Antologia de Contos Policiais - Volume 1

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Antologia de Contos Policiais ANTOLOGIA DE CONTOS POLICIAIS

Domingos Cabral

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“EDIÇÕES D.C.” SÉRIE “CONTOS & CONTISTAS” Volume 1 - Setembro 2015



ANTOLOGIA DE CONTOS POLICIAIS

“EDIÇÕES D. C.”

Próximas edições: SÉRIE “CONTOS E CONTISTAS” - Os melhores Contos Policiais de Sempre - Contos Policiais Famosos, Sequenciados - Contos Policiais de Autores Portugueses - Antologia de Contos Dedutivos - Antologia de Contos de Suspense - Antologia de Contos de Terror - Antologia de Contos “Corredor da Morte”

SÉRIE “PROBLEMÍSTICA POLICIÁRIA” - Primórdios da Problemística Policiária Portuguesa - Selecção dos Melhores Problemas Policiais de Autores Portugueses 3


Antologia de Contos Policiais

Antologia de Contos Policiais Autor: Domingos Cabral Revisão: Domingos Cabral Publicado por: Domingos Cabral Todos os direitos reservados: Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida sem a prévia autorização do editor, com excepção da citação de breves passagens para fins de crítica e apreciação. Edição e Paginação por: Correio do Ribatejo Ilustração de Capa: Sleuth, Savant, Man of his times - GeoTourist Depósito Legal 00 00/00 ISBN 000-0000-00-0 Santarém, Setembro de 2015 4


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ÍNDICE

7 PREFÁCIO 9 O COBRADOR Maurice Level 13 O ASSASSINO Collete 15 POR CONTA DA CASA Corey Ford 17 ENTERRO À MEIA-NOITE Cecil Hill 19 O ATROPELAMENTO Jonathan Lord 23 O CASO DA EMPREGADA AMOROSA Henry Slesar 31 O ANEL A.D. Higgens 34 O POLÍCIA E O HINO O. Henry 41 UMA PROBABILIDADE NUM MILHÃO S. Hopkins Adams 43 BORREGO PARA A MATANÇA Roald Dahl 51 A SECRETÁRIA Prometeo Mazzanti 55 DE MORTUIS… John Collier 61 O VERMELHO E O NEGRO Robert Andrea 65 A ESPOSA PERFEITA Frank Donovan 67 O CORAÇÃO DELATOR Edgar Allan Poe 71 O HOMEM LEOPARDO Jack London 75 UM CRIME ENGENHOSO Roberto Arlt 79 O PEQUENO CINEMA DE EDGWARE ROAD Graham Greene 85 A ÚLTIMA GARGALHADA Lix Agrabee 89 A TISANA Léon Bloy 5

91 O ASSALTANTE Frank Colby 95 COM A BOCA NA BOTIJA Niel Franklin 99 NÃO BALOICES O BARCO Donald Martin 105 “VENDETTA” Guy de Maupassant 102 A ESPOSA DE JOHN ROSSITER Charles G. Norris 111 ESCONDERIJO HUMANO Dahlia Graham 117 HOMEM ESTÁ MORTO Roy Carol 115 121 SEXTA-FEIRA, DIA DE PAGAMENTO Fred Donaldson 125 O BILHETE DO SUICIDA Arnold E. Grisman 129 Á ESPERA DA POLÍCIA J. Jefferson Farjeon 135 OS VIZINHOS DA PORTA PRÓXIMA Pauline C. Smith 139 O HOMEM SENTADO À MESA C. B. Gilford 147 UM MENINO CONDUZ O INQUÉRITO William Irish 153 A CARA DO OUTRO Joseph Shallit



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PREFÁCIO Desde muito jovem que a leitura tem constituído para mim uma companheira de vida. Com prazer passei - e nalguns fiquei - por quase todos os géneros, estilos e correntes literárias, lendo compulsiva e indiscriminadamente tudo quanto me aparecia, primeiro, e mais moderada e seleccionadamente de há uns anos a esta parte - mas lendo sempre. E, de entre o que continuo a ler, uma vertente regista, de há muito, uma das minhas preferências: o conto. Em especial os de temática policial, essencialmente, e suas ramificações: mistério, suspense, terror, gótico, etc. O conto é, de facto, um género literário que, publicado em antologias, regista um número cada vez mais amplo de leitores e apreciadores - tipo de publicação que entre nós, infelizmente, não tem encontrado a devida correspondência por parte de editores, por, eventualmente, não a considerarem comercialmente sugestiva… Inversamente está a suceder em vários outros países (como, por exemplo, Brasil, Espanha e França), onde as antologias de contos, nomeadamente de temática policial, registam um notável incremento editorial, naturalmente devido ao interesse que o público leitor lhes tem vindo a manifestar. Muitíssimos autores têm, também, feito a sua apologia. Registemos, como exemplo, alguns: João Gaspar Simões, no prefácio da sua Antologia “Mestres do Conto Policial”: “Os especialistas são unânimes em afirmar que a mais genuína expressão do género literário policial se encontra no conto, não no romance”. Mento Giardinelli opinou assim: “Sustento sempre que o conto é o género literário mais moderno e que mais variedade possui “. E Guy de Maupassant - que escreveu cerca de trezentos a contos - disse que “escrever contos era mais difícil do que escrever romances”, e que se tratava de um género aliciante. E fico por aqui quanto à apologia do conto, embora muitos mais eloquentes depoimentos neste sentido pudesse reproduzir. A verdade é que, em virtude da especial simpatia que dispenso ao género “conto”, há já bastante tempo que me acompanha a ideia de coligir e publicar uma colecção de Antologias de Contos Policiais. Aqui está a primeira. E, por o ser, definimos como critério que a mesma fosse constituída por contos na sua maioria curtos, a proporcionar leitura rápida, de uma mescla de autores que vai de alguns muito pouco conhecidos até outros reconhecidos como clássicos - e que, numa minha primeira Antologia, não seria fácil omitir, não só por fazerem parte dos meus mais preferidos, mas também por se tratarem de grandes contistas de sempre: Edgar Poe (obviamente, considerado que é o criador do conto policial e um dos seus expoentes), O. Henry, Guy de Maupassant, Jack London, Graham Greene. Que, todavia, aqui não estão representados pelos seus contos mais significativos porque, de tão divulgados, já quase todos conhecem… Muitos mais grandes autores, e contos de outra dimensão, aqui faltam, naturalmente. Mas outras Antologias virão. Aliás, uma das próximas será precisamente composta pelos que alguns dos mais conceituados críticos consideraram “Os melhores Contos Policiais de Sempre”. Espero, apenas, que o interesse que os leitores venham a dispensar a estas Antologias seja proporcional ao que coloco na sua compilação e publicação. Duas notas finais: A ordem de publicação dos contos foi determinada por sorteio. Escrevi de acordo com a antiga ortografia. Domingos Cabral 7



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O COBRADOR Maurice Level Ravenot, cobrador do mesmo Banco durante dez anos, era um empregado exemplar. Jamais cometera a menor falta e nunca o menor erro fora detectado nos seus livros e apontamentos. Vivendo sozinho, evitando cuidadosamente novas amizades, conservando-se alheio à vida de cafés e a problemas amorosos, parecia feliz, totalmente satisfeito com o deu destino. Muitas vezes lhe diziam: “Deve ser uma tentação lidar com quantias tão grandes!” - ao que ele respondia, calmamente: “Por quê? Dinheiro que não me pertence não é dinheiro.” Na localidade em que vivia era tido como um paradigma, os seus concelhos procurados e tomados. Certa tarde, não regressou ao Banco. A ideia de uma desonestidade nem sequer acorreu àqueles que o conheciam. Possivelmente um crime havia sido cometido. A polícia reconstituiu os seus movimentos durante o dia. Ele havia até então apresentado as suas contas pontualmente, e naquele dia já tinha recolhido mais de duzentos mil francos. A seguir a pista perdia-se. Os polícias esquadrinharam a vizinhança e os terrenos envolventes do forte: tudo sem resultado. Cumprindo uma tarefa de rotina, telegrafaram para todas as direcções e para as estações da fronteira. Mas os directores do Banco, assim como a Polícia, tinham poucas dúvidas de que se tratava de um golpe, planeado há algum tempo por ladrões profissionais. Apenas um homem em Paris deu de ombros quando leu as notícias nos jornais: esse homem era Ravenot. Entretanto, a polícia continuava a não encontrar rastos da sua pista. Ravenot tinha alcançado o Sena pelas Avenidas Exteriores. Mudara de roupa, sob o arco de uma ponte, por outra que lá havia deixado na noite anterior, distribuindo os duzentos mil francos pelos bolsos e, fazendo um fardo com as que despiu e a pasta, amarrou tudo a uma pedra e atirou-a ao rio. E, imperturbável, voltou para Paris. Dormiu num Hotel, e bem. Tornara-se, em poucas horas, um ladrão consumado. Aproveitando-se da vantagem que levava sobre a Polícia, podia ter apanhado um comboio para atravessar a fronteira, mas era suficientemente esperto para saber que poucas centenas de quilómetros não o colocariam fora do alcance da lei, e não tinha muita ilusão quanto ao destino que o esperava. Fatalmente, ele iria ser preso - e além do mais ele tinha arquitectado um plano. Quando a manhã chegou, pôs os duzentos mil euros num envelope, lacrou-o e foi procurar um Notário. - Senhor - disse-lhe - vim procura-lo com este objectivo: tenho neste envelope alguns títulos e outros documentos, que quero deixar em se9


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gurança. Terei de fazer uma longa viagem, e não sei quando estarei de volta. Gostaria de deixar este envelope à sua guarda. Suponho que não terá nenhuma objecção a fazer? - Absolutamente nenhuma. Dar-lhe-ei um recibo… Concordou, mas depois pensou: um recibo? Onde guardá-lo? A quem confiá-lo? Conservando-o consigo, certamente perderia o depósito. Hesitou: não tinha previsto esta complicação. Mas, de repente, disse: - Meu Deus, vivo sozinho, sem parentes nem amigos. A viagem que pretendo fazer não é isenta de perigo. Correria o risco de perder o recibo, ou dele poder ser destruído. Não lhe seria possível tomar conta do envelope e colocá-lo em segurança no seu cofre, bastando que eu, ao voltar, dissesse apenas o meu nome ao senhor ou a um seu sucessor? - Mas se eu fizer assim… - Escreva no envelope que ele só pode ser reclamado dessa forma. De qualquer modo, se houver algum risco, é meu. - De acordo. Como é o seu nome? Ele respondeu, sem hesitar: - Duverger, Henry Duverger. Ao ver-se de novo na rua, soltou um suspiro de alívio. A primeira parte do seu plano estava cumprida. Podiam, agora, pôr-lhe as algemas: a substância do seu roubo estava fora de alcance. Havia preparado tudo com fria determinação: ao expirar a sentença, reclamaria o depósito. Ninguém lhe poderia disputar esse direito. Transcorreriam quatro ou cinco anos desagradáveis, e ei-lo de novo livre, e rico. Isso era preferível a gastar a sua vida arrastando-se de porta em porta, no serviço de cobranças. Iria viver, tranquilamente, para o campo. Passaria a ser, para todos, Monsieur Duverger. Uma velhice calma e alegre, conhecido como um homem honesto e caridoso - pois ele iria partilhar algum daquele dinheiro com os outros. Só precisava de mais de vinte e quatro horas para se certificar de que os números das células não eram conhecidos. Seguro sobre este ponto, entregou-se, com um cigarro nos lábios. Outro homem, em seu lugar, teria inventado alguma história. Ele preferiu dizer a verdade, admitir o roubo. Para quê desperdiçar tempo? Mas no decorrer do julgamento foi impossível arrancarem-lhe uma palavra sequer sobre o destino que dera aos duzentos mil francos. Limitava-se a dizer: - Não sei… Adormeci sobre um banco… e fui também roubado. - Graças ao seu passado irrepreensível, foi condenado a apenas cinco anos de prisão. Escutou a sentença impassível, sem a menor agitação. Tinha trinta e cinco anos. Aos quarenta estaria livre e rico. Encarou a prisão como um sacrifício ou ansiedade, apenas preocupado com a sua saúde. Finalmente, chegou o dia da libertação. Devolveram-lhe o seu pequeno volume de objectos pessoais, e ele saiu não tendo no espírito outra preocupação senão a de procurar o Notário. Imaginava a cena, enquan10


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to andava. Chegava. Era introduzido no escritório de cujos detalhes ainda tinha uma recordação tão nítida. E o Notário, reconhecê-lo-ia? Olhar-se-ia num espelho; sem dúvida envelhecera consideravelmente, as suas faces mostravam os traços da sua provação. - Não, era certo que o Notário não o iria reconhecer. Ah! Isso tornaria a situação ainda mais interessante… - Em que lhe posso ser útil, senhor? - Vim pedir a devolução de um envelope que aqui deixei há cinco anos… - Que depósito?... Em que nome? - Em nome de Monsieur… Ravenot parou de súbito, murmurando: - Que extraordinário … Não consigo lembrar do nome que dei! Espremeu o cérebro. Nada! Sentou-se num banco e, sentindo que se estava enervando, procurou tranquilizar-se: Vamos, vamos… Mais calma, Monsieur… A coisa começava com… com que letra? Durante uma hora permaneceu sentado, puxando pela memória, tentando algo que pudesse sugerir uma pista… Tempo perdido. O nome dançava diante dele, envolvia-o, via as letras saltando, as sílabas desaparecerem… Ao fim de cada minuto Ravenot tinha a sensação de que o havia apanhado, de que ele estava diante dos seus olhos, dos seus lábios… Mas não! A princípio a situação apenas o aborreceu. Em breve, porém, transformou-se numa irritação aguda que lhe provocou uma dor quase física. Ondas de calor passaram a percorrer-lhe a espinha. Os músculos contraíram-se-lhe; pareceu-lhe impossível continuar sentado. As mãos começaram-lhe a tremer-lhe. Mordeu os lábios. Secos. Dividia-se entre o impulso de chorar e lutar. E quanto mais concentrava a atenção, mais o nome parecia fugir-lhe. Bateu o pé no chão, levantou-se e exclamou: - Que é que adianta irritar-me?... Isto só contribuirá para piorar a situação. Se eu deixar de pensar, o nome acabará por aparecer por si próprio. Uma obsessão, porém, não se afasta com esta facilidade. Debalde procurou voltar a atenção para os transeuntes, olhar montras, escutar os ruídos da rua; enquanto escutava, sem ouvir, e olhava, sem ver, a grande pergunta persistia: - Monsieur?... Monsieur?... A noite chegou. As ruas ficaram desertas. Exausto, procurou um hotel, pediu um quarto e atirou-se para a cama, completamente vestido. Durante horas continuou perscrutando o cérebro. Só adormeceu de madrugada. Era dia alto quando despertou. Espreguiçou-se sensualmente, com o espírito desanuviado: num relâmpago, porém, a obsessão empolgou-o novamente: - Monsieur?... Monsieur?... Uma sensação nova começou a dominar-lhe o espírito angustiado: o medo. O medo de que talvez jamais pudesse lembrar-se do nome. Le11


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vantou-se, saiu, e caminhou durante horas ao acaso, rondando o escritório do Notário. Anoitecia pela segunda vez. Apertou a cabeça entre as mãos e lamentou-se: - Vou ficar louco! O seu espírito era agora dominado por uma ideia terrível: tinha duzentos mil francos em notas, duzentos mil francos adquiridos desonestamente, é verdade, mas seus, e que estavam agora fora do seu alcance. Para obtê-los havia passado cinco anos na prisão, e agora não podia tocá-los. As cédulas estavam lá, à sua espera, e uma palavra, uma simples palavra de que não conseguia recordar-se, ali estava, entre ele e a sua riqueza, como uma barreira intransponível. Bateu com os punhos cerrados na cabeça, sentindo a sua razão periclitar. Arrastando-se como um bêbado, colidiu em postes, tropeçou nos lancis das calçadas. Já não era uma obsessão ou um tormento, mas um frenesim tomando conta de todo o seu ser, do seu cérebro, da sua carne. Estava a ficar convencido de que nunca mais se lembraria! Na imaginação uma gargalhada sardónica retinia nos seus ouvidos. As pessoas, na rua, pareciam apontar para ele, quando passava. Apressando o passo, Ravenot desandou de repente a correr alucinadamente, colidindo com os transeuntes, esquecido do tráfego. Desejava que alguém lhe batesse para poder reagir; desejava ser esmagado, ser posto fora da existência… - Monsieur?.:. Monsieur?... A seus pés o Sena deslizava, e as suas águas de um sujo esverdeado reflectiam o brilho das estrelas. Soluçou: - Monsieur?... Oh, esse nome!... Esse maldito nome!... Desceu os degraus que conduziam à água e, inclinando-se, procurou refrescar o rosto e as mãos. Estava ofegante… a água puxava-o… atraía os seus olhos secos… os seus ouvidos… o seu corpo inteiro… Sentiu que escorregava, mas não pode segurar-se no muro íngreme e caiu… o choque da água fria afectou-lhe todos os nervos. Lutou… estendeu os braços… ergueu a cabeça… mergulhou… voltou de novo à superfície e, de repente, num esforço sobre-humano, os olhos quase lhe saltando das órbitas, gritou: - Consegui!... Socorro! Duverger! Du… O cais estava deserto. A água batia nos pilares da ponte: o eco do arco sombrio repetiu o nome no silêncio. O rio deslizava preguiçosamente. Sobre ele as luzes, dançavam, brancas, vermelhas… Uma onda mais forte bateu contra a amurada… Tudo tranquilo.

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O ASSASSINO Collete Quando a matou, com uma pancada do pisa papéis de chumbo, Luís ficou embaraçado. Ela jazia por trás do balcão, uma perna torcida, a cabeça virada e o corpo de frente, numa postura ridícula que pôs o rapaz de mau humor. Encolheu os ombros e quase lhe disse: “Levanta-te!” Mas, nesse momento, a campainha da porta tilintou, e Luís viu entrar uma menina que disse: - Dá-me um novelo de linha preta, por favor. - Não temos, só amanhã - respondeu ele polidamente. A pequena saiu, fechou a porta cuidadosamente, e só então ele percebeu que a garota poderia ter-se aproximado do balcão, inclinado e visto… A noite caía, escurecendo a pequena loja. Distinguiam-se ainda as filas de caixas de papelão que tinham do lado de fora um botão de osso ou uma amostra de retrós. Luís riscou maquinalmente um fósforo na sola do sapato para acender o bico do gás, depois arrependeu-se e apagou o fósforo esmagando-o com o pé. O taberneiro da frente iluminou a sua loja e, por contraste, o pequeno bazar mergulhou numa noite riscada de traços amarelos. Luís inclinou-se de novo sobre o balcão. E, espantado, constatou que a amante continuava lá, a perna dobrada e a cabeça descaída. Uma coisa negra, um fio esguio como uma madeixa de cabelos enrolada, sulcava a face pálida. Arrecadou os quarenta e cinco francos em moedas e notas sujas que há pouco desdenhara furiosamente, saiu, levando o cadeado no bolso. Durante dois dias viveu numa espécie de infância, divertindo-se a olhar os barcos no Sena e as crianças nos jardins. Divertia-se como um menino e aborrecia-se como um menino. Esperava, sem se decidir a sair da cidade, nem tão pouco a instalar-se no quarto que conservava alugado, pago à semana, ainda possuía montes de postais de monumentos de Paris em bilhetes-postais, e algumas garrafas e copos. Dormia noutro sítio; dormia bem e não sentia medo. Os dias esfumavam-se com leveza, trazendo-lhe ultimamente essa impaciência agradável que se goza nos grandes portos. Não sentia medo, e dormia bem; o dia corria-lhe leve, carregado somente dessa impaciência agradável que se goza nos grandes portos, quando se anda em cruzeiro num transatlântico. Dois dias após o crime comprou, como nos anteriores, um jornal, e leu: “Uma comerciante assassinada na Rua X…” Disse alto: “Ah! Ah!” com ar conhecedor, saboreou, devagar e atentamente a leitura, notando que, no dizer dos repórteres, o crime, por motivo da existência “muito recolhida” da vitima, passava já por “misterioso”. Acabou por dobrar o jornal e guardá-lo. 13


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À sua frente o café arrefecia. O criado do bar polia os metais; um velho casal, na mesa ao lado, mergulhava biscoitos no leite quente. Luís permaneceu absorto por momentos, perguntando a si mesmo qual a razão por que tudo deixara de lhe ser familiar… Sentia que, se interrogasse o casal de velhos, estes lhes responderia numa língua estranha; e o criado assobiando, olhava através do seu corpo sem se aperceber da sua presença. Levantou-se, atirou o dinheiro para cima da mesa e dirigiu-se para a estação onde comprou passagem para um dos arrabaldes, cujo nome lembrava corridas, tardes de remo e vela. Durante o trajecto pareceu-lhe que o comboio não fazia barulho e que os viajantes falavam a meia voz. “Talvez eu esteja a ficar surdo.” Ao descer do comboio, Luís comprou um jornal da tarde, e leu a mesma descrição da manhã. Bocejou: “Meu Deus, não passamos disto!” Comeu num pequeno restaurante perto da estação e informou-se sobre a possibilidade de arranjar emprego na região. Mas fez isso com repugnância, e foi com sacrifício que se dirigiu a um dentista, que na véspera ficara sem empregado. Apesar da hora avançada, bateu à porta, fez-se passar por fabricante de brinquedos mecânicos, não discutiu o ordenado - e nessa noite já se deitou num quarto do sótão, forrado com esse papel de florinhas cinzentas e azuis também utilizado para forrar o interior das malas baratas. Durante oito dias ocupou o lugar de ajudante do dentista, um homem ossudo e ruivo, que não lhe fazia nenhuma pergunta e que fumava com os pés sobre a mesa, esperando os raros clientes. Uniformizado com o avental branco, Luís tomava o fresco, apoiado no botão aberto, e as crianças da vizinhança sorriam à sua figura morena e doce. Comprava diariamente um jornal. “O crime da rua X…” esmorecia agora na décima página, entre choques de comboios e chantagens de bruxas. Cinco linhas, dez linhas, afirmavam desapaixonadamente que “o enigma continuava indecifrável”. Numa tarde primaveril, salpicada por uma chuva breve, rasgada pelos gritos das andorinhas, Luís pediu ao dentista algum dinheiro para “comprar roupa branca”, tirou o avental e voltou a Paris. E como não passava de um simples aprendiz de assassino, foi directamente rever o bazar. Brincavam duas crianças diante da porta ondulada, e os salpicos de lama manchavam a entrada. Durante muito tempo Luís passeou na rua de um lado para o outro e só partiu quando a noite já caíra há muito. Voltou no dia seguinte, um pouco mais tarde, para não chamar a atenção, e nas outras noites, continuou como fiel sentinela. Sentia-se cheio de uma estranha esperança, semelhante à angústia de amar. Certa noite, quando parara para erguer a cabeça e olhar as estrelas, ao mesmo tempo que soltava longo suspiro, uma mão pousou docemente no seu ombro. Fechou os olhos, não se virou e caiu inerte, feliz, nos braços do polícia que o prendia. Durante o interrogatório, Luís confessou que lamentava o seu crime 14


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mas a sensação sentida no minuto em que a mão libertadora pousara no seu ombro “recompensava tudo”, e que só a podia comparar com aquela outra, quando conhecera o “verdadeiro amor”…

POR CONTA DA CASA Corey Ford - Uma laranjada, por favor. O homem atrás do balcão fechou bruscamente a gaveta da caixa registadora e voltou-se, surpreendido. - Como? - Uma laranjada - repetiu calmamente o recém-chegado, colocando uma moeda sobre o balcão. - Sim, senhor; imediatamente. - A mão do outro afastou-se do bolso posterior das calças, para onde se deslocara com prontidão, e a palidez abandonou-lhe as faces. Em seguida, destacou a cápsula de uma garrafa e verteu num copo sumo de laranja concentrado. - Não se admire se encontrar algum caroço, porque se trata de um produto puríssimo. - Óptimo. Aquele relógio está certo? - Sim. Vão dar as cinco. - Esta esquina da Brodway com a Forty-furth Street é muito solitária a uma hora tão avançada - considerou o desconhecido, ao mesmo tempo que aproximava o copo aos lábios. - Falta pouco para amanhecer. - Com efeito, o momento em que apagam as luzes das ruas não é o mais propício para passeios. - O homem atrás do balcão semicerrou as pálpebras, para contemplar o cliente. - Não o vi já por aqui? - Não sei. Acha que sim? - Costuma frequentar estas paragens? - Nem por isso. - O desconhecido impeliu a moeda com o dedo. - Aí tem. - Guarde o dinheiro. A laranjada é por conta da casa. - Não receia que alguém o surpreenda? Imagine que eu era um fiscal? - Ora! Não acredito que percorresse os bares a horas mortas. A fiscalização exerce-se nas ocasiões de maior movimento e não de madrugada, conforme tenho notado. - O seu horário de trabalho deve ser arrasante - observou o cliente, fazendo girar o copo entre os dedos. - A quem o diz! Das oito da noite às oito da manhã, não tenho um instante de descanso. Não faz ideia da satisfação com que vejo surgir o Sol. O serviço é esgotante, sobretudo pouco antes de os teatros principiarem 15


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a funcionar e durante os intervalos. A partir da meia-noite, porém, a clientela começa a escassear, até que se limita a um bêbado ocasional, ou qualquer vagabundo em busca de uma bebida de borla. Quando mais me apetece uma boa soneca, tenho de continuar a pé, aguardando pacientemente que as horas passem com lentidão enervante. - Nunca pensou que o podem assaltar sem dificuldade? - Hem? - Admira que ninguém o venha incomodar. - Bem, uma vez vi-me em apuros. Mais ou menos a esta hora, entrou um fulano que, depois de pedir uma bebida, começou a conversar, tal como o senhor. Confesso que não lhe prestei atenção especial. Quando me voltei para abrir a caixa registadora, a fim de guardar o dinheiro acabado de receber, puxou de uma pistola e mandou-me erguer as mãos. - Obedeceu? - Que remédio! Aliás, o dinheiro não era meu. Levantei-as o mais alto possível e disse-lhe que, por mim, até podia levar o bar inteiro. Ele esvaziou as gavetas, amordaçou-me e estendeu-me atrás do balcão. Nunca vi proceder com tanta limpeza… - Crê que o reconheceria? - Talvez. Era da minha estatura, com cabelos pretos como os meus. Não consegui fixar outros pormenores, porque estava um pouco perturbado pelo assalto. - Não há dúvida de que se trata de Joe Mallan. - O desconhecido sorriu e estendeu a mão na qual exibia a insígnia metálica. - Sou da Polícia. Tem havido tantos assaltos nesta zona, ultimamente, que o tenente me incumbiu de investigar durante as horas de menor movimento. - Essa agora! - O outro soltou uma gargalhada divertida. - Sempre me pregou um susto… Calcule que cheguei a tomá-lo por um salteador! O polícia depositou o copo vazio sobre o balcão e passou as costas das mãos pelos lábios. - Bem, vou andando… Obrigado pelo refresco. - Tive muito gosto em oferecer-lho. Quem paga é a casa, como lhe disse. - O homem atrás do balcão sorria com satisfação, enquanto o polícia se afastava; mas, depois de este transpor a porta, assumiu uma expressão grave. Agachou-se com rapidez, certificou-se de que a mordaça continuava bem ajustada à boca da figura que se encontrava manietada atrás do balcão, endireitou-se e assomou à porta, para esquadrinhar a rua prudentemente. - Sim, senhor - murmurou, encaminhando-se para a caixa registadora. - Quem paga é a casa…

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ENTERRO À MEIA-NOITE Cecil Hill Os ponteiros do relógio de Arthur Pelton marcavam duas horas da madrugada exactas, quando ele extraiu a última pazada de terra da cova que abria no pátio das traseiras. Era uma abertura de dimensões apreciáveis, ampla e profunda, e a terra acabada de retirar formava um monte elevado. Pelton limpou o suor da fronte e saltou para fora. Largando a pá com suavidade, lançou uma olhadela prudente às casas vizinhas. Não descortinou qualquer movimento alarmante; nenhuma das janelas deixava transparecer o menor clarão. Por fim, emitiu um profundo suspiro de alívio e encaminhou-se para a entrada da cozinha mergulhada na escuridão. Minutos depois, reapareceu transportando aos ombros um saco largo e avultado, que depositou na cova com um ruído surdo. A seguir, pegou novamente na pá e começou a lançar a terra para dentro com rapidez. A abertura não tardou em ficar coberta. Pelton apoiou-se ao cabo da pá, a fim de descansar uns instantes. A operação terminara e percorria-o intensa satisfação, ao recordar o plano concebido há muito e proletado excessivamente. - É você, Arthur? Ao ouvir o seu nome, Pelton rodou nos calcanhares, sobressaltado. Vagamente, na escuridão, distinguiu o rosto do vizinho, Henry Lawton, observando-o atrás da vedação do seu pátio. Pelton mastigou uma imprecação e replicou: - Claro que sim. Quem queria que fosse? - Ouvi barulho e lembrei-me de averiguar de que se tratava. - Após breve pausa, Lawton acrescentou: - Parecia uma pessoa a escavar. Era você, Arthur? O interpelado engoliu em seco, contou até dez para serenar e explicou: - Enterrei umas latas vazias, uma vez que se mostra tão interessado nos meus movimentos. - Latas? A estas horas? - A intonação de incredulidade era nítida. - Não o podia fazer de dia? - Talvez, mas preferi este momento. Como sabe, minha mulher ausentou-se há três semanas e, desde então, tenho-me alimentado de conservas. Como o caixote do lixo estava cheio precisava de fazer desaparecer as restantes. - Tem piada. Ia precisamente observar que não vejo a sua esposa há bastante tempo - proferiu Lawton, com uma inflexão enigmática. - Foi visitar uns amigos - explicou Pelton, secamente. - Nada tenho com isso, evidentemente. No entanto, devo revelar-lhe que correm rumores pouco agradáveis a esse respeito. Ninguém ignora que ela se entendia com determinados fulanos, quando você esteve na 17


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tropa. Depois, registou-se aquela ligação com o farmacêutico, na altura em que o destacaram para a sucursal do Banco de uma aldeia. Todavia, tudo isso é do seu conhecimento, certamente. Pelton segurou o cabo da pá com firmeza e voltou as costas ao vizinho. Sim, estava ao corrente das actividades da mulher, durante as suas ausências e as humilhações que se vira forçado a suportar surgiram-lhe com clareza no espírito. Uma espécie de neblina dificultava-lhe a visão, enquanto se dirigia lentamente para casa. Não deu conta do movimento das cortinas da janela do quarto da senhora Lawton, mas a coscuvilheira número um do bairro descortinara o suficiente para entrar em acção. O carro da Polícia deteve-se frente à porta de Arthur Pelton, pouco antes do escurecer. Um inspector saltou para o solo, imitado por um sargento e um guarda uniformizado. Pelton abriu a porta e exibiu assombro profundo ao avistar os três homens. - É o senhor Arthur Pelton? Chamo-me Morely, inspector da Polícia Judiciária. Importa-se que entremos por uns momentos? Desejo fazerlhe algumas perguntas relativas a sua esposa. O dono da casa aquiesceu com um movimento de cabeça e afastou-se, para lhe dar passagem. O trio avançou em silêncio para a sala e o inspector entrou no assunto sem rodeios: - Onde está ela, senhor Pelton? - Foi visitar uns amigos. - Onde? - Não faço ideia. Não mo comunicou. O inspector inclinou-se para a frente e o olhar assumiu dureza repentina. - Vou pôr as cartas na mesa. Há mais de três semanas que a sua esposa desapareceu, e correm boatos pouco satisfatórios a esse respeito. - Os vizinhos já estão habituados às suas ausências periódicas - observou Pelton, com uma breve risada de amargura. - Que enterrava no pátio, às duas horas da madrugada? - Com que então é isso! Apenas latas de conserva vazias. Suponho que não existe lei alguma contra semelhante actividade? - Decerto que não… se eram latas. - O inspector assumiu uma atitude ainda mais formal. - Nesse caso, permite que nos certifiquemos? - Cubram-se de ridículo à vontade, se é esse o vosso desejo. O inspector voltou-se para os dois homens que o acompanhavam. - Vão buscar as pás e comecem a escavar. Quinze minutos mais tarde, a Polícia abandonava a casa de Pelton. - Latas! - resmungou o inspector, instalando-se ao lado do motorista. - Por que carga de água se lembrou de enterrar latas vazias, às duas da madrugada? - Provavelmente, envergonhava-se de o fazer durante o dia - aventou o sargento. - Não devia querer que os vizinhos se inteirassem do que se 18


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alimentava durante a ausência da mulher. Na sala, Pelton contemplava o pátio pensativamente através da vidraça da janela. A cova ficara aberta, com um avultado monte de terra ao lado. - E nem se deram ao incómodo de a voltar a tapar! - murmurou, meneando a cabeça. Naquela noite, Pelton ouviu o ruído de uma chave introduzida na fechadura da porta das traseiras e, ao assomar na cozinha, deparou com a mulher que o encarou calmamente. - Com quem estiveste, desta vez? - indagou ele. - Não é da tua conta. As faces de Pelton adquiriram uma palidez cadavérica e a respiração alterou-se violentamente. - Já pensaste em como isto terminará? - Sim. - Ela emitiu uma risada sardónica. - Tenho tudo planeado minuciosamente. Dentro em breve, deixar-te-ei para sempre. - Aproximou-se da janela e olhou para o pátio. Mau grado a penumbra, o monte de terra achava-se claramente visível. - De onde veio toda aquela terra? - perguntou com curiosidade. - Abriste alguma cova? - Assim parece - grunhiu Pelton, o olhar subitamente iluminado por um clarão estranho. - Não quero o pátio esburacado! Quando tencionas tapá-la? Ele estendeu a mão para a lareira e pegou no pesado atiçador. - Esta noite mesmo…

O ATROPELAMENTO Jonathan Lord Encaminhavam-se para a área das docas, em silêncio, entregues a cogitações, quando ouviram o carro atingir o garoto. Estacaram ao grito agudo soltado por este último e começaram a correr em direcção ao local do acidente. Trajavam com sobriedade, de aspecto geral de homens conservadores, magros, de músculos rijos em perfeita condição, e a respiração não se alterava, nem ficaram ofegantes. Enquanto corriam, o mais alto disse: - Pelo barulho, foi coisa grave. Tinha cabelos louros, olhos azuis e fisionomia esguia e sensível, com uma expressão de choque nos olhos fixos na sua frente através da escuridão. - Parece que sim. O carro ia embalado. - A meia voz, acrescentou: Os acidentes de rua são uma gaita. 19


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Dobraram uma esquina, e o acidente surgiu diante deles. O garoto aparentava dez ou onze anos e jazia hirto e imóvel, o corpo projectado a mais de um metro das rodas da frente do carro. O condutor achava-se de pé a um lado, as faces lívidas e lábios trémulos num esgar de desespero, com o olhar cravado na criança e na multidão que se juntava gradualmente. - Nem sequer o vi - balbuciou. - Apareceu a correr de entre dois carros estacionados… O louro aproximou-se e olhou em volta. - Alguém telefonou para chamar uma ambulância. - Um homem já tratou disso - informou uma mulher. - Mas não adianta. O miúdo apagou-se. Assisti a tudo. Ele… - Nunca se sabe. - Cortou o louro. Às vezes, os médicos conseguem maravilhas. Nunca se sabe… - Fixou o olhar no garoto. - Talvez fosse conveniente movê-lo daí, cobri-lo ou… - É melhor não lhe mexer - disse o homem baixo. - Se ainda vive, podíamos agravar-lhe o estado. - Olhou igualmente a criança e em seguida desviou o rosto. - Que raio de coisa, hem, Joe? Ainda por cima um miúdo. O olhar do louro cruzou-se com o do condutor, que deu um passo, inconscientemente, na sua direcção. - Nem sequer o vi - repetiu. Apareceu de repente… - Calou-se ao ver que o louro lhe voltava as costas. Por fim, chegou uma viatura da polícia, com a ambulância quase imediatamente, e os dois homens confundiram-se com a multidão. No entanto, continuaram a observar o que se passava, enquanto um interno dos hospitais examinava o garoto superficialmente e lhe cobria o corpo com um lençol. - Temos de ir - lembrou o homem baixo. - Não podemos chegar atrasados. O louro consultou o relógio indiscutivelmente dispendioso e replicou: - Chegaremos muito a tempo. Ainda dispomos de uma hora. Mr. Conners disse que ele só aparecia às onze. Continuaram a observar os acontecimentos durante mais alguns minutos. Por último, começaram afastar-se, de novo rumo à área das docas, sem trocar palavra ao longo de quase dois quarteirões. Finalmente, um murmurou: - Estas coisas cortam o coração a um tipo. O louro assentiu, com um movimento de cabeça. - O miúdo devia ter mais ou menos a idade do meu mais velho. - E do meu, também. Estes acidentes fazem um pai tremer como varas verdes. Tornou a inclinar a cabeça. - E o pior é que um fulano não pode fazer nada para o evitar. Um garoto de dez anos não vai ficar o dia inteiro metido em casa, agarrado às saias da mãe. Resta apenas inculcar-lhe no bestunto que deve ter muito 20


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cuidado ao atravessar a rua…e mesmo assim é preciso fazer figas para que não aconteça o pior. - Sim, aí é que está o busílis. Se alguma vez vejo um dos meus atravessar fora da passagem dos peões, leva-me tantas no rabo que não consegue sentar-se durante um mês. Entretanto, haviam-se internado na área das docas, onde as ruas eram escuras e desertas. Continuaram a andar e conversar em surdina, até que chegaram à beira da água. - É aqui mesmo - disse o louro. - O barco deve acostar acolá, junto daquela linha pintada. É melhor sairmos daqui do meio… - sugeriu o baixo. Havia um espaço imerso na escuridão, poucos metros à esquerda do lugar em que se encontravam, e eles dirigiram-se para lá, a fim de ficarem emboscados até à aparição do terceiro homem. Este era extremamente alto e trajava do mesmo modo discreto e conservador, embora o tecido fosse de qualidade inferior, além de que deixava transparecer nervosismo. Deteve-se à beira de água, viu as horas e fixou o olhar no largo. Os dois homens emboscados observaram-no por um momento, até que o louro deu um passo para a frente. - Não penses mais no barco, Marty. O recém-chegado voltou-se, viu-o e o rosto alterou-se com uma expressão de pavor. - Não penses mais no barco - reiterou o louro. - Não seguirás nele, esta noite. Os lábios do homem alto tremiam e ele comprimiu-os para tentar dominá-los. Por último, articulou: - Dá-me uma oportunidade, Joe… - Nenhuma - retorquiu o louro. - Por amor de Deus, Joe, procede como um ser humano, uma vez na vida. Deixa-me embarcar. Ninguém ficará a saber o que aconteceu. Passarei os anos que me restam no estrangeiro. Crescemos juntos, não esqueças. Fomos amigos de longa data. Abanou a cabeça com veemência. - Não devias ter feito aquilo. Deixámos de ser amigos, quando Mr. Conners nos deu a ordem a teu respeito, esta tarde. Não há qualquer oportunidade possível, Marty. O homem alto olhou-o em silêncio por um momento e acabou por encolher os ombros, num gesto de fatalismo. - Talvez seja preferível que dês meia volta - indicou o louro, em tom suave. O outro virou-se para o outro lado e, de súbito pôs-se a correr. Não dera mais de quatro passadas, quando uma bala o fez cair de joelhos. Registaram-se mais três disparos, ele gritou uma vez, com um som estrangulado, e tombou de bruços. 21


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Os outros dois aproximaram-se do corpo, e o louro voltou-o parcialmente, com a biqueira do sapato, a fim de o observar por uns instantes. - Pronto - decidiu. - Atiremos as armas á água e raspemo-nos. As duas automáticas produziram sons abafados e mergulharam. Eles aguardaram mais um momento, para se certificarem de que não se aproximavam passos, e abandonaram o local. Sem pressa, caminhavam cadenciadamente e em silêncio. Não pronunciaram uma única palavra ao longo de cerca de dois quarteirões, até que o baixo desabafou: - Não consigo esquecer o raio do acidente, que coisa horrível para uma pessoa presenciar. - Horrível é de facto o termo - concordou o louro. - Oxalá o condutor apanhe pelo menos vinte anos de prisão. Um filho da mãe daqueles a guiar na brasa numa área pouco iluminada! - Meneou a cabeça. - De manhã, a primeira coisa que farei é ter uma conversa a sério com os meus miúdos…

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O CASO DA EMPREGADA AMOROSA Henry Slesar De um lado para o outro, entre a cozinha e a sala de jantar do Hotel Gordon Restaurant, Thelma Tompkins, preocupada, mantinha debaixo de vista a mesa vazia ao canto. Com aquela ansiedade, ia entornando um prato de sopa de tomate, que escorregara até à extremidade do tabuleiro que Thelma transportava, e Marian, a proprietária, mostrou o seu desagrado, trespassando-a com o olhar hostil que possuía. No entanto, Thelma Tompkins não partira sequer um prato em 11 anos de serviço e o instinto não a abandonara naquele momento. Mesmo assim, Marian não conseguiu resistir a perguntar, sarcástica: - O que te anda a roer? - Mrs. Mannerheim - respondeu Thelma, a olhar de novo para a mesa vazia. - Está atrasada quase meia hora. Estará bem? Marian até bufou! - Deixa de ser mãe dela. A velhota não tarda a estar aí. Vem sempre! Mas Thelma continuou a olhar, preocupada e as linhas de expressão não melhoraram em nada as feições desleixadas do rosto. O cabelo castanho, desmanchado pelo calor da cozinha e pelo frio do ar condicionado da sala de jantar, foram-na despenteando mais à medida que o tempo passava. Quando, finalmente, Mrs. Mannerheim se sentou no lugar do costume ao canto da sala, Thelma parecia tão doente quanto a idosa. Mas não completamente. Mrs. Mannerheim (as linhas do seu corpo enrugadas não eram visíveis dentro do vestido largo de crepe preto) estava muito pálida, mais parecia um fantasma. Tinha, de facto, uma idade muito avançada. Thelma desconfiava que já ultrapassara os 90 e, naquela noite, parecia que a morte a andava a rondar. - Como se sente, Mrs. Mannerheim? - auscultou Thelma, colocando as mãos sobre a mesa e encostando a boca ao ouvido, já ensurdecido da senhora. - Estava preocupada consigo, nunca mais descia. Esta noite é o mesmo? - Sim, minha querida - respondeu a velhota enquanto abria o guardanapo com as mãos deformadas. - O mesmo esta noite, Thelma, e não se preocupe comigo. - Não está doente ou qualquer coisa assim? - Ligeiramente - sorriu Mrs. Mannerheim. - Só um bocadinho. - Ai, não acha melhor chamar o médico? Não está com bom aspecto. - Ora, cale-se com isso do médico. Não fui ao médico durante 30 anos, desde que o parvo do Leverett me disse que eu ia morrer - deu uma palmada afectuosa na mão de Thelma. - Mesmo assim, obrigada pela sua atenção. Sabe, querida Thelma, é bom termos alguém que se preocupe connosco. A empregada pestanejou por detrás das lágrimas, aquele género de lágrima fácil que pode ser provocada por filmes tristes, gatos escanze23


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lados, ou pelo irmão mais novo de Thelma, Arthur. Foi para a cozinha enquanto limpava os olhos com a palma da mão e disse a Jeff, o cozinheiro, que Mrs. Mannerheim estava ali. O cozinheiro não precisou de pormenores - nos oito anos que estava no Gordon, o menu dela nunca variara. Um copo de sumo de tomate, uma fatia fina de roast beef, uma batata cozida, cenouras e leite. Quando ela lhe levou a refeição, Mrs. Mannerheim tentou trinchar a carne. Como era hábito, Thelma ofereceu-se e, com a relutância de sempre, a velhota acabou por consentir. - És boa miúda - disse-lhe com suavidade, enquanto olhava para ela. Thelma riu. - Tenho 44 anos, Mrs. Mannerheim, já não sou uma “miúda”. Quer mais manteiga na batata? - Pode sentar-se para falarmos um bocadinho? - Ui, Mrs. Mannerheim, parece-me que agora não posso, ainda há bastante que fazer. - Então e mais tarde? É uma coisa que queria mesmo falar consigo. - Com certeza, Mrs. Mannerheim, mais logo. O restaurante ficou vazio às dez e meia e Marian fez-lhe sinal com a cabeça. Mas antes de Thelma despir a farda, foi até à mesa da velhota e sentou-se. - Do que quer falar, Mrs. Mannerheim? - De si, Thelma. Importa-se? - De mim? - a empregada riu-se e arranjou os cabelos desalinhados. Não há nada a falar de mim, Mrs. Mannerheim. - Quero saber como tem passado, Thelma. - O mesmo do costume, Mrs. Mannerheim. - E o irmão de que me falou, como está? - O Arthur? Esse está bem, obrigada. Não está a ganhar uma fortuna na loja, mas dá para ir vivendo. Desfocou o olhar e apertou os lábios. - Ainda está preocupada com ele, não está? Da última vez que falámos estava preocupada pelo facto de ele ser um infeliz, e de ter que dirigir aquela drogaria. Thelma nada disse. - Gosta muito do seu irmão, não é verdade? - Acho que sim. É tudo o que me resta desde que o pai morreu, Mrs. Mannerheim. Quer dizer, tudo o que eu disse dele naquela noite… Bom, não era bem assim que queria dizer. Ele é novo, não consegue compreender determinadas dificuldades… sabe como é. - Claro - a velhota tossiu e o som ecoou dentro do vestido de crepe. - Quer mais água? - Não, estou bem. Bom, de facto, não é verdade - tentou rir. - Na verdade, não estou bem. Thelma, pela primeira vez sinto-me realmente velha. Tenho andando tão doente nestes últimos tempos! Às vezes, penso que a minha hora chegou… - Oh, Mrs. Mannerheim - as lágrimas soltaram-se de novo. 24


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- Não fique incomodada. Pensar na morte com a minha idade é diferente. Mas o que lhe quero dizer, Thelma, é que, no caso de me acontecer alguma coisa… É que tenho pensado muito em si e quero ajudá-la. Sabe do que estou a falar? - Não. - Estou a falar de dinheiro, Thelma. Sou aquilo a que se chama uma viúva velha e rica, mais dinheiro que juízo. Tenho uma sobrinha na Califórnia que vai ter de ficar com alguma coisa, só porque é família, porque não me liga nenhuma. Mas quero que saiba que tomei conta de si. O rosto de Thelma parou, em parte por estar desorientada, e devido à expectativa. - Tomou conta de mim? - No meu testamento. Tem sido uma boa amiga, Thelma, durante estes anos e estou-lhe grata. Quando morrer, pode viver aqui e fazer o que lhe apetecer. E o seu irmão… Thelma levou a mão que tremia ao pescoço, Arthur! - Mrs. Mannerheim não tem de fazer uma coisa dessas… - Mas eu quero, quero mesmo, Thelma. Será uma quantia considerável, acredite. Não sei porque sou tão rica, mas desde a morte do meu marido o dinheiro pareceu multiplicar-se. Consegui manter-me confortável, e agora quero que fique feliz. Parecia ter dificuldade em respirar. Apertou o estômago e fechou os olhos. - Mrs. Mannerheim… - Já passa, Thelma, isto já passa. Quando voltou a abrir os olhos, estavam fixos e brilhantes. - Já não tenho muito tempo - disse. - Sonho com a minha mãe vestida com um vestido comprido e branco, com flores. Acredita nos sonhos? - Não sei - respondeu Thelma Tompkins, num sussurro, sem acreditar. Só passavam dez minutos das onze quando Thelma chegou a casa. Arthur estava de pernas cruzadas sentado à frente da televisão, esguedelhado e com ar tão sonolento que devia estar ali há horas. Noutro serão qualquer, ela teria ficado indignada, mas desta vez aproximou-se dele para uma conversa amigável. - Valha-me Deus, Arthur, há quanto tempo fechaste a loja? - Não há muito tempo - respondeu o irmão. - Não podes continuar a fechar tão cedo, Arthur. Não podes dar-te a esse luxo. Sabes o que o pai costumava dizer, há ainda uma grande quantidade de negócio depois das dez… Ele não respondeu. Enfiou o queixo dentro do colarinho da camisa até cobrir a boca. Franziu o sobrolho e passou uma das mãos pelos cabelos loiros. Quando estava aborrecido ainda parecia mais novo. Thelma quase não acreditava que ia fazer 35 anos. - Tenho uma coisa para te contar, Arthur. - Conta-me por escrito… 25


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- Não sejas desagradável. É importante, mais importante que a televisão. - Estás entalada com alguma coisa? - Arthur, isto tem a ver contigo. O facto de a irmã ter citado o seu nome despertou-lhe interesse. Baixou o som e virou-se para ela. Esta contou-lhe as novidades. Ele ouviu -a com uma atenção que nunca mostrara anteriormente, retraindo-se para não a interromper com as suas perguntas acutilantes. Quando ela acabou, sentiu-se aliviado como uma mola que se tivesse desenrolado. Atirou-se para a cadeira de braços. - Quanto pensas que será? - perguntou, sonhador. - Quanto, Thelma? - Sei lá. Dizem tanta coisa dela. O marido tinha negócios de conservas, mas morreu há anos. Então ela deve ter investido o dinheiro, por isso tem tanto e parece estar tão doente, coitada… - É a parte complicada - murmurou Arthur. - Se ela morrer depressa, dentro de uns mesitos, tenho uma quantidade de negócios que me interessam… - Arthur! - Não te excites. Não estou a desejar má sorte à tua amiga, mas se ela está assim tão mal… - Não quero pensar sequer nessa parte. Mas é reconfortante saber que um dia… - É isso mesmo, um dia - continuou Arthur Tompkins. Dizes que ela tem que idade? - Não tenho a certeza. Noventa, ou talvez mais. O homem sorriu com a sua expressão de rapazote. Levantou-se e desligou a televisão, embora tenha continuado a olhar para o ecrã cinzento, como se continuasse a ver imagens. Durante vários meses, à noite, Thelma Tompkins olhava para a mesa do canto e, noite após noite, a velhota variava os horários de chegada. As últimas résteas de cor foram-lhe abandonado o rosto, e o arrastar de pés transformou-se em passos cambaleantes. Marian, a dona do restaurante, observava o declínio de Mrs. Mannerheim e falava em preocupação, não pela velhota, mas pelo seu sentido de ordem. - Olhem para aquela coisa velha - dizia. - Tenho medo que me morra mesmo a meio do jantar. Uma mulher assim devia ir para um lar, ou qualquer coisa do género. Thelma não respondia. Estava mais atenta que nunca à velhota. Punha-lhe o guardanapo no colo, cortava-lhe o roast beef em pedaços muito pequenos e enchia-lhe o copo de água. Mas, mesmo tendo duplicado os cuidados para com Mrs. Mannerheim, sabia que a sua caridade fora manchada desde que a senhora falara com ela. Sabia que agora era mais do que isso, a sua solicitude era egoísmo. Contudo Thelma não se sentia nem culpada nem envergonhada e também tinha de entrar em linha de conta com Arthur. A responsabilidade era óbvia. 26


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No entanto, o passo seguinte era inevitável. À medida que os meses se sucediam e a figura franzina de Mrs. Mannerheim se tornava quase etérea, Thelma tornou-se incapaz de impedir que aquilo que em tempos fora receio se tornasse num desejo de que não ousava falar. Por que não morre a velhota? Mrs. Mannerheim não morreu. Todas as noites parecia que a centelha de vida que subsistia no seu corpo enrugado se apagaria, mas por alguma razão continuava, embora fraca, acesa. Uma vez desmaiou em cima da mesa, tal como Marian temera, mas depois recuperou. Durante uma semana, esteve demasiado doente para se deslocar do quarto, no terceiro andar, até ao restaurante, e Thelma levou-lhe, todos os dias, um tabuleiro - sempre à espera, de cada vez que abria a porta, de encontrar a velhota sem respirar e inerte para sempre. Mas Mrs. Mannerheim estava viva e, embora nada bem, continuava a sorrir, sem levantar a cabeça, muito pequenina, da almofada da cama. Passou a Primavera, depois o Verão, o Inverno gelado voltou à cidade, fazendo tremer ossos e gelar o sangue, trazendo doença e morte aos mais velhos nos quartos de hotel e nas suas casas. Mas, todas as noites, a mesa continuava ocupada. Estou farto de esperar - disse Arthur, certa manhã. - Arthur! - Não me fales nesse tom, Thelma. Também tu estás farta. Vais acabar por detestar a velha. - Detestar? Do que é que estás a falar? Gosto muito da velhota… - Claro, isso é o que dizes para te convencer a ti própria - e desatou a rir-se. - Mas já não falas dela como costumavas, é como se já não quisesses falar dela. E aposto que ela te está a dar trabalhos. - Não sejas ridículo! - Thelma não conseguia olhar para o irmão. “Como é que ele sabia?”. Sentia-se tensa quando estava com a velhota. Mrs. Mannerheim começou a queixar-se a toda a hora, refilando por causa da qualidade das refeições, acusando Thelma de ser indolente e uma vez chegou a acusá-la de aumentar a conta. Uma noite fora tão vexante, que se esquecera de dar à empregada a habitual gorjeta de 20 por cento. Mas era natural, pensava Thelma, com o avançar da idade e a doença, as pessoas tornam-se quezilentas… Vê-se na tua cara - continuou Arthur, enquanto avançava, insinuante. - Por cada dia que passa detestas cada vez mais a velha. Tem demorado muito a morrer, não tem? - Não te estou a ouvir. - Já passaram oito meses. E quem te diz a ti que ela não dura até aos 100 anos? - Mas está tão doente… - Então porque não morre? - Arthur! - Por que não a ajudas, Thelma? Proferira abruptamente as palavras e, pelo ar de surpresa no rosto, nem 27


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medira o que dissera. Mas o pensamento já se devia ter formado muito antes de o ter pronunciado. Thelma ficou demasiado aturdida para responder. Ele tomou o silêncio por interesse e continuou. - Ia ser fácil, mesmo fácil - continuou. - E não tinha mal nenhum, Thelma, o que era o lado melhor da questão. Pensa como a criatura não deve estar a sofrer, da maneira que está doente. Uma velhota assim até agradece um pouco de paz. E tu podes dar-lha, Thelma. É tão fácil. - Não te estou a ouvir - disse ela, frenética, embora só tenha fechado os olhos. - Podes fazê-lo de uma forma tão simples que nunca ninguém iria sabê -lo. Eu ajudo-te, vou mostrar-te como é fácil. Todos quanto a conhecem pensam que ela está prestes a bater a bota, nunca suspeitarão. - Pára! Arthur sorriu-lhe. - E sabes como podemos fazê-lo, Thelma? Com a comida, com as refeições que lhe serves todas as noites. Ela nem vai dar por isso. Uma velha com aquela idade tem o paladar afectado. Só uns pozinhos na comida todas as noites. Para ti seria fácil, não é? Então, não achas? Ela obrigou-se a sair da cadeira, a arfar como se se tentasse livrar de uma voragem e saiu da sala. Arthur não a seguiu. Ligou a televisão e ficou calado o resto da manhã. Foi à tarde para a drogaria e voltou depois da meia-noite. Mesmo antes de se meter na cama, disse: - Pobre velhota doente, é uma caridade acabar com ela, Thelma. A seguir deitou-se. Arthur não voltou a tocar no assunto durante um mês. Thelma estava á espera que ele voltasse com a conversa, mas não o fez. Por fim, sentiuse forçada a ser ela a dizer: - Pobre, Mrs. Mannerheim. - O quê? - Parece tão mal. Mal consegue andar. Às vezes, quando a vejo sofrer daquela forma começo a pensar que tens razão, Arthur, sobre a caridade que é a morte. Quer dizer… Arthur tinha bom senso. Não sorriu nem se mostrou presunçoso. Limitou-se a assentir, sobriamente; mostrou-se simpático e esperou uns minutos antes de dizer: - Supõe que eu trago uma coisa da drogaria esta noite, Thelma… para Mrs. Mannerheim. - Está bem - disse Thelma, em tom lunático, como se não tivesse ouvido. Jeff, o cozinheiro, limitou-se a fazer um gesto de cabeça quando Thelma entrou na cozinha. Sabia que Mrs. Mannerheim tinha chegado. Levou-lhe o tabuleiro e Thelma pô-lo sobre o carrinho. Parou no hall ao cimo das escadas que faziam a ligação com a sala do restaurante e levantou a cobertura do prato de entrada. Agarrou no pequeno envelope castanho, que estava no bolso do avental, e espalhou uma quantidade minúscula de pó sobre o roast beef. Depois voltou a tapar 28


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o prato e dirigiu-se com o carrinho para a mesa do canto. Não estivera nervosa enquanto fizera aquilo, mas à medida que servia Mrs. Mannerheim para alimentar aquele corpo fraco, os dedos tremiam-lhe tanto que teve que os sossegar sob o avental. A velhota não teve qualquer reacção. Comeu com a mesma falta de interesse mecânica que sempre mostrava. Quando Mrs. Mannerheim saiu, Thelma guardou a gorjeta no bolso onde ainda estava o saquinho de veneno. Na noite seguinte também foi fácil, e o mesmo aconteceu na terceira noite e na quarta. Mas Mrs. Mannerheim não morria. - Não estou a perceber - disse Arthur. Ela não está pior? Quero dizer, continua doente e na mesma? Nada de náuseas, nem coisas do género? - Não, mas é duro ver que não há qualquer diferença nela, Arthur. Ou seja, continua a parecer sempre doente. - Bom, tem calma. É melhor mantermos uma dosagem pequena, não nos devemos arriscar. - Sim, Arthur. - Olha o que te trouxe - acrescentou o irmão. Um presente… Ela tirou-lhe a prenda e desembrulhou-a com prazer. Era da drogaria - um perfume com o preço marcado a lápis na caixa. Na noite seguinte, Mrs. Mannerheim não desceu para jantar e Thelma teve a esperança de que a provação tivesse terminado. Mas a velhota voltou no dia seguinte e limitou-se a contar que adormecera durante a hora da refeição e que sonhara com a mãe vestida de branco. Passou-se mais uma semana e Mrs. Mannerheim não morreu. - Tens a certeza de que isto é veneno? - perguntou Thelma ao irmão, já sem receio de pronunciar a palavra. Pelo contrário, estava ávida de obter êxito. - Claro que sim, mas talvez devêssemos aumentar a dose ligeiramente. É melhor apressarmo-nos… - Mas ela não está pior. Não está! Não parece pior que anteriormente, Arthur. Às vezes, chego a convencer-me que é eterna. - Eterna! Aumenta a dose - disse Arthur, com maus modos. Foi o que Thelma fez. À noite, deitava a quantidade de pó na comida da velhota. Durante mais duas semanas e 14 jantares, ligeiramente temperados com veneno. Mrs. Mannerheim parecia andar melhor de saúde, até os pesadelos pareceram afastar-se e tornarem-se mais indistintos; até que Arthur começou a falar do que lhe ia na cabeça. - E se muda de ideias? E se resolve mudar o testamento? - Deixa-te disso, Arthur! - Pode acontecer. Contaste-me como, às vezes, ela se torna desagradável. E se ela achar que afinal de contas não és uma amiga? O que acontece se ela se zangar contigo? E se… um milhão de coisas? - Isso não vai acontecer. Não pode! - soluçou Thelma. - Tudo pode acontecer - gritou-lhe o irmão, deixando transparecer o ódio no olhar e na voz. Ela dirigiu-se ao restaurante, naquele serão, cheia de certezas que lhe 29


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ardiam no peito. Tinham-se acabado as doses pequenas. Nada de extermínio a pouco e pouco. Tinha de ser algo terminal, fatal. Às dez horas Mrs. Mannerheim ainda não chegara. - Onde está? - perguntou Thelma à patroa, que encolheu os ombros. - Onde se meteu Mrs. Mannerheim esta noite, Marian? - Como raio queres que saiba? - respondeu Marian com azedume. Meus Deus, pensas que a velhota é a dona do restaurante! Se calhar, voltou a adormecer. - Talvez seja melhor ir ver, ou chamá-la pelo telefone. - Não te esqueças de que tens mesas à tua espera. - Mas é possível que esteja doente, que precise de ajuda. - Por amor de Deus, quem me põe doente és tu! Está bem, telefonalhe. Julgas que me importo, se os clientes ficarem furiosos contigo? Thelma foi até ao lobby do hotel e agarrou num telefone interno. No apartamento da velhota ouviu-se tocar duas vezes e Mrs. Mannerheim atendeu com uma voz difícil de discernir. Não, não havia nada de errado, só que não tinha fome. Thelma perguntou se poderia levar-lhe qualquer coisa. Não, não era necessário. Não dava trabalho nenhum, terá dito Thelma, insistindo se ela não quereria uma sanduíche, um chá, ou qualquer coisa leve? A empregada foi até à cozinha e pôs água a ferver. Depois, colocou um pires e uma chávena num tabuleiro e foi buscar um saquinho de chá. Dirigiu-se ao elevador do hotel e carregou no botão com o número três. Quando entrou no quarto, Mrs. Mannerheim exclamou: - É uma querida - e não se levantou da cadeira. - Era-me difícil descer as escadas e estou sem apetite. - Compreendo - respondeu Thelma. Voltou as costas à velhota e colocou o tabuleiro junto da porta. Colocou o saquinho de chá no bule e meteu a mão no bolso do avental. Estava vazio. Esquecera-se do veneno. - Não trouxe o leite? - perguntou a velhota, arrastando os pés. - Não - respondeu Thelma, furiosa. - Esqueci-me do leite, Mrs. Mannerheim. - Não gosto de chá sem leite Thelma, importa-se de me o trazer? Thelma deu uma volta e olhou para ela. - Não tenho leite, Mrs. Mannerheim. Pode beber o chá sem leite. - Não posso - insistia a velhota. - Pura e simplesmente não posso, Thelma. Sempre bebi chá com leite, desde muito pequenina. Sabe como é, um hábito enraizado… - Não sei, não - gritou Thelma. - Não sei como é. Nem sempre tive tudo quanto queria Mrs. Mannerheim. Percebe o que quero dizer? - Mas, Thelma… - Tive de trabalhar para ter o que queria, Mrs. Mannerheim. Acha que sou empregada por gosto? Porque o restaurante é a minha casa? Acha que gosto de galinhas gordurentas, pratos sujos, velhos queixosos… Mrs. Mannerheim olhou para ela chocada. Depois recompôs-se, recuperou a sua dignidade. 30


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- Não deve falar comigo dessa maneira, Thelma! - Falo consigo da maneira que me apetecer! A velhota arfou. - Está a ser mal-educada e má, Thelma. Não é de forma alguma o género de pessoa que eu imaginava. E se julga que fico por aqui está bem enganada. Vou chamar o meu advogado e modificar o testamento. - Não toque no telefone - gritou Thelma, quando a velhota pegou no auscultador, e segurou-lhe no pulso. - Pare com isso, sua pateta! - Tenho 44 anos - esganiçou-se Thelma, sem se importar nem pensar, atirando-se à velhota como um predador à sua presa. Um instinto primário fê-la dirigir-se à garganta, à laringe - a fonte de ar, de vida. Mrs. Mannerheim não resistiu ao toque débil dos dedos dela. Parecia tão preparada para a morte, que estava para vir, que o seu corpo perdeu a força mesmo antes de Thelma lhe pôr as mãos abertas e vermelhas em volta do pescoço, com a força necessária para a matar. A morte levou Mrs. Mannerheim tão depressa que Thelma ainda tinha as mãos no pescoço dela quando o camareiro gritou… Thelma repetia a si mesmo que o mais importante era Arthur. Mentalmente repetia o nome dele, vezes sem conta. Nunca pronunciou o nome dele, nem uma única vez. Nem durante o mandato de captura, nem na prisão, nem aquando das intermináveis perguntas. Mas houve uma altura em que deixou escapar qualquer coisa, por causa do que um homem enorme lhe perguntou na Esquadra da Polícia. - Mas por que teve de matá-la? Não podia esperar, uma pessoa tão doente e idosa… - Doente? - repetiu Thelma e começou a rir-se. - Ela não estava doente. - Claro que estava. Estava mesmo muito doente. Fizeram-lhe a autópsia e concluíram que tinha uma infecção muito perigosa para uma mulher da idade dela. Provavelmente, a única coisa que a manteve viva foi o tratamento: pequenas doses de arsénico!

O ANEL A.D. Higgens - O velho miserável já terá saído? - murmurou Mr. Carter, primeiro vendedor da Joalharia Spinks, de West End. Mr. Silas Windle, a pessoa a quem Carter se referia, observava o reflexo da sua imagem, enquanto passava por uma das vitrinas. Mr. Windle era um homem que se fizera por si próprio. O cabelo desaparecera-lhe 31


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com o tempo, mas uma cabeleira postiça cobrira-lhe a deficiência. O ventre aumentara um pouco, mas orgulhava-se da sua aparência. Ela inspirava confiança aos clientes. Vendo Mr. Carter sair da sala do caixa, o seu sorriso pretensioso morreu. - Mr. Carter! - Berrou. - Sim, Mr. Windle? - Esta vitrina necessita ser limpa. Mr. Windle só naquele momento se lembrara da vitrina. Porque, quando estava na loja, Carter entrava ou saía sempre da sala do caixa? Não era preciso perguntar o motivo da atracção. A aproximação oblíqua era o melhor método. Carter ainda compreenderia a sugestão contida nas palavras de Mr. Windle. - Eu limpei-a ontem… - começou. - Não discuta - disse, com vigor, o patrão - Faça-o novamente. E o senhor, Mr. Rawlons - dirigia-se ao segundo vendedor da firma - pode arrumar aquele novo mostruário. Chame Billings, o terceiro vendedor, para o auxiliar. Há muita preguiça por aqui, ultimamente. E onde está o garoto? Procure-o, Mr. Carter, e mande-o limpar as janelas novamente. Outra coisa: as nossas vendas estão a descer sensivelmente esta semana. Espero um esforço especial da sua parte. Senão… Esperou até ver cumpridas as ordens e só então abandonou a joalharia, batendo a porta atrás de si. Billings, um rapaz franzino e cheio de espinhas no rosto, foi o primeiro a recompor-se do sermão. - Feitor! Só ficarei contente quando me aposentar. Nunca mais receberei ordens! - Deu um pontapé numa poltrona, que foi até à outra extremidade da loja, partindo uma vitrina. - Meu Deus! - gritou Mr. Carter, que assistiu como que hipnotizado à trajectória da cadeira - Que fez você? Quem terá coragem de enfrentar Mr. Windle, quando voltar? Billings fitava, horrorizado, o resultado da sua façanha. - Eu não queria partir nada. - Isto é demais! - disse Mr. Carter, torcendo as mãos, de desespero - Terá de procurar uma desculpa. É o segundo vidro que parte esta semana e Mr. Windle vai acusar-me de não supervisionar as coisas. Bem vou lá para dentro efectuar alguns saques. Miss Oliver, tome conta da loja até eu voltar. Tirando um cigarro do maço, com mãos nervosas, abandonou a sala, deixando Billings a corrigir a desordem que causara. § Chegando ao Restaurante Bijou, Mr. Windle entabulou conversa com um elegante rapaz. Habitualmente minucioso nestes assuntos, deixara a hora do almoço 32


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prolongar-se no interesse do negócio. Este rapaz confidenciara a Mr. Windle, semanas atrás, que fazia a corte a Pearl de la Pole, a bailarina do «Windmill». E Mr. Windle sugerira-lhe o modo pelo qual poderia prolongar o seu romance, já que tinha um interesse velado no caso. Para Silas Windle, romance significava presentes caros e anéis de noivado. Alianças de noivado algumas vezes levavam alianças de casamento. Além disso, havia os presentes de Natal e de aniversário. Silas Windle orgulhava-se de conhecer um homem pela sua aparência e maneiras. Este rapaz era, obviamente, da mais alta categoria. Embora não tivesse declarado a sua profissão, as mãos bem tratadas e delicadas indicavam uma arte como carreira, provavelmente a música. - Bem - dizia o rapaz - comprei-lhe flores e bombons, como me aconselhou, mas acho que uma mulher como ela merece alguma coisa mais cara, talvez uma pulseira ou um anel. - Meu rapaz, não sabe como está certo - estimulou Mr. Windle, que o vinha a manobrar com esse objectivo durante as últimas semanas - Nada assegura mais um romance do que um presente bom e duradouro. Um presente que exalte a beleza da mulher. Acho que posso ajudá-lo, sabe? - Como? - Indagou o rapaz. - Por um feliz acaso, você encontra-se na frente do dono de uma das maiores joalharias de West End, a Spinks, da Rua Oxford. - Que coincidência! - murmurou o rapaz - E pensar que lhe confiei as minhas complicações amorosas… Pensei que fosse um produtor cinematográfico ou alguma coisa parecido. Silas Windle estava visivelmente lisonjeado, mas o rapaz nem parecia notá-lo. - Então - disse o cliente em potencial, levantando-se da cadeira - precisa ajudar-me a comprar um anel na sua loja. É muito pouco para eu retribuir a sua bondade e atenção. O rapaz insistiu em pagar a despesa de ambos. Ao tirar um maço de notas do bolso do casaco, os olhos de Mr. Windle arregalaram-se. Embora habituado a ver grandes quantias, nunca vira alguém usar uma importância tão grande, tão descuidadamente. Ao entrarem na Spinks, Mr. Windle absorveu-se de tal modo em atender o cliente que nem pareceu notar qualquer coisa errado. O pessoal estava excepcionalmente activo àquela hora do dia. O lugar parecia uma colmeia industrial. Mas Mr. Windle estava preocupado em auxiliar o rapaz a escolher um anel. - Que tal este? - perguntou ao rapaz - Será seu por cinquenta libras. O rapaz parecia aflito. - Acho que um melhor será mais indicado. Silas quase pulou de contentamento. Ausentou-se por uns minutos da sala e voltou com a mercadoria mais cara. Ao colocar a bandeja sobre o balcão, para o rapaz escolher, esperou pelas habituais manifestações de agrado. Para sua surpresa, o rapaz nem 33


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piscou. Fitando o mostruário com uma expressão aborrecida, agarrou por fim num anel com um grande diamante. - Este é o melhor - disse ele vagarosamente. Mr. Windle engoliu a saliva e ficou sem falar por alguns instantes. - Este vale duzentos e cinquenta - grasnou. - Libras ou guinéus? - indagou o rapaz distraidamente. - Libras. - Óptimo. Vou levá-lo - o rapaz deu um bocejo, enquanto tirava o rolo de notas do bolso e separava a quantia necessária. Silas Windle passou pessoalmente o recibo, depois de contar o dinheiro. - Obrigado, Mr. Windle - disse o cliente, ao receber o recibo. - Vejo-o amanhã, ao almoço, e depois lhe contarei como me saí. Mr. Windle sentou-se numa cadeira, confuso, tentando calcular o lucro. Billings ficou surpreendido ao ver que Mr. Windle aceitara como verdade a mentira que lhe contara a respeito de o gato da loja ter partido o vidro da vitrina. Na manhã seguinte, o jovem cliente aguardava tristemente a chegada de Silas Windle. - Bom dia! - Cumprimentou Silas. - Não houve nada errado, suponho. - Tudo! - Lamentou-se o rapaz - Pearl casou-se. - Que azar! - Disse Mr. Windle - Mas não proceda irreflectidamente. - É justamente por isso que vim vê-lo - choramingou - Parto hoje à noite para o estrangeiro e nunca mais voltarei. Terá de aceitar que lhe devolva o anel, amigo. Agora, já não me serve para nada. - Bem, não sei… - murmurou Mr. Windle cuidadosamente. - Oh, não quero que me devolva o dinheiro todo - suspirou o rapaz. Dê-me apenas duzentas libras e guarde o resto como compensação pelo aborrecimento que lhe causo. - Isso é muito irregular - disse o outro, pegando no anel e examinando-o cuidadosamente. Era o mesmo, sem dúvida - