nos instalamos na nova casa, meu irmão mais velho, que trabalhava em uma imobiliária, trouxe uma proposta de trabalho. — Hirofumi, arrumei um emprego para você, que paga meio salário mínimo. Não quer ver? Existe alguém que não se importa de contratar um caipira que só cometeu erros? Fiquei imensamente grato e aceitei. Será que eu conseguiria acompanhar o ritmo dos paulistanos? Não queria fazer feio no primeiro dia: estudei o mapa e saí de casa para chegar uma hora antes. Se o ônibus quebrasse, não seria enxotado por chegar atrasado logo no primeiro dia. O trajeto
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foi tranquilo e cheguei bem antes. Achei que, quando faltasse meia hora para o horário, alguém apareceria. O tempo foi passando: dez minutos, vinte minutos… Corri até a esquina para verificar se era mesmo o lugar escrito no papel. Só quando faltavam cinco minutos para as sete horas, as pessoas começaram a formar fila para bater o cartão de ponto. Não entendi o que eles estavam fazendo. Me deixaram entrar sem pedir mais explicações. Vi alguns funcionários indo para o banheiro arrumar o cabelo ou zanzando em vez de irem diretamente ao seu posto. O gerente era uma pessoa chamada Takeuchi-san e usava um par de óculos de armação preta e lentes de grau forte. — Você é o Ikesaki-kun? Pode vir aqui um instante? Preciso preparar sua documentação. E assim fui contratado como faxineiro do Comércio Lira (Rira Shôkai), uma empresa que vendia produtos químicos para tinturarias. — Seu trabalho é varrer o chão deste depósito – mostrando-me a área que tinha uns 50 metros de cada lado. O nervosismo dos primeiros dias foi passando e logo comecei a entender o ambiente de trabalho. Todos os funcionários chegavam correndo em cima da hora para bater o cartão de ponto. Depois, eles relaxavam, arrumavam o penteado no banheiro ou batiam papo. Só começavam a trabalhar de verdade um pouco mais tarde. “Quer dizer que os paulistanos são assim?”, pensei. Senti-me mais seguro de que teria uma chance de vencer em São Paulo. Um dia, varria a sujeira do piso de concreto. No outro, tirava a areia que se acumulava nas frestas. Mesmo assim, isso só ocupava a parte da manhã. E eu não queria ser um “ladrão de salário”. Um dia, após terminar a limpeza, reparei sobre uma mesa um monte de notas fiscais com pedidos de produtos atrasados em vinte dias. “O depósito está cheio desses produtos. Por que não podem engarrafar e finalizar logo as entregas?”, pensei. A empresa comprava garrafas usadas de um litro. Em seguida, quatro funcionários tiravam o rótulo original, lavavam, secavam e enchiam as garrafas com os produtos químicos. No sábado, quando vi o gerente Takeuchi-san, tomei coragem e perguntei se poderia trabalhar após o expediente. — Por quê? – perguntou ele, por receber um pedido como aquele. — Os produtos estão no depósito, mas faltam garrafas vazias, o que está atrasando a entrega das mercadorias. Se os clientes fizeram o pedido, devem estar precisando. Um atraso de quinze dias pode fazer com que comprem em outro lugar. Posso lavar as garrafas? Takeuchi-san ficou olhando para a minha cara, sem acreditar no que estava ouvindo. No depósito havia cinco tanques de água feitos de concreto com 1 metro de profundidade e 1,2 metro de cada lado. Um deles servia para amolecer os rótulos, e os outros, para lavar as garrafas. — Até que horas pretende trabalhar? — Até escurecer. Assim que botei a mão na massa, descobri que a retirada do rótulo seria mais demorada do que o previsto. Tirei a camisa, fiquei só com a regata, mas acabei me molhando inteiro. Takeuchi-san voltou antes de eu alcançar o número que eu havia imaginado. —Você ainda está trabalhando? — Sim. — Pode parar. Vamos embora. — Posso trabalhar amanhã? — Mas amanhã é domingo. — É que não rendeu tanto quanto eu queria.
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Imagem do bairro da Liberdade na dĂŠcada de 1940
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Um dia, após terminar a limpeza, reparei em um monte de notas fiscais sobre uma mesa com pedidos de produtos atrasados em vinte dias. “O depósito está cheio desses produtos. Por que não podem engarrafar e finalizar logo as entregas?”, pensei. (...) No sábado, quando vi o gerente Takeuchi-san, tomei coragem e perguntei se poderia trabalhar após o expediente. Cada um dos quatro funcionários lavava exatamente 100 garrafas por dia. Eu queria lavar 800 garrafas, o dobro dos quatro juntos. — E que horas pensa em vir? — Normalmente chego às sete, mas como é domingo, virei às oito. Antes de irmos, pode me dar mais meia hora? — Para quê? — Quero lavar todos os tanques, colocar as garrafas, enchê-los com água limpa para deixar tudo preparado. No domingo, recomecei a minha batalha com as garrafas. Quando Takeuchi-san viu as garrafas enfileiradas do lado da parede, perdeu a fala: — Você lavou tudo isso? — Takeuchi-san, lavei com cuidado, mas acabei quebrando quatro garrafas. Por favor, desconte-as de meu salário. — Mas não estou nem pagando hora extra… Além do mais, os próprios encarregados quebram várias garrafas e nunca existiu um funcionário que me pedisse isso. — O que estou fazendo é um desafio. Eu quero alcançar o máximo da velocidade e precisão. Desconte do meu salário, por favor. — Mesmo assim, não vou fazer isso. Repeti a lavagem durante umas três semanas. O monte de notas fiscais foi diminuindo visivelmente até não travar mais. Depois de algum tempo, elas voltaram a acumular, desta vez, por atraso no pedido de matéria-prima, falta de rótulo ou de rolhas. Eu comecei a reparar em coisas que antes eu não percebia, como a sujeira do galpão onde ficavam armazenados os produtos químicos. Perguntei ao Takeuchi-san se poderia fazer a limpeza. Tirava as teias de aranha do forro amarrando a vassoura num bambu. Ao limpar as prateleiras de quatro metros de altura, retirava os produtos de cada fileira. Depois, recolocava no mesmo lugar, mas aproveitava para jogar fora o que estava vencido e separava o que podia ser trocado. Mas, por mais que propusesse melhorias, isso só foi me deixando impopular com os outros empregados.
“Esse é o caipira puxa-saco” O meu trabalho começou a ser reconhecido pela diretoria do Comércio Lira. O gerente Takeuchi-san gostou de receber os elogios, já que o setor dele começou a melhorar. Alegando querer passar mais tempo com a família, ele desistiu de me acompanhar aos domingos. Os outros funcionários, no entanto, não entendiam meu esforço. — Se tem um puxa-saco como ele na empresa, vai sobrar pra gente – diziam. Em um dos domingos, escutei alguém chutando a entrada do depósito. Até pensei ser alguma emergência, mas fui surpreendido pelo gerente de contabilidade acompanhado de cinco garotas. — É ele. Esse é o caipira puxa-saco. As garotas começaram a rir. O gerente da contabilidade vestia terno, óculos escuros e carregava uma máquina fotográfica no ombro. Deviam estar se preparando para ir ao cinema. Ao vê-los bem vestidos, percebi o quanto era pobre. Senti vergonha e raiva ao mesmo tempo. Tentei abaixar o portão, mas ele segurou e continuou me xingando. Dei as costas para o grupo, voltei aos fundos e recomecei a lavar as garrafas. Durante a semana, o gerente Takeuchi-san perguntou se eu poderia substituir um ajudante de entregas que havia faltado, já que meu serviço de limpeza estava adiantado. Fiquei feliz porque seria uma ótima oportunidade de conhecer diversos lugares da cidade e aprender uma nova função. O motorista era um nikkei baixo chamado Hideo. O primeiro local de entrega foi
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em uma tinturaria na rua Nilza, na Vila Esperança, na zona leste, onde o carro só chegava com corrente amarrada nos pneus nos dias de chuva. Devíamos entregar cem litros de sabonete líquido que estavam em um velho barril de vinho. — Pode me ajudar a descarregar a mercadoria? – perguntei amigavelmente para Hideo. — Você é meu ajudante e quer me dar ordens? É a sua vez de trabalhar. Sem jeito com aquela resposta atravessada, desci as escadas e pedi ajuda na tinturaria. — E o motorista? — Ele está machucado. Mas veio mesmo assim porque estamos com falta de gente para trabalhar… O Hideo era um motorista impaciente: acelerava repentinamente na hora da partida, freava bruscamente sem se importar em acompanhar o fluxo dos outros carros. Ele fazia o mesmo nas últimas entregas do dia, quebrando as garrafas soltas. Mesmo assim, era convincente na hora de pedir desculpas. Em um dia chuvoso, quando paramos no posto de gasolina, tentei lavar a lama do para-brisa da frente porque achei que aquilo dificultaria a visão do motorista, mas ele começou a gritar comigo: — Vai pra lá! Não pedi nada para você! Durante os cerca de dez dias em que fui o ajudante de entregas, continuava a limpar o depósito depois do expediente. O Takeuchi-san reconheceu meu esforço: — É louvável. Você ainda cumpre suas tarefas mesmo depois de fazer outro serviço. — Como eu fui contratado para limpar, não posso deixar a faxina de lado. O Comércio Lira tinha uma outra loja que vendia produtos residenciais como rádios, fornos e querosene, mas não estava financeiramente bem. A atitude dos funcionários, como a do motorista Hideo, que faltava sem dar justificativas, não contribuía para melhorar a crise. — Eu tenho habilitação profissional… – confessei para o gerente Takeuchi-san. — Você tem sempre uma surpresa escondida, Ikesaki-kun. Poderia fazer as entregas, então? Traga sem falta o pagamento das mercadorias porque as notas estão sob protesto. Leve alguns ajudantes… — Não preciso de ajudantes. Posso ir sozinho. — Sozinho? Mas tem mercadoria com uns cem quilos. Consegue dar conta? — Pode deixar comigo. Pedi para carregarem as mercadorias do dia. Prestes a sair, perguntei ao funcionário da administração: — O que é protesto? Ele me explicou que quando um cheque ou uma nota promissória não era paga no dia do vencimento, o credor denunciava no cartório. Se a denúncia fosse aceita, o credor cancelava todas as transações. Se a dívida não for paga, pode levar o devedor à falência. O único jeito que o Comércio Lira tinha para conseguir limpar o nome era entregar as mercadorias, receber o dinheiro e saldar a dívida. Mas o setor de entregas não estava nem aí. Quando não conseguiam cumprir a meta do dia, as entregas ficavam para a semana seguinte. — Até que horas o cartório funciona para liquidar o pagamento e retirar a denúncia? — Até quatro e meia. Eu parti decidido a cumprir essa tarefa. Quando retornei, fui imediatamente para o escritório. O relógio na parede marcava exatamente quatro horas. — Ikesaki-kun, o que faz aqui de volta tão cedo? Bateu o carro? – perguntou Takeuchi-san ao me ver. — Já entreguei tudo.
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O primeiro pedido que recebi foi de duas garrafas de benzina. Não compensava nem a viagem, mas como havia dado minha palavra, fui entregar ainda à noite. (...) Andava tanto que as solas dos sapatos ficaram completamente gastas. Com o tempo, o resultado começou a aparecer e os pedidos foram se multiplicando. Não era mais eu que ficava atrás dos clientes; eles é que passaram a vir atrás de mim.
— Você está me dizendo que saiu daqui com duas horas de atraso, mas está voltando duas horas mais cedo? Não foi só isso. Depois, Takeuchi-san questionou se o valor do reembolso da gasolina estava certo, pois gastei apenas metade do que os outros. Descobri que os motoristas pediam notas fiscais com valores maiores nos postos e embolsavam a diferença. O gerente parou de acreditar cegamente nas palavras dos empregados, que estavam cada vez mais insatisfeitos comigo. É claro que, na visão deles, a culpa era minha. Para eles, o problema não estava em não cumprir os prazos e superfaturar o valor do reembolso. Mas em mim, que revelei o esquema, ainda que sem querer. Para aumentar a eficiência do trabalho, já entregava a fatura antes de descarregar a mercadoria. Até então, o departamento comercial enviava a fatura em separado. Eu podia ser apenas um caipira empolgado com o trabalho, mas estava botando todo o processo de pernas para o ar. Em seguida, Takeuchi-san convidou-me para ser vendedor da distribuidora na região de Santo André, onde havia tinturarias de japoneses espalhadas. — Sou tímido, acho que não levo jeito para isso. – Apesar da minha recusa, ele insistiu – e acabei aceitando. Sem experiência, como conquistaria novos clientes? Quebrei a cabeça. Fiz o itinerário. Precisava pegar quatro conduções para chegar na primeira visita, e faria o restante a pé. Na minha maleta, coloquei espanador, pano, fita crepe, grampeador, cola, cartolina, tesoura, caneta, a lista de preços e o talão de pedidos. A primeira loja não quis nem me ouvir. A segunda disse que estava satisfeita com o fornecedor. Precisava fazer algo diferente para quebrar a primeira barreira de aproximação. Na terceira, pedi para usar o banheiro. Assim tive a chance de entrar na tinturaria para ver os produtos nas prateleiras. Pedi ao dono que me deixasse limpá-las. Ele, claro, não fez qualquer objeção. Tirei todas as garrafas do lugar. Abri a maleta, passei o espanador para tirar o pó. Em seguida, passei o pano úmido. Ao mesmo tempo, já anotava os produtos que estavam faltando ou vencidos. Escrevia o nome dos produtos na cartolina para grudá-la na prateleira com fita crepe ou grampeava, dependendo do tipo de madeira. Por último, deixava a lista de pedido, juntamente com meus contatos. – Nosso preço é justo. Se o senhor precisar de qualquer produto venho entregar. O primeiro pedido que recebi foi de duas garrafas de benzina. Não compensava nem a viagem, mas como havia dado minha palavra, fui entregar ainda à noite. Talvez ele estivesse me testando. Entre um cliente e outro, andava tanto que as solas dos sapatos ficaram completamente gastas. Com o tempo, o resultado começou a aparecer e os pedidos foram se multiplicando. Não era mais eu que ficava atrás dos clientes; eles é que passaram a vir atrás de mim. Depois de alguns dias, Takeuchi-san convocou uma reunião com todos os funcionários e pediu que eu ficasse ao seu lado, de frente para todos. — Graças ao esforço de todos, estou recebendo elogios dos sócios. No entanto, como vocês devem saber, isso aconteceu desde que o jovem Ikesaki veio para cá. Desde então, este depósito mudou completamente, começando da limpeza interna até as entregas. Foi como se tivesse renascido. Por isso, tenho um pedido a fazer a todos. De hoje em diante, o Ikesaki será o encarregado deste depósito. Conto com vocês para que o ajudem. As pessoas começaram a se olhar, incrédulas. Quando Takeuchi-san se afastou, o motorista Hideo foi em direção à mesa onde as garrafas rotuladas estavam enfileiradas e, num gesto brusco, começou a quebrar as que estavam ao alcance do braço. Os produtos químicos se misturaram e emitiram um cheiro forte e insuportável. — Eu disse que era para tomar cuidado com esse moleque! Nós trabalhamos com esforço durante muitos anos. Mas esse puxa-saco aparece do nada e leva todo o crédito! E agora virou nosso superior! Eu não acredito nisso! – gritou Hideo. O discurso imprevisto e absurdo dele me surpreendeu. Em seguida, eles vieram ameaçadoramente em minha direção como se quisessem me agredir. Seria impossível trabalhar com aquelas pessoas. Depois que os ânimos se acalmaram, fui até o banheiro, coloquei as roupas do vestiário na minha mala, saí do depósito e fui até o escritório.
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— Ei, Ikesaki, ainda está cedo para almoçar. O que veio fazer? – disse o gerente da contabilidade. — Vim pedir demissão. — Mas não iam fazer uma reunião na fábrica para promover você? Foi o que me contaram. — Esqueça isso. Apenas escreva o meu pedido. — Se você quebrar o contrato, vai ter de pagar uma multa. — Não me importo. Eu vou sair de qualquer jeito. Enquanto conversávamos, três garotas que trabalhavam no escritório pararam de bater à máquina e vieram falar comigo: — Cáqui? Você vai embora? Reconheci as garotas que fizeram parte daquele grupo que riu da minha cara por trabalhar aos finais de semana no depósito lavando garrafas. — Cáqui? Quem é Cáqui? — É você. Você sempre está usando uma camisa de cor cáqui – disse uma delas. É verdade, eu tinha duas camisas cor cáqui e sempre usava uma enquanto lavava a outra. A cor não destacava a sujeira. — Por que vai se demitir? Nós contamos muito com o seu trabalho – disse outra. Mas quem estava me dizendo isso? As garotas que me chamaram de “puxa-saco”e que provavelmente riam pelas costas chamando-me de “Cáqui”? Pedi ao gerente da contabilidade para preparar os documentos da demissão. Assim que deixei para trás o Comércio Lira, que ficava na Baixada do Glicério, pensei: “Onde vou trabalhar agora?”
Motorista de táxi No mesmo dia em que pedi demissão do Comércio Lira, fui pegar o ônibus no Vale do Anhangabaú, no Centro, para voltar para casa. Ao lado, vi alguns motoristas de táxi fazendo algazarra. O horário de maior movimento de manhã terminara e estavam no ponto relaxando. Um desses grupos tinha seis homens segurando palitos de fósforo na mão e falando números em voz alta. Enquanto observava, um homem de estatura baixa e rosto cheio de sardas bradou em voz alta para todos ouvirem: — Hoje eu ganhei. Agora vocês estão me devendo um sanduíche. Ao perceber meu interesse, perguntou: — Você não conhece o jogo? — Não. — Neste jogo, cada um começa com seis palitos de fósforo, depois segura na mão o número que deseja e tenta adivinhar quantos palitos estão em jogo. Quem acerta, deixa um palito seu no meio. No final, ganha quem ficar sem nenhum palito. Após conversarmos um pouco, perguntou: — Mas, japonês, você sabe dirigir? Tem habilitação de motorista profissional? — Tenho. — E está trabalhando agora? — Estou sem emprego. — Que sorte. Acabei de brigar e despedir um de meus motoristas. Venha comigo – disse o homem cujo apelido era Ferrugio, mostrando-me um Chevrolet modelo 41 estacionado na ladeira. — Quais são suas condições?
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...o trabalho de taxista estava dando certo. Eu conhecia ruas, bairros e rotas de São Paulo graças ao trabalho de entrega no Comércio Lira. Se cuidasse apenas da faxina do depósito, nunca conseguiria trabalhar como motorista de táxi. Acredito que a expressão budista “inga ôhô”, que significa “causa e efeito”, “carma”, “ter o que merece”, é uma grande verdade. O trabalho feito por alguém volta três ou quatro vezes mais valorizado.
— Dividimos a renda meio a meio. Metade do que ficar marcado no taxímetro será seu. Devolva o carro sempre com o tanque cheio – disse Ferrugio. Sentei no banco do motorista e primeiro dei uma checada no funcionamento do freio e na folga do volante. Com o Ferrugio no banco ao lado, rodei um pouco pela avenida São João, entrei pela Duque de Caxias, Rio Branco, que, na época, tinha um terço da largura atual. Depois voltei passando pela rua Paissandu. As condições do carro eram precárias. — E se bater o carro? — Se você não tiver culpa, não precisa pagar. Mas se a culpa for sua, você paga. — E se enguiçar? — Esse carro já tá velho e acabado. Se for um problema previsível, eu mesmo pago. — Senhor Ferrugio, você é uma pessoa justa. Gostei de suas condições. Enquanto ele voltava a jogar palito, chegou um passageiro. Fui até Pinheiros. De lá, só peguei outros que queriam ir para o sul, como Diadema. Com isso, fui me afastando cada vez mais da região central e de minha casa na zona norte. Quando dei por mim, já havia passado das dez da noite. Quando cheguei em casa, quase à meia-noite, avistei a luz acesa. Estacionei o carro e entrei sorrateiramente pela porta da cozinha que ficava nos fundos. — Hirofumi, onde você esteve? – perguntou meu pai. — Estava trabalhando. — Trabalhou até meia-noite, é? Eu não me lembro de ter ensinado você a mentir. Fiquei quieto enquanto ele me dava um sermão. Abri a tampa da panela para ver o que havia. Não tinha comido nada o dia todo, mas a panela estava vazia. Minha falta de atenção pareceu tê-lo irritado ainda mais: — Por que está mentindo? — Não estou mentindo. Eu estava trabalhando. — Ah, é? Trabalhando em quê? Você sabe quem está na sala de visitas agora? Seus patrões. Eles chegaram às nove e estão esperando até esta hora. Contaram que você saiu da empresa às onze da manhã! Eu me assustei ao saber que tinha gente do Comércio Lira em casa. — Vá até a sala e peça desculpas! — Papai, eu… não posso me encontrar com eles hoje. — Você causou incômodo a eles, não seja irresponsável. — Papai, talvez a culpa seja realmente minha, mas deixe-me descansar hoje. — O que foi que você aprontou? Fomos até o quarto entre a sala e a cozinha e apontei para o lado de fora da janela. — Aquele carro lá parado é um táxi. Estava trabalhando nele até agora. Agora era meu pai quem estava assustado. E percebeu que havia algo muito complicado nessa história. — Mas de quem é aquele carro? — É de um gaijin que acreditou em mim. Ele até permitiu que eu viesse com o carro até em casa. Dei uma rápida explicação sobre o que ocorreu e disse a ele para pedir ao pessoal do Comércio Lira que voltasse no dia seguinte. Acordei às quatro horas da manhã para fazer várias viagens de lotação do Jardim São Paulo até o Centro. Quando a procura acalmou, comi um sanduíche aproveitando o tempo de encher a gasolina. Pedi para o Ferrugio, o dono do táxi, fechar a conta do taxímetro antes de ele começar a brincar de palito e paguei a metade que lhe devia.
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Centro de São Paulo em 1949. Praça Ramos de Azevedo em frente ao prédio de energia elétrica Light, próximo ao início do Viaduto do Chá
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A minha experiência na tinturaria ajudou muito nas demonstrações, e a presença do presidente da empresa mostrava a importância que dávamos aos clientes. Voltava para casa depois da meia-noite, mas o esforço foi recompensado. Após alguns meses, o Comércio Lira começou a recuperar suas forças.
Trabalhei novamente até meia-noite e voltei para casa com a barriga roncando. E encontrei a luz de casa acesa de novo. — Eles estão aqui de novo – disse meu pai. – Querem conversar com você de qualquer jeito. — Papai… sinto muito. Ainda não estou preparado. Por hoje, recuse em meu nome. Diga que voltarei lá para pedir desculpas. Para a minha alegria, o trabalho de taxista estava dando certo. Eu conhecia ruas, bairros e rotas de São Paulo graças ao trabalho de entrega no Comércio Lira. Se cuidasse apenas da faxina do depósito, nunca conseguiria trabalhar como motorista de táxi. Acredito que a expressão budista “inga ôhô”, que significa “causa e efeito”, “carma”, “ter o que merece”, é uma grande verdade. O trabalho feito por alguém volta três ou quatro vezes mais valorizado. Ao voltar para casa a luz estava acesa novamente. O Takeuchi-san e Masato Nishimura-san, um dos sócios, foram a minha procura por três noites seguidas. Raramente tinha encontrado com o Nishimura-san. Eu vestia a minha camisa cáqui de sempre. Quando me viram, os dois se levantaram rapidamente e seguraram firmemente a minha mão. — Nishimura-san, Takeuchi-san, me desculpem… Sei que atrapalhei a empresa. — Não estamos aqui para isso – respondeu Takeuchi-san. — Eu pensei que você estivesse trabalhando satisfeito lá, mas saiu no mesmo dia. Depois que você veio, a empresa começou a se revitalizar. Você não quer voltar? Queremos que volte por um salário justo. Takeuchi-san e Nishimura-san abaixaram a cabeça simultaneamente, pedindo desculpas. O meu pai, que escutava a conversa, interveio: — Hirofumi, pessoas importantes estão abaixando a cabeça para você. Volte! Na época, o Comércio Lira era famoso entre os japoneses e nikkeis de São Paulo. — Não tenho ambiente para trabalhar naquela empresa. O pessoal do depósito não gosta de mim. O Nishimura-san me explicou que trabalharia no escritório central, como assistente direto do Takeuchi-san, em uma posição para supervisionar os serviços. Meu pai arregalou os olhos. — Nishimura-san, meu filho Hirofumi não tem condições de assumir tal responsabilidade. — Discordo, o seu filho consegue. Pode acreditar. — Nishimura-san, eu não conseguirei. Uma vez, quando lavava garrafas no domingo, eu abri a porta porque alguém batia, fui chamado de “puxa-saco” e riram de minha cara. Não existe ambiente de trabalho. — Tem ambiente, sim. Eles estão mudando de opinião a seu respeito. O meu pai me ordenou: — Veja só como eles estão pedindo. Aceite, Hirofumi. — Nesse caso, esperem dois dias até sexta-feira. — Por quê? — Podem dar uma olhada no carro parado em frente…? Eu contei a eles que uma pessoa que não me conhecia confiou em mim, emprestou o carro e me ofereceu o trabalho de taxista. Não poderia deixar uma pessoa assim na mão. No dia seguinte, encontrei Ferrugio para explicar a situação, mas ele me pediu: — Em vez de 50% pode ficar com 60, não, 70%, por isso, continue trabalhando comigo. Além de não bater o carro, você ganha bastante. Portanto, não me importo de ficar com 30%. — Ferrugio, não é questão de dinheiro. O meu pai quer que eu trabalhe lá. Fiquei contente por você confiar em mim logo de cara. Não sabe como estou grato por isso. Minha intenção era trabalhar muito. Mas existe uma lógica naquilo que o meu pai e os homens da empresa falam. Eu preciso ir.
