O Choque de culturas

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O Choque de Culturas

Um ponto de vista novo e revolucionĂĄrio que ajuda a compreender o relacionamento entre os humanos e o cĂŁo

Jean Donaldson



“Sem sombra de dúvida, 5 estrelas” Dr. Ian Dunbar

O Choque de Culturas

Um ponto de vista novo e revolucionário que ajuda a compreender o relacionamento entre os humanos e o cão

Jean Donaldson Tradução: Claudia Pereira Estanislau

ed


Este livro é a tradução da obra The Culture Clash – A Revolutionary New Way of Understanding the Relationship Between Humans and Domestic Dogs © 1996, 2005 Jean Donaldson Copyright © 2013 Jean Donaldson. Todos os direitos reservados. Este livro é publicado com a autorização da Editora original, The Academy for Dog Trainers, LLC. © Da edição em língua portuguesa, Kns ediciones S.C., 2013 Tradução: Claudia Pereira Estanislau Capa: Alberto Mosquera Lorenzo Composição gráfica: Ana Loureiro Correção de estilo: Amália Coelho Ilustrações: Martin Coles ISBN: 978-84-940650-6-4 Depósito Legal: C 607-2013 Impressão: TÓRCULO. Impresso em Espanha.

Para obter este livro ou outros desta editora, contacte: www.knsediciones.com comercial@knsediciones.com Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial desta obra, texto ou ilustrações, e não pode ser transmitida por meios eletrónicos, nem mecânicos, sem a autorização, por escrito, da autora, à exceção de breves transcrições para comentar a obra.


Conteúdos Reconhecimentos .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Prefácio .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 1. A perspetiva do cão .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 (A inteligência e moralidade do cão)

2. Comportamentos inatos: Aquilo que vem com os cães .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31 (Comportamento social e predatório)

3. Sociabilização, medo e agressão . . . . . . . . . . . . . 75 (Os que mordem e os que fogem)

4. Para eles tudo são brinquedos de roer . . . . 135 (Problemas comportamentais e soluções)

5. Cérebros de limão mas mesmo assim gostamos deles . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 171 (Como os cães aprendem)

6. Detalhes do treino de obediência . . . . . . . . . . . 227 (Sequência para treinar e testar)

Leitura recomendada .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 293



Reconhecimentos Quero expressar a minha gratidão ao incomparável Dr. Ian Dunbar, pelo seu conselho, encorajamento, influência e inspiração nos últimos quinze anos. Paul Klein e Janis Bradley pela edição espetacular que fizeram da segunda edição, Jennifer Murray pela maravilhosa fotografia e Martin Coles pela inestimável ajuda na primeira edição, incluindo o conceito da capa do livro. Um agradecimento eterno também a: Bob Bailey, Carolyn Clark, Helen Colombo, Irene e Bill Donaldson, Shirley Donovan, Alichan Hajjar, Bon Hong, Kin Hong, Delva Howell, Joan McCordick, Cathy McNaughton, Judy Miller, Kim Moeller, Gina Phairas, Kathy Pickel, Diana Shannon e Julie Webber.

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Prefácio O Choque de Culturas é especial. O primeiro livro de Jean Donaldson é simplesmente o melhor livro de cães que alguma vez li. É único, extremamente fascinante e está literalmente a transbordar de informação que é tão nova que virtualmente redefine a arte do treino e comportamento canino. Escrito ao estilo informal no entanto preciso, o livro anda par a par com um excelente thriller. Na realidade, eu li o manuscrito da primeira edição três vezes seguidas antes mesmo de o livro ser publicado. A longa espera da chegada duma segunda edição deu-me a perfeita desculpa para ler O Choque de Culturas pela sexta vez. A segunda edição foi substancialmente revista e expandida (com um extra surpreendente de onze mil palavras). E, a segunda edição está ainda melhor e muito mais provocadora do que a primeira. O Choque de Culturas mostra os cães como eles são na realidade – longe das luzes de Hollywood, e com a sua inimitável filosofia existencial “neste segundo posso comer, roer, urinar, o que é que posso ganhar com isto?”. O carinho tremendo que a Jean tem pelos cães sobressai no livro todo o tempo, assim como a sua compreensão acutilante da mente do cão. Incessantemente ela tenta mostrar o ponto de vista do cão, sempre demonstrando genuína preocupação pela sua educação e bem-estar. O Choque de Culturas junta-se a um grupo muito distinto de clássicos de treino de cães e está no topo do grupo. O Choque de Culturas tem uma perspetiva refrescante e original e vai direto ao assunto – sem “ses” ou “mas”– aqui está como é, agora eduque o seu cão! Sem dúvida que o livro da Jean é o item para cães mais atual no mercado – o livro essencial tanto para os donos como para os treinadores de cães – sem dúvida um livro cinco estrelas! – 11 –


O Choque de Culturas

Faça a você mesmo e ao seu cão um grande favor e leia o livro. E esperemos que a Jean Donaldson escreva muitos mais livros.

Ian Dunbar Berkeley, California 8 de Junho de 2005

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1. A perspetiva do cão

A inteligência e moralidade do cão Existe um livro publicado em 1990 que se refere ao código moral dos cães. Tornou-se num best-seller. Parece que muitas pessoas ainda aderem à ideia do cão do Walt Disney: ele é muito inteligente, é dotado de moralidade, é capaz de planear vinganças, resolve problemas complexos e entende o significado do valor dos objetos na casa do Walt. Ninguém quer o cão de B.F. Skinner: a caixa negra de “input-output” que não é obviamente o membro peludo da nossa família. Eu acho que foi mal publicitado. O Skinner tinha razão mas teve má publicidade. A verdade deve ser apresentada para que o público em geral entenda. É preciso que entendam, porque a falta de compreensão levou já à morte de inúmeros cães. Aqui está um exemplo para ilustrar a diferença.

n Walt Disney vs B. F. Skinner Um cão foi corrigido de cada vez que foi apanhado a roer a mobília. Agora o cão evita roer a mobília quando o dono está em casa mas quando está sozinho torna-se destrutivo. Quando o dono chega a casa e descobre os danos, o cão encolhe-se de orelhas para trás e cabeça para baixo. Perspetiva do Walt Disney: O cão aprendeu quando foi punido que roer a mobília está errado. O cão não gosta de ficar sozinho e para se vingar do dono, rói a mobília. Ele faz deliberadamente algo que sabe ser errado. Quando o dono chega a casa o cão sente-se culpado. Perspetiva do B.F. Skinner: O cão aprende que roer a mobília é um ato perigoso quando o dono está presente, mas seguro – 13 –


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quando o dono não está. O cão fica ansioso quando está sozinho e liberta alguma dessa ansiedade quando rói. Também ajuda a passar o tempo. Mais tarde quando o dono chega a casa, o cão transmite sinais apaziguadores de forma a evitar o confronto que ele aprendeu que acontece normalmente nestas alturas. A chegada do dono a casa e/ou a postura ameaçadora do dono tornaram-se indicadores de algo: o cão sabe que vai ser punido. Mas não sabe porquê. Não existe dúvida nenhuma de que a segunda perspetiva é a correta. A questão já não se prende com qual das perspetivas é a correta mas sim porque é que ainda existem pessoas que discutem qual delas é. Surpreendentemente, esta informação já está disponível há décadas, no entanto, a maioria das pessoas que têm cães ainda não aprenderam. Se o conhecimento que as pessoas detêm de conduzir fosse equivalente ao conhecimento que têm acerca de cães, elas pegariam num carro, tentariam atravessar um lago com o mesmo, e depois iriam processar a fábrica porque o carro não flutuou. Os cães são animais que prevalecem na nossa sociedade, apesar de não serem tão prevalentes como os carros. Um dos motivos para a nossa surpreendentemente pobre compreensão dos cães advém da informação a conta gotas que vem dos especialistas: treinadores a treinarem um cão ou uma classe de cada vez, ao invés de algo na escala de serviço público como anúncios na Oprah. Mas eu acho que existe mais um motivo para a lenta aceitação das interpretações realistas acerca do comportamento canino: a simples relutância em deixar de lado o antropomorfismo. O comportamentalismo que ficou famoso com o B.F. Skinner, sofreu sérias críticas desde que assaltou o mundo da psicologia em meados do século vinte, principalmente com o argumento válido de que o comportamentalismo hardcore não entende o ser humano em toda a sua complexidade. Mas quando falamos de treino e modificação comportamental, no entanto, é perfeito. – 14 –


1. A perspetiva do cão

Contudo, aplicado ao treino e modificação comportamental de cães parece que nem todas as evidências do mundo tornam o comportamentalismo um modelo apelativo aos donos de cães. As implicações que isto tem são imensas. O poder que a visão fofinha mas distorcida que Walt Disney deu de um cão é uma medida perversa do quanto gostamos de cães. Nós queremos que os cães sejam espertos e moralmente “bons”. Muitos cínicos vêem os cães como seres superiores ao ser humano em lealdade e confiança. Por contraste, o modelo comportamentalista, apesar de superior, ainda não ganhou terreno no público em geral por parecer reduzir os cães a robots. O nosso medo é que se aceitarmos esta perspetiva dos cães, os estaremos a retirar do seu status de seres humanos honorários e a extensão desse pensamento é que isso terá ramificações negativas no seu bem-estar. Seres humanos são tribais. A nossa compaixão e consideração por outras espécies está intimamente ligada à nossa perceção do quão idênticos são a nós, e uma grande medida dessa semelhança está na inteligência. O nível de QI ainda é um preconceito aceitável. Por exemplo, grandes discussões éticas nasceram quando apareceu o debate acerca da aquisição de linguagem pelos primatas. Sem a capacidade para desenvolver uma linguagem, tinha sido mais fácil atribuir-lhes uma função utilitária. Nunca ninguém questionou a premissa duma inteligência para considerar o direito a ter um tratamento com compaixão. A nossa espécie tem uma longa história de uma violência incrível e de horrores perpetrados, essencialmente, porque as vítimas estavam afastadas da nossa tribo. As fronteiras da nossa tribo estão diretamente relacionadas com o QI e a integridade moral da espécie. A nossa ligação com os cães é obviamente forte. Mas eles não são humanos e agora ficamos presos a tentar explicar esta ligação. Explicamos exagerando o quanto eles se assemelham a nós nas áreas da inteligência e da moralidade. Este é um exemplo típico de uma ideia preconcebida ou atitude, que – 15 –


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vem primeiro e da que resultam factos explanatórios ou ficção, construídos para apoiá-la. Talvez já estejamos prontos para aceitar a verdadeira espécie. Vivemos numa cultura que está muito mais ciente dos conceitos de tolerância e validação. Os cães não são, nem de perto, como nós, mas isso não é problemático. Podemos criar fortes relações com eles na mesma e continuar a usá-los como filhos sem desculpas. Não temos que construir mitos à volta da sua natureza para legitimar como eles se sentem em relação a nós. Eles são valiosos e fascinantes tal qual como são. Eles não precisam de ter uma inteligência ou moralidade maior para merecer um tratamento ou lugar nas nossas famílias. A próxima fase do nosso desenvolvimento ético são a empatia e compaixão por seres que são claramente diferentes de nós. Enfrentar a realidade é importante e não só porque o antropomorfismo ultrapassou a sua utilidade. Teve desde sempre um lado muito negativo para os cães. Os cães que não são como a Lassie são imediatamente marginalizados. O maior ganho para os cães está em abandonar a ideia do cão do Walt Disney e substitui-la com informação vinda de duas fontes: comportamento canino e ciência da aprendizagem animal. É nossa responsabilidade sabermos quais as necessidades básicas da espécie com a qual estamos a tentar viver e saber como modificar o comportamento da forma menos invasiva. Se conseguirmos isso, vamos conseguir integrálos na nossa sociedade sem os subjugarmos totalmente.

n Cérebros de limão, mas ainda podemos gostar deles

As duas áreas nas quais existem a maior quantidade de mitos e buracos no conhecimento são: 1. Comportamento canino, isto é, a genética e comportamentos com os quais o cão nasce, e – 16 –


1. A perspetiva do cão

2. Aprendizagem animal, i.e., o mecanismo de como a experiência afeta o comportamento dos cães e de outros animais, nós incluídos. Os humanos também aprendem através de condicionamento clássico e operante (Pavloviano). Neste aspeto, somos iguais aos cães. No entanto, nós, ao contrário dos cães, somos bons a aprender através da observação e da introspeção. Nós temos a linguagem como veículo para os nossos pensamentos, podemos viajar mentalmente do passado, para o presente e para o futuro e pensar duma forma abstrata. Interiorizamos valores que nos são ensinados, a grande maioria de nós desenvolvem qualidades como compaixão e consciência, um sentimento do que é correto e errado. Agir de acordo com os nossos valores aumenta-nos a auto-estima e a nossa integridade. Nada disto está relacionado com cães. Os cães são inocentes e completamente egoístas. A hipótese mais provável é que aprendem quase exclusivamente através de condicionamento clássico e operante. Apesar de alguns dos seus comportamentos serem facilitados socialmente, não existem provas de que aprendem através da observação e imitação. O importante é: este facto não os torna mais estúpidos ou menos valiosos do que quando acreditávamos que pensavam como nós. Na realidade, cães são excelentes alunos. Eles conseguem discriminar pequeníssimas diferenças no ambiente. Têm um sistema olfativo poderoso. Conseguem lidar com ambientes sociais complexos. Podem ter uma vida emocional rica. Mas não têm pensamento abstrato. São amorais. Não conseguem mentalmente viajar no tempo. E apesar de conseguirem aprender a discriminar a relevância de certas palavras, eles não compreendem a linguagem. Vamos examinar a nossa insistência em enaltecer a importância da inteligência e da linguagem em determinar o valor do ser vivo. Steven Pinker nota que nenhum investimento foi feito na – 17 –


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procura dos extraterrestres, ou, sequer, qualquer outra forma que organismos desenvolveram ou podem desenvolver-se para sobreviver. No entanto, enquanto a inteligência não passa de uma estratégia que nos dá vantagem dentro do panorama da evolução, é a única que achamos suficientemente valiosa para a procurar no espaço. O júri no entanto questiona, se a nossa estratégia nos ajudará, a longo termo a sobreviver. Ele diz: “Apesar de a linguagem ser uma habilidade única ao Homo Sapiens entre as espécies vivas, não é necessária uma exploração aprofundada no domínio da biologia, para encontrar habilidades únicas de uma particular espécie dentro do reino animal. Algumas espécies de morcegos caçam insetos usando uma espécie de sonar Doppler. Algumas aves migratórias viajam milhares de milhas calibrando a sua posição através das constelações em relação à hora do dia e do ano. No espetáculo dos talentos da natureza nós somos apenas uma espécie de primatas com o nosso próprio show, a capacidade de comunicar informação acerca de quem fez o quê a quem através da enunciação de sons que fazemos quando expiramos” (in The Language Instinct, 1994). Todos nós, regra geral, criticamos a discriminação baseada na raça, sexo, idade ou peso, mas a tirania do poder intelectual permanece e é cada vez menos subtil (não existe maior insulto do que ser chamado de estúpido). Imagine por momentos como se sentiria se descobrisse que os ratos usados em experiências laboratoriais eram animais sofisticados, pacíficos, psíquicos com um nível de QI muito maior do que o ser humano. Mesmo que pudessemos fazer com eles o que desejássemos, isso iria criar imensas questões morais, porque as nossas justificações internas para usá-los têm pouca relação com o nosso poder e mais com o facto de que eles não são muito espertos, ou não? Os cães (tal como os ratos) são multitalentados mas também não são muito espertos, pelo menos não como os humanos. Um livro recente (Stanley Coren, A Inteligência dos cães: Um guia para os pensamentos, emoções e vida interior dos nossos companheiros cani– 18 –


1. A perspetiva do cão

nos, 1994) tem mais de 250 páginas dedicadas à inteligência dos cães. Curiosamente, apesar das cuidadas qualificações dadas por Coren em relação a definições, o ranking das raças baseado na inteligência foi literalmente notícia. Nós somos realmente fascinados pela ideia de que os cães talvez, só talvez, possam ser muito muito inteligentes. Quando é que iremos ver que os cães são realmente seres fascinantes, sem termos a sua inteligência como estandarte? A habilidade discriminativa dos cães no condicionamento clássico e operante, o seu poder olfativo inspirador e fascinante, a sua habilidade fabulosa de poderem lidar com um ambiente socialmente complexo e os seus sentimentos e relacionamentos são características impressionantes, no entanto, continuamos a insistir no tema da inteligência. Faz tanto sentido como avaliar os humanos através da nossa habilidade de detetar bombas pelo olfato. Nós adoramos anedotas acerca de cães génios e estas abundam. Toda a gente sabe pelo menos uma história que ilustra como os cães são espertos. Mas uma questão fundamental nunca foi respondida pelos proponentes da inteligência nos cães: se os cães são capazes destes feitos de inteligência, porque é que não os fazem sempre? E porque nunca o fazem em situações controladas? O que é mais preocupante acerca destas afirmações é a falta de rigor na sua avaliação. Faz-me lembrar as pessoas que chegam a conclusões precipitadas acerca dos círculos que aparecem nos campos de aveia na Inglaterra. Antes de aceitarem as teorias de que os extra-terrestres fizeram os círculos, explicações mais óbvias deveriam ser primeiro eliminadas, como as de que foram feitos por pessoas. A última teoria acabou por ir nesse sentido, mas não antes de um massivo interesse (já para não mencionar um filme) ter sido gerado com base nas teorias de extra-terrestres. Não é a inclinação natural do homem analisar possíveis interpretações. Da mesma forma que antes de assumirmos que o cão tem pensamento abstrato e moraliza, primeiro deveriamos excluir uma explicação baseada no condicionamento operante e clássico. Preocupa-me pensar que o valor do meu – 19 –


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cão assenta em mitos e exageração, como se a sua realidade não fosse suficientemente boa. O seu valor vem do seu verdadeiro ser, de serem cães. Não precisam de um upgrade intelectual. São valiosos e maravilhosos tal como são. Então qual é o lado mau dos cães que vivem sob a sombra do mito da Lassie? Assim que atribuímos inteligência e moralidade, atribuímos a responsabilidade que vem com ambos. Por outras palavras, se o cão sabe que é errado roer a mobília, então ele deliberada e maliciosamente o faz, lembra-se do mal que fez e se sente culpado, então merece um castigo, não é? É exatamente isso que os cães ganham com isto – muitas punições. (A palavra punição aqui é usada no seu sentido lato – aqueles que reconhecem o jargão do condicionamento operante, saberão que me estou a referir a castigo positivo.) Nós colocamos os nossos cães em todo o tipo de situações que originam punições baseando-nos na habilidade que eles têm de pensar. De forma interessante, é precisamente o modelo comportamentalista que dá aos cães a oportunidade de aprenderem a responder às exigências que fazemos deles. O mito dá aos cães problemas que eles não conseguem resolver e depois pune-os quando eles não os resolvem. O que é verdadeiramente triste é que a associação mais comum no uso das punições, é aquela que o cão faz com a presença do seu dono. Este facto confere um sentido estranho à afirmação de que amamos os cães porque eles são tão espertos, não é? A teoria da aprendizagem, i.e., comportamentalismo, é o meio mais eficaz que temos para compreender e modificar o comportamento dos cães. É o melhor quer em eficácia quer para minimizar o desgaste no relacionamento entre os cães e as pessoas. A má vontade generalizada em não aceitar e desenvolver a nossa habilidade em aplicar a ciência da aprendizagem é apoiada em ideias que são pobres quando analisadas. Basearmo-nos na ciência retira sentimento às pessoas, no entanto, o modelo “carinhoso” dá azo às inúmeras punições que administramos a – 20 –


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estes seres brilhantes, morais e que segundo esse modelo “quebram as regras voluntariamente”. O meu argumento é que os cães não são ratos de laboratório se aplicarmos os princípios que aprendemos na ciência do comportamento. Eu fico de facto impressionada, com a incrível ironia que existe nos biliões de ratos e cães que viveram vidas miseráveis em laboratórios e foram sujeitos às experiências mais hediondas para podermos chegar aos princípios de como os animais aprendem. Uma das aplicações mais óbvias do conhecimento adquirido nessas experiências seria no treino de cães, não? É quase uma perda dupla quando a sua espécie é usada em experiências e depois o público em geral ignora os resultados e continua a puni-los porque “são tão espertos!”. De todas as janelas de oportunidades que temos para comunicar com os cães, o condicionamento operante é a janela que se abre mais. Devíamos começar a usá-la.

n A falácia do “faz para agradar” A visão antropomórfica do comportamento canino, não está limitada aos exageros que tecemos acerca da sua inteligência. Também interpretamos erradamente o que eles pensam de nós. Quando será que vamos abandonar a ideia de que os cães “nos querem agradar?”. Que ideia vazia e perigosa. Ainda estou para conhecer este cão que quer agradar o dono. De facto, onde está esse cão que está somente interessado em como o seu dono se sente, exceto se a manifestação de como a pessoa se sente tiver consequências diretas para o cão? Na realidade, vamos todos começar por encontrar um cão que consiga formar representações acerca do estado interno de outro ser vivo. Apesar dos carinhos funcionarem como reforço para alguns indivíduos, na total ausência de qualquer tipo de motivação competitiva, este efeito é limitado, e coloca dúvidas sérias na versão “vontade de agradar”. – 21 –


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Se analisarmos mais de perto, esta ideia perde ainda mais força. Vamos começar por ignorar o facto de que as festinhas e incentivo verbal funcionam como uma chave de segurança para o cão – isto é, algo que indica a baixa probabilidade da ocorrência de aversivos. Isto torna-se evidente nas aulas de treino tradicionais. A motivação primária diz-se serem as festinhas e incentivos verbais. A motivação primária é na realidade, a vontade do cão de evitar aversivos, chamados de correções de trela. Se o treinador for bom, o cão aprende que se uma resposta é recebida com uma festa, então uma correção foi evitada, e como tal a festa adquire um significado e relevância. Mas quererá isto dizer que o cão faz isto como prova de que se preocupa com a forma como o dono se sente? É muito pouco provável. O incentivo verbal pode também adquirir a carga de um reforço secundário no dia-a-dia do cão. As pessoas tendem a falar carinhosamente com os cães antes de lhes dar atenção, biscoitos, jogos e passeios. Esta é mais uma prova evidente daquilo que já sabíamos e que devíamos explorar melhor com um pouco mais de sofisticação, que é: os cães aprendem através dos resultados imediatos que as suas ações originam, e através das dicas dadas para eventos importantes nas suas vidas. No entanto, o uso de comida no treino encontra uma tremenda resistência moral entre um grande número de donos. Uma vez falei com um treinador tradicional que falou com escárnio acerca do uso de comida como motivador. A frase que ele disse e que ainda hoje me faz estremecer é: “Se usas comida nos treinos, o cão faz pela comida e não por ti”. O cão deste homem, treinado com uma estranguladora, estava supostamente a fazer tudo pelo dono porque o único reforço positivo eram as festas. Os treinadores que afirmam que o cão faz para os agradar ou apenas pelo incentivo verbal parecem esquecer o principal motivador que usam: a dor. A primeira tarefa de treinar qualquer animal é descobrir o que o motiva. Sem motivação, não há treino. Todos os animais são motivados por comida, água, – 22 –


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sexo e evitamento de aversivos. Se eles não são motivados por nenhuma destas coisas, eles morrem. Muitos animais podem ser motivados através da brincadeira, atenção e pela oportunidade de socializar ou investigar outros cães e cheiros interessantes. Todos os animais podem ser motivados por sinais que representem estes reforços primários, desde que o relacionamento entre o sinal e o reforço primário se mantiver forte. É aqui que o incentivo verbal entra, como um marcador pouco preciso de que a probabilidade de um reforço primário surgir aumentou. Se você escolher não usar reforço positivo, você acabará, como todos eles, a usar aversivos e a anunciar que o cão faz para o agradar. Patético. Nada disto quer dizer que o reforço verbal não é importante ou bom. Eu pessoalmente faço muitas festas e dou muitos incentivos verbais aos meus cães porque gosto deles e gosto de o fazer. Eles gostam que eu esteja de bom humor porque “Coisas Boas Acontecem Aos Cães” quando “Ela Está De Bom Humor”. Eu pessoalmente gosto quando o meu instrutor de Kung Fu, que detém algum poder sobre mim, está de bom humor, mas não é porque estou “geneticamente programada” para querer agradálo. O meu interesse no estado de humor do meu instrutor é muito egoísta, e supostamente eu sou um ser moralmente avançado. Qualquer interesse que o seu cão tenha pelo seu estado de humor baseia-se no que ele aprendeu que isso quer dizer para ele. E não há nada de mal nisso. O incentivo verbal funciona como reforço primário para alguns cães. Eles gostam suficientemente disto para trabalharem por ele, especialmente quando é a única coisa interessante à vista. Mas esta base é muito fraca para nos levar a marginalizar os cães cujos incentivos verbais não funcionam como reforço primário. Também é um argumento muito fraco para apoiar a hipótese de que existe um mecanismo qualquer interno que faz os cães quererem agradar-nos. Muitos cães parecem gostar de festas e incentivos verbais mas não trabalham a troco dos mesmos. E não – 23 –


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há problema nenhum nisso. Existe uma grande diferença entre expressar afeição pelo cão, pelo que vale para o humano e seja lá o que for que vale para o cão, e depender da mesma para treinar e mudar comportamentos no cão. Por outras palavras, não confunda atividades que estreitam os laços com o seu cão, com treino ou modificação comportamental. Para efetuar estes últimos, é necessária artilharia pesada. Algumas pessoas parecem ficar desapontadas quando descobrem que é necessário usar essa artilharia pesada como comida, acesso a diversão e jogos e outros reforços primários para condicionar o seu animal. Eles sentem que o seu animal é como um limão porque “só ouve quando quer”, “só faz quando tenho comida na mão” e tem pouca ou nenhuma vontade de agradar. Gerações de cães, têm sido catalogados de limões por requererem motivação quando, todo o tempo, eram normais. Na realidade, muitas pessoas não gostam quando descobrem o quão motivados os seus cães ficam quando trabalham para reforços primários poderosos como a comida. Indiretamente ataca qualquer crença que possam ter tido no mito do “cão que me quer agradar” e fá-los sentir menos importantes para o cão (“Uau! Afinal de contas é isto que é motivação?”). Ainda estou para conhecer um cão com o desejo de agradar. Se ele aparecer mando-o a um psicólogo para terapia. O “desejo de agradar o dono” tem sido alimentado, largamente, pela pobre interpretação de alguns comportamentos caninos. Os cães ficam excitados quando chegamos a casa e solicitam a nossa atenção, o nosso carinho e lambem-nos. São muito compulsivos nos seus rituais de nos cumprimentar. Muitas vezes tornam-se as nossas sombras quando estamos presentes e ficam ansiosos ou cabisbaixos quando nos ausentamos. São altamente sociáveis e geneticamente mal preparados para o grau de ausências que sofrem dos membros da família humana. Eles também recuperam mesmo bem das imensas punições que lhes administramos diariamente. Eles monitorizam todos os nossos – 24 –


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movimentos. Eu consigo entender como algumas pessoas interpretam isto como adoração, mas é muito importante não deixarmos o nosso ego tomar conta: eles monitorizam todos os nossos movimentos à busca de sinais de que algo pode acontecer para o lado deles. Os cérebros dos meus cães estão continuamente a analisar o comportamento dos humanos, avaliando até ao milésimo a probabilidade de ter biscoitos, passeios, atenção, Frisbees ou horas de prazer infinito com o boneco de látex favorito deles. Eles parecem ser completamente devotados a mim porque atiro bons Frisbees e tenho dois polegares que me permitem abrir latas. Não quer dizer que somos espécies que não criam laços. Mas eles não me idolatram. Não tenho certeza de que eles sequer sabem o que é idolatrar. O seu amor também não deve ser motivo para fazerem o que eu digo. É, na realidade, irrelevante para o treino. Para controlar o seu comportamento eu tenho que continuamente controlar as consequências das suas ações e a ordem ou intensidade dos estímulos importantes. O mais interessante é que alguns dos trabalhos de treino mais sofisticados são feitos sem a presença de amor ou ligação. Mas isso não quer dizer que o amor não seja uma das formas mais eficazes de criar uma ligação. É. Mas não é um pré-requisito para o treino.

n A Panaceia da Dominância O outro modelo que é usado como quasi-justificação para o uso de aversivos no treino é a teoria da matilha. Desde que a hierarquia linear foi postulada nos lobos, as pessoas fazem esforços idiotas para explicar todos os comportamentos e interações entre cães e pessoas através da “dominância”. Ficamos realmente colados a ela. É um grande exemplo de uma meme bem sucedida. Se os cães são desobedientes ou se portam mal, é porque ninguém lhes mostrou quem manda. Tens que ser o alfa da matilha. – 25 –



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