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Superando as próprias limitações Ao pisar no escritório do Comércio Lira, os funcionários se levantaram e começaram a bater palmas. Fiquei sem jeito e agradeci o gesto, abaixando a cabeça à moda japonesa. Fui conduzido até uma sala, onde a diretoria estava reunida. Nishimura-san, sócio da empresa, explicou aos demais o resultado do trabalho que realizei no depósito e o convite para voltar ao escritório como assessor direto do gerente Takeuchi-san para revitalizar os negócios. — Ikesaki-kun, gostaria de dizer algo? – perguntou Nishimura-san. — Não tenho experiência em um escritório, mas já administrei uma tinturaria. Gostaria de ter a colaboração de todos para entender como os negócios funcionam para definir uma política. Sem isso, não saberei para que lado remar. Será que eu poderia ver o balanço, a situação patrimonial, as dívidas. Nishimura-san explicou que as análises eram feitas apenas uma vez por ano para fechar o balanço. Solicitei urgência, pois tratava-se de vida ou morte da empresa. Com as informações que vieram em dez dias, ajudei a criar novas ações. Enquanto isso, conferi o desempenho de cada vendedor externo. Alguns só ofereciam produtos em promoção. Outros tinham ótimo resultado. A situação mais crítica estava em 13 vendedores, que só recebiam salário fixo porque sequer atingiam a cota mínima. Conversei seriamente com cada um deles. — O senhor é casado, tem filhos em idade escolar. A moradia é alugada. Sua única renda é o salário fixo. Como consegue manter o seu padrão de vida? Está trabalhando para outras empresas? Seja sincero porque não pretendo mandá-lo embora, mas preciso que nos ajude a remar este barco que está cheio de buracos. Os vendedores ficavam irritados porque eu era muito mais jovem do que eles. É preciso saber exatamente aonde se quer chegar. Se o alvo está errado, vamos seguir na direção errada. Apresentei a conclusão ao Nishimura-san: — Daremos uma chance aos vendedores. Quem compreender será útil à empresa. Definiremos uma meta mínima de vendas necessária. Quem não cumprir terá de ir embora para evitar que a empresa seja arrastada para o fundo. Sugeri que o próprio Nishimura-san, sócio da empresa, participasse dos eventos de tanomoshi (consórcio financeiro) dos tintureiros. Ele comprou a ideia. Eu fazia as demonstrações dos nossos produtos para fazer propaganda, e a presença do presidente da empresa mostrava a importância que dávamos aos clientes. Voltava para casa depois da meia-noite, mas o esforço foi recompensado. Após alguns meses, as vendas dispararam e o Comércio Lira começou a recuperar suas forças. Passamos a oferecer produtos extras nas apresentações, como um moderno fogão à base de querosene, que podia ser bastante útil e rápido para esquentar o almoço e economizar tempo. Graças à nova estratégia e o esforço dos funcionários, os buracos estavam sendo consertados. O clima de otimismo, no entanto, despertou a disputa com o outro sócio: o irmão mais velho de Nishimura-san, que mal aparecia na empresa quando o barco estava afundando. Mas, agora, ele queria opinar na administração e cobrar dividendos. Ele não entendia que, apesar dos ventos a favor, a situação ainda era crítica. — Você está querendo me enganar, não é? Você fica se divertindo em festas todas as noites e me diz que estamos no vermelho! – acusou o irmão mais velho. Os dois se engalfinharam no escritório. O Comércio Lira estava se desintegrando por dentro. Eu não podia fazer nada para resolver aquela briga familiar. O final foi triste: os negócios foram divididos e vendidos. Nishimura-san ofereceu o depósito onde fui faxineiro sem impor nenhuma condição. — Pague da maneira que lhe for possível.
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Em 1951, tornei-me dono do meu primeiro negócio: Produtos Químicos e Industriais Lill Ltda, especializado em vender e entregar produtos químicos para as tinturarias. O nome foi inspirado em um dos sucessos do cantor japonês Ken Tsumura: “Shanhai gaeri no Lilu” (Lilu que voltou de Xangai). Tirei a última vogal e transformei em “Lill”
Quando meu pai soube da história, quis recusar a oferta. — O meu filho não tem tanto valor. — Senhor Ikesaki, o Hirofumi consegue tudo. Ele faz. Ele tem coragem para cumprir o que quer fazer. Acredite nele. Aceitei a proposta de Nishimura-san. Hoje costumo dizer às pessoas que querem montar um negócio próprio que não existe nada a temer além das próprias limitações.
O primeiro negócio próprio Em 1951, quatro anos após chegar a São Paulo, tornei-me dono do meu primeiro negócio: o Produtos Químicos e Industriais Lill Ltda, especializado em vender e entregar produtos químicos para as tinturarias. O nome faz sentido em japonês, pois foi inspirado em um dos sucessos do cantor Ken Tsumura: “Shanhai gaeri no Lilu” (Lilu que voltou de Xangai). Tirei a última vogal e transformei em “Lill”. Pedi ajuda ao escritório de contabilidade Yamada, que costumava atender japoneses do interior ávidos em abrir negócios em São Paulo. O escritório obteve todas as licenças para revender os produtos químicos em pequenas porções. Em seguida, montei a área de vendas. Anunciei no jornal São Paulo Shimbun: “precisa-se de vendedor”. No dia da publicação, uma enorme fila formou-se em frente ao modesto escritório que havia alugado na rua dos Estudantes, no bairro da Liberdade. A maioria dos candidatos já havia trabalhado na tinturaria da família sem receber nada. Por não serem o filho mais velho, eles buscavam independência em outros empregos. Após uma entrevista rápida, escolhi 15 vendedores entre os 50 candidatos. No dia seguinte, outra fila se formou em frente ao escritório. Fiquei sem coragem de dizer que as vagas já estavam preenchidas e contratei mais dez. No terceiro dia, mais fila, mas, desta vez, apenas peguei o contato dos interessados. — Vendam livremente. Não vou estipular as áreas de cobertura neste momento. Peço que, antes de voltarem para casa, tragam a ordem de pedidos do dia ao escritório – orientei. As ordens de serviço foram rapidamente preenchidas. Agora o problema era como comprar e entregar os produtos em tempo hábil. Quando minha família tinha a tinturaria no Tremembé, comprava produtos químicos do Suyama-san, dono de uma loja de varejo. A maior fornecedora do ramo era a P. Crespi, no Brás, onde um vendedor chamado Vicente sempre se mostrava eficiente, entregando rapidamente os produtos, evidenciando a importância do atendimento. Comprei um talão de ordem de vendas, papéis-carbonos e copiei a tabela de preços da P. Crespi. Pedi o furgão Fordson, que meu irmão mais velho ganhou como prêmio de vendedor da imobiliária Nakano. Ele usava um jipe durante o trabalho, e o furgão ficava encostado. Dividi a cidade em seis setores para revezar as entregas de segunda a sábado. Na segunda, percorreria da Liberdade até a Lapa; depois, Santo Amaro e assim por diante. Calculei a quantidade de litros das encomendas e fui até a P. Crespi. — O que vai fazer com tudo isso? – perguntou a atendente da P. Crespi. Dei uma desculpa qualquer e ela me entregou várias caixas cheias de garrafas com os produtos químicos, que eu dividiria em porções menores. Para me ajudar no preparo dos produtos, tinha chamado o Hirose-kun, um vendedor simpático, mas que não conseguia ter um bom resultado nas vendas. — Encha o balde de água e arranque os rótulos. Quando tirar, enxugue bem e cole os nossos rótulos. Tome muito cuidado na hora de colocá-las de volta na caixa – ensinei-o, enquanto me lembrava dos tempos em que eu mesmo executava essa função no antigo Comércio Lira. A cola de farinha tinha que ser grudada rapidamente para não rasgar os rótulos. Enquanto Hirose-kun colava, eu mantinha um olho nos caminhões dos fornecedores da P. Crespi. Quando saíam do portão, perguntava
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O primeiro negócio próprio aberto por Hirofumi Ikesaki: Produtos Químicos e Industriais Lill Ltda, em 1951
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Durante muitos anos, fiz questão de entregar pessoalmente os produtos químicos nas tinturarias. Assim podia manter contato com os lojistas e acompanhar as novidades do mercado. Entre um papo e outro, uma entrega aqui e ali, aconteciam situações inusitadas e curiosas.
ao motorista qual produto estava carregando. Quando seguiam em direção oposta era um sufoco. Saltava do furgão, corria o mais rápido que podia antes que o motorista alcançasse a avenida. Comprar diretamente da fabricante significava uma vantagem competitiva que faria meu negócio mudar de patamar. Nem mesmo o antigo Comércio Lira fazia isso. Não foi fácil convencê-los a vender para mim, que só tinha uma pequena loja recém-aberta. Com muita insistência, venci esse obstáculo. Como a maioria dos tintureiros da cidade era de japoneses, que eu já conhecia do antigo emprego, fomos conquistando clientes dos concorrentes. Enquanto ainda pagava as prestações sobre os investimentos, passei a distribuir maquinário para tinturaria, ampliando a área de atuação. Sempre gostei de imprimir um ritmo veloz nos negócios. Ficar parado, esperando as coisas acontecerem, nunca foi comigo.
A primeira loja na Liberdade
[1] N. Do Tradutor: Provavelmente ele estava fazendo uma interpretação japonesa de personalidade baseada no nome e sobrenome. [2] N. Do Tradutor: a tradição popular japonesa prega que quando o nome é bom demais e a pessoa não está preparada para lidar com a vibração decorrente, essa pessoa pode “perder para o nome” e acabar se desencaminhando.
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Durante muitos anos, fiz questão de entregar pessoalmente os produtos químicos nas tinturarias. Assim podia manter contato com os lojistas e acompanhar as novidades do mercado. Entre um papo e outro, uma entrega aqui e ali, aconteciam situações inusitadas e curiosas. Certa vez, estava terminando de descarregar os produtos em uma grande tinturaria na Praça da Árvore. Os filhos ajudavam a tocar o negócio. Já as duas filhas ficavam na sala de visitas costurando. Ao me ver, uma delas ficou me encarando atentamente. Até pensei que minha camisa pudesse estar rasgada e ela fosse se oferecer para remendar. Para minha surpresa, ela pediu licença, começou a mexer nos meus cabelos, puxar minha franja para baixo. — Eu sabia! Veja, ele é igualzinho ao Keiji Sada – disse ela, empolgada. Olhando pela parede em volta, reconheci fotos de astros recortadas de revistas: Keiji Sada, Sadaji Takahashi, Keiko Kishi, Ayako Wakao, Machiko Kyo, Fujiko Yamamoto, Hibari Misora, Chiemi Eri. Não sabia dizer se elas estavam me comparando a um galã de cinema para rir da minha cara ou se eram elogios sinceros. Só sei que fiquei vermelho, a ponto de voltar voando para o caminhão. Este engraçado “incidente” me fez ficar mais próximo da família delas. Outra história curiosa que lembro foi quando estava com meu amigo Ookubo-kun, que se ofereceu para me acompanhar nas entregas de fim de semana. Na última parada, o dono estava ausente e ficamos esperando na calçada em frente à tinturaria na Alameda Nothmann. Um velho de barbas brancas, andando de bengala e carregando um saco, se aproximou e parou ao nosso lado. Parecia nos observar com um ar de superioridade. Levantamos para encará-lo e vimos que aquele estranho era um japonês. — Estão trabalhando num sábado e neste horário? Vocês devem ser rapazes honestos. Eu faço leitura de mãos e do nome. Qual o seu nome? Curioso, Ookubo-kun escreveu o nome em uma folha de papel. O velho olhou as letras de vários ângulos, fazendo perguntas como a profissão e a província do pai. — Seu pai é um grande estudioso. O seu nome tem ímpeto e brilho. É maravilhoso. Digo… o seu pai foi incrível por dar esse nome para você. O sobrenome e o nome estão muito bem “acomodados”[1]. — Mas eu não sou ninguém tão importante – disse Ookubo-kun, com certo embaraço. — Nesse caso você precisa fazer um esforço para não ser “derrotado pelo nome”.[2] — Sim, vou dar o melhor de mim. Em seguida, segurou a palma da mão do meu amigo.
Ikesaki dirigindo um velho furgĂŁo para entregar produtos quĂmicos
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Nos meus vinte e poucos anos, eu tinha três amigos inseparáveis, na mesma faixa de idade: Kawamura-kun, Ookubo-kun e o meu primo Egami-kun. Não éramos “sanba garasu”, mas “yonba garasu” (quarteto de corvos).
— Ookubo-kun, as linhas de sua mão também são magníficas – e continou tecendo elogios a ele. Quando chegou minha vez, recusei polidamente. — Existem ocasiões em que talvez seja melhor não saber o que vai acontecer – respondi. Preferi que ele não “visse” meu futuro. Acredito que os caminhos são abertos pelo próprio esforço e não pelas letras do ideograma ou as linhas da palma das mãos. Nesse momento, o dono da lavanderia retornou e fui descarregar os produtos, dando a desculpa certa para nos despedirmos do velho místico. Foi graças ao contato e às conversas informais com os donos de tinturarias que aprendi a reconhecer o “espírito” da administração de uma loja. Na maioria dos casos, os chefes de família se acomodavam em relação ao futuro dos negócios. Se o rendimento fosse suficiente para que os filhos crescessem e se tornassem independentes, já se davam por satisfeitos, como se a missão deles terminasse aí. Minha visão sempre foi completamente diferente. Sempre pensei em construir um negócio sólido, para que os netos dos meus netos levassem adiante. Eu sabia que ainda estava longe disso. Mas, em 1953, dei mais um passo. Decidi montar a loja de produtos químicos em um ponto fixo. Encontrei um velho imóvel na rua dos Estudantes, 26, na Liberdade. O bairro estava crescendo. Várias lojas de produtos japoneses estavam progredindo e outras, chegando. As ruas Conselheiro Furtado e Galvão Bueno eram as mais movimentadas. Eu ainda não tinha recursos para alugar um imóvel nestas vias principais. Mas estar no bairro já era suficiente naquele momento. Fiz uma pequena reforma para instalar as prateleiras para organizar os produtos. A estrutura, no entanto, deixava muito a desejar. Certo dia, uma chuva forte derrubou o telhado sobre os produtos da loja, quebrando garrafas, molhando as mercadorias e causando um grande prejuízo. Fui atrás do sr. Saverio, um português, dono de uma padaria e locador do imóvel. Ao encontrá-lo embrulhando os pães atrás do balcão, ele me encarou e parecia não se animar em ver os estragos na loja. Quando finalmente apareceu, não admitiu qualquer responsabilidade. Percebi que não adiantava discutir. Em vez disso, preferi negociar com o velho português. — Tenho vontade de permanecer aqui. Se me garantir um contrato de cinco anos, eu conserto por conta própria. Depois de muita conversa, acertamos um contrato de seis anos, reajustando os valores a cada dois anos. Remodelei o espaço, construindo um mezanino ao fundo, arcando com os custos da reforma. Foi assim que comecei minha história na Liberdade, em um espaço limitado, mas sempre mantendo a visão de longo prazo.
Os três amigos “Sanba garasu”, em japonês, significa trio de corvos. É uma expressão usada para nomear as três pessoas mais importantes de um grupo. Nos meus vinte e poucos anos, eu tinha três amigos inseparáveis, na mesma faixa de idade: Kawamura-kun, Ookubo-kun e o meu primo Egami-kun. Não éramos “sanba garasu”, mas “yonba garasu” (quarteto de corvos). Estávamos na casa de Shibata-san, dono de uma tinturaria no Bosque da Saúde, onde costumava entregar produtos químicos. Ficamos amigos de suas cinco filhas com a mesma idade que nós. Dentre elas, a Motchan era alvo da admiração de todos. No início da década de 1950, os japoneses já comemoravam o Carnaval. Um dos lugares mais prestigiados era o Cine Nikkatsu, na rua São Joaquim, no bairro da Liberdade. O Kurachi-san, dono do cinema, parou sua bicicleta em frente à casa para nos convidar para o grande baile de Carnaval daquela noite. Eu, que não sabia dançar, recusei de forma veemente ir ao baile. Motchan insistia: — É sua chance de aprender os passos de Carnaval. Uma noite dançando, você aprende. Hiro-chan, por mais que se considere caipira, você mora em São Paulo – disse ela.
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Entramos no salão guiados pela voz animada de Kurachi-san. Descemos um leve declive atrás das poltronas do cinema e avistamos bandeirinhas triangulares penduradas em fios amarradas entre as árvores do jardim. Apitos, chapéus de festa e camisas combinadas eram distribuídos para os convidados. Em diversos pontos do salão, havia barris de madeira, onde guaranás e cervejas eram mergulhados em pedaços enormes de gelo. Grandes bandejas estavam repletas de sanduíches recheados de linguiça ou mortadela. Para os meus padrões, era uma festa opulenta. O lugar estava tão cheio e animado como se todos os jovens japoneses e nikkeis de São Paulo estivessem ali. Festas como essas de Carnaval, no entanto, eram uma exceção na minha rotina. Geralmente trabalhava aos sábados e domingos, entregando os produtos para as tinturarias. Quando folgava, havia muitos outros afazeres em casa. Em outros fins de semana, os três amigos passavam na minha casa. Enquanto terminava minhas tarefas, os três pegavam o fonógrafo Victor para escutar a coleção de discos de meu pai, que incluía músicas populares de cantores como Hisao Ito e Noboru Kirishima, além de gravações de naniwabushi[1] e manzai[2]. Eu gostava de escutar naniwabushi. Por volta do meio-dia, enquanto comia um sanduíche, passei o olho nos classificados do jornal. “Vende-se Chevrolet 34” eram as palavras que dançavam diante de mim. Elas continuavam com “totalmente reformado”. Mesmo com quase vinte anos de uso, o preço chamava atenção, pois equivalia a apenas umas três sacas de arroz nos dias de hoje. — O preço deve estar errado. Mesmo assim, estou pensando em ir de ônibus até lá. E nós quatro fomos de ônibus a Guarulhos meio que na farra. Foi fácil achar o endereço, embora não fosse um lugar comum para se comprar um carro. — É uma igreja! Tem certeza de que o número está certo, Hiro-chan? Descemos a escada da igreja até o porão, onde encontramos um senhor magro, que confirmou a oferta do jornal. Uma porta aos fundos dava em outro porão, que servia como uma oficina. Quando ele acendeu as luzes, o automóvel se revelou. — Mas que beleza! – exclamei. — Claro que é uma beleza. Eu gosto de carros e restaurei este aqui sozinho. É meu orgulho. O couro dos assentos tinha a textura perfeita e até os pneus estavam novos. — Mas o motor funciona? O homem girou a chave de ignição. O ronco do motor do Chevrolet estremeceu as paredes. Meu coração também vibrou de emoção. Ele mostrou os documentos, mas meus amigos e eu notamos um problema. — O carro não tem chapa? O homem nos levou para outra sala pequena. — Que chapa preferem? Que número vocês querem? – disse preenchendo o certificado de registro veicular. – Sou eu quem coloca todas as chapas em Guarulhos. Mesmo incrédulo, paguei o homem. Subimos no carro e demos a partida. Começamos a voltar para casa, sentindo-nos “ludibriados por uma raposa”, como diriam os japoneses. Seria roubado ou um calhambeque inútil? Vrum, vrum, vrum… O som do motor parecia perfeito. — Oh! Este carro tá ótimo – disse Kawamura-kun, entusiasmado. — Hiro-chan, vamos até Santos! – sugeriu Egami-kun. Na manhã seguinte, estávamos os quatro descendo a serra com o Chevrolet 34. — O freio não tá funcionando! – gritei para o Ookubo-kun que estava ao meu lado. Se cometesse o menor erro na direção, o carro atravessaria a proteção e cairíamos no vale. Com a cara pálida e mãos aflitas, Ookubo-kun puxava o freio de mão com força, sincronizando com as manobras que eu fazia ao volante.
[1] Naniwabushi – Gênero tradicional japonês de música narrativa. É normalmente acompanhado do som de shamisen. [2] Manzai – Uma espécie de “stand-up comedy” tradicional japonês feita em dupla.
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A loja e a venda de produtos químicos para tinturaria cresceram de vento em popa, o que abriu uma oportunidade para investir em um novo negócio pioneiro: a produção de detergentes líquidos
Enquanto berrávamos, a velocidade ultrapassava 60, 70 quilômetros por hora. Quando a ladeira ficou um pouco menos inclinada e a estrada ficou mais larga, finalmente conseguimos parar o carro. Ainda estávamos na metade da descida até Santos. Depois que o carro parou, todos ficaram um bom tempo em estado de choque. — Ei, ei! Fiquem firmes! Só poderemos voltar se chegarmos até Santos. Cada um desça pela encosta e busquem troncos de madeira. Se tiver alguma árvore que dê para quebrar, quebrem-na e tragam os troncos até aqui. Mantivemos as portas do carro entreabertas e atritávamos as madeiras contra o chão para funcionarem de freio. O carro desceu emitindo um chiado com os troncos raspando no chão até, finalmente, vencer a serra. — Pensei que fôssemos morrer. — Foi uma descida rápida que nem mesmo uma tropa paraquedista faria igual. Uma vez em Santos, pudemos rir do ocorrido e transformá-lo numa lembrança divertida. Com exceção do problema do freio, o carro se mostrou perfeito.
Preparando-se para dar grandes passos Ainda não eram oito horas da manhã de um sábado de 1961, quando fui abrir a loja de produtos químicos para tinturaria na rua dos Estudantes, na Liberdade. Um senhor de chapéu de palha estava sentado em frente à loja. Não parecia um morador de rua. Bati levemente em suas costas, mas ele continuou dormindo. — Com licença, mas preciso trabalhar… – disse, cutucando seu joelho. Ele levantou-se rapidamente, derrubando uma marmita. Ao se agachar para pegá-la, deixou cair o jornal. Sem falar nada, apontou um anúncio nos classificados do jornal em japonês, entregou em minhas mãos e foi embora. Com muito trabalho, não consegui dar atenção àquele pedaço de jornal até a hora do almoço. “Vende-se casa na rua São Paulo”, dizia. O endereço ficava próximo à loja. Não custava conferir o que aquele homem misterioso tinha me trazido. Fui até a casa. Toquei a campainha. Uma senhora surgiu na janela. Em seguida, o marido, dono de uma loja de cereais, que herdara o imóvel de três andares. Após avaliar as instalações e escutar o preço, vi que valia a pena fazer uma proposta, mas impus uma condição, já que não tinha o dinheiro. — Posso parcelar em três anos? — Não posso esperar tanto tempo! Olhei para a placa de “vende-se”, que estava velha e com as bordas enferrujadas. — Foram vocês que colocaram a placa? Ou foi a imobiliária? — Fomos nós. — Uma placa enferrujada? — E daí? Qual é o problema? — Vocês devem estar esperando por um comprador há um ano e não arranjaram ninguém até hoje, não é isso? Você pode achar que três anos sejam uma eternidade, mas do mesmo jeito que não apareceu ninguém até hoje, pode ser que não apareça outro comprador nos próximos anos. Comigo você receberá dinheiro. — Você é um bom observador. — Dinheiro eu não tenho, mas vontade de comprar eu tenho mais do que os outros. Que tal melhorar as condições para me ajudar também? Se eu puder pagar em parcelas, não me importo de pagar juros.
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— Que tipo de trabalho você faz? — Vendo produtos químicos para tinturarias. Preciso de um lugar para armazenar os produtos e espaço para engarrafar o líquido. No final, entramos em um acordo e consegui financiar o imóvel graças a um empréstimo bancário. Sem a dica daquele homem misterioso, que até hoje me pergunto quem era, não teria fechado o negócio. Enquanto a venda de produtos químicos e maquinários para tinturaria crescia de vento em popa, apareceu a oportunidade para investir em um negócio pioneiro: a produção de detergentes líquidos. A ideia pioneira ganhou força depois que conheci o Okada-san por meio de um amigo em comum. Okada-san dizia ter sido pesquisador militar durante a Segunda Guerra. Após quinze anos, resolveu deixar o Japão, trazendo uma variedade de máquinas para reiniciar uma nova vida no interior paulista, onde tinha parentes que seriam seus sócios. O negócio não deu certo, e ele veio até São Paulo para tentar aproveitar seus conhecimentos de química. A Companhia de Indústria Química Jeton, nome da nova fábrica, foi instalada em um imóvel na rua Diogo Vaz, 294, no Cambuci. A produção do detergente líquido foi instalada em três andares. Os ingredientes eram misturados no último. Em seguida, ficavam acondicionados em um tanque de uma tonelada do andar intermediário. A mistura permanecia guardada no tanque de cinco toneladas no térreo. Por ser inovadora para a época, ainda não existiam válvulas de aço inoxidável que suportassem aquele tipo de produto químico. Para complicar, ainda não havia no mercado matéria-prima apropriada. Precisávamos iniciar a reação química desde as fases mais primárias, que demoravam vinte horas. Para evitar que o calor da reação química provocasse um incêndio, o tanque de uma tonelada precisava ser resfriado com três barras de gelo de cinquenta quilos. Como o detergente líquido facilitava a lavagem de lã, resolvemos vender diretamente para fábricas têxteis. Um bom detergente com forte penetração lava a sujeira com mais agilidade e aumenta a produtividade. Os vendedores argumentavam que tinham dificuldade de negociar com as fábricas porque não entendiam dos processos químicos. Claro que eu também não entendia do assunto, mas sempre mantive a determinação de ser um bom vendedor. Quando saía em busca de um possível cliente, levava dois cilindros de vinte mililitros e alguns pedaços de tecido. Certa vez, fui recebido pela encarregada de compra da Moinho Santista. Ela recusou o detergente afirmando que estava satisfeita com o fornecedor. — Calma, eu trouxe um produto novo. É barato e deixa o tecido macio e brilhante. Posso fazer uma demonstração? É só trazer o detergente que sua empresa usa agora. Sujei os tecidos no chão e coloquei dentro dos cilindros, com algumas gotas de nosso detergente. No outro, despejei a mesma quantidade do concorrente. Agitei os dois recipientes umas cinquenta vezes. Deixei os dois tecidos lado a lado. — Veja como ficou mais branco. Agora compare a maciez. Toque e sinta. E o nosso produto é mais barato. As fábricas faziam pedidos em toneladas. Um novo cliente significava aumentar a produção dramaticamente, o que nem sempre é bom se a empresa não estiver preparada. Como eu me dedicava ao Comércio Lill, deixei a administração da fábrica de detergentes sob a responsabilidade de meu irmão mais velho, de meu amigo Ookubo-kun e de Okada-san, o que acabou não se mostrando uma decisão acertada. Eles não tiveram uma boa visão da área comercial e de vendas. Anos mais tarde, a fábrica foi desativada.
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O jovem Ikesaki atendendo atrás do balcão em sua primeira loja na Liberdade
Capítulo 3
A vida nos negócios 127
Quando entregava os produtos químicos, reparei que as filhas dos tintureiros começaram a abrir salões de beleza dentro da loja dos pais para atender esse novo público. (...) Como o movimento nos salões não parava de aumentar, deduzi que não demoraria para as filhas terem mais lucros que os pais na tinturaria. Não podia ficar assistindo a essa mudança sem fazer nada.
Visão do futuro: nasce a Ikesaki As roupas sintéticas, como as feitas de tergal, começaram a ganhar espaço no guarda-roupa das famílias a partir da década de 1960. Os novos tecidos não encolhiam, não precisavam ser engomados e ainda secavam rapidamente. Com peças fáceis de lavar em casa, percebi que as tinturarias poderiam entrar em decadência nos próximos anos. Os patrícios, no entanto, pareciam não perceber os ventos da mudança e continuavam abrindo novas lojas. Por outro lado, mais adaptados ao Brasil e, em melhor situação financeira, os japoneses adotaram novos hábitos e alguns luxos. Mesmo as senhoras idosas, que até então não se importavam com os fios brancos, começaram a tingir os cabelos. Quando entregava os produtos químicos, reparei que as filhas dos tintureiros abriam salões de beleza dentro da loja dos pais para atender esse novo público. Pelo que vi, elas não precisavam investir muito. Bastava uma bancada com espelhos e um conjunto de secadores de coluna, que podia ficar na sala ou em algum canto ocioso. Como o movimento nos salões não parava de aumentar, deduzi que não demoraria para as filhas terem mais lucros que os pais na tinturaria. Não faz parte de mim ficar parado, assistindo uma mudança como essa sem fazer nada. Decidi abrir uma loja para vender cosméticos para atender esse novo mercado. Em 1964, nascia a primeira Loja Ikesaki, na rua dos Estudantes, onde funcionava o Comércio Lil. Para a logomarca da loja, adotei o kamon (brasão) da família Ikesaki. A primeira vez que o vi foi em um típico traje japonês que meu pai trouxe do Japão. Depois, encontrei uma luxuosa agenda que continha o brasão impresso na capa. Ele contou que também usou o símbolo em sua extinta confeitaria chamada Ikesaki Shokai em nossa terra natal. Tinha confiança de que, desta vez, o brasão traria mais sorte aos negócios. Quando estava prestes a abrir a Loja Ikesaki, fui procurado pelo Minami-san, um apresentador de rádio que veiculava a propaganda do Comércio Lil para os tintureiros. — Ikesaki-kun, tem um patrício, o Hirai-san, dono de uma loja de cosméticos para cabeleireiros ao lado do meu escritório. A loja dele não anda bem. Os irmãos trabalham juntos, mas parece que não estão lucrando. Você está abandonando um ramo muito bom para entrar em outro que não vai bem… — Faço uma aposta. Daqui a 50, 100 anos, na época do neto de meu neto, você acha não haverá mais ninguém interessado em abrir lojas de cosméticos para cabeleireiros? Aposto que no futuro vamos ter termos mais cabeleireiros e lojas de cosméticos do que tintureiros. Sei que ele queria me ajudar devido ao nosso longo relacionamento comercial, mas, no fim, ficou me escutando sem dizer mais nada. Com o tempo, transferi os produtos químicos para o antigo endereço da fábrica de detergentes no Cambuci e passamos a vender apenas cosméticos na loja. O próprio Hirai-san passou a comprar alguns produtos em falta na sua loja para revender. A frequência foi aumentando até que ele passou a comprar quase todos os dias. Como ele estava com dificuldade de caixa, não podia comprar em grande quantidade diretamente da fábrica. Para ajudá-lo, fazia um preço especial, acrescentando apenas o valor dos impostos. Como eu ganhava no volume, acabava sendo um bom negócio. No fim, era como se eu tivesse duas lojas, mas sem precisar arcar com as despesas fixas. Eu sabia que havia outras lojas de cosméticos em dificuldades. Não acreditava que fosse um problema da área, mas dos próprios administradores. Até mesmo um time fraco de beisebol pode ganhar de outro mais forte quando todos estão unidos e cheios de vontade. Mais do que nunca, estava determinado a ser bem-sucedido neste novo ramo: o de beleza.
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Os primeiros salões de beleza da Liberdade
Salão de beleza japonês em 1958. As mulheres passaram a abrir seus salões de beleza. Muitas delas, filhas de donos de tinturaria
Se as barbearias, exclusivamente masculinas, já existiam na Liberdade desde os primórdios da vida nipônica no bairro, os salões de beleza femininos só foram surgir bem mais tarde. Na década de 1950, havia somente quatro estabelecimentos, administrados por filhas de donos de tinturarias. As clientes, quase todas descendentes, começavam a participar ativamente da vida social na região, no período de paz do período pós-guerra e a melhoria gradual nas condições de vida alimentada pelos negócios das famílias. Até o final da década, não havia produtos em grande quantidade vendidos aos cabeleireiros. Por isso, tudo era produzido no próprio salão. Os xampus, por exemplo, eram fabricados nos fundos dos salões, com cascas de limão ou laranja para deixá-los perfumados. Já a água oxigenada só podia ser adquirida no comércio em 120 volumes, então era misturada com água destilada para produzir a versão de 20 volumes, necessária para a descoloração. As clientes eram atendidas individualmente e separadas por cortinas para preservar a privacidade ninguém queria ser vista com os cabelos desarrumados e descoloridos. E se entre as mulheres já havia esse pudor, com os homens a restrição era bem mais severa. Entrar em um salão era proibido como ingressar num vestiário feminino. A partir da década de 60, o número de salões começou a crescer. Tsutomu Akahoshi inaugurou então o primeiro centro de treinamento de cabeleireiros da cidade de São Paulo, a Escola Akahoshi. Localizada na Praça da Liberdade, seus cursos duravam em média dois anos e quem se formava lá já saía renomado no mercado. Em seu auge, a Akahoshi chegou a formar 400 alunas por ano, a maioria delas descendentes de japoneses. Foi de olho nesse nicho que Hirofumi Ikesaki teve a ideia de comercializar produtos de beleza em grande escala para os salões da região.
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Em 1964, nascia a primeira Loja Ikesaki na rua dos Estudantes, onde funcionava o Comércio Lill. (...) Para a logomarca da loja, adotei o kamon (brasão) da família Ikesaki. (...) Tinha confiança de que, desta vez, o brasão traria mais sorte aos negócios.
Os desafios do dia a dia
[1] Depois de alguns anos, Osvaldo Alcantara foi trabalhar no Grupo Ikesaki, onde atua até hoje. É conhecido como “embaixador dos cabeleireiros”. (N.E)
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Quando abri a Loja Ikesaki, sonhei com uma empresa que fosse capaz de competir pelos próximos 100 anos, sempre à frente dos concorrentes. A realidade estava bem longe, mas acreditava nesta capacidade. De qualquer forma, os primeiros anos não foram nada fáceis. Não entendia de cosméticos, e as dificuldades do dia a dia acabavam consumindo grande parte do tempo. Para me ajudar na parte administrativa, contratei um gerente nikkei que já havia sido proprietário de uma loja do ramo. Eu também gostava de conversar com as clientes que entravam na loja para aprender mais sobre o negócio. Muitas entravam à procura de um esmalte de uma marca famosa, mas acabavam saindo sem comprar nada porque não tínhamos a mercadoria. Em qualquer comércio, existem produtos que são o carro-chefe, que ajudam a atrair clientes. E o tal esmalte, com certeza, fazia parte deste seleto grupo. O novo gerente apenas dizia que não estava conseguindo comprar. — Por que não? – perguntei. Ele não soube responder. Não entendia de esmaltes, mas sabia que não ter aquele produto poderia custar a sobrevivência da loja. Não podia assistir de braços cruzados. Fui tirar satisfações na sede da distribuidora de cosméticos, que ficava na alameda Barão de Limeira, no Centro, onde me encontrei com o Alcântara[1], responsável pelas vendas da região metropolitana de São Paulo. A explicação que ele me deu pareceu estranha. — É que o esmalte vende tanto que a produção não consegue atender a demanda, e tenho instruções da diretoria para não vender para empresas novas. — Sr. Alcântara, posso não entender direito como as coisas funcionam, mas acho estranho vocês venderem todos os outros produtos de fora da linha para mim, com exceção de um esmalte. — Me desculpe, mas não poderei atendê-lo desta vez. – Nunca me dou por vencido. Em outro dia, voltei ao escritório dele, sabendo que ele não estaria. Minha intenção era negociar com alguém que pudesse resolver meu problema. Fui encaminhado ao superior dele, o sr. Godói, um homem baixo, gordinho e muito alegre. — Sinto muito, mas não posso passar por cima do encarregado da seção. Percebi que, enquanto fosse apenas uma loja pequena, não teria forças para fazer qualquer exigência naquele momento. Uma vontade se acendeu em mim: “Um dia eles ainda virão atrás de mim para que eu venda seus produtos”. Não desisti. Tinha virado uma questão de honra conseguir o tal esmalte. Gostava de visitar outras lojas para conhecer o sistema de trabalho de cada uma, comparar preços e produtos. Numa das vezes, após o fim do expediente, fui à famosa Escola de Cabeleireiros Seiki, que funcionava no primeiro andar do prédio ao lado da Igreja dos Enforcados (Santa Cruz das Almas), na Praça da Liberdade. A Elza-san, esposa do proprietário, que não me conhecia, até pensou que eu estava interessado em fazer o curso de cabeleireiro. Mas eu estava pesquisando as mercadorias e as marcas que ela vendia na lojinha de cinco por dez metros. Para minha surpresa, até ela tinha o esmalte. Dias depois, Elza-san apareceu em minha loja e tomou um susto ao me reconhecer. — Ah, o senhor é o Ikesaki? Não reconheci o senhor naquele dia. A partir de então, passamos a conversar com mais frequência e, numa das visitas, propus comprar a loja dela, que estava em dificuldades. Ela me ofereceu pelo valor das mercadorias que havia no estoque. Antes de fechar o negócio, procurei o Alcântara e o Godói.
Hirofumi e seu pai, Kameyoshi, em frente Ă loja que cosmĂŠticos na rua dos Estudantes
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O Depósito Helena, na rua Tabatinguera, no Centro, impressionava pelo tamanho, com dez metros de frente e quarenta de fundo. Havia um balcão comprido onde vários empregados atendiam os clientes.
— Se eu comprar uma loja que compra regularmente de sua empresa, vocês vão me entregar o esmalte? — Não vejo problema – disse Godói. — E se essa mesma loja aumentar os pedidos de compra em dez vezes, vocês vão atender? — Claro que sim! — Escrevam isso em um papel. Quero que deixem registrado numa carta de compromisso. Voltarei com o documento de compra e não aceitarei um “não”. Na mesma noite, fui até a loja da Escola Seiki para fazer o inventário das mercadorias e fechar a compra. Só assim consegui colocar o esmalte na prateleira e as vendas ganharam novo impulso. Todo aquele esforço estava valendo a pena, mas sabia que precisava fazer muito mais. O esmalte não era o único produto de sucesso na época: havia um spray para fixar cabelo com bastante saída. Mesmo assim não fazia sentido o gerente ter feito uma compra de duas mil unidades do mesmo spray, já que precisávamos repor outros milhares de itens. As compras em grande volume se repetiam sucessivamente. Comecei a suspeitar de que havia algo errado. A desconfiança virou certeza quando encontrei sprays com vazamento na válvula. Quando mandei o gerente devolver os produtos defeituosos, ele arrumou uma desculpa qualquer. Dei um ultimato. — Você está trabalhando como vendedor da fornecedora, não é mesmo? Posso ser ignorante e caipira, mas tenho um bom faro. Depois desse e de outros vários infortúnios, cheguei à conclusão de que precisava de pessoas de confiança para gerenciar as lojas e chamei meus irmãos para que participassem dos negócios, como meus sócios.
A maior loja de cosméticos da América do Sul Eu ainda era um peixe pequeno, mas, quando o amigo e vendedor Nicolau Ayub chegou com a notícia de que a maior loja de cosméticos para salões de beleza da América do Sul estava à venda, quis conferir com meus próprios olhos. O Depósito Helena, na rua Tabatinguera, 77, no Centro, impressionava pelo tamanho, com dez metros de frente e quarenta de fundo. Havia um balcão comprido onde vários empregados atendiam os clientes. As prateleiras ocupavam dois terços da parede de 3,5 metros de altura. No alto, estavam pendurados Certificados de Consagração Pública, comprovando que se tratava da maior loja de cosméticos do Brasil. O dono, que se chamava Dirceu, era um imigrante italiano calvo e baixo. — Contaram que o senhor vai vender essa linda loja. Posso saber por que? – perguntei. — Estou cansado. Quero tentar algo diferente. Vou me candidatar a vereador. Só os votos dos fregueses da loja me garantem a eleição. Ele pedia 45 milhões de cruzeiros pela loja. Era uma quantia inimaginável para mim. — Acabei de abrir uma pequena loja. — Também tenho uma fábrica de móveis para salões que produz secadores, equipamentos de barbearia, cromação. Quando percebi o potencial que a estrutura montada por Dirceu tinha, pensei que poderia pagar a dívida com o lucro das da própria loja. Estava empolgado, mas, como era de se esperar, as principais barreiras recaíam no prazo do parcelamento. Insistia, mas ele parecia irredutível. — Vou me candidatar, preciso de dinheiro. Não posso esperar três anos. Este lugar tem um contrato de aluguel de cinco anos e ainda restam dois anos e meio. Você nem vai ter problema na hora de renovar – disse ele. Não conheço nada da vida, mas o meu estilo é atacar sempre. Mesmo que não desse em nada, talvez aprendesse a organizar
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Anúncio da Cosméticos Ikesaki na rua Tabatinguera, no Centro
Quando Ikesaki abriu suas lojas de cosméticos, Tsutomu Akahoshi era uma referência de profissional de beleza. No auge, a Escola Akahoshi, na Praça da Liberdade, chegava a formar 400 alunas por ano, prontas para o mercado de trabalho (abaixo)
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Depois que aprendemos a lidar com o novo ponto e a concorrência, foi a vez da administração se mostrar cheia de falhas. (...) A confiança tinha caído a tal ponto que a fornecedora não venderia mesmo se pagássemos à vista
uma loja grande. No domingo de manhã, reuni cinco funcionários para fazer o inventário da loja e levantar se o valor do estoque conferia com o Dirceu havia dito. Para minha surpresa, uma mulher que nos atendeu disse que Dirceu estava em Santos. — Esta loja é minha. E não venderei de jeito nenhum – disse ela bastante brava. Sem opção, fui embora sem fazer o inventário. No dia seguinte, liguei para ele, indignado. — Encontrei uma mulher que disse que a loja era dela. — É minha mulher. A Matilde. — E quem canta de manhã na sua casa? O galo ou a galinha? – provoquei. — Claro que é o galo! – disse ele. Percebi que havia tocado em seu ponto fraco. Ele me convidou para conversar em sua casa à noite, na rua Luís Góis, 509, na Vila Mariana, para continuarmos a negociação. Quando toquei a campainha, Matilde apareceu com cara de desgosto. — O senhor Dirceu está em casa? Sem dar nem boa noite, ela abriu o portão, virou-se e entrou, deixando a porta escancarada. Sem opção, entrei na sala escura, escutei vozes vindo de um canto. Fui seguindo o som, desci as escadas até o porão, onde havia garrafas de bebida espalhadas, e pessoas importantes do mercado de beleza se confraternizando. Dirceu se aproximou, apresentando-me seus amigos, e de certa forma, mostrar seu poder de influência. — Quem abriu a porta? Minha mulher? Ela te atendeu bem? — Ela se retirou deixando a porta aberta. Acho que não dá para conversar aqui. Vou me retirar. — Eu disse firmemente para aquela mulher que vou vender aquela porcaria! — Mas parece que é a galinha que canta de galo nesta casa – provoquei. — De jeito nenhum! Sou eu! O que eu falo é o que vale! – No fim, mesmo contra a vontade da esposa, consegui comprar a maior loja de cosméticos da América do Sul.
Ganso x crédito Um ano e meio depois de comprar o Depósito Helena, arrematei a fábrica de móveis do senhor Dirceu. E assim, na segunda metade de 1960, a Loja Ikesaki virou um conglomerado do ramo de beleza. Contudo, ainda não havia solidez. Todo o lucro da loja da rua Tabatinguera e da fábrica servia para o pagamento das prestações das dívidas. Eu vivia apenas com o pouco que sobrava da loja da rua dos Estudantes. Quando comprei o Depósito Helena, ainda restavam dois anos e meio do contrato de locação. Mas o inesperado aconteceu. No momento da renovação, o proprietário pediu o imóvel de volta. Contratei um escritório de advocacia para me defender, já que deveria ter a preferência para continuar no imóvel. Em meio à correria do movimento do fim do ano, recebi uma ordem de despejo. O motivo foi a falta de pagamento do aluguel. O dinheiro fora entregue para a advogada, que não fez o depósito em juízo. O caso já estava perdido, o que nos obrigou a procurar outro imóvel imediatamente. A localização certa do imóvel é um dos segredos do sucesso de qualquer comércio. Do outro lado da rua, havia uma loja de carros usados com capacidade para estacionar dez veículos. O dono era um nikkei, que estava se mudando para a região de Guaianazes, na zona leste de São Paulo. Pedi para que o gerente negociasse com o proprietário que morava no Rio de Janeiro. Antes de finalizar o novo contrato, ele comentou com alguém que mudaríamos para o número 64. A notícia chegou nos ouvidos de nosso concorrente do número 87, o imigrante turco Nagib. Com uma rapidez incrível, ele fechou o contrato
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para nos atrapalhar e assumir o controle da região. Senti na pele que o dono precisa agir nos momentos de vida ou morte da empresa. Consegui um imóvel no número 37, que pertencia a três irmãos. Embora um deles tivesse recusado, convenci os outros dois a fechar o negócio. Garanti também um armazém no número 54. O espaço não se comparava ao original, mas não havia outra alternativa. Para complicar, o antigo proprietário do Depósito Helena, que não havia sido eleito para a Câmara de Vereadores, abriu uma loja na rua Onze de Agosto, ao lado da Praça da Sé, pertíssimo da minha loja. Ele não honrou sua palavra de que não voltaria a abrir outra loja em um raio de cinco quilômetros. — Ikesaki, eu não sei fazer outra coisa na vida – disse ele. A tempestade não parava. Depois que aprendemos a lidar com o novo ponto e a concorrência, foi a vez da administração se mostrar cheia de falhas. Tinha contratado um gerente chamado Jorge, formado em economia, que não funcionou. Ele me procurou na loja da rua dos Estudantes com várias faturas de uma grande distribuidora com vencimento em 30, 60 e 90 dias, dizendo que não tinha condições de pagá-las. As de 30 e 60 dias já estavam vencidas. Faltavam só dez dias para terminar o prazo da de 90 dias. A distribuidora era um importante fornecedor de acetona, que vendíamos para todo o Estado. A confiança tinha caído a tal ponto que a fornecedora não liberaria mesmo se pagássemos à vista. Sem opção, fui até o escritório, na rua Líbero Badaró, 119, no Centro. A recepcionista me encaminhou para o setor de vendas no quarto andar, onde encontrei Juca, funcionário do escritório, e o diretor Marcelo, que estava bastante irritado comigo. — Ikesaki, estava esperando que viesse. Eu me perguntava o que teria acontecido para você atrasar o pagamento – disse Marcelo, com seus quase dois metros. — Marcelo, estou cuidando da loja da rua dos Estudantes, e o atraso no pagamento é da loja da rua Tabatinguera. Não adianta reclamar agora falando que eu não sabia, mas é a mais pura verdade. — O pagamento está atrasado, e o departamento de finanças já me mandou cortar o crédito. — Eu vou assumir a administração de lá. Me dê essa chance – disse, enquanto abaixava a cabeça sem parar durante quase uma hora. Quando acabei de argumentar, o Marcelo pensou um pouco e disse: — Venha! – e me levou para conversar com o responsável do setor de finanças no nono andar. — Sua empresa está nos dando uma bela dor de cabeça. Não sou diretor, e a decisão não é minha. Recebi a ordem de cortar o crédito – disse o gerente de finanças, um rapaz que parecia entender as minhas dificuldades. — Eu falei por quase uma hora com o Marcelo para me darem uma nova chance e não acabarem comigo. Se acabarem, não poderei pagar a dívida. — E como pretende pagar? — Some todas as dívidas de 30, 60 e 90 dias e divida em seis meses. — Como assim? Mais 180 dias além dos 90? Isso dá quase um ano. Sentados ali, ficamos conversando sobre outras amenidades — Semana que vem será a festa de aniversário de 15 anos da minha filha. A casa fica em Valinhos. O Marcelo e o Juca virão. Ikesaki, você também está convidado – disse o gerente de finanças, completando: –— Crio galinhas no sítio, mas elas são roubadas a toda hora. Tenho cachorros, mas não estão adiantando. Disseram que seria bom criar gansos no meio das galinhas, porque eles são invocados e barulhentos. Mas não estou encontrando. – Depois de jogar mais conversa fora, voltou ao assunto: — Mas o seu problema é complicado, Ikesaki… Sendo bem sincero, você está praticamente acabado.
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Eu vislumbrava que a coloração para cabelo seria um dos principais itens de venda no ramo de cosméticos. Mesmo contra a vontade de meus irmãos, que já eram meus sócios, julguei que valia a pena ficar com a representação da líder mundial. Havia uma condição difícil: precisaria vender muitos milhões de um catálogo de 53 cores.
No fim de semana, fui ao aniversário da filha dele levando dois presentes cobertos com pano: um no bagageiro e outro no assento traseiro. Ao estacionar, vi o gerente de finanças se aproximando: — Dê uma olhada! – eu disse. Ele levantou o pano e ficou surpreso. — Você me trouxe um ganso! Encontrou? — Isso mesmo. Um casal. Ele ficou radiante de alegria ao escutar a algazarra que os gansos faziam. Para conseguir o presente, passei a semana ligando para avicultores e fazendas das proximidades. Após várias tentativas, encontrei um criador em Santo Amaro, na zona sul. No dia seguinte à festa, fui falar com o gerente de finanças. — Ikesaki, eu vou dar um jeito no seu problema. Mas como não posso tratar como uma fatura normal, vou deixar separado comigo. Não vá me causar problemas. Com a renegociação da dívida, a entrega das mercadorias não foi interrompida. À medida que saldamos as faturas nas datas prometidas, voltamos a ganhar crédito. Os gansos salvaram a minha pele. O homem precisa ter perseverança e aproveitar o momento certo para atingir seu objetivo.
Distribuidor nacional exclusivo de coloração Eu já estava de olho no mercado de coloração para cabelo, pois pressentia que se transformaria em um dos principais itens de venda do ramo de beleza. A chance de dar mais um salto nos negócios surgiu em 1969, quando uma das maiores fabricantes do mundo estava prestes a abrir a primeira fábrica no Rio de Janeiro. Fiquei eufórico, pois recebi a proposta para ser o representante nacional exclusivo de uma marca intermediária de coloração que seria produzida na nova fábrica. Mesmo contra a vontade de meus irmãos, que já eram meus sócios, julguei que valia a pena ficar com a distribuição de uma das marcas da líder mundial. Havia uma meta alta: vender muitos milhões de um catálogo de coloração de 53 cores. Sem especificar os detalhes no contrato, continuei a negociar acreditando nas palavras dos diretores da fabricante. No dia da inauguração da fábrica, sentia-me nas nuvens. Os mais importantes lojistas do Brasil estavam reunidos. O governador da Guanabara, Francisco Negrão de Lima, chegou um pouco atrasado para a cerimônia, mas caprichou na entrada, descendo de helicóptero. Na hora de cortar a fita, fui chamado para o palco para ficar ao lado dele. Dentro da instalação, as máquinas já estavam em funcionamento. — Veja, é o seu produto – disse um diretor, tirando uma caixa da linha de produção. Caí na ilusão de que as máquinas automatizadas produziam a minha mercadoria. No coquetel que se seguiu, continuava acreditando no sucesso. De volta à loja, escalei dois dos melhores vendedores para cumprir as metas. Pelo planejamento, eles começariam vendendo por Presidente Prudente, a 558 quilômetros de distância de São Paulo, até chegar à capital. — Vamos precisar de um carro! – disseram. Era uma época em que ninguém conseguia um, nem pagando ágio. Depois de muito esforço, finalmente encontrei um Fusca zero. Só havia uma cor disponível: amarela. — Amarelo…? Me poupe! – disse o vendedor. — Prefere um carro usado ou um zero? — Claro que prefiro um carro zero, mas azul. — Pare de reclamar. Consegui um carro novo para você. Escute-me. A bandeira brasileira tem verde, amarelo, azul e branco. O verde e o azul representam a natureza, mas o amarelo é o ouro. Ouro é muito melhor.
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Hirofumi, Makoto, o pai, Kameyoshi, e Kazuto (da esquerda para a direita)
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Tomei o café da manhã e fui à Loja Ikesaki contar a meu irmão mais velho que estava prestes a realizar um grande sonho. — Vou comprar o imóvel da rua Galvão Bueno, 37. Para a Loja Ikesaki, não existe lugar melhor.
No dia seguinte, o vendedor apareceu na minha sala, vestido com um terno extravagante. — Terno amarelo…? — Sim, senhor! Eu sou amarelo agora! — É isso! Esse é o espírito! Não volte para cá enquanto não vender tudo! Mas na quinta-feira, ele apareceu na minha sala. — Falei para não voltar enquanto não vendesse tudo. O que faz aqui? — Sr. Ikesaki, tenho uma boa e uma má notícia. Ele disse que começou a vender em Presidente Prudente, passando por todos os salões de beleza. E em cada lugar encontrou vendedores da própria marca-mãe e de outros concorrentes. — Vendi disposto a não perder deles de jeito nenhum. E juro que vendi muito. Mas todas as cores pretas e castanhas já acabaram. Por isso, fui obrigado a voltar. Mas se fizer o pedido agora, eu prometo que irei vender tudo assim que a mercadoria chegar. — Entendi. Deixe comigo! Sem saber o que acontecia nos bastidores, eu continuei cobrando a chegada dos produtos. — Estamos produzindo mais. Aguarde só mais um pouco – dizia a fabricante. Os produtos que faltavam, no entanto, nunca vieram. Ainda fiquei com um estoque gigante de cores que não foram vendidas. Descobri que o motivo do boicote foi justamente o nosso sucesso de vendas. A estratégia da marca-mãe, líder com 50% do mercado nacional, era esmagar a principal concorrente e as menores, que detinham os outros 50%, com o lançamento da marca intermediária que eu estava vendendo. Nossa marca, no entanto, acabou prejudicando justamente as vendas da marcamãe. Com isso, a fabricante reviu a estratégia de vendas – e quebrou a promessa de me manter como distribuidor nacional exclusivo. Como não havia feito um contrato favorável, nada pude fazer - e arquei com os prejuízos. Cometi erros quase fatais à empresa, mas não reduzi minha disposição de seguir adiante.
Plano de estar entre os grandes Quando trabalhei como faxineiro na década de 1950, costumava parar em frente à Sapataria Vitor, na rua dos Estudantes, para admirar um par de sapatos que brilhavam na vitrine e custavam mais que meu salário. — Você gosta mesmo deste sapato, hein…? – disse, certa vez, o sr. Vitor, o dono da sapataria, ao me flagrar babando na vitrine. Fiquei encabulado com a observação. Tive vontade de sair correndo, mas o velho dono tinha um olhar bondoso e me convidou a entrar na loja. — Por quanto consegue comprar? — É impossível. É mais que meu salário. — Aquele par já está exposto há três meses na vitrine. Pode levar. Pague o que puder. Vamos, experimente. — O salário que recebo não é meu. Preciso levar para minha família. O número 39 ficou um pouco apertado. Como só havia aquele modelo, acabei levando para casa por um preço simbólico. Poucos dias depois, tive que pedir para alagar o bico, e o sapato ficou com um formato esquisito. Aquela antiga recordação costumava vir à tona quando abri a loja de cosméticos na mesma rua dos Estudantes e a Sapataria Vitor virou meu vizinho comercial.
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Antes de chegar à loja, estacionava o carro no Beco dos Aflitos, onde havia um terreno baldio com cerca de 50 metros de comprimento que chamava minha atenção. Eu sempre espiava pelo portão de madeira, de onde avistava um pé de manga no meio do terreno. A parte da frente dava para a rua Galvão Bueno, 37, onde ficava a Casa Ida, que pertencia ao empresário Francisco Iida e vendia produtos japoneses. Pedi ao Honda-san, que trabalhava como balconista-chefe, agendar uma conversa com a Neuza, a filha do Iida-san. Fui lá com a intenção de alugar o terreno. — Não estou interessada! – disse ela, bruscamente, sem querer ouvir a proposta. Tempos depois, descobri que, mesmo sendo famosa, o imóvel da Casa Ida era alugado. Quem me contou foi um jovem chamado Jamir, terceiro filho do proprietário do imóvel da Casa Ida, que frequentava a Sapataria Vitor. Gabriel, advogado e irmão mais velho de Jamir, é quem administrava os imóveis. Com isso, negociei diretamente com a família para que me alugassem o terreno baldio em 1964. Em troca, propus deixar o terreno plano, construir um depósito de dois andares e pagar o aluguel para o Iida-san durante cinco anos. Em 1969, soube que o pai do Jamir, bastante doente, tinha falecido, e os filhos venderiam os imóveis para dividir o patrimônio. Alguns dias depois, Jamir contou que o Gabriel pedira 320 milhões de cruzeiros pelo imóvel da Casa Iida. A contraproposta, no entanto, foi de apenas 240 milhões de cruzeiros. A diferença era de 80 milhões. Iida-san que, além da loja da Liberdade, administrava uma fazenda e duas revendedoras de carros, manteve-se inabalável. Após uma reunião familiar, a proposta caiu para 300 milhões de cruzeiros e alguns meses mais tarde, para 280 milhões. Mesmo assim, Iida-san manteve-se impassível. — Jamir, eu construí um depósito lá. Eu sou a segunda pessoa na fila que tem direito a negociar. Finalmente fui chamado para me encontrar com o Gabriel, na rua Cubatão, 421. Tinha chegado a minha vez. Toquei a campainha da casa com um jardim espaçoso. Um homem de meia-idade mostrou a cara da janela. — Dr. Gabriel? Eu vim interessado no imóvel da rua Galvão Bueno. Por favor, escute minha proposta. Eu pagarei o dobro do Iida-san, 480 milhões de cruzeiros. — O que você está dizendo? — Eu estou aumentando o preço porque não tenho dinheiro. Contarei detalhes de meu plano depois. Parece-me que quem tem o direito do imóvel são oito pessoas, não é? Gostaria que perguntasse quantos aceitariam vender pelo valor de 240 milhões de cruzeiros? Voltaremos a falar daqui a uma semana. Gabriel disse que quatro dos oito responderam que aceitavam vender por 240 milhões. — Certo. Então para esses quatro, vamos partilhar este imóvel dando a metade que cabe a eles pelo valor que querem, ou seja, 120 milhões. Pretendo pagar 480 milhões por tudo, portanto, vamos descontar esses 120 milhões dos 480, o que nos resta 360 milhões. Vocês podem dividir o restante para os outros quatro, que tal? Os quatro que não concordam com o preço do Iida ganharão mais do que na proposta inicial. Eu ofereço esta vantagem para o senhor, por isso peço a sua ajuda. Por favor, verifique com seus irmãos. — É uma situação difícil, mas vou verificar. — Gostaria de começar a pagar daqui a um ano. — Isso é absurdo. — Eu estou propondo para você ganhar dinheiro. Gostaria que pensasse. Eu já tenho um depósito construído naquele terreno. Com a ajuda do irmão, frequentei a casa do Gabriel durante uma semana para continuar a negociação. — Então você vai pagar tudo daqui a um ano? — Quatro parcelas de 30 milhões de cruzeiros a cada trimestre.
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Anos
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No mundo ocidental, a explosão dos gritos de liberdade, da road trip, dos beatniks, da pílula anticoncepcional e dos primeiros hippies. No Brasil, o Golpe Militar de 1964 caminha na direção contrária. Ainda assim, os ventos externos trazem ideais de rebeldia e liberação feminina. A moda abandona a ditadura da alta costura. As marcas passam a olhar com mais atenção aos jovens nas ruas. Formado na esteira de Christian Dior, o estilista Yves Saint Laurent (1936-2008) aproxima a moda das artes plásticas, inspirando-se em nomes como Mondrian e Picasso para criar suas roupas geométricas e coloridas. Surgem a minissaia, marca registrada do comportamento revolucionário feminino, e as calças jeans e camisas sem gola. Homens e mulheres já não se vestem de modo tão distinto assim. No exterior, a atriz Audrey Hepburn (1929-1993) e a modelo Twiggy (1949-) são as referências. No Brasil, Leila Diniz (19451972) torna-se o exemplo de mulher da época, com sua rebeldia ao tomar banho de mar exibindo a barriga de grávida.
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Os cabelos também ganham liberdade. Podem ter comprimentos variados, longos e ondulados com bobes, ou curtos e curtíssimos, com bastante volume obtido por laquê. Na maquiagem, delineador para o olho “gatinho” e muita máscara de cílios. No Brasil, os cabeleireiros dão o passo definitivo à profissionalização. Separam-se de vez dos barbeiros e criam o Comitê Artístico Brasileiro, representado pelos europeus Angelo Della Noce, Armand Ravanetti e Paulo Barrabás. O trio seleciona profissionais para participar de concursos de cortes e penteados no Brasil e exterior. Antes sempre com grande atraso, agora as novidades aportam aqui cada vez mais cedo. As técnicas de corte europeias são importadas, mas com um toque brasileiro de criatividade e talento. Surgem os kits de coloração para tingir o cabelo em casa. A indústria de domésticos dá as mãos aos salões de beleza. Secadores manuais tornam-se cada vez mais comuns. Faz sucesso o cabeleireiro Vidal Sassoon (1928-2012), inglês de família judaica que desenvolve cortes geométricos, com a nuca descoberta. Ele preocupa-se com os ângulos do rosto, por isso trabalha com mechas e o brilho natural dos cabelos. Quem não tem vocação para cortes revolucionários adota perucas de kanekalon, um tipo de fibra sintética. Uma alternativa prática.
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Mudamos completamente a estrutura (...) para um jeito mais moderno de distribuir os produtos em prateleiras de modo que as próprias clientes pudessem escolher o que desejavam, no mesmo estilo que os supermercados fazem. (...) alugamos as gôndulas para que as marcas estampassem propagandas.
— Está bem. Não vou te prometer, mas perguntarei aos demais. Não tenho palavras para descrever a alegria que senti quando Gabriel aceitou a proposta. Em 1969, os agricultores japoneses estavam ganhando muito dinheiro. Se eles soubessem que havia um imóvel disponível na rua Galvão Bueno, comprariam com dinheiro vivo. A rua sempre foi a mais cobiçada pelos comerciantes, pois é a que tem mais movimento e onde ficam as lojas mais importantes do bairro da Liberdade. Sempre trabalhei com afinco para me tornar um grande comerciante, como Tsuyoshi Mizumoto, um dos líderes da colônia japonesa naquela época e antigo presidente da Acal (Associação Comercial e Assistencial da Liberdade). O Yataro Amino, da Futon Amino, também estava nas alturas. O Jorge, da Livraria Sol; o Yamada-san, da Casa Naniwa; Kimura-san, do Chá Flora. Todos eram comerciantes incríveis fora do meu alcance. Comprar este imóvel seria um passo decisivo para que a Loja Ikesaki fizesse parte das empresas mais influentes da comunidade japonesa.
A loja na rua Galvão Bueno Tomei o café da manhã e fui à Loja Ikesaki contar a meu irmão mais velho que estava prestes a realizar meu grande sonho como comerciante. — Vou comprar o imóvel da rua Galvão Bueno, 37, onde fica a Casa Ida. Para a Loja Ikesaki, não existe lugar melhor. Amanhã, às onze da manhã, precisamos ir à rua Cubatão, na casa do dr. Gabriel, para assinar o contrato provisório – disse, eufórico, ao meu irmão mais velho, que ficou me encarando. — Por que vai pagar o dobro por algo que pode ser comprado por 240 milhões de cruzeiros? E como pode decidir o preço sem consultar a gente? — Aniki, se não tivesse feito isso, não teria chance de negociar agora. Esperei quatro anos e meio por este dia. Não falo nada que possa virar boato. Se o Iida-san não comprasse, a proposta viria para mim. Planejei isso desde o começo. — Escute. Eu já tenho 50 anos, mas você quer criar uma dívida gigante de novo e me obrigar a pagar? – disse ele. Enquanto eu negociava o imóvel, pensava que o inimigo estivesse do lado de fora. Mas, na verdade, estava dentro. Os irmãos, que eu tornei sócios sem pedir um tostão de capital em troca, agora reclamavam do modo como conduzia a administração. Esperava que me dissessem: “Não se mate de tanto se esforçar, hein?”, mas em troca só escutava: “Não! Eu sou contra!” Para resolver o impasse, procurei meu pai. Quando cheguei à sua casa na Aclimação, ele estava regando as plantas. — Hirofumi, o que faz aqui a esta hora? Está doente? — Nada disso. Tem uma coisa que me deixou muito feliz. — É algo tão bom assim? — Não foi algo que fiz só com minha força. Só consegui graças à ajuda de Deus e de nossos antepassados. — O quê? A casa do Iida-san? E você tem dinheiro? – disse meu pai. — Não tenho, mas negociei de uma maneira que não precisamos de todo o dinheiro agora. Preciso ir à casa do sr. Gabriel às onze horas para assinar o contrato de compra e venda. Mas o aniki (irmão mais velho) não está aceitando. — Qual é o valor do negócio? Quando escutou, o meu pai colocou a mão na testa e ficou pálido. — Isso é muito grande… Hirofumi, isso é muito grande. Eu vivi uma vida inteira e não vi tanto dinheiro – e voltando-se para mim, perguntou: – Você tem certeza de que vai pagar? Hirofumi… Você consegue pagar?
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No dia da inauguração, em 1970, minhas duas filhas usaram vestidos novos iguais, como se fossem gêmeas. As principais autoridades da nossa comunidade estiveram presentes, prestigiando a abertura da loja. Finalmente estava em condições de conversar de igual para igual com os grandes comerciantes da Liberdade.
— Pagarei. — Quando você tinha 12 anos, estávamos cortando o mato da roça em dia de chuva. Eu desafiei você: “Hirofumi, você consegue cortar até a árvore de peroba hoje?”. Daí, você perguntou ao Misael a quantidade de sulcos na plantação, calculou de cabeça, dividindo pelos seis trabalhadores e estimou o trabalho para cada um deles. À tarde, a chuva piorou e os trabalhadores quiseram ir embora, mas você os impediu dizendo: “Vocês concordaram que ninguém voltaria para casa antes de chegar até o pé de peroba” e terminou. Ainda era criança, mas motivou os trabalhadores mesmo na chuva… Portanto, eu confiarei em você. Vai conseguir superar este problema do mesmo jeito? — Se deixar por minha conta, eu faço. — Está bem. Então venha jantar em casa hoje. Venha e converse com o Kazuto na minha frente. Quando cheguei à casa de meu pai, o jantar já estava quase acabando, pois eu me atrasara fazendo a contabilidade do dia. — Hirofumi. Por que se atrasou? Sente-se. Não comeu nada ainda, comeu? — Não, não comi. — Kazuto, hoje de manhã o Hirofumi contou que conseguiu um ótimo negócio graças à influência dos antepassados. Mas ele me disse que você está contra. Escute. Deixe esta história por conta dele. Desde pequeno, quando ele diz, ele faz. Deixe ele fazer do jeito dele. O meu irmão não respondia e levava a comida à boca sem tirar o olho do prato. — Ele diz que vai comprar aquela famosa Casa Ida. Não existe melhor notícia para a família Ikesaki. O meu irmão continuou comendo sem levantar o rosto. Eu também fiquei sentado quieto. Na hora de ir embora, eu segurei no ombro de meu irmão e reforcei: — Nîsan (irmão mais velho), não se esqueça, amanhã às onze horas. Na manhã seguinte, conforme o combinado, estacionei a caminhonete na frente do escritório. — Eles devem estar lá na hora marcada, por isso, vamos sair mais cedo – disse, tentando apressar meu irmão mais velho. — Do que está falando, Hirofumi? Eu não sei de nada. — Falo do contrato do imóvel da Casa Ida que conversamos ontem à noite. — Eu não concordei com isso. Onze horas... meio-dia. O tempo foi passando. Tive que conversar e insistir muito com meus irmãos para que eles aceitassem assinar o contrato. É verdade que a Loja Ikesaki estava comprando um imóvel que não tinha condições de comprar. Por outro lado, naquele momento, estava apostando que teria condições de saldar a dívida futuramente. Os vendedores sabiam disso, o que mostrava a confiança em nossa família. A compra do imóvel foi apenas o primeiro passo para montar a nova Loja Ikesaki. A reforma do prédio não foi fácil. Mudamos completamente a estrutura da Casa Ida para um jeito mais moderno de distribuir os produtos em prateleiras de modo que os próprios clientes pudessem escolher, no mesmo estilo que os supermercados fazem. Para ajudar nas despesas de reforma e manutenção, alugamos as gôndulas para que as marcas estampassem propagandas. Eu queria colocar um luminoso que destacasse a loja, mas não tinha dinheiro para comprar um. A saída foi alugar para a Max Factor, uma marca de cosméticos. Na escola, as crianças colocaram o apelido do meu filho mais velho de Max Factor devido ao impacto que o luminoso provocou. No dia da inauguração, em 1970, minhas duas filhas usaram vestidos novos iguais, como se fossem gêmeas. As principais autoridades da nossa comunidade estiveram presentes, prestigiando a abertura da loja. Finalmente estava em condições de conversar de igual para igual com os grandes comerciantes da Liberdade.
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Um dos dias mais importantes na vida empresarial de Ikesaki: inauguração da loja na rua Galvão Bueno, 37, na Liberdade, em São Paulo
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Demonstradoras especializadas faziam o atendimento Ă s clientes
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O varejo e a novidade do autosserviço Ao aplicar de maneira pioneira o sistema de autosserviço (self-service) no setor de cosméticos, a Ikesaki seguiu a tendência adotada pelos primeiros supermercados no Brasil. A rede Sirvase, inaugurada em 1953, foi a primeira no país a eliminar o balcão e adotar gôndolas com produtos diversificados para que os clientes pegassem sem ajuda de atendentes. O supermercado funcionava na rua da Consolação, entre a avenida Paulista e a alameda Santos, em São Paulo. A loja oferecia produtos de higiene, hortaliças, carnes, laticínios e alimentos industrializados, no mesmo formato que conhecemos hoje. O sistema de autosserviço havia nascido nos Estados Unidos, por volta de 1912, mas só conquistou a cabeça dos empresários no período da Grande Depressão, em 1929. Com a crise, foi mais que oportuna a possibilidade de, a uma só vez, reduzir custos fixos, usar menos mão-de-obra e aumentar a oferta de melhores preços e variedade. No Brasil, o Frigorífico Wilson, em 1947, e o Depósito Popular, em 1949, tentaram implantar o autosserviço sem sucesso. O sistema só pegou na segunda metade da década de 1950, com as redes Peg-Pag, Mappin e Pão de Açúcar. A década de 1960, quando a Ikesaki foi inaugurada no bairro da Liberdade, vivia a era das lojas de rua – que passariam depois por um longo período de decadência, até ressurgir com força em São Paulo somente nos anos 2000. Surgiu em 1966 o primeiro shopping center do Brasil, o Iguatemi, em São Paulo, que sofreu dificuldades no começo devido à forte concorrência de pólos comerciais a céu aberto, como as ruas Teodoro Sampaio e Augusta e os bairros de Lapa e Brás. Muitas mulheres costumavam comprar seus tecidos em lojas de rua, como as Casas Pernambucanas e a Riachuelo, e costurar as roupas em casa. O início dos anos 1970 trouxe o chamado Milagre Econômico, que inaugurou a era dos hipermercados, com a chegada de redes como a Carrefour. No setor de cosméticos, a adoção do autosserviço pela Ikesaki nas vendas diretas ao consumidor chegou no momento certo – as décadas de 60 e 70 experimentavam um aumento vigoroso na variedade de produtos de beleza disponível no mercado. Ao mesmo tempo, o poder aquisitivo das mulheres subia, com a expansão do trabalho feminino fora do ambiente doméstico.
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Por que a Ikesaki revolucionou a venda de cosméticos no varejo? Quando Hirofumi Ikesaki abriu a loja na rua Galvão Bueno, 37, não tinha ideia de que mudaria os rumos do setor de varejo de cosméticos do Brasil. Não fez pesquisa de mercado, plano de negócios, estratégia de marketing. Seguiu apenas sua intuição, o faro do empreendedor visionário. O sistema de autosserviço foi a grande revolução que ele implantou. Desde então, as lojas do setor passaram a imitar o novo modelo. Passados 50 anos, é possível vislumbrar as atitudes que levaram ao sucesso da loja. • Visão de futuro - Na década de 1960, Hirofumi Ikesaki mantinha com muito esforço um comércio para vender produtos químicos para tinturarias de japoneses. Percebeu com pelo menos uma década de antecedência que o negócio não prosperaria, já que a entrada de tecidos mais fáceis de lavar e lavadoras automáticas caseiras reduziriam o movimento dos clientes das tinturarias. • Localização do ponto - A localização de um ponto comercial é o primeiro passo para que o negócio seja bem-sucedido, dizem os manuais de empreendedorismo. Na década de 1960, já era possível perceber que a rua Galvão Bueno, onde estavam as lojas dos principais comerciantes japoneses, era o coração do bairro. Ikesaki travou uma verdadeira batalha para virar o dono do local. • O sistema de autosserviço - No caso de Ikesaki, a falta de recursos financeiros nunca foi motivo para lamentações. A instinto de sobrevivência levou-o à inovação. Sem dinheiro para contratar um grande número de funcionários, ele implantou o sistema de autosserviço, em que as clientes podiam acessar os produtos diretamente das gôndolas. Nascia o primeiro supermercado de cosméticos do Brasil. Desde então, o novo modelo passou a ser adotado e copiado pela maioria das perfumarias. • Visibilidade das marcas - Para gerar novas fontes de receitas, Ikesaki transformou sua loja em um outdoor. As indústrias passaram a patrocinar suas gôndolas para deixá-las mais visíveis, como os supermercados fazem nos dias de hoje. O benefício era triplo. A marca ganhava visibilidade; o lojista, recurso extra; e as clientes, facilidade de encontrar o produto rapidamente. • Demonstradoras especializadas - Outra inovação foi a presença de diversas demonstradoras especializadas nos corredores da loja. A Max Factor, por exemplo, trouxe do Japão maquiadoras para lançar uma nova linha no Brasil. Graças à insistência de Ikesaki, sua loja foi uma das primeiras a receber as profissionais, sempre antes de outras redes de varejo. • Preços baixos - Até hoje, as lojas Ikesaki são reconhecidas pelos preços acessíveis. Na época, a estratégia era de altíssimo risco: comprar grandes quantidades e vender o mais rápido possível. Ikesaki pagava os credores com o próprio dinheiro das vendas. • Ponto de encontro de profissionais - Dá para imaginar o burburinho que se criou quando Ikesaki inaugurou a primeira loja do Brasil onde os profissionais podiam experimentar os produtos mais modernos do mercado. A loja ultrapassou a dimensão de um comércio japonês para atender o público brasileiro e profissional de beleza. • Centro técnico profissionalizante - O relacionamento com o profissional de beleza sempre esteve no centro do negócio da loja Ikesaki. A criação de um Centro Técnico dentro da loja foi determinante para consolidar esta parceria com os profissionais de beleza, já que facilitou o acesso a produtos, informações e aprimoramentos que até então não existiam. Ao longo do anos, esta relação de confiança foi se estreitando cada vez mais.
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Até então, os salões costumavam usar aqueles secadores enormes que quase ninguém mais se lembra. Imaginei que, num futuro próximo, a técnica do secador manual entraria na moda. Na década de 1970, fabricamos o primeiro secador de cabelos manual profissional do Brasil
Primeiro secador de cabelo manual profissional Eu já estava casado, com cinco filhos filhos, e morava na rua Galvão Bueno, próximo à rua Barão de Iguape, na mesma rua da nova loja Ikesaki. Enquanto caminhava por uma rua do bairro, reparei em uma bruma saindo de uma barbearia. O barbeiro arrumava o cabelo de um cliente ungido com óleo, usando um pequeno secador manual importado. Como não havia exaustor, o vapor do óleo de cabelo aquecido saía pela entrada da barbearia. Relembrei aquela cena curiosa quando passei pelo mesmo local um outro dia e reparei novamente no vapor saindo pela barbearia, que estava lotada. “Ele deve ter alguma técnica original”, pensei. Julguei que valeria a pena conhecer. O dono da barbearia era um chinês chamado Lee. Depois de cortar, passou óleo de terebintina no meu cabelo e, sem perguntar, começou a moldá-lo com o secador de mão. Saí do salão e fui andando no meio da garoa. Mesmo assim, o cabelo continuava alinhado. “A técnica do Lee é impressionante”, pensei. Até então, os esteticistas brasileiros se viravam com secadores domésticos, como Lee fazia. Descobri um fabricante que, apesar de não ter qualidade profissional, os cabeleireiros usavam bastante. Havia secadores importados, mas o governo taxou tributos pesados para promover a produção nacional. Quando os produtos importados se esgotavam, ninguém sabia dizer quando seriam repostos. Os salões usavam aqueles secadores de coluna que quase ninguém mais se lembra. O secador manual seria o futuro, sentia. Na década de 1970, começamos a investir na fabricação do primeiro secador de cabelos manual profissional do Brasil. Encomendei a fôrma do secador para um fabricante na Mooca. Pelo valor da época, lembro que daria para comprar vinte Fuscas, o carro mais vendido na época. Acredito que ninguém tenha investido tanto dinheiro para fabricar uma fôrma no Brasil até então. Após um ano, a fabricante conseguiu finalizar a fôrma com dificuldades. Quando o molde ficou pronto, as partes não se encaixavam perfeitamente. O botão de liga/desliga nacional era grande demais e não cabia nas dimensões do cabo de segurar. Por mais que a especificação estivesse correta, a peça não suportava a corrente elétrica e queimava. Por fim, tivemos de usar as peças de uma marca suíça, o que encareceu o projeto. Os altos custos de pesquisa e desenvolvimento começaram a tornar o projeto inviável. Mesmo assim, a Loja Ikesaki fez uma grande campanha na hora de apresentar o novo secador na maior feira de beleza da época. Inspirado em uma marca suíça, batizamos o nosso produto de Sorris. O secador chamou a atenção de muita gente, o que nos garantiu elogios por lançar um produto “muito acima dos outros produtos nacionais”. Mas ele ainda não estava totalmente finalizado. Precisávamos de um motor para circular o ar, um botão de liga/desliga e um disjuntor. Dei a missão a um funcionário que trabalhava na fábrica sob responsabilidade de meu irmão mais velho. Pedi que não fizesse outra coisa às terças e quintas que não pesquisar a produção e aquisição de peças. A fábrica estava pronta para produzir, mas não dispunha de peças que coubessem na carcaça que montamos. No entanto, passaram-se alguns meses, e o funcionário não apresentava nenhum resultado. Só quando fiz uma cobrança mais severa ele disse que havia uma empresa em Santana que fabricava o motor. Fui voando até lá, mas o eixo do motor estava torto e fazia o aparelho vibrar. Depois disso, ficou claro que o funcionário escondia algo quando entregou o pedido de demissão. — Eu contei meus sonhos para você. Apesar de meu irmão reclamar, eu deixei você fazer as pesquisas acreditando que estava fazendo um investimento. Soube que ele fez uma pesquisa paralela e buscou sócios para montar o próprio negócio. Claro que a culpa foi minha. Eu dei essa brecha. Eles lançaram um secador semiprofissional que fez um grande sucesso em 1976. Não desisti. Continuamos a desenvolver nosso secador de cabelos manual para uso profissional. Levei o problema ao nosso técnico especializado. — Joaquim, já temos uma carcaça pronta, só não temos o motor, o botão de liga/desliga e o disjuntor. Você pode melhorar? – Depois de um tempo, ele criou um sistema completo de motor, que poderia ser fabricado pela Singer. Em Niterói, no Rio de
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O secador de coluna Ultrawell, fabricado pela Ikesaki, era comercializado nas lojas e tambĂŠm patrocinava concursos de beleza promovido pela escola de cabeleireiros Akahoshi, uma das mais tradicionais do Brasil
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Anos
70 Aqui ganham escala mundial estilos que são replicados e reinventados até hoje: hippie, punk, black power. Os cabelos ficam mais longos, volumosos e ondulados, como os da atriz Farrah Fawcett (19472009), protagonista do seriado As Panteras (1976). O frisado conquista a cabeça das hippies. A trança, única e longa ou muitas e pequenas, também está em alta para o cabelo frisado. Tanto homens quanto mulheres gostam do estilo mullet - o cabelo na parte frontal recebe uma franja grande e a parte de trás fica mais alongada. É o estilo do personagem Ziggy Stardust, de David Bowie (1947-). No Brasil, torna-se conhecido Sylvinho, o “cabeleireiro das estrelas”. Bowie também personifica o estilo glam rock, cheio de glitter, futurismo e androginia. E é a vez do cabelo black power, nascido com o fortalecimento da cultura afro-americana a partir da luta de Martin Luther King na década anterior. Tim Maia (1942-1998) adere ao black
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power no Brasil. Por outro lado, os Beatles influenciam os jovens com cabelo até a altura do queixo e franja no meio da testa, cortada com uma tesoura navalha. A moda é marcada por batas, vestidos indianos e calças bocas-de-sino. Janis Joplin (1943-1970) e Jimi Hendrix (1942-1970) fazem a cabeça de toda a década por vir. São os anos de “sexo, drogas e rock n’roll” e das discotecas, que são representadas em Os Embalos de Sábado à Noite, de 1977. Já o punk, em contraponto à superficialidade do glam rock e a ingenuidade hippie, deixa seu legado com jeans rasgados, jaquetas de couro, tachas, correntes, maquiagem pesada e penteados com os cabelos espetados a gel. O estilo está diretamente relacionado à estilista inglesa Vivienne Westwood. No Brasil, o grande ícone da juventude é Caetano Veloso, com o movimento tropicalista, que ditava moda no jeito de se vestir e de pensar, com a resistência à ditadura militar. Os grandes estilistas nacionais são José Augusto Bicalho, Sonia Moreb, Meire Zaide, Gregório Faganello, Marco Ricca, José Gayegos e Décio Xavier, entre outros.
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De um lado, (...) uma multinacional japonesa; do outro, a Ikesaki, uma das maiores fabricantes de móveis do Brasil. A sociedade daria (...) uma força incalculável para produzir equipamentos modernos e inovadores para salões de cabeleireiros. Estava orgulhoso porque isso representava um reconhecimento à nossa capacidade.
[1] Ikesaki cumpriu sua promessa. Em 1988, fundou a Taiff, que se tornaria a maior fabricante de secadores de cabelo profissionais do Brasil.
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Janeiro, encontramos um fabricante de botões liga/desliga que se encaixava na fôrma. O problema era que o botão queimava quando ultrapassava 5 amperes, diferente dos importados, que suportavam até o dobro da corrente. Por isso, tivemos que pedir para a fabricante aumentar a especificação. Chegamos muito próximo de lançar o novo secador no mercado, mas como os custos só aumentavam, ficamos em uma situação financeira delicada. Um dia, o ex-funcionário que havia fundado a fábrica de secadores veio até nosso escritório: — Não quer me vender a carcaça pronta? Eu pagarei 5 milhões. — Não, aquilo custou mais que isso. Só vendo por 6 milhões. — Fecho agora se forem 5 milhões. — Não. Quero 6 milhões. Mas eu me arrependi assim que falei. Construir aquela fôrma novamente não sairia por menos de 10 milhões. Por isso, disse que esperaria apenas até às 12h do dia seguinte. Ao sair do escritório, no mesmo dia, encontrei um empresário chamado Ribeiro, concorrente do ramo de secadores de salão, na Praça da Liberdade. — Oi, Ikesaki. Escutei um boato. Parece que existe uma empresa que está criando um secador manual igualzinho a uma marca suíça, mas não está conseguindo lançar por falta de verba. — Você sabe que a empresa do boato é minha. — Nesse caso, eu tenho interesse em comprar o secador. Pago 10 milhões. Eu fechei meus olhos uma vez e respondi. — Eu não poderei vender. — Então pagarei 12 milhões. — Não posso. — Por que não? — Já me fizeram uma oferta. Estamos em negociação. Aguarde até meio-dia de amanhã. — Que comerciante burro você é! Não tem nem documento assinado. Não precisa ser leal a isso. Nesse caso, que tal me vender por 16 milhões de cruzeiros? – disse ele ao ouvir minha explicação. — Calma, Ribeiro. O valor que oferece está crescendo que nem pastel. O que tem na cabeça? Ele também estava prevendo que o mercado de secador manual profissional iria estourar. Mesmo que começasse a preparar a fôrma naquele momento, só ficaria pronta, no mínimo, em um ano. No final, a oferta dele chegou a 20 milhões de cruzeiros. Certamente seria mais vantajoso comprar agora, mesmo sendo cara, enquanto a demanda fosse certa. — Eu sou idiota. Mas é justamente por eu ser assim que as pessoas confiam em mim. Essa é a minha personalidade e esse meu jeito se traduz na confiança que as pessoas depositam em mim. No dia seguinte, aguardei impacientemente. Uma oferta de 6 milhões e outra de 20 milhões. Pouco antes do meio-dia, o exfuncionário apareceu em meu escritório para comprar a fôrma do secador. Apesar da outra proposta valiosa, não cedi. Minha palavra valia mais. Foi uma aula cara, mas aprendi que o empresário precisa ficar de olho em tudo. É preciso conferir até uma ponte de pedra antes de atravessá-la. No mundo dos negócios, você pode ser pequeno, com risco menor. Ou aproveitar uma boa ideia para criar algo com um alcance mais amplo. É um caminho perigoso, sem garantias. Há o ditado “nanakorobi yaoki”, que significa “se tropeçar sete vezes, levante oito”, ou seja, persevere sempre. Quem não tiver o espírito preparado para passar por cima de qualquer perigo ou acreditar que, no fim tudo dará certo, não conseguirá quebrar a casca da própria limitação. Eu jurei a mim mesmo que um dia fabricaria o secador de cabelos profissional[1].
Negócios internacionais Conheci o vendedor de uma importante fábrica japonesa de móveis de beleza, uma das líderes mundiais no segmento, no início da década de 1970. Ele exibiu o catálogo em que se destacava uma cadeira com base hidráulica, revelando que a tecnologia japonesa estava muito a frente da nossa. Também não havia nada parecido em termos de design. Quis dar um salto de qualidade em nosso portfólio e decidi importar e vender aqueles produtos. Desde a década de 1960, a Ikesaki já fabricava, vendia e distribuía móveis de beleza para todo o Brasil e se preparava para participar de uma feira em Angola, que poderia funcionar como porta de entrada para o continente africano. Nesse período, o presidente da multinacional japonesa visitou o Brasil. Interessado no mercado nacional, foi conhecer nossa fábrica. Desta vez, foi ele quem ficou impressionado ao ver que nossos processos de produção não eram terceirizados, como no Japão. No mesmo espaço, fabricávamos os motores, as resistências e o termostato que controlavam a temperatura dos secadores. Também produzíamos nossos próprios aquecedores para lavatórios. — Vocês fazem até cromação! – disse, admirado com o tamanho dos seis tanques enfileirados, que a tornavam uma das maiores instalações de São Paulo. À noite, fomos jantar em um restaurante japonês, e, para minha surpresa, ele propôs criarmos uma empresa conjunta, da qual eu seria o presidente. De um lado, estaria uma multinacional japonesa; do outro, a Ikesaki, uma das maiores fabricantes de móveis do Brasil. A sociedade daria à nossa fábrica uma força incalculável para produzir equipamentos modernos e inovadores para salões de cabeleireiros. Estava orgulhoso porque isso representava um reconhecimento à nossa capacidade. O acordo previa que a empresa japonesa entrasse com o capital equivalente ao maquinário e estoque da fábrica. Fui convidado para conhecer a sede da empresa japonesa em Osaka, no Japão, onde constatei a variedade de itens, a produtividade e a organização da fábrica. Havia um secador de coluna automático, modelo 007, muito mais moderno que o nosso. Fabricaríamos cadeiras de salão de beleza e aquele secador no Brasil. Durante a visita, fui convidado a jogar golfe com o filho do dono da empresa. Ao estender o taco, ele perguntou com ar de superioridade: — O senhor conhece este esporte? Ele acreditava que o Brasil fosse um país de terceira categoria, onde nem existiam campos de golfe. Apesar de ter andado pela primeira vez naquele circuito, venci a partida. Fiquei preocupado que aquele pensamento estreito e arrogante pudesse fazer parte da cultura da empresa, pois estava contratando três técnicos, um contador e um designer para implantar o sistema japonês em nossa fábrica. Lembrei do ditado: “sapo dentro do poço não conhece o mar”, que se refere às “pessoas que não têm visão de longo alcance”. Apesar disso, segui em frente e concretizamos nosso acordo.
Ninguém vence se tiver o espírito fraco Escolhi meu irmão mais velho para administrar a fábrica. O Japão nomeou um homem chamado Kimura, que gostava de contar que montava asas de aviões na Segunda Guerra. A gerência industrial ficou sob a responsabilidade dos dois. Procurava não interferir no dia a dia da operação. Assim, descobri tardiamente que grande parte das peças que compunham o secador 007 tinham sido industrializadas internamente, sem levar em conta que já existiam peças similares nacionais. Também descobri que, sob o pretexto da exclusividade, optou-se por centralizar a assistência técnica em São Paulo, deixando de levar em conta a extensão territorial do Brasil. Caso quisesse consertá-lo, um cliente de Manaus, por exemplo, teria que mandar o produto
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Quando enfim chegou o grande dia do lançamento da pedra fundamental, com a presença do prefeito da cidade, de autoridades da comunidade japonesa, estava exausto, porém em êxtase; daríamos um enorme passo para a consolidação definitiva do nosso nome. Finalmente a cortina do monumento foi retirada. Não pude acreditar no que vi. Entrei em estado de choque: não constava o nome Ikesaki.
para São Paulo, o que encareceria muito o nosso custo – e o do cliente. Os dois foram contra qualquer mudança e ainda me criticaram, dizendo que minha visão era ultrapassada. Como previ, houve uma grande sobra dessas peças especiais produzidas em excesso, engessando o fluxo do capital de giro da fábrica. Além disso, o salário dos cinco funcionários japoneses era muito maior que o dos gerentes. As dificuldades financeiras aumentaram dramaticamente e, ao contrário do que o acordo previra, o aporte de capital, que seria de responsabilidade da parte japonesa da sociedade, ainda não havia ocorrido. Se isso não bastasse, diziam que o resultado negativo se devia à minha má administração, quando, na verdade, os responsáveis eram o meu irmão e o Kimura. Percebi que a parte japonesa tentava me atingir com essas falsas alegações para assumirem diretamente as vendas, que estavam a cargo da Ikesaki. — Esperem um momento. Tudo que existe nesta instalação é da Ikesaki. Vocês ainda não fizeram sua parte do acordo. Como querem assumir a administração de vendas e distribuição sem a Ikesaki? Até agora simplesmente acrescentamos alguns de seus produtos à nossa linha de produção, ainda assim com muitos problemas. E, francamente, não estou disposto a doar uma indústria de móveis consolidada no mercado a ninguém – retruquei. Apesar de todos os sinais contrários, eu ainda sonhava que a sociedade tinha potencial para que tornássemos a maior fabricante de móveis de beleza das Américas. Para isso, retomamos nossa tratativa visando ao futuro, e decidimos construir uma fábrica nova, onde os sócios investiriam 50% do capital. Pesquisei e tive inúmeras reuniões com prefeitos de diversos municípios até obter a concessão de um grande terreno no recém-lançado Parque Industrial de Mairinque, em São Paulo, com incentivos fiscais. O terreno ficava encostado à linha férrea, que facilitaria o escoamento dos produtos para o resto do país e até para o exterior pelo Porto de Santos. Assim avançamos. Quando, enfim, chegou o grande dia do lançamento da pedra fundamental, com a presença do prefeito da cidade, de autoridades da comunidade japonesa, estava exausto, porém em êxtase; daríamos um enorme passo para a consolidação definitiva do nosso nome. Finalmente a cortina do monumento foi retirada. Não pude acreditar no que vi. Entrei em estado de choque: não constava o nome Ikesaki. Nada. Somente o nome do outro sócio. Naquele momento, meus olhos enxergaram a verdade: eles queriam nos usar ao máximo e, depois, assumir o controle total. Tudo se confirmou logo depois, quando recebi uma notificação de que o sócio queria um acordo para passar o terreno da fábrica apenas no nome dele e mudar a constituição da diretoria. Ficou claro que eu estava sendo o alvo daquela manobra. Tive uma grave conversa com um dos diretores: — Acreditei que vocês eram uma grande empresa. Trabalhei duro, até ingenuamente, sempre acreditando nas boas intenções das suas palavras. Agora sinto tristeza e vergonha pelo que estão tentando fazer. Mas quero que saibam que sou homem de luta. Mesmo que arranquem meus braços e minhas pernas, não importa, vou continuar lutando! A batalha estava declarada. Meu advogado era um homem honrado e combativo. Mesmo sabendo que eu não tinha recursos para remunerá-lo, assumiu minha defesa. E cada vez exigia que juntasse mais documentos, mais testemunhas, mais fatos. — Não vamos perder esta causa. Vamos vencer! Me traga mais provas! – berrava comigo. — Eu já entreguei todos os documentos para o senhor. Isso é tudo, tem que ser o suficiente, não tem outro jeito – respondia. Como se não bastasse, tarde da noite, após um dia cansativo, recebi a ligação do meu irmão dizendo para eu aceitar o acordo, pois seria uma situação vergonhosa para nossa família se o conflito virasse uma ação judicial. — Aniki (irmão mais velho), estou trabalhando nisso, estou desgastado. Não fizemos nada de errado, pelo contrário. Não preciso que aja como se estivesse do lado oposto. Estamos à beira de perder tudo o que construímos até hoje. Mais do que nunca, precisamos ficar unidos! – respondia. Aquela situação estava me desgastando a tal ponto que eu tinha pesadelos e despertava às madrugadas, num pulo e aos gritos,
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MĂłveis Ikesaki na dĂŠcada de 1970: design inovador para salĂľes de cabeleireiros desde a origem
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Tinha motivos mais do que suficientes para afastá-los da empresa. Afinal, eu tinha sido o fundador dos negócios (...) Por outro lado, senti que poderia dar uma nova chance para eles se desenvolverem por conta própria e se tornarem comerciantes bem-sucedidos. Foi com esse desejo que passei a administração da loja para meus irmãos.
encharcado de um suor frio. Sem saber o que ocorria nos negócios, minha esposa ficava desesperada, por perceber o quanto estava transtornado. Ela temia que a qualquer momento eu tivesse um infarto – e seu temor se justificava. Foi nesse clima que fui convidado à reunião para uma possível conciliação com a parte contrária. “O que poderia piorar?”, pensei, aceitando o diálogo. Porém, ao entrar no escritório, vi que a mesa para 20 pessoas estava praticamente ocupada por diretores, advogados, assessores e até pelo presidente da multinacional vindo do Japão. Fiquei profundamente desapontado ao ver que meus irmãos já estavam sentados em um sofá no fundo da sala, e não fizeram nem menção de compor a mesa a meu lado. Era uma humilhação. Estava sem meus irmãos e sócios. Sem meu advogado. Estava só. Para reforçar a intimidação havia um gravador enorme no centro da mesa. No início da reunião, um dos diretores mostrou um documento para eu assinar: — Dos três irmãos Ikesaki, dois estão de acordo. Já tenho a maioria dos votos das ações. Sua parte é de apenas 16 %. Só preciso que assine o acordo para terminarmos com isso. O acordo previa que a sociedade continuaria no papel, mas a fábrica, a administração e as vendas passariam para a empresa japonesa. A Ikesaki estaria fora do negócio. — É só isso que os senhores tem a dizer? – respondi, levantando-me em direção à saída. — Como assim? O presidente veio do Japão e muitas pessoas estão aqui reunidas e você vai embora? — Não tenho tempo para jogar conversa fora. — Se resolvermos a conversa aqui, não precisaremos brigar na justiça. — Eu tenho meus planos. — Mas você só tem um sexto do direito. O que pode fazer? Nós temos 85% conosco. Não tem chance. Aceite o acordo. — Eu preciso ir. — Para onde? — Quer mesmo saber? Vou denunciar vocês para os jornais brasileiros e da colônia japonesa. Será um prato cheio para eles. Nesta pasta estão todos os contratos. Cumpriram alguma cláusula? Nada. Pra começar, nem investiram qualquer capital. Então, não são nem meus sócios. Provavelmente convenceram meus irmãos com palavras doces e promessas que não cumprirão. Talvez eles me enxerguem como o vilão dessa história, mas agora sei que eles não perceberam o óbvio. Vocês deviam se sentir envergonhados! Não é só isso. Depois, com essa matéria nas mãos, vou para o Japão e visitarei os grandes jornais japoneses para mostrar quem são vocês! – gritei, explodindo de raiva. Ao perceberem a veracidade das minhas palavras, e que estava disposto a levar a guerra às últimas consequências, senti que todos ficaram desesperados, principalmente o presidente da multinacional. — Para que precisamos chegar a este ponto?! – disse ele, mudando completamente o tom da conversa. — Só estou falando o que é correto. Não inventei nada. Vocês não cumpriram nada do que prometeram. Então que direito judicial vocês possuem, se nem meus sócios vocês são? Apesar de me tratarem desta forma, de cooptarem meus irmãos, sou um homem de palavra. Em respeito ao senhor, vou esperar três dias. Depositem na conta da minha empresa o dinheiro da sua parte do capital em três dias – disse. Levantei-me e fui embora. No dia seguinte, o meu advogado ligou: — Os advogados da parte contrária estão aqui, no escritório. Eles estão dizendo que você ficou louco na reunião de ontem! O que aconteceu? Por que não me chamou? – disse ele. Eu sabia que tinha sido melhor ir sozinho à reunião, pois se levasse meu advogado poderíamos ter divergências para conduzir o acordo, o que mostraria a nossa fraqueza. Após ouvir minha explicação sobre o desenlace da reunião, ele perguntou:
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— Como ficam meus honorários? — O senhor pode negociar com eles! – o meu advogado deve ter conseguido um excelente acordo para ele, pois estava bastante feliz quando o encontrei dias depois. Durante o prazo de três dias, soube que eles ficaram desesperados, buscando recursos em vários bancos. Apesar das dificuldades, eles cumpriram as determinações que fiz na reunião. Logo após a conclusão, meu irmão me ligou, exigindo o montante total do depósito para ele. Era inacreditável o que estava ouvindo. Após ter passado para o lado oposto, sem demonstrar qualquer gratidão, ignorado o sofrimento pelo qual passei, não teve dignidade para honrar a nossa empresa. O depósito foi efetivado, porém, o valor já pertencia à nossa indústria de móveis – e aquele pedido absurdo não fazia sentido. A parceria com a empresa japonesa foi desfeita, em comum acordo, em 1976. Acredito que se fizer o que é certo, nossos ancestrais nos protegerão. Agradeço aos meus antepassados por terem me iluminado em momentos difíceis como este.
Fim da sociedade com os irmãos Após a postura adotada pelos meus irmãos durante a batalha com a multinacional japonesa, o entrosamento e o clima entre nós não estava bom. Eles me procuraram: — Nós não temos competência para cuidar da fábrica de móveis, queremos administrar a loja de cosméticos. Neste momento crucial, e depois de todos os desdobramentos recentes, tinha motivos mais do que suficientes para afastá-los da empresa. Afinal, eu tinha sido o fundador de todos os negócios e os convidei para serem meus sócios, sem ter exigido qualquer investimento de capital, em um momento que a empresa crescia e precisava de pessoas de confiança ao meu lado. Por outro lado, senti que poderia dar uma nova chance para eles se desenvolverem por conta própria e se tornarem comerciantes bem-sucedidos. Foi com esse desejo que passei a administração da loja para eles. Quem sabe assim, com independência, eles mudassem de espírito. Minha visão é sempre investir e crescer para que o negócio siga um ritmo veloz. No momento em que nos acomodamos, somos ultrapassados. Por isso, fiz questão de fixar o momento em que estava deixando a loja para que não houvesse mais desentendimentos futuros: — Hoje a Loja Ikesaki é uma das mais destacadas do segmento de cosméticos profissionais. Está correndo a 120 km/h. Se agora tirarem o pé do acelerador em uma pista plana, quanto vocês acham que continuará avançando? Um, dois, três quilômetros? Se a administrarem sem fazer os reinvestimentos necessários, ela estará condenada. Se depender apenas do impulso que ela teve até agora, ela irá durar apenas mais alguns anos. Estou avisando, mantenham-se firmes para não acabarem ela. Para não ter dúvidas do que estou falando, quero que vocês confiram o estoque da loja, sua situação de contas a pagar e receber, antes da minha saída. Assim, não poderão dizer que ela afundou porque deixei dívidas para trás. O balanço mostrou que a loja estava incrivelmente saudável. O estoque próprio era cinco vezes maior que as vendas mensais, sem contar a instalação e o fundo de comércio. E foi nestas condições que deixei a Loja Ikesaki – e mantive a indústria de móveis de beleza, de menor rentabilidade dos negócios. — Não se esqueçam que, sem coragem, entusiasmo e gratidão, não é possível administrar um negócio – disse a eles. Enquanto deixava para trás os corredores da loja que fundei e ajudei a crescer, meus olhos se encheram de lágrimas. Naquele instante, buscava forças para continuar em pé. Desejava boa sorte aos meus irmãos, mas, dentro de mim, tinha um sentimento de que ainda retornaria para reassumir as lojas.
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Com muita luta e sacrifício, construí o galpão (...) A nova indústria foi rebatizada de Ikes, uma abreviação de Ikesaki. Nossa marca era respeitada e distribuída em todo o território nacional, sinônimo de qualidade. Na minha visão, precisaria de mais produção para fazer frente ao crescimento dos pedidos.
O valor da credibilidade Ainda atordoado com a situação que estava vivendo nos negócios, recebi a incumbência de liderar a comitiva nacional na Convenção Internacional do Rotary Club, em Tóquio, entidade da qual fazia parte, em 1976. Era uma oportunidade para ampliar meus horizontes e esfriar a cabeça. Para arcar com os custos da viagem, recorri a um empréstimo bancário, já que saí espontaneamente da Loja Ikesaki sem a parte a que tinha direito. Pedi aos meus sogros para cuidarem de meus cinco filhos e viajei juntamente com minha esposa. Depois da Convenção, ainda visitamos sete países asiáticos. Ninguém sabia da minha difícil situação financeira, nem do meu afastamento da sociedade. Quando voltei, o dono de uma imobiliária ofereceu, animado, um terreno de 27 alqueires de frente para a Via Dutra, na cidade de Santa Isabel, parte da herança de uma conhecida família da colônia japonesa. Não ter dinheiro nunca foi motivo para eu não pensar em novas oportunidades. Após a insistência do corretor, fomos conhecer o local e ouvi as condições da proposta. Na volta, passamos no escritório, onde o genro da família, a qual o terreno pertencia, trabalhava. Sem qualquer expectativa, fiz uma contraproposta, com condições de pagamento extensas e em valor muito menor que a pedida. Se fizesse com que algum corretor dedicasse parte do seu tempo para mim, sentia-me na obrigação moral de deixar uma contraproposta séria e verdadeira. Ter minha proposta recusada fazia parte do jogo, e havia conseguido excelentes negócios e relacionamentos agindo assim. Lembro-me de ter ficado aliviado quando o genro a recusou. Estava em situação delicada, e o imóvel em questão envolvia grandes montantes. Seu chefe, que estava ao nosso lado, ouviu a conversa e mandou que ele ligasse para a esposa, a herdeira e dona do terreno. Quando ela soube que a contraproposta era do Ikesaki, dos cosméticos, quis falar ao telefone. — Ikesaki-san, fico feliz que tenha gostado do terreno. Sei que o senhor é de confiança e aceito vender nas suas condições. O suor frio escorreu pela minha testa. Meu coração disparou. Mesmo em condições favoráveis, não imaginava como arcaria com as despesas. Sentei no sofá para me acalmar. Ao ser informado que o casal precisava vender o terreno, que já estava hipotecado, para saldar uma dívida com o Banco América do Sul, um banco com o qual tinha ótimo relacionamento, senti que um caminho estava se abrindo. Meu pensamento foi o de assumir a dívida do casal, deixando o próprio imóvel como garantia. Em uma das reuniões com os diretores do banco, propus financiar o valor, alongando o prazo por vários anos. Não interessava ao banco ser dono de um terreno – e fechamos um acordo. Novamente acreditava que seria capaz de pagar as prestações com o esforço do meu trabalho.
Honrar os compromissos Agora meu plano era transferir a indústria de móveis na Liberdade para o terreno próprio em Santa Isabel, livrando a empresa de um pesado aluguel. Fiz a terraplanagem com um tratorista amigo, que concordou em realizar o serviço em troca apenas do diesel. Com muita luta e sacrifício, construí o galpão, usando madeiras do próprio local, em uma área de 30 metros de largura e 70 metros de fundo. Em seguida, tivemos de valer de vários caminhões para transportar o maquinário, os móveis e os equipamentos. A nova indústria em Santa Isabel foi rebatizada com o nome de Ikes, uma abreviação de Ikesaki. A experiência com a multinacional japonesa tinha me deixado mais forte. Nossa marca era respeitada e distribuída em todo o território nacional, sinônimo de qualidade. Na minha visão, precisaria de mais produção para fazer frente ao crescimento dos pedidos. Mas o Brasil entrou em um período crítico na economia. Recessão. Desemprego. Inflação galopante. Os pedidos de falência multiplicavam-se.
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Acima, anúncios dos móveis e equipamentos Ikes; ao lado, abertura da novela Locomotivas, da Rede Globo, de 1977, que foi ambientada em um salão de beleza – e os móveis do cenário eram da Ikesaki
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Anos
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,90, 2000...
Xuxa, Madonna, Rambo e Fofão. Nos anos 80 aparecem ícones do pop ainda bem recentes na memória. É a década do corte repicado em cima da cabeça e da permanente para formar os cachos e conferir bastante volume aos fios. Surge o rabo de cavalo na lateral da cabeça. Para os homens, o gel com efeito úmido passa a imagem de ter acabado de sair da academia. O hit são os topetes e o estilo flap top, bem curto, com o topo da cabeça reto. No Brasil, Hideaki Iijima abre a rede Soho. O mercado de salões de beleza expande-se com impressionante velocidade. É a época da ginástica, da dança e do início ao culto do corpo sarado. Na moda, isso se reflete com o uso de roupas de ginástica, tudo em cores cítricas, neon ou estampas de animais. No Brasil, marcas como Ellus, Zoomp e Fórum fazem sucesso com seus jeans. Nos anos 90, macacão jeans, calça baggy, gola rolê e pochete. Há quem diga que é tudo cafona. Mas, vira e mexe, os anos 90 voltam à moda. Por exemplo, a camisa xadrez, ícone do grunge e reabilitada nos anos 2010. Kurt Cobain é o grande nome. O ar relaxado domina a moda feminina, que se torna mais suave e natural. São ícones de estilo as girl bands e as boy bands, como Spice Girls e Backstreet Boys. O grunge inspira cabelos curtos, bagunçados e loiros. No comprimento, cada um faz com o que quer. A franjinha continua firme e forte. Cabelos ondulados são adotados por celebridades e fazem moda. E também as mechas. Os anos 2000 mantêm o estilo confortável dos 90, mas com um tempero mais picante. A calça jeans é bem mais justa e baixa, para a barriguinha ficar à mostra. Inspiração? Sim, Britney Spears. Peças-chave: jeans skinny, tênis All Star e camiseta baby look. Ao longo da década, a moda simplifica-se ainda mais, com blusas de cor única e cabelos lisos. As calças com joelho rasgado são as queridinhas dos adolescentes. Para os homens, camisas praianas ou de uma única cor. Camisetas com estampas chamativas, muitas delas com mensagens ou piadinhas. No Brasil, estilistas como Alexandre Herchcovitch, Fause Haten, Gloria Coelho, Isabela Capeto, Lino Villaventura e Reinaldo Lourenço ganham as passarelas. A modelo Gisele Bündchen valoriza a beleza mais natural. Cabelos descoloridos mais levemente, efeito ondulado com pontas mais claras e raízes escuras. Para os homens, falso moicano e, como alternativa, cabelos sobre as orelhas para um look mais natural e desestruturado.
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Estimulado por mais um desafio, pelos contratempos com contratos assinados naqueles últimos anos, e, apesar das tremendas dificuldades financeiras em que vivia, me matriculei em um curso de Direito. Eu estava com 51 anos.
O setor industrial é muito mais sensível aos momentos de crise. No nosso caso, a situação ficou ainda mais complicada devido ao alto endividamento. Não tinha espaço para outras manobras. Aquele momento favorecia mais ao varejo, pois via hipermercados abarrotados, oferecendo promoções – e sabendo se valer da escalada de preços. No meu caso, quanto mais vendia, mais cavava o próprio buraco. Sempre fazia questão de honrar os pedidos que aceitava dos clientes. Assim, não importava que, nesse meio tempo, os custos de matéria-prima, energia elétrica, mão de obra tivessem aumentos expressivos. Pedido com nosso aceite seria pedido honrado, e entregue nas condições negociadas. Muitos clientes entraram em dificuldades. A inadimplência aumentou drasticamente. Entramos em uma espiral improdutiva. Não conseguíamos mais comprar matéria-prima com o ritmo adequado à produção porque atrasávamos nossos pagamentos. Quando, enfim, conseguíamos quitar, os diversos custos – salários, fretes, impostos –, já haviam subido. Devido à inflação cada vez mais alta, se a nossa produção e entrega demorassem muito, o preço de custo tornava-se maior que o de venda, causando enorme prejuízo para a empresa. Nos momentos críticos, o caixa só dava para pagar a gasolina de ida da perua de entregas. O motorista só garantia seu retorno após receber o dinheiro da mercadoria entregue.
Eu, Ikesaki, um doutor Com tantos problemas naqueles últimos anos, acabei convivendo com o dr. Sanda, o advogado que cuidou do acordo com a multinacional japonesa. Sanda organizava um concorrido tanomoshi, consórcio financeiro entre amigos. Pensei que seria outra forma de levantar recursos num momento de aperto. Mas o principal requisito para participar deste grupo era ter concluí do um curso superior. Estimulado por mais um desafio, pelos contratempos com contratos assinados naqueles últimos anos, e, apesar das tremendas dificuldades financeiras em que vivia, me matriculei em um curso de Direito. Eu estava com 51 anos. Durante os quatro anos em que estudei, quatro dos meus cinco filhos também estavam na faculdade, o que apertou nossas despesas domésticas dramaticamente. Não tinha dinheiro nem para comprar o Código Civil Brasileiro, material indispensável para o curso. Mesmo assim, ainda provocava. — Vou me formar antes de vocês! – dizia aos meus filhos. Certo dia, soube pela minha esposa, que meu filho mais velho não estava indo à faculdade devido ao atraso da mensalidade. — Pai, estou constrangido! – disse ele. – Eles têm anunciado meu nome na sala de aula. Eu o chamei para uma conversa séria naquele momento: — O mais importante é honrar o compromisso. Não estou atrasado. Já conversei na faculdade e fiz um acordo de parcelamento das mensalidades. Quando ambas as partes estão de acordo, não há atraso. Pode ir à faculdade de cabeça erguida. Durante essa fase, mantive firme a séria determinação de me formar em quatro anos. Na noite de formatura, ao subir no palco para receber o diploma, meus filhos gritavam meu nome da plateia. Foi um grande momento de felicidade após tantos percalços.
As voltas da vida Recebi o telefonema do meu irmão mais velho, que parecia apreensivo com o que estava prestes a dizer. — Hirofumi, vendemos a loja da rua Galvão Bueno e só precisamos de sua assinatura para o contrato de locação do imóvel. — Mas você incluiu na transação o nome da empresa também? – perguntei, atônito.
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– Sim, vendemos tudo. Precisamos concluir rapidamente a negociação. Ao ouvir suas palavras, senti um forte golpe no estômago. Em um relance, toda a história da Loja Ikesaki passou por minha cabeça. Lembrei-me do momento em que decidi sair do ramo de tinturaria para vender cosméticos. Do enorme sacrifício que fizemos para construir uma marca reconhecida, do momento em que chamei meus irmãos para serem meus sócios. Depois de desligar, conversei sobre meu desapontamento com minha irmã mais velha, que nunca trabalhou conosco, mas que sempre me apoiou: — Você sempre foi diferente. Tem a força dos nossos antepassados. Sei o quanto trabalhou arduamente em nome da nossa família! Mas não espere que seus irmãos vejam desta forma. Eles não percebem as coisas assim. Fui ao encontro deles. Desde meu desligamento, fazia seis anos que não pisava na loja. Não passei sequer em frente à calçada. As prateleiras, que estavam lotadas na minha gestão, agora precisavam ser preenchidas por caixas vazias para disfarçar a falta de produtos importantes e básicos. Os funcionários, desmotivados. A loja vazia, sem vida. Ao ir ao banheiro, reparei que não havia nem papel higiênico. Dava para entender por que os fregueses tinham nos abandonado. — Na sua época era muito mais fácil administrar. Agora está muito mais difícil! – disse meu irmão, referindo-se aos preços que aumentavam devido à inflação. — E é só a Ikesaki que está passando por dificuldades? Existem muitos comerciantes que estão prosperando. Não seria culpa da administração? — Não está vendo que o país está em recessão? Seria inútil continuar discutindo porque eles jamais reconheceriam as próprias falhas e sempre culpariam a situação externa. Sabia que eles não eram pessoas más. Pelo contrário, trabalhavam duro, eram divertidos, carismáticos e participavam ativamente dos eventos da colônia. Eles tinham seus méritos, suas virtudes, mas quanto aos negócios pensávamos e agíamos de maneira muito diferente. Infelizmente, em seis anos, tinham levado a Loja lkesaki ao fundo do poço. Agora não podia aceitar que eles vendessem o nosso maior patrimônio: o nome da família. — Vocês precisavam ter me consultado porque sabiam que eu teria interesse e prioridade na compra. Por quanto venderam? — Por que quer saber se não tem dinheiro? Novamente a divergência nos pontos de vista, no alcance de visão, voltava à tona. — Posso não ter dinheiro, mas tenho vontade, força de trabalho. E também tenho credibilidade e confiança – afirmei. Então revelei meu plano: — Pagarei o valor equivalente que ofereceram a vocês em prestações, com juros e correção monetária. Se, mesmo depois de ter pago cinco meses, atrasar um único dia o pagamento seguinte, pagarei tudo de novo do zero. Ainda assumirei todas as dívidas que devem ter. Assim todos ficaremos satisfeitos e vocês podem dormir mais tranquilos. Acredito que a parte de assumir as dívidas foi decisiva, pois eles não teriam uma segurança igual à que ofereci com nenhum comprador. Pedi a eles que pensassem bem na minha proposta. Assim fechamos o negócio e recomprei a parte dos meus irmãos em 1983. Desta vez, seria o único proprietário da empresa comercial, um negócio que eu já conhecia muito bem. Eu tinha a convicção de que seria capaz de reerguer a loja e pagar as prestações com o fluxo do caixa. Voltar ao comando da Loja Ikesaki, foi um grande momento na minha vida. Vislumbrei a loja cheia de mercadorias, os clientes se acotovelando pelos corredores, os fornecedores animados na sala de espera do setor de compras. Lembrei-me da infância em Bastos, do momento em que tinha descoberto minha vocação para o comércio. Eu estava de volta ao meu lugar de origem. Estava me divertindo novamente.
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A Ikesaki tinha virado sinônimo de “loja-que-não-tinha-produtos”. Como reverter aquela imagem negativa? (...) Vamos anunciar na TV. (...) Mas com que recursos? (...) O poder de divulgação em uma emissora de canal aberto era incalculável e teria impacto imediato.
Manual da vitória Não tinha tempo a perder. A recuperação da Ikesaki exigia uma operação de guerra. Previa negociações difíceis. A Ikesaki tinha virado sinônimo de “loja-que-não-tinha-produtos”. Como reverter aquela imagem negativa? Como nos tornarmos imprescindíveis na vida de nossos clientes novamente? Como fazer com que cada membro de nossa equipe, grande parte dos quais conhecia há anos, retomasse a motivação perdida? Em minha mente, montei um detalhado plano para reconquistar a confiança de todos. Lembrava-me dos maus bocados que passei na indústria e dos hipermercados abarrotados, mesmo com a inflação em alta. Tinha que colocar minha estratégia em ação rapidamente. Os 20 produtos essenciais Convoquei os responsáveis de cada seção a entrar uma hora antes da abertura da loja todos dias para uma rápida reunião. A revolução precisava ser imediata. Pedi para que eles levantassem os 20 produtos das categorias mais importantes para um profissional de beleza: coloração, esmaltes, hair sprays, condicionadores, permanente para cabelos, acessórios, aparelhos elétricos, etc. O critério não deveria ser o que desse mais lucro, mas o que fosse essencial para o dia a dia do cabeleireiro. Mantinha ainda uma pesquisa detalhada de preços da concorrência. Todo o plano funcionaria em cima desses itens-chave. Ao ataque. A rapidez na divulgação de preços e produtos De nada adiantaria ter produtos essenciais, com preços extraordinários, se ninguém soubesse que eles existiam. Novamente, durante a reunião da manhã, perguntei: — Como estas promoções chegariam aos ouvidos das clientes de maneira rápida, clara, com bastante frequência e atingindo o maior número de pessoas que tínhamos como alvo? – e cada um foi sugerindo: anúncios em jornais e revistas especializadas de beleza, panfletos no metrô e pontos de ônibus, parcerias com associações, sindicatos e escolas de cabeleireiros. – Todas as ideias são ótimas e válidas. E, com a ajuda de vocês, iremos trabalhar em cada uma delas. Mas precisamos de algo mais abrangente, mais certeiro, mais eficiente. Como ninguém se manifestou, completei: — Vamos anunciar na TV! Os funcionários, que conheciam a situação difícil da loja, se entreolharam e pareciam não acreditar no que eu estava falando. — O custo é altíssimo, cobrado por segundos. Não estamos conseguindo pagar nem nossas despesas – disse, quase chorando, a responsável do departamento financeiro. — Apenas digam se acham uma boa ideia ou não? – Todos concordaram que sim. Mas em qual programa? Com que recursos? Naquela época, as famílias se reuniam à sala em torno do aparelho de TV. O poder de divulgação em uma emissora de canal aberto era incalculável e teria impacto imediato. O programa Imagens do Japão, da TV Gazeta, transmitia música, cultura e notícias do Japão aos domingos. Como boa parte dos profissionais de beleza era da colônia japonesa, tinha certeza de que atingiríamos nosso alvo. E o melhor, tinha uma relação próxima e de respeito com seu criador e proprietário Mário Okuhara, que também era o diretor de programação. Quando entrei em seu escritório, ele ficou surpreso: — Há quanto tempo não nos vemos! — Estive afastado da loja por seis anos e voltei agora. Preciso de sua ajuda para salvar a loja. Quero fazer um contrato para anunciar todas as semanas em seu programa – expliquei. Ele lembrou que sua esposa, a apresentadora do programa Rosa Miyake, havia ido à Loja Ikesaki, sem encontrar os produtos que precisava. — É por isso que preciso que o senhor me ajude. Mas só poderei pagar após 90 dias.
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Mesmo sem recursos, a estratégia de Ikesaki incluía um ousado plano de mídia: anunciar produtos-chave no programa de TV Imagens do Japão, apresentado por Rosa Miyake (à direita), em emissora de canal aberto. Para isso, contou com a ajuda do diretor de programação Mário Okuhara (centro)
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Tinha convicção na força da marca, no potencial do ponto comercial, na credibilidade que gozava junto à nossa equipe para que eles recuperassem sua força e motivação (...) Agora estava na hora de negociar um estoque grande, de cada um dos 20 itens-chave, para ter o melhor preço.
O valor do anúncio devia ser pago à vista, já que Okuhara também fazia a reserva e pagava antecipadamente o horário na emissora. Além disso, os custos do programa eram altíssimos. Insisti muito para que o pagamento fosse feito após 90 dias. — Ikesaki, acredito muito no meu programa, e também acredito em você. Não se esqueça que eu o ajudei neste reinício do seu sucesso – disse. Após negociarmos as condições, fechamos o acordo para que os 20 itens-chave da Ikesaki fossem vistos na TV aberta, semanalmente, com vários minutos testemunhais por parte da apresentadora. Para comemorar, ele me convidou para almoçar em uma churrascaria chique nos Jardins. Fazia meses que não comia um churrasco – e dos bons nem me lembrava quando tinha sido a última vez – fui feliz. A força do estoque A propaganda na tevê estava garantida. Por outro lado, precisava normalizar o abastecimento de boa parte dos produtos. Passei a renegociar os débitos da desastrosa gestão anterior com a maioria dos fornecedores. Tinha que insistir para explicar a cada um deles o que havia se passado nos últimos anos, que estava retomando os negócios, desta vez sozinho. Precisaria renegociar os débitos anteriores e convencê-los para que tratassem as negociações de compras daquele momento em diante como uma nova fase em nossa relação. Era exaustivo e um desafio diário, mas não podia reclamar. Os fornecedores estavam machucados, cobertos de razão em olhar minha loja com desconfiança. Tinha convicção na força da marca, no potencial do ponto comercial, na credibilidade que gozava junto à nossa equipe para que eles recuperassem sua força e motivação. Tinha a certeza de que Hirofumi Ikesaki havia construído e deixado uma relação forte e de profunda confiança com nossos fornecedores. Era o meu legado, e precisava me valer dele naquele momento. Tinha que vencer paciente e persistentemente cada etapa do processo. Agora estava na hora de negociar um estoque grande, de cada um dos 20 itens-chave, para ter o melhor preço. Comecei pelo gerente da indústria de secadores profissional. — Não precisa dizer o nome dos seus clientes, mas você pode me dizer quantas lojas compram acima de 12, 60, 120 unidades do seu secador? – O vendedor retrucou de maneira impaciente: — Você me chamou para tirar um pedido de secadores, mas fica especulando sobre outros clientes. — É que estive fora da gestão desta loja por seis anos. Preciso entender qual o tamanho do mercado atual para avaliar meu potencial de vendas. Preciso destes dados, senão não consigo nem dimensionar quantos secadores vou pedir. Se não tiver como ou não puder me responder, consulte seu diretor para autorizá-lo. – Quando ele entendeu meu ponto de vista, começou a se acalmar. Expliquei que meu plano não era concorrer com o vizinho do bairro: iria atacar em várias frentes e que o secador dele iria estar semanalmente em grande destaque na TV. Estava pensando grande. Seria eu contra todos os outros. Pelas suas respostas, o Estado de São Paulo inteiro consumia em torno de mil unidades de secadores por mês. É preciso lembrar que secadores manuais profissionais ainda eram uma novidade na época, mas o hábito de seu uso era crescente, e a quantidade consumida nas lojas só não era maior por conta do alto preço de aquisição. Seria necessário baixar o custo para democratizar e propagar seu uso, movimento que eu pretendia iniciar na Loja Ikesaki. – Anote aí o meu primeiro pedido: mil unidades! – disse a ele. Ao perceber que eu não estava brincando, seus olhos brilharam. Acho que imaginou o potencial de vendas que iria agregar em sua área de atuação, o Estado de São Paulo. Porém, para que a estratégia arriscada desse certo, precisava ainda de uma resposta para uma questão crucial: — Se eu fechar um pedido deste tamanho, o secador que eu receber passa a ser meu ou ainda é seu? — Que pergunta descabida é essa? Aonde quer chegar? – tornou a se irritar o gerente. A alma de minha estratégia dependia de uma resposta formalizada de sua diretoria. Mas tinha mais perguntas:
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— Como não tenho onde estocar um pedido deste tamanho, as entregas podem ser feitas em quatro vezes? Uma entrega por semana. E posso pagar a primeira remessa quando receber a segunda? Pago à vista. Preciso de um desconto excepcional. — Você faz cada pergunta! — Por favor, leve o pedido e as minhas perguntas para a diretoria. No dia seguinte, o gerente me telefonou dizendo que os pedidos não tinham sido aceitos. Como conhecia um dos sócios da empresa de longa data, pedi para chamá-lo. -— Hino-san, aqui é Hirofumi Ikesaki quem fala. Fiz um pedido a seu gerente, porém soube que ele foi negado. Pode me esclarecer se temos alguma pendência? — Poxa vida, quanto tempo! Então, o senhor voltou? Eu não sabia! É por isso que estranhei. Nos últimos anos, a Ikesaki quase não fazia pedidos e, de repente, recebemos um pedido assustador, deste tamanho. Nem sei se minha produção comporta. O senhor sabia que nem limite de crédito conosco a Ikesaki tinha mais? Mas se agora é o senhor, neste caso é diferente. – Hino-san, estou fazendo um projeto novo e logo minha loja vai estar abarrotada de clientes. Para cumprir meu plano, preciso de um estoque grande do seu produto, que será um dos carro-chefe. Se o senhor aprovar este pedido, quero que me diga se o produto é meu ou seu? – Ikesaki-san, não estou entendendo! – Poderei praticar meu preço livremente? Após consultar os demais sócios, ele retornou no dia seguinte, aceitando a minha proposta. E assim, aquele meu pedido gigantesco foi aceito. O menor preço do mercado Quando a primeira remessa de secador profissional chegou, o preço praticado nas lojas da concorrência, incluindo grandes distribuidores atacadistas da época, era em torno de 98 cruzeiros. Devido à inflação galopante, os valores subiam rapidamente. Na fábrica, onde os aumentos ocorriam primeiro, já estava a 117 cruzeiros + IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), o que fazia o preço chegar a praticamente 135 cruzeiros. A próxima tabela, prestes a ser lançada, já previa 143 cruzeiros + IPI, algo em torno de 172 cruzeiros. Qual seria o meu preço? Na contramão da grande maioria dos comerciantes, decidi praticar uma deflação no valor de custo. O secador foi lançado a 87 cruzeiros, mais barato que todos os concorrentes e, principalmente, em relação à própria fabricante. Na primeira remessa, arcaria com um grande prejuízo. Na segunda, mal empataria o capital investido. A partir da terceira e quarta remessas passaria a obter um grande lucro se conseguisse escoar meus estoques. Tudo isso com um simplório controle de custo médio de estoque, uma variável de aplicação financeira dos valores de vendas que fazia somente à vista, uma excelente negociação de prazos de entrega estendidos junto ao fornecedor e um significativo desconto comercial obtido graças aos volumes de compras. Minha decisão foi baseada no fato de que precisava de um forte chamariz para anunciar continuamente na mídia e fazer com que as pessoas chegassem a duvidar do preço, fazendo com que viessem pessoalmente à loja para descobrir todas as outras promoções. Foi um sucesso extraordinário! Derrotando a inflação A inflação, que chegava a 50% ao mês, assustava os comerciantes que mantinham um sistema tradicional de cálculo para marcação de preços de venda. Tudo o que eles enxergavam era que, no mês seguinte, os preços estariam ainda mais altos, e achavam que a melhor forma de proteger seus estoques seria aplicar uma margem de lucro sobre a nova tabela que mal
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A fama de nossa fartura de mercadorias e preços excepcionais começou a se alastrar. A loja, aos poucos, recuperava seus clientes, e muitas pessoas que não nos conheciam tornaram-se assíduas consumidoras. Era nítida a evolução, semana após semana. O círculo virtuoso começava a engrenar.
haviam acabado de receber. ”Se não fizer isso, não conseguirei repor meu estoque”, era a argumentação que mais ouvia dos comerciantes do bairro. Isso contribuía para aumentar ainda mais a sua própria inflação – e afugentar seus clientes. Eu pensava diferente. Negociava os pedidos com cada fornecedor no último dia antes da virada da tabela de preços. No dia seguinte, os valores já seriam novos, mas eu tinha garantido o preço antigo. Os pedidos, em grande quantidade, eram divididos em quatro entregas. Neste esquema, a cada entrega, os preços ficavam mais defasados em relação à tabela vigente. Orientava meus gerentes e compradores a pensar da mesma maneira. Precisava ter um time coeso. Além de uma compra bem executada, o segredo estava em aumentar a rapidez do giro das mercadorias praticando margens muito baixas, muitas vezes nominalmente abaixo do custo efetivo do produto, e no controle rigoroso de estoque para realizar os próximos pedidos. Quanto mais demorássemos para vender, mais a inflação nos alcançaria. Quando éramos bem-sucedidos, recebíamos os pedidos com os preços de cerca de dois meses para trás. No mínimo, conseguíamos uma diferença de 40 dias. Tudo precisava girar rápido, ser mais veloz do que o poder corrosivo da inflação. A fama de nossa variedade de mercadorias e preços excepcionais começou a se alastrar. A loja, aos poucos, recuperava seus clientes, e muitas pessoas que não nos conheciam tornaram-se assíduas consumidoras. Era nítida a evolução, semana após semana. O círculo virtuoso começava a engrenar. Esta operação exigia de nossa equipe um esforço incomum, pois a movimentação de carga e mercadorias se tornou frenética; o mesmo desafio se repetia para realizar a reposição ágil e contínua de produtos nas prateleiras de vendas. O espaço ficou pequeno. Para acompanhar o ritmo de mudança, e mostrar que era possível crescer mesmo com uma inflação assustadora, comecei a planejar a construção de um edifício de treze andares, onde funcionava a própria loja, na rua Galvão Bueno.
Renascendo das cinzas Usei artilharia pesada: equipe motivada, estoque, preços imbatíveis e a propaganda no programa Imagens do Japão, que ficou no ar por alguns anos. Enquanto passava pelo corredor da loja, escutei um cliente brigando com a caixa: — Isso é propaganda enganosa! Isso é propaganda enganosa! — O que está acontecendo? – perguntei, ao presenciar a cena. — Eu peguei o último ônibus de ontem da cidade de Araçatuba para comprar 10 secadores para abastecer minha loja, mas só agora fiquei sabendo que vocês estão restringindo a venda a duas unidades por cliente! – esbravejou. Percebi que nossas ações, além de atingir os cabeleireiros e os consumidores finais, estavam chegando também aos pequenos comerciantes de diversas localidades. Isso soava como música aos meus ouvidos. — Com licença, o senhor disse que é comerciante, que possui uma loja. Quantos anos o senhor tem de experiência no comércio? — Trinta anos. Por quê? — Eu agradeço pelo senhor ter vindo de tão longe. O senhor viu o nosso anúncio na televisão, não foi? Milhares de outras pessoas viram. Milhares virão comprar aqui. Se eu fosse o senhor, não comprava 10. Comprava 1.000. Se o senhor for comprar direto da fábrica vai pagar 112 cruzeiros + IPI. Aqui senhor vai pagar 87 cruzeiros. Muito mais barato que a fábrica. Por que o senhor vai comprar somente 10? Peço que o senhor enxergue um pouco mais longe, por favor. — Mas vocês estão vendendo somente duas peças por cliente! Convidei-o a tomar um café no bar da esquina: — Vou lhe explicar a lógica que aplico em meus negócios. Tenho certeza de que pode ser útil em sua loja também com algumas
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Como Ikesaki venceu a década perdida
Fachada da loja em 1984 na festa Tanabata Matsuri.
Hirofumi Ikesaki leva ao pé da letra a velha máxima oriental de enxergar oportunidades nos momentos de crise. Foi justamente nos anos 1980, a chamada “década perdida”, que o empresário conseguiu dar a volta por cima e ampliar ainda mais seus negócios. O Brasil ainda estava cheio de esperança com a posse do primeiro presidente civil em 1985, após vinte anos de regime militar. Os malsucedidos e seguidos planos econômicos, no entanto, traumatizaram os brasileiros, que conviveram em um ambiente de recessão e uma inflação fora de controle até 1994, quando foi adotado o Plano Real. Para se ter uma ideia, em 1985, a inflação anual chegou a 235% e, em 1989, atingiu incríveis 1.700%. No auge da hiperinflação, a desvalorização da moeda era tamanha que os preços eram reajustados mais de uma vez ao dia. Ao receber o salário, o trabalhador corria para fazer as compras imediatamente. Para tentar proteger o dinheiro recorria-se ao overnight, aplicação financeira que corrigia a inflação de um dia para o outro. Sem conseguir se planejar, a maioria dos empresários evitava realizar novos investimentos. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o País cresceu apenas 1,7% ao ano, em média, contra 7% da década anterior. Foi neste cenário hostil que Ikesaki se destacou – o que reforça a sua visão empreendedora e capacidade de realização. O caminho do aprendizado, porém, não foi fácil. Enquanto foi o proprietário da fábrica de móveis para salões de beleza, enfrentou a dura realidade de ser atropelado pela escalada de preços. Como a matéria-prima só era comprada após os pedidos, o custo final dos móveis na fábrica ficava sempre defasado. Quanto mais tempo demorasse para produzir, mais a inflação corroía o lucro acertado na venda. Apesar do prejuízo, ele fazia questão de honrar os pedidos, sem reajustar os preços acertados anteriormente. “Cada pedido é uma transação comercial que se inicia no pedido e se encerra quando o valor devido é quitado”, costuma repetir ainda hoje. Foi um período de vacas magras, em que “vendia o jantar para pagar o almoço”. Para reassumir a Loja Ikesaki, em 1983, ele recomprou a parte da sociedade que pertencia aos irmãos. Foi preciso se desfazer da fábrica de móveis em Santa Isabel. Ao trocar o setor industrial pelo varejo, sentiu-se em casa. Mudou totalmente a maneira de administrar e controlar o estoque. Desta vez, usou a inflação ao seu favor. Adotou a tática de fazer grandes pedidos às fabricantes de produtos campeões de venda no último dia antes do reajuste de preços, e ainda parcelava os pagamentos. Com isso, conseguia vender produtos mais baratos que a fabricante estava oferecendo naquele momento aos lojistas. A estratégia tinha uma grande dose de risco: ele precisava vender rapidamente para cobrir os custos fixos. Se o plano tivesse êxito, ajudaria a escoar a produção de uma indústria em recessão e estimularia o comércio dos pequenos comerciantes. Para isso, anunciou no programa de auditório Imagens do Japão, que, em 1985, estava exibindo a novela Oshin, que antingia ótimos índices de audiência. Por ser uma novidade na época, a dramaturgia japonesa ganhou destaque nos principais veículos de comunicação do Brasil. Foi uma ousadia de Ikesaki anunciar em plena TV aberta, para espanto dos funcionários, que pregavam maior cautela devido às dificuldades financeiras da loja. Ele seguiu em frente, assumindo os riscos. Em pouco tempo, as clientes faziam fila para comprar os produtos com preços menores que os de fábrica.
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O senhor compra dois secadores, deixa aqui no bar (...), volta à nossa loja e compra mais dois. (...) Pode repetir isso cinco vezes e terá os dez secadores de que necessita. Se o senhor entrar e sair da loja cinco vezes, vai parecer a todos que a loja tem cinco vezes mais clientes. (...) Eu preciso que as pessoas divulguem a minha loja boca a boca.
variações. Se o senhor levar dez aparelhos e outra pessoa pegar mais trinta, eu serei prejudicado. Logo não terei mais secadores em minhas prateleiras. E perco um produto divulgador dos preços da minha loja. Mas fiquei feliz de saber que o senhor veio de longe para comprar conosco. Por isso, vou lhe dar uma dica simples. Não vou contrariar a ordem que eu mesmo dei às pessoas de minha equipe. O senhor compra dois secadores, deixa aqui no bar com esta moça que nos atende, volta à nossa loja e compra mais dois. Pode repetir isso cinco vezes e terá os dez secadores de que necessita – expliquei. — Mas por que faz questão de fazer isso com seus consumidores? – insistiu. — Eu preciso que as pessoas divulguem a minha loja boca a boca. Quanto mais clientes por secador eu tiver, e se ainda por cima elas saírem com a certeza de que fizeram o melhor negócio, mais pessoas eu terei falando bem da loja Ikesaki – exemplifiquei. — Mas eu sou um comerciante. Por que não posso comprar tudo de uma só vez? – teimou novamente. — Se o senhor entrar e sair da loja cinco vezes, vai parecer a todos que a loja tem cinco vezes mais clientes. E as pessoas gostam de frequentar lugares que tem muito movimento! – Desta vez ele se convenceu, e fez exatamente o que sugeri. Em pouco tempo, a loja ficou abarrotada de clientes. Corredores cheios, filas nos caixas. Aquilo sim! O espírito da Loja Ikesaki tinha renascido das cinzas.
Nascimento do atacado Pouco tempo depois, o dono de uma perfumaria de uma cidadezinha de Santa Catarina, que estava fazendo compras na loja, me disse: — Antes perdia dias andando pelas ruas de São Paulo, visitando fornecedor a fornecedor para abastecer minha loja. Agora que conheci a sua loja, compro de tudo em um único local. E por ter os menores preços, ainda consigo vender mais barato que as outras lojas da minha cidade. Com esse jeito inovador de vender, a Ikesaki se transformou em um ponto de referência para o pequeno comerciante. Além de encontrar uma variedade grande de produtos, preços menores que a fabricante, ele tinha mais uma vantagem: podia comprar em pequenas quantidades. Se comprasse esmaltes da fabricante, por exemplo, precisaria encomendar uma caixa fechada de cada cor. Na Ikesaki, podia levar apenas a quantidade necessária, sem estocar produtos que não tinham saída. Para facilitar a vida do lojista que vinha de outras cidades, entregávamos de ônibus, na cidade dele. Nascia aqui o setor de atacado da Ikesaki, que depois se tornaria um negócio independente. Alguns meses depois, esse mesmo comerciante voltou a me procurar: — Graças a vocês, consegui crescer e abrir uma nova loja. Muito obrigado. Naquele momento, senti que os sacrifícios e os esforços de todos tinham valido a pena. A recompensa estava bem na minha frente, naquele gesto simples do cliente, mostrando sua satisfação de maneira espontânea. Assim colaboradores, fornecedores, profissionais e clientes resgataram o entusiasmo e a confiança na marca. A partir dali a Ikesaki não parou mais de crescer.
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Interior da Loja Ikesaki na década de 1980: os clientes faziam filas para comprar produtos mais baratos que o preço de fábrica
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Linha do tempo Fundação da Ikesaki Design. Móveis, equipamentos e acessórios para salões de beleza, clínicas e spas
A Ikesaki é o primeiro varejo no Brasil a expor em feiras de beleza com formato de superestandes de autosserviço
É criada a ProArt, marca de acessórios desenvolvida para os profissionais de salão de beleza
1985 1988 1996 1997 2001 2004
Fundação da Taiff, que viria a se tornar líder de aparelhos elétricos para profissionais da beleza
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É fundada a EBC, loja de autosserviço com mais de 7 mil m2
Criada a Beauty Fair, maior feira do setor de beleza das Américas
Criada a revista Viva Beleza, com distribuição nacional, e foco no profissional de beleza
Inauguração da hiperloja de São Miguel, zona leste de São Paulo, iniciando o o projeto de expansão
Inauguração da hiperloja de Santo Amaro, na zona sul de São Paulo
Inauguração da hiperloja metrô Tucuruvi. Pela primeira vez, uma multimarca de cosméticos, de posicionamento profissional, é lojaâncora em um importante shopping
2007 2008 2010 2012 2013 2014
• Inauguração de mais uma hiperloja no bairro da Liberdade • Centro de distribuição: base de sustentação para o projeto de expansão
Inauguração da hiperloja de Santo André, na região do ABC paulista Inauguração da hiperloja de Osasco, na zona oeste da Grande São Paulo 175
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Capítulo 4
A vida pública 177
Depois que os filhos assumiram o dia a dia dos negócios, ele pôde dedicar mais atenção aos interesses da comunidade japonesa. Embora seus empreendimentos tenham ultrapassado há muitos anos as fronteiras da Liberdade, é impossível não reconhecer sua relação afetiva com o bairro, do qual é um dos principais personagens.
O líder da Liberdade Em 1997, ano em que completou 70 anos, Hirofumi Ikesaki tornou-se a principal liderança do bairro da Liberdade, símbolo da colônia japonesa e uma das principais referências turísticas de São Paulo. O empresário foi eleito presidente da Acal (Associação Comercial e Assistencial da Liberdade). Estava nas suas mãos, a partir daquele momento, conciliar os interesses dos lojistas, pressionar, negociar e reivindicar propostas às autoridades. Por que um dos principais empresários do setor de beleza do Brasil, que já poderia estar desfrutando a aposentadoria, decidiu abraçar este novo desafio? Aposentadoria é uma palavra que está fora do seu dicionário. Todos os dias, às seis horas da manhã, Ikesaki já está em pé, com a barba feita. Ele ainda costuma dar expediente em seu escritório no 12º andar na matriz da Loja Ikesaki, na rua Galvão Bueno. Depois que os filhos assumiram o dia a dia dos negócios, na década de 1990, ele pôde dedicar mais atenção aos interesses da comunidade japonesa. Embora seus empreendimentos tenham ultrapassado há muitos anos as fronteiras da Liberdade – e do Brasil –, é impossível não reconhecer sua relação afetiva com o bairro, do qual é um dos principais personagens. Foi ali onde montou sua primeira loja de produtos químicos na rua dos Estudantes, que mais tarde se transformaria na Loja Ikesaki, um supermercado de cosméticos. Foi ali em um apartamento de dois quartos, na rua Galvão Bueno, onde morou por quatorze anos com a esposa Michiyo e os cinco filhos. Foi nesse bairro que construiu grande parte da sua história. À frente da Acal, sentiu-se desafiado – e revigorado – para manter viva a tradição da cultura japonesa, ainda que do seu jeito conservador de enxergá-la. O empresário já havia ocupado cargos de diretoria no Bunkyo (Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa e de Assistência Social), Rotary Club, Conseg (Conselho de Segurança) e na própria Acal. Somente quando assumiu a presidência desta última, sua figura pública conquistou maior visibilidade e reconhecimento. Quinto presidente da entidade, depois de Yoshikazu Tanaka (1965-1973), Tsuyoshi Mizumoto (1974-1988), Nobuyoshi Uchida (1989-1991) e Sadao Onichi (1992-1997), Ikesaki já conhecia bem os desafios do cargo, o cenário que encontraria pela frente e a herança de antigos líderes que precisaria honrar. Hoje as principais decisões que promovem o bairro passam pela Acal. O trabalho do empresário de divulgar e preservar a cultura japonesa foi reconhecido em 2012, quando a Câmara Municipal prestou-lhe uma homenagem, concedendo-lhe a medalha Anchieta e Diploma de Gratidão da Cidade de São Paulo. Na cerimônia, que contou com a presença das principais lideranças da comunidade nipo-brasileira, o empresário ganhou um apelido que o define de forma categórica: “embaixador da Liberdade”.
Criador de um símbolo da cultura japonesa A Acal nasceu com pretensões modestas. Foi fundada por 60 lojistas em 1965, ainda sob o nome de Associação de Confraternização dos Lojistas do Bairro da Liberdade (Liberdade Shoten Shimbokukai). Os lojistas saíam para confraternizar em animados jantares nos restaurantes japoneses, como Sakurai, Ishi e o recém-inaugurado Kokeshi. A associação, que os irmãos Hirofumi e Kazuto Ikesaki ajudaram a fundar, também tinha uma outra preocupação inicial: pedir providências às autoridades policiais para coibir as cenas de briga durante a madrugada entre jovens nisseis e imigrantes do pós-guerra que frequentavam os clubes noturnos da rua Galvão Bueno, como o Guinza e o Colombin. A partir de 1968, o bairro, que atraía basicamente japoneses, sofreu mudanças abruptas. Em maio, muitas lojas próximas à
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O governador Geraldo Alckmin, autoridades polĂticas e da colĂ´nia japonesa durante festa na Liberdade. Ao centro, Ikesaki, que faz a ponte entre esses dois universos
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Mizumoto se encontrou com Ikesaki para falar sobre as mudanças pelas quais o bairro estava passando. Os dois tiveram uma ideia polêmica: a construção em plena rua Galvão Bueno de um torii, como é chamado o portal vermelho que fica em santuários xintoístas para indicar que se está entrando em território sagrado.
Praça da Liberdade tiveram que se transferir ou fechar devido às obras de construção da Linha Norte-Sul do metrô, que seria inaugurada sete anos depois. A outrora estreita rua Conselheiro Furtado foi alargada, diminuindo a força comercial do local. Foi nesse cenário de transformação que a liderança de Yoshikazu Tanaka, primeiro presidente da associação, começou a se destacar. Tanaka, um japonês baixinho, havia se tornado então o mais proeminente empresário do bairro ao construir, em 1953, o Cine Niterói, um prédio de cinco andares, com sala de cinema, hotel, salão de eventos e restaurantes. O principal ponto de lazer e diversão da colônia japonesa foi drasticamente sepultado com a construção da Radial Leste, que passou bem por cima do Cine Niterói e ainda dividiu a rua Galvão Bueno. Com o dinheiro da indenização da desapropriação, abaixo do valor de mercado, Tanaka transferiu o cinema para a avenida Liberdade, na esquina com a rua Barão de Iguape. A partir de então, sua importância começou a diminuir gradativamente até fechar as portas em 1988. Os transtornos provocados pelas novas obras obrigaram outros comerciantes a encerrar os negócios. A Associação de Confraternização dos Lojistas começou a se articular para transformar o bairro em uma atração turística – e assim atrair novos fregueses. Em 1969, ela organizou a primeira Festa Oriental, com a apresentação de bon odori, dança folclórica tradicional. No ano seguinte, quando Ikesaki inaugurou a própria loja na rua Galvão Bueno, o vice-presidente da associação, Tsuyoshi Mizumoto, trouxe mil galhos de pés de salgueiro do Japão para decorar as ruas do bairro no fim de ano. A rua foi unida novamente com a construção do Viaduto Osaka, nome dado em homenagem à província japonesa que se tornou cidade-irmã de São Paulo em 1971. Mizumoto, que despontava como uma liderança no bairro, se encontrou com Ikesaki, naquela época um comerciante em ascensão, para falar sobre as mudanças pelas quais o bairro estava passando. Os dois, que se tornariam amigos, tiveram uma ideia polêmica: a construção em plena rua Galvão Bueno de um torii, como é chamado o portal comumente vermelho que fica em santuários xintoístas para indicar que se está entrando em território sagrado. Era a primeira vez que um espaço público ganharia um símbolo religioso, iniciativa que dividiu opiniões na época. O tempo, no entanto, mostrou que a dupla estava certa. Em janeiro de 1974, uma equipe de TV cobriu a inauguração do “portal japonês”, ajudando a fazer propaganda do bairro fora dos limites da colônia. Em 2004, já na presidência da Acal, Ikesaki reformou o portal, deixando-o mais vistoso. Em 2008, nas comemorações do centenário da imigração, descobriu-se que a iniciativa de Mizumoto e Ikesaki havia se alastrado país afora. Foram contabilizados 75 toriis em diversas cidades de vários estados, principalmente naqueles onde havia presença de imigrantes japoneses. O torii, monumento do sagrado, tornara-se símbolo da cultura japonesa.
O bairro japonês vira ponto turístico Não foi à toa que Ikesaki escolheu o bairro da Liberdade para montar sua loja de produtos químicos para tinturarias. Não havia melhor lugar para vender aos japoneses. Estima-se que desde a abertura do Cine Niterói, em 1953, mais de 20 mil pessoas, muitas vindas do interior, circulavam pelo bairro semanalmente. Naquela época, o bairro ainda não contava com uma decoração tipicamente japonesa. As lojas podiam ser identificadas por plaquetas tímidas escritas em ideogramas – ou nem isso. Quando Ikesaki inaugurou sua loja no coração da rua Galvão Bueno, em 1970, exibia em sua fachada um chamativo luminoso vertical com o nome Ikesaki escrito com letras estilizadas remetendo ao ideograma japonês. As obras do metrô e da Radial Leste mobilizaram os comerciantes, que temiam o desaparecimento do bairro japonês. Para piorar, a Associação de Confraternização dos Lojistas do Bairro da Liberdade não contava com o reconhecimento da prefeitura. O então prefeito Miguel Colasuonno, que havia voltado de uma viagem ao Japão, onde chefiara uma comitiva de empresários paulistas, foi convidado para assistir ao festival de dança folclórica na rua Galvão Bueno no dia 15 de dezembro de 1973. Cola-
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Cartão-postal do bairro da Liberdade. Ao fundo o torii, portal vermelho, que foi construído com a participação ativa de Ikesaki
As luminárias transformaram a cara da Liberdade: de mero ponto comercial, o bairro virou atração turística da cidade
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O Rotary Club Liberdade foi fundado em 1976. Durante a fase de articulação da criação desta unidade, Hirofumi Ikesaki exerceu um papel central, reunindo-se constantemente com empresários japoneses e brasileiros.
suonno, que fora nomeado pelo governador Laudo Natel para ocupar o cargo até 1975, gostou do que viu e, naquela ocasião, conheceu um carismático imigrante que mal falava português: o empresário Tsuyoshi Mizumoto. A aproximação entre os dois seria importante para sensibilizar as autoridades a investirem no bairro. Em 28 de janeiro de 1974, Mizumoto assumiu a presidência da associação. Uma de suas primeiras medidas foi mudar o estatuto e o nome para Associação dos Lojistas da Liberdade. Em novembro, o bairro recebeu novos incentivos da prefeitura para se tornar um ponto turístico comercial. Em dois anos, o bairro ganhou uma série de obras que ajudaram a dar as feições japonesas que permanecem até os dias de hoje. Ao lado do Viaduto Osaka, foi construído o jardim japonês. As calçadas ganharam piso diferenciado e as fachadas das lojas, letreiros com ideogramas. A maior atração ficou reservada para o dia 18 de junho de 1975, em comemoração aos 67 anos da imigração japonesa. O novo prefeito Olavo Setúbal acionou a chave que ligaria as 219 luminárias típicas (suzuranto), instaladas nas principais ruas do bairro. Nas tardes de domingo, mais uma atração turística ajudou a impulsionar o movimento na Praça da Liberdade, ao lado da estação de metrô recém-inaugurada: a tradicional Feira Oriental, que se mantém em atividade ainda nos dias atuais com as barracas de comidas típicas e artesanato.
Fundador do Rotary Liberdade O Rotary Club Liberdade foi fundado em 1976. Durante a fase de articulação da criação desta unidade, Hirofumi Ikesaki exerceu um papel central, reunindo-se constantemente com empresários japoneses e brasileiros. Naquela época, muitas empresas japonesas tinham retomado os investimentos no Brasil – e a unidade na Liberdade serviria como fator de integração. Devido à liderança já demonstrada neste episódio, Ikesaki foi convidado para ser o primeiro presidente pelo dr. Nelson de Barros Camargo, um dos líderes do Rotary Club. Ele agradeceu a indicação, mas não aceitou. Ainda havia, segundo sua opinião, nomes mais significativos que mereciam ocupar o cargo. O Bunkyo (Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa e Assistência Social) era o representante oficial da colônia japonesa. Os donos dos jornais japoneses tinham grande influência naquela época. Além deles, o presidente do Banco América do Sul e os presidentes das principais cooperativas, como a de Cotia, também prestavam importantes serviços. Entre os comerciantes, o mais cotado era Tsuyoshi Mizumoto, da Casa Mizumoto. Ikesaki sugeriu diversos nome e, no final, Mizumoto foi escolhido o primeiro presidente do Rotary Liberdade. Ikesaki aceitou um cargo na diretoria que estava se formando. Em um momento conturbado, logo após deixar sociedade com os irmãos, ele recebeu a missão de liderar a comitiva nacional de 40 rotarianos ao Japão para participar do Encontro Mundial. Depois a comitiva ainda visitou outros sete países asiáticos. Finalmente, em 1982, ele aceitou a presidência do Rotary Liberdade. Até hoje, participa ativamente das reuniões da entidade.
Visita do imperador Em junho de 1997, o imperador Akihito e a imperatriz Michiko fizeram uma visita oficial de dez dias ao Brasil. O roteiro incluía cinco capitais: Belém, Brasília, Belo Horizonte, Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro. A estada tinha um significado especial: era a primeira viagem do casal imperial ao exterior após o luto pelo terremoto de Kobe, que matou quase 6,5 mil pessoas em janeiro de 1995. A visita a São Paulo previa uma rápida passagem pelo prédio da Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa e Assistência Social – Bunkyo, na rua São Joaquim, onde Akihito seria recebido por autoridades da colônia japonesa. Assim que soube da
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Hirofumi Ikesaki foi um dos fundadores do Rotary Club da Liberdade e até hoje é um participante ativo (acima). Quando saiu da sociedade com seus irmãos, fez um empréstimo bancário e viajou ao Japão ao lado da esposa com um grupo do próprio Rotary (à esquerda)
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Ikesaki não se conformava que a visita do Imperador Akihito não incluísse no trajeto o bairro da Liberdade. Deu a palavra que conseguiria isolar toda a rua Galvão Bueno com barreiras de proteção para a passagem dos carros da comitiva. Em troca, recebeu olhares desconfiados, já que não se costuma questionar uma determinação da Casa Imperial.
novidade, Hirofumi Ikesaki, que havia assumido a presidência da Acal, ficou eufórico: propôs ao cônsul-geral do Japão, Katsuyoshi Tanaka, que o imperador caminhasse pelas ruas da Liberdade para acenar à população. A Casa Imperial, responsável pelo rígido esquema de segurança, rechaçou imediatamente a ideia. Ikesaki não desistiu: propôs que a comitiva imperial passasse de carro pela rua Galvão Bueno, a principal do bairro. A ideia foi rejeitada novamente, pois a rua e suas imediações não tinham oito metros de largura, espaço mínimo exigido pela Casa Imperial. Ikesaki sabia o que significaria a presença do imperador na Liberdade. Ainda lembrava-se das duas visitas anteriores que Akihito fizera ao Brasil ainda na condição de príncipe herdeiro. A primeira, em maio de 1965, foi um momento histórico: um público estimado em 80 mil pessoas lotou o estádio do Pacaembu, em São Paulo. Naquela época, as memórias dos preconceitos sofridos pelos imigrantes na Segunda Guerra ainda estavam viva. O escritor Tomoo Handa registrou em seu livro “O Imigrante Japonês” o depoimento de um agricultor: “a mágoa de ter sido destratado durante a guerra permanecia guardada num canto do coração. Falando com sinceridade, havia momentos em que eu sentia complexo de ser japonês, porém, vocês não sabem o quanto me senti reconfortado por aquele momento”. A segunda visita foi uma homenagem aos 70 anos da imigração japonesa: mais uma vez, a mesma multidão lotou o estádio do Pacaembu em junho de 1978. Quem esteve presente diz ter visto os mais idosos, entusiasmados, com bandeiras na mão, chorando com aquele reencontro. A viagem também foi marcante para Akihito. Em dezembro do mesmo ano, o imperador afirmou que as comemorações no Brasil foram o fato mais relevante do ano para ele. Ikesaki não se conformava que a terceira visita de Akihito, a primeira na condição de imperador, não incluísse no trajeto o bairro da Liberdade. Depositou todas as suas fichas em uma cartada: deu a palavra que conseguiria isolar toda a rua Galvão Bueno com barreiras de proteção para garantir a largura mínima exigida para a passagem dos carros da comitiva. Em troca, recebeu olhares desconfiados, já que não se costuma questionar uma determinação da Casa Imperial. Até para sua surpresa, recebeu sinal verde do Consulado-Geral do Japão para prosseguir. Os representantes das associações japonesas que presenciaram a cena duvidaram que Ikesaki conseguiria. Ele mobilizou contatos na prefeitura e conseguiu cercar parcialmente a rua. Para deixá-la com a largura mínima exigida pela Casa Imperial, deu um jeitinho: colocou as grades de proteção em cima da calçada. As pessoas ficariam apertadas, mas poderiam ver o imperador. Mandou enfeitar as ruas com fitas coloridas e mandou produzir duas mil bandeirinhas do Japão e do Brasil para distribuir. Estava tudo pronto. Porém, na manhã do dia da visita, começou a chover. Corria-se o risco de, após todo aquele esforço, não haver público. O empresário não teve dúvidas: recorreu a todas as “forças” que podia. Saiu da loja, comprou dois pacotes de velas e foi até a igreja próxima à Praça da Liberdade. Ao se ajoelhar aos pés de um dos bancos de madeira, lembrou-se de que não sabia rezar em português. Com fé, pediu que o tempo melhorasse. Sentia o coração apertado. Próximo ao horário do imperador passar, a chuva foi parando. Os dois lados da calçada estavam lotados. Quando o carro da comitiva imperial apontou na rua Thomaz Gonzaga, os japoneses postados na calçada começaram a acenar as bandeirinhas. O carro subiu a rua Galvão Bueno, passou em frente à Loja Ikesaki e chegou até a Praça da Liberdade. Em seguida, fez o retorno, e a comitiva voltou ao hotel onde estava hospedada. O trajeto pelas ruas da Liberdade ficou conhecido como “Caminho do Imperador”. Foi rápido, mas o suficiente para que muitos japoneses se emocionassem, inclusive Ikesaki.
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Dois momentos da visita do casal imperial Akihito e Michiko ao Brasil: a primeira em 1978, na condição de prĂncipes-herdeiros, e a terceira em 1997, como imperadores
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A Liberdade tornou-se sua trincheira para preservar os valores da cultura japonesa tradicional. Ao fazer isso com sua liderança, ele ajudou a transformar o bairro no que é hoje: cartão-postal de São Paulo e um dos locais preferidos para os passeios de fins de semana de todos os brasileiros.
Festas japonesas Em 2012, Ikesaki completou 15 anos na presidência da Acal, superando o antigo líder Tsuyoshi Mizumoto, que ocupara a cadeira por 14 anos. Os mais próximos dizem que o bairro não conta com outra liderança capaz de substituí-lo. A oposição argumenta que seu estilo conservador dificulta o surgimento de novos nomes na gestão. Embora as evidências mostrem que a Liberdade tenha se transformado em um bairro oriental, para Ikesaki ela continua sendo sinônimo de bairro japonês. Ele é um ferrenho defensor das diversas festividades típicas, que fazem parte do calendário oficial de São Paulo. Deputados, senadores, prefeitos e até governadores de diferentes matizes partidárias costumam marcar presença nas ações promovidas pelo empresário no bairro. Um exemplo é o Tanabata Matsuri ou Festival das Estrelas, considerada a maior festa tradicional fora do Japão. Realizado desde julho de 1979, o festival segue os mesmos padrões do que ocorre na cidade de Sendai. A festa, cuja origem é uma lenda japonesa, teve início há 1.150 anos, na Corte Imperial. As ruas do bairro são decoradas com ramos de bambus (sassadake) com enfeites coloridos nos quais são amarrados os pedaços de papéis com desejos (tanzaku) que as pessoas escrevem. Outra festa tradicional que a Acal organiza para divulgar a cultura japonesa é o Moti Tsuki, realizado no dia 31 de dezembro, quando são oferecidos bolinhos de arroz (moti) para celebrar o Ano-Novo (oshôgatsu). Embora seja realizado desde 1971 na Liberdade, foi na gestão de Ikesaki que o evento ganhou grande impulso. Em 2008, o empresário quis prestar uma homenagem ao centenário da imigração japonesa comemorado naquele ano. Durante uma reunião na Acal, apresentou seu plano: distribuir gratuitamente vinte mil motis e sete mil ozôni (sopa feita com moti, legumes, alga e peixe seco). Nunca uma quantidade tão grande havia sido distribuída até então. Para atingir a meta, o empresário convocou um exército de voluntários para preparar os bolinhos e pediu doações às empresas para comprar ingredientes. Às 9 horas do dia 31 de dezembro, as ruas do bairro estavam enfeitadas, e altares budista e xintoísta instalados para a abertura da festa. Vestidos de happi (colete) vermelho, líderes da comunidade, políticos e autoridades deram início simbólico ao evento socando o arroz (motigome) no pilão de madeira para produzir os bolinhos. Aos poucos, uma longa fila foi se formando. Os voluntários foram distribuindo os saquinhos com os bolinhos de arroz. Ikesaki não continha o sorriso de satisfação. Desde então, a festa passou a distribuir essa quantidade gigantesca de moti. Em 2013, Ikesaki comprou com recursos próprios o Nikkey Palace Hotel, outro símbolo do bairro nipônico. A Liberdade tornou-se sua trincheira para preservar os valores da cultura japonesa tradicional. Ao fazer isso com sua liderança, ele ajudou a transformar o bairro no que é hoje: cartão-postal de São Paulo e um dos locais preferidos para os passeios de fins de semana de todos os brasileiros.
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Cerimônia para preparar bolinhos de arroz que são distribuídos no AnoNovo. Como presidente da Acal, Ikesaki idealizou projeto de distribuir 20 mil bolinhos à população no centenário da imigração japonesa em 2008
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O homem público
Ao lado do governador Mário Covas (1995-2001)
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Recebendo a Ordem do Sol Nascente, no Palácio Imperial, em Tóquio, em 2011
Recebendo o governador Luiz Antônio Fleury Filho (1991-1995)
Passeio na Liberdade com o amigo e senador Romeu Tuma (1995-2010)
Ao lado do prefeito Gilberto Kassab (2006-2013)
Com a Miss Brasil Renata Fan, em 1999, atual apresentadora da Rede Bandeirantes
Governador, prefeito, deputados e autoridades ao lado de Ikesaki na abertura da Beauty Fair
Participando do projeto Zeladoria do Planeta, que promove a cidadania varrendo ruas e calçadas públicas
O atual deputado federal Walter Iihoshi e o falecido deputado estadual Paulo Kobayashi na Loja Ikesaki
Discursando na abertura da Beauty Fair 2014
Promovendo o bairro da Liberdade, ao misturar samba e dança japonesa em 1997
Ikesaki, primeiro à esquerda, seguido de Mizumoto, participando de dança típica japonesa em festa na Liberdade
Ikesaki e Atsushi Yamauchi, ex-presidente do Bunkyo, na ocasião da visita do Imperador em 1997 189
Eu nasci na província de Kumamoto, no Japão, e ainda criança vim para o Brasil. Quando adulto, naturalizei-me brasileiro, me casei com Michiyo Ikesaki, temos cinco filhos e doze netos, todos brasileiros, com muito orgulho.
Carta de agradecimento
Discurso de Hirofumi Ikesaki na Câmara Municipal de São Paulo ao receber a Medalha de Anchieta em 14 de maio de 2012. Estou muito feliz e lisonjeado por este momento muito importante da minha vida. Há muito tempo, o saudoso amigo e grande político Paulo Kobayashi já tinha me indicado para receber este maior título paulistano. Eu agradeci, mas recusei por haver muitas pessoas mais importantes na comunidade e que mereciam recebê-lo antes de mim. Paulo Kobayashi foi o único político nikkei que presidiu a Câmara Municipal de São Paulo e a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, e cumpriu sete mandatos parlamentares: duas vezes deputado federal, três vezes deputado estadual e duas vezes vereador, sempre se destacando como parlamentar de excelentes resultados, um orgulho para a nossa comunidade nipo-brasileira. Hoje, recebo de coração esta grande homenagem, oferecida pelo seu filho, vereador Victor Kobayashi, que considero sucessor de seu pai, que dá prosseguimento ao seu legado. Agradeço ao Victor, grande político atuante que vem efetuando relevantes serviços na comunidade nipo-brasileira, e presto minha homenagem ao saudoso Paulo Kobayashi. Eu nasci na província de Kumamoto, no Japão, e ainda criança vim para o Brasil. Quando adulto, naturalizei-me brasileiro, me casei com Michiyo Ikesaki, temos cinco filhos e doze netos, todos brasileiros, com muito orgulho. Sou filho de imigrantes e fomos designados para trabalhar no cafezal no município de Lins, no estado de São Paulo. A família cumpriu respeitosamente os deveres da imigração. Meu pai adquiriu terras no município de Bastos, cultivou café e dedicou uma grande parte da área para plantio de algodão. Ali eu cresci e fiz o curso fundamental, trabalhando com a família na agricultura. Em 1947, viemos para São Paulo. Como eu tinha mais facilidade em português, tornei-me responsável pelo andamento dos negócios da família. Durante e após o término da Segunda Guerra Mundial, sofremos muito preconceito racial por pertencermos à nação adversária do Brasil.
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A missão do nosso grupo é prover o desenvolvimento a todos os elos da cadeia de beleza, contribuindo para o progresso do país e bem-estar das pessoas.
Talvez por esse preconceito, os japoneses que vieram do interior para São Paulo tinham dificuldades em trabalhar em vários setores. Inicialmente achavam que teriam mais facilidade e confiança se optassem em se estabelecer em alguns ramos específicos, como tinturaria, quitanda e pastelaria. Nós entramos como aprendizes de tinturaria. Trabalhava durante o dia e estudava à noite. Em pouco tempo, nos tornamos proprietários dessa tinturaria. Aos poucos, e com muito esforço, a vida social da comunidade nikkei foi melhorando, e as mulheres começavam a frequentar os institutos de beleza para se cuidar paras festas, casamentos e batizados. Percebendo que o rendimento dos institutos de beleza era bem melhor que os da tinturaria, as mulheres estudavam para ser cabeleireiras e estabeleciam seus institutos mesmo improvisados na sala de suas residências. Com essas mudanças, optei por abrir uma loja de produtos para cabeleireiros e móveis para a instalação de institutos de beleza. Tinha muitas lojas grandes que vinham dominando o mercado, mas com minha trajetória e a maioria dos profissionais que eram antigos tintureiros ou descendentes já faziam essa mudança, vinham fazer orçamento e compravam comigo os móveis do instituto de beleza. Não tinha nenhum dia em que não fizesse pelo menos três montagens completas de salão de beleza, além de todos os produtos necessários para o seu consumo. Nada era fácil. Com muita dedicação, esforço e coragem, trabalhávamos intensamente antevendo o futuro. Para maior expansão, adquiri o imóvel na rua Galvão Bueno, onde instalamos o primeiro supermercado de cosméticos do Brasil. Foi com muito sacrifício que abri essa loja para atender cabeleireiros. Em seguida, implantamos uma indústria de móveis para salões de beleza, secadores e lavatórios, tornando-me assim o maior e mais conhecido fabricante e comerciante desse setor no país. Desde o início, por ser inédito, essa grande inovação chamou atenção da população paulistana e também grande interesse das senhoras da alta sociedade. Com o nosso convite, tivemos a presença da esposa do então governador Laudo Natel, a esposa do prefeito Figueiredo Ferraz, a consulesa do Japão, a secretária de Turismo e Fomento de São Paulo, presidentes de sindicatos e associações, entre outros. Todos ansiosos para conhecer essa nova modalidade de estabelecimento. A cerimônia de inauguração foi um sucesso extraordinário, com a presença de notáveis senhoras da sociedade brasileira. Tivemos cobertura da mídia, no rádio, televisão, jornais e revistas. Foi o grande destaque nesse período.
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Assim, com o decorrer dos anos, fomos nos estabelecendo nesse setor. Hoje atuamos com sete empresas, no comércio, na indústria, no atacado e nos serviços. Em 2005, inauguramos o que é hoje a maior feira de cosméticos e beleza das Américas, segunda maior do mundo, a Beauty Fair. Na sétima edição, em 2011, a Beauty Fair passou da terceira para a segunda maior feira de beleza do mundo, pela sofisticação e volume de negócios que promove para o setor de beleza. A missão do nosso grupo é prover o desenvolvimento a todos os elos da cadeia de beleza, contribuindo para o progresso do país e bem-estar das pessoas. Na minha trajetória, tenho realizado vários trabalhos pela comunidade, pelo Rotary Clube Liberdade, pela Acal e pelo Conseg Liberdade, do qual fui fundador e presidente. Recebi algumas homenagens e títulos, como a condecoração da Ordem do Sol Nascente, título honroso do Palácio Imperial do Japão, entre outros, e hoje estou recebendo, com muito orgulho, este título máximo paulistano, a Medalha Anchieta e Diploma de Gratidão da Cidade de São Paulo. Mais uma vez, agradeço ao Victor Kobayashi. Hoje é um dia inesquecível. Receber esta grande honraria na presença maciça de todos os convidados presentes. Esta medalha não pertence somente a mim, mas pelo esforço, dedicação e compreensão, pertence à minha família, à minha mulher, Michiyo, e aos meus filhos. E também a todas as pessoas que estiveram lado a lado comigo nas batalhas, nos momentos bons e nos momentos difíceis, principalmente. Nosso trabalho é interminável, temos muito a construir e contribuir para o desenvolvimento de São Paulo e do nosso país. Agradeço à Câmara Municipal de São Paulo e a todos que aqui vieram me prestigiar. A todos, o meu muito obrigado.
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A vida em famĂlia 195
Hirofumi Ikesaki desembarcou com a família do navio Buenos Aires Maru, no Porto de Santos, em 2 de junho de 1934. (...) O menino nem desconfiava que sua futura esposa encontrava-se bem mais perto do que imaginava. Michiyo, ainda uma menininha de três anos, estava viajando no mesmo navio com sua família.
Viajantes do mesmo navio Hirofumi Ikesaki desembarcou com a família do navio Buenos Aires Maru, no Porto de Santos, em 2 de junho de 1934. O menino de seis anos, claro, nem desconfiava que sua futura esposa encontrava-se bem mais perto do que imaginava. Michiyo, ainda uma menininha de três anos, estava viajando no mesmo navio com sua família, que se instalou no bairro do Bexiga após a chegada a São Paulo. A convivência com a comunidade italiana fez com que a família Sugishita se tornasse mais extrovertida, menos formal que a de Ikesaki. A voz suave de Michiyo, por exemplo, herdou o “erre” puxado, à maneira dos italianos. As duas famílias, no entanto, mantiveram as tradições japonesas bastante arraigadas no seu dia a dia. Embora tenham viajado juntos ao Brasil, eles só se conheceriam pessoalmente muitos anos depois, durante uma festa de confraternização organizada pelos imigrantes que estavam naquele navio. Kameyoshi, o pai de Ikesaki, viu um anúncio no jornal sobre o Rokuji Dôkôkai, nome do clube dos imigrantes que vieram a bordo do Buenos Aires Maru, propondo um jantar para reunir os antigos companheiros de viagem. Somente o pai foi ao primeiro encontro, que reuniu dez chefes de família. As famílias foram convidadas para o segundo encontro: um piquenique no parque da Represa de Guarapiranga. Para as crianças, foi organizado um pequeno undôkai (gincana esportiva) e ojami vermelhos e brancos (saquinhos de pano com grãos) para brincarem de tamaire (competição em que dois times disputam para ver quem coloca mais bolas num cesto preso no alto de uma vara). Ainda recém-chegado a São Paulo, Ikesaki ficou admirado como algumas famílias haviam progredido economicamente ao ver o nome da tinturaria estampada em tamanho grande na lateral de um furgão. Na época, ele ainda era um mero aprendiz de tintureiro. As pessoas reunidas estavam com roupas de tecido grosso, cachecol macio e chapéu, contrastando com suas vestes simples para os padrões da época. Mesmo não tendo tempo para se dedicar a namoros, Ikesaki jura que se apaixonou por Michiyo à primeira vista. E foi somente à vista, porque eles não trocaram uma palavra sequer. Os namoros dentro da colônia japonesa só aconteciam quando havia um nakôdo (“padrinho”) que os apresentasse. Aos 21 anos, Ikesaki ainda se sentia caipira demais para pedir qualquer apadrinhamento para se aproximar de uma moça da cidade. Eles viam-se apenas nessas reuniões familiares que ocorriam uma vez por ano – e raramente trocavam mais do que meia dúzia de palavras. Esses encontros eram comemorados com grande alegria, pois os japoneses podiam falar seu idioma livremente, sem riscos de serem presos, como acontecera durante a Segunda Guerra.
O início do namoro O primeiro encontro a sós foi por acaso. Nos fins de semana, os quarteirões do entorno da rua Galvão Bueno ficavam lotados de japoneses, ávidos para entrar no Cine Niterói, inaugurado em 1953. Foi após uma das sessões noturnas que Ikesaki encontrou Michiyo no saguão do cinema. Ikesaki dera sorte. Ela não costumava sair sozinha de jeito nenhum. Nessa noite, a irmã mais velha não pôde fazer companhia – ela estava esperando que o pai a buscasse. Sem jeito, Ikesaki se aproximou. Começaram a conversar. As luzes do saguão começaram a se apagar. Ele, na melhor das intenções, candidatou-se a acompanhá-la para casa. Quando chegaram à avenida Liberdade, Ikesaki avistou o futuro sogro, que conhecia das festas de confraternização e das entregas de produtos químicos que fazia na tinturaria dele. Mesmo assim, por via das dúvidas, achou melhor não se aproximar naquela circunstância inesperada. Ficou parado na calçada observando Michiyo caminhar em direção ao pai. Para eles, o namoro começou ali. Sem padrinhos. Ele, 26 anos. Ela, 23.
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ConvĂŠs do Buenos Aires Maru: as famĂlias de Michiyo e Ikesaki viajaram no mesmo navio que os trouxe ao Brasil
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Michiyo comeรงou a namorar Ikesaki aos 23 anos
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Cine Niterói Foi somente a partir de 1953, com a inauguração do Cine Niterói na rua Galvão Bueno, que os japoneses voltaram a frequentar ativamente o bairro da Liberdade, no pós-guerra. Com 1,5 mil lugares, a sala de cinema japonesa ficava em um prédio onde funcionavam também um restaurante e um hotel - um polo de entretenimento para a comunidade nipodescendente. Um novo comércio nikkei passou a se desenvolver em seu entorno, e logo surgiram restaurantes, bares, lojas de artigos importados e todo tipo de comércio. Em 1974, com o apoio de Hirofumi Ikesaki e outros lojistas da região, foi erguido pela prefeitura um portal xintoísta e instalados postes com lanternas japonesas para dar a cara da Liberdade tal qual a conhecemos hoje.
Cine Niteroi marcou época para a colônia japonesa. Muitos casais começaram a namorar em suas poltronas
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No dia do noivado, Ikesaki tomou uma atitude inusitada: foi trabalhar. Na época, ele era dono da loja de produtos para tinturaria e saiu com o carro bem cedinho para terminar as entregas. O pneu do furgão furou sobre o trilho molhado dos bondes. Para não atrasar ainda mais, pegou um atalho, mas acabou atolando o carro.
Em outro dia chuvoso, ele a encontrou em frente à Casa Nishinaka, loja de artigos japoneses que ficava na então movimentada rua Conselheiro Furtado, na Liberdade. Michiyo carregava as sacolas de compras. Ele se ofereceu para dar uma carona. Ela polidamente recusou, o que aguçou ainda mais o interesse e admiração de Ikesaki. O primeiro encontro oficial do namoro foi em um domingo no Cine Nikkatsu, que mais tarde mudaria de nome para Cine Tokyo, na rua São Joaquim. A família dela deveria estar preocupada com aquele encontro: Michiyo chegou acompanhada da irmã mais velha e o marido Mori-san, que fazia parte da Banda Continental, famoso grupo musical da colônia japonesa. Eles foram ao cinema outras vezes, mas Michiyo nunca apareceu sozinha. A filha da irmã mais velha também estava sempre presente para “segurar vela” do casal.
Túmulo da família O culto aos antepassados é uma dos principais tradições do xintoísmo e budismo, as duas religiões oficiais do Japão. Quando começou a namorar Michiyo, Ikesaki lembrou-se de um dos conselhos da avó Masu: “Para se conhecer verdadeiramente a pessoa com quem se quer casar, é preciso olhar o túmulo da família”, dizia ela. Outra tradição importante é a manutenção de um oratório budista (butsudan) em casa, onde se realizavam os rituais aos antepassados. Ao visitar o túmulo da família de Michiyo, ele ficou impressionado ao ver os túmulos de concreto bem cuidado. Naquele momento, ele se lembrou que os restos mortais dos avós tinham ficado em Bastos, e da sua mãe estavam em Amakusa, sua terra natal. O pai apoiou a iniciativa de erguer um imponente túmulo em São Paulo para reunir os familiares falecidos. Depois de pronto e antes do casamento, ele fez questão de levar Michiyo para conhecer o túmulo da família no cemitério do Tremembé, bairro onde Ikesaki ainda morava na época.
Pedido de casamento A obsessão de Ikesaki pelo trabalho, a pressão por se sentir responsável pela família e a situação financeira precária foram adiando os planos de casamento com Michiyo. Quando o então presidente Juscelino Kubitschek anunciou a construção de Brasília e se iniciou o recrutamento maciço de mão de obra para erguer a nova capital, inaugurada em 1960, os olhos de Ikesaki brilharam. Admirador do estilo desenvolvimentista de JK, enxergou uma oportunidade de abrir um negócio, qualquer que fosse, para onde o progresso estava caminhando. Usando o slogan de JK, poderia se dizer que seu Plano de Metas particular era partir sozinho, ficar cinco anos (mas fazer dinheiro equivalente a 50 anos, de acordo com suas contas), voltar e só então casar. Mas foi obrigado a recuar quando Michiyo, que raramente contrariava suas opiniões, chorou em seus ombros para que não partisse. Ele entendeu o recado. À japonesa, foi o jeito dela dar o xeque-mate. Fez o pedido de casamento naquele momento. Ela aceitou.
Festa de noivado Embora as famílias já se conhecessem, o protocolo seguiu o ritual tradicional. Mori-san, cunhado de Ikesaki, foi o escolhido para ser o nakôdo. A tarefa consistia em relatar as qualidades do pretendente e pedir o consentimento ao pai de Michiyo para o noivado. Mori-san cumpriu bem o papel, mas o noivado quase não ocorreu. Na manhã do dia do noivado, Ikesaki tomou uma atitude inusitada: foi trabalhar. Na época, ele era dono da loja de produtos
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Hirofumi e Michiyo casaramse em 1958 em um cerimĂ´nia simples
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Após o casamento, mudou-se para o apartamento alugado de dois quartos na rua Galvão Bueno, 332, na Liberdade, próximo à sua loja. No dia 21 de setembro de 1959, nascia o primogênito, Carlos Takashi, um menino, como desejava o pai.
químicos para tinturaria e saiu com o carro bem cedinho para terminar as entregas. Quando estava retornando, o pneu do furgão furou sobre o trilho molhado dos bondes. Trocou o estepe apressadamente enquanto outros motoristas buzinavam. Para não atrasar ainda mais, pegou um atalho, mas acabou atolando o carro dentro de um buraco alagado, causado pela enchente da noite anterior. Só conseguiu sair graças à ajuda de um caminhoneiro que o socorreu. Quando chegou em casa parecia um rato encharcado, sujo de lama. Quis entrar discretamente, mas todos estavam à sua espera. Tomou um banho rápido, colocou o melhor terno e foi para o meio dos convidados. Os padrinhos ficaram envergonhados, e os parentes, indignados. A noiva, compreensiva. A decisão de trabalhar no dia do próprio noivado, por mais estranho que seja, não chega a surpreender. Ele sentia-se responsável por sustentar duas famílias a partir daquele momento. O peso de formar uma nova família, a veneração pelo trabalho e a incrível vontade de vencer pelo próprio esforço tornavam-no incansável, como se não pudesse perder um minuto sequer. Claro que não contava com a sucessão de imprevistos. Escaldado, preferiu não trabalhar no dia do casamento, em 1958, mesmo ano em que a imigração japonesa completou 50 anos no Brasil. A cerimônia foi a cara do Brasil. Católica, Michiyo casou de véu e grinalda, mas não na igreja, e sim em frente a um altar budista, seguindo a religião do marido, com direito a três goles de saquê em copos diferentes, como manda a tradição casamenteira japonesa.
Primeiro filho Enquanto foi solteiro, Ikesaki morou com a família. Após o casamento, deixou a casa na zona norte de São Paulo, onde moravam o pai, o irmão mais novo e a família do irmão mais velho, para se mudar ao apartamento alugado de dois quartos na rua Galvão Bueno, 332, na Liberdade, próximo à sua loja de produtos químicos para tinturaria na rua dos Estudantes. No dia 21 de setembro de 1959, nascia o primogênito, Carlos Takashi, um menino, como desejava o pai.
A figura do pai Com diferença de apenas um ano e seis meses, em média, nasceram os outros quatro filhos: Suzi Hitomi, Márcia Yumi, Ricardo Jo e Roberto Jun. Escadinhas. Até hoje, quando se reúnem, os irmãos se chamam pelo nome japonês, com exceção de Suzi, que prefere o primeiro nome. O nome ocidental que o pai fez questão de escolher foi de Márcia, o mesmo de uma das filhas de Juscelino Kubitschek, de quem foi admirador. Enquanto ainda eram pequenos, os banhos costumavam ser coletivos. Para dar conta de arrumar a casa, lavar e passar roupa, Michiyo desenvolveu uma eficiente técnica: colocava todos na banheira, ensaboava e jogava uma ducha. Os filhos mal viam o pai, que passava o dia na nova loja em um modesto imóvel alugado na rua dos Estudantes. Os encontros no jantar também eram raros. Desde o Comércio Lira, quando ainda era solteiro, Ikesaki passou a frequentar eventos sociais da colônia japonesa à noite, quando confraternizava-se com os donos de tinturarias. Mesmo ausente do dia a dia, eles sentiam a forte presença do pai. A sombra da figura autoritária era quebrada em um único momento. Quando voltava para casa à noite e ainda encontrava as crianças acordadas, Ikesaki quebrava o protocolo da hierarquia e rigidez. Os cinco filhos enfileiravam-se, começando sempre pelos mais velhos, e ficavam aguardando ansiosamente. Então o pai segurava cada um deles pela cintura e os jogava para o alto. Takashi, o mais velho, ainda se lembra de quase encostar a cabeça no teto, sentindo um gostoso frio na barriga.
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Ikesaki em um raro momento: dando banho no filho mais velho
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A ascensão social não significou mudança no estilo de vida. Os filhos continuaram sem ganhar mesada, ao contrário dos amigos da escola. Esbanjar nunca foi um verbo apreciado por Ikesaki. O que ele valoriza é o não desperdício (mottainai), hábito arraigado no povo japonês até os dias de hoje
Guaraná só para as visitas Ikesaki entregava o dinheiro das compras de casa para Michiyo, que nunca reclamou do valor mesmo quando reduzido. Nesses momentos é que ela desconfiava de que os negócios não andavam bem. Como um típico homem japonês, o marido nunca trazia as preocupações empresariais para dentro de casa. Ela recorria à criatividade para o dinheiro render mais: comprava verduras e legumes que podiam ser aproveitados de diversas formas, como o agrião, cujas folhas viravam salada, e os talos podiam ser refogados. Em um fim de semana em que ficou em casa, Ikesaki cismou em ir à feira. Levou Suzi e Yumi, que costumavam usar roupas iguais, como se fossem gêmeas. Colocou-as sentadas na barraca e começou a negociar com o feirante. As duas observavam o pai não arredar o pé enquanto não conseguisse o desconto. Ele voltou para casa feliz pelo ótimo negócio. A esposa e os filhos não compartilharam a mesma opinião. É que, para conseguir o abatimento, Ikesaki comprou não um, mas meia dúzia de repolhos. As crianças sabiam o que aquilo significava: comeriam repolho a semana inteira, exigindo ainda mais da habilidade culinária de Michiyo para preparar as diferentes versões da mesma verdura. A despensa guardava um tesouro para as crianças: estoque de guaraná, que ficava reservado apenas para as visitas. Às vezes, um dos filhos não resistia, tomava todo o conteúdo e escondia a garrafa vazia no fundo do armário. Como as broncas da mãe continuavam sendo inúteis, ela parou de estocar as bebidas. Quando as visitas chegavam, as crianças não podiam permanecer no mesmo ambiente dos adultos, como mandava a etiqueta dos japoneses mais conservadores. Por isso, mesmo quando visitavam os primos maternos, criados de forma mais liberal, os filhos de Ikesaki ficavam quietinhos na cozinha na barra da mãe, como filhotes de canguru.
Nova casa. Mesmo estilo de vida À medida que os cinco filhos cresciam, o apartamento de dois quartos da rua Galvão Bueno ficava cada vez menor. O filho mais novo dormia em um berço no quarto dos pais. Quando o seguinte nascia, quem estava no berço era promovido para o outro quarto. Menos Jun, o caçula. Quando ele nasceu, a lotação do quarto, onde cabiam duas beliches, já estava esgotada. Jun provavelmente foi o que mais comemorou quando a família se mudou para a casa no bairro da Aclimação, em 1974. A casa de quatro quartos já refletia a nova condição econômica e o jeito agressivo de Ikesaki fazer negócios. Em apenas dez anos, a loja de cosméticos havia se mudado para uma sede própria na rua Galvão Bueno e ele ainda era o dono da maior fábrica de móveis para cabeleireiros do Brasil. O silêncio do bairro residencial contrastava com o agito e o barulho do antigo apartamento, principalmente por causa das obras do metrô São Joaquim, que estava sendo construído. Quando se mudaram, a casa ainda estava cheirando à tinta fresca. Os móveis eram novinhos, incluindo a TV em cores, pela qual assistiram aos jogos da Copa da Alemanha. Agora os irmãos dormiam em um quarto, e as irmãs, em outro. Takashi se valeu da condição de mais velho e se apossou de um dos quartos vagos nos fundos da casa. Da Escola Campos Salles, na rua São Joaquim, mudaram-se para o Presidente Roosevelt, que também pertencia à rede pública. A ascensão social não significou mudança no estilo de vida. Os filhos continuaram sem ganhar mesada, ao contrário dos amigos da escola. Esbanjar nunca foi um verbo apreciado por Ikesaki. A avareza, no entanto, está longe de defini-lo. O que ele valoriza é o não desperdício (mottainai), hábito arraigado no povo japonês ainda nos dias de hoje. Quando um filho rasgou
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Família reunida: Carlos, Suzi, Márcia e Ricardo (da esquerda para direita). No colo de Michiyo, o caçula Roberto
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“Se a gente renascesse e se encontrasse, você casaria comigo novamente?”, perguntou Ikesaki. “Claro que sim”, respondeu Michiyo.
um tênis por excesso de uso, o próprio pai consertou, improvisando emendas. As roupas dos mais velhos passavam para os mais novos. Não se fazia festa de aniversário, data raramente comemorada nas famílias mais tradicionais. Michiyo preparava um bolinho para que os filhos soprassem as velas. Presentes, apenas no Natal, como a primeira bicicleta que o filho mais novo ganhou. Foi feliz da vida até a loja escolher o brinquedo, mas quase desistiu porque ficou esperando horas o pai concluir a negociação da compra. Mais uma vez, ele conseguiu o desconto e ainda ganhou os acessórios para a “magrela”. Ainda hoje, Ikesaki e a esposa moram na mesma casa, que foi passando por sucessivas reformas. Mesmo assim, ainda mantém o estilo austero. A única extravagância é um enorme aquário da altura da parede que ele mandou construir. Na sala decorada com objetos japoneses, destaca-se o capacete de samurai.
Tacada certeira Desde que abriu a primeira loja de cosméticos, em 1964, Ikesaki tomou gosto por um hobby: jogar golfe, um esporte que, mesmo tendo origem no Ocidente, apaixonou os japoneses. Ikesaki foi um dos sócios fundadores do Arujá Golf Club, inaugurado em 29 de junho de 1965, e que se tornaria ponto de encontro de japoneses. É fácil entender seu entusiasmo pelo esporte, que está ligado ao mundo dos negócios. Muitos empresários preferem fechar contratos entre uma tacada e outra a sentar-se em uma mesa de reunião. É um gesto de confiança. À medida que os negócios do empresário foram ganhando dimensões maiores, o golfe se tornaria um aliado. A regra é simples: vence quem completa o circuito em menos tacadas. Há uma outra competição consigo mesmo: melhorar o próprio desempenho. Os dois desafios – ganhar do outro e de si mesmo – atiçaram o espírito competitivo do empresário. Quando os filhos se tornaram adolescentes, Ikesaki colocava a “tropa” no Galaxie, com exceção da esposa e de Takashi, o mais velho, que ficavam em casa, e seguia rumo ao campo de golfe aos domingos. Passavam o dia lá. Ao contrário do pai, os filhos não tomaram o mesmo gosto pelo esporte, mas chegaram a treinar até a vida adulta. A diversão dos adolescentes consistia em encontrar os filhos dos outros sócios no restaurante do clube. Um dia, Ikesaki deu uma bronca em Suzi e nos irmãos após receber a conta do restaurante. Mais tarde, ela soube que o privilégio não havia sido apenas deles: os amigos também tinham levado puxão de orelhas, mesmo sendo de famílias mais abastadas.
Bodas de ouro Em 2008, os filhos de Ikesaki prepararam uma grande festa para comemorar as Bodas de Ouro do casal no tradicional Buffet Colonial, um sofisticado espaço de eventos, cujo proprietário foi amigo de Ikesaki. Para os convidados, um dos episódios mais marcantes foi a apresentação de um vídeo narrando a trajetória do casal e o depoimento de familiares. Para Hirofumi e Michiyo, o que ficou guardado na memória de ambos foi o que eles conversaram durante a valsa. “Se a gente renascesse e se encontrasse, você casaria comigo novamente?”, perguntou ele. “Claro que sim”, respondeu ela.
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Organizador Jhony Arai
Créditos de Fotos
EDITORA JBC
Capa: Wel Calandria/Frame Studio
Entrevistas e redação (japonês) Kenji Miyo
Agência Estado Págs 85, 87, 93, 99, 111, 125, 144, 149
Edição (japonês) Naosuke Fuse
Arquivo Pessoal Págs 32, 35, 37, 41, 45, 55, 57, 69, 87, 115, 117, 127, 133, 173, 175, 177, 179, 181, 183, 184, 185, 187, 190, 194, 197, 199, 201, 203
Tradução (português) Arnaldo Oka
Acervo Grupo Ikesaki Págs 6, 8, 10, 12, 16, 18, 20, 21, 123, 129, 139, 141, 143, 145, 147, 153, 157, 167, 169, 170, 171
Revisão - fase 1 Ana Lúcia dos Anjos e Henrique Minatogawa
Lóreal Brasil /divulgação Pág 137 Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil Págs 43, 63, 75, 91, 105, 193, 195
C O M U N I C A Ç Ã O
KAMINARI COMUNICAÇÃO Edição (português) Jhony Arai Projeto gráfico e design Ana Lucas Pesquisa Yumi Miyake (beleza) e Thiago Minami (história) Revisão - fase 2 Thiago Amaral
Wel Calandria Págs 14, 22, 24, 30, 47, 204 Mario Jun Okuhara/Arquivo Pág 163 Ronaldin1 Pág 16 Studio Riguardare Págs 8, 26, 28, 29 Tarciso de Lima/Viva Beleza Pág149 Zaikahu Doho Katsudokyo Págs 39, 50, 59, 79 100 Anos Imigração Japonesa/Reprodução Pág 95 Entrevistas Atsushi Yamauchi Mário Merlino Osvaldo Alcantara Roberto Mateus Ordine Yataro Amino
Impresso na gráfica R. R. Donnelley, São Paulo, em novembro 2014
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A logomarca do Grupo Ikesaki corresponde ao brasão da família no Japão
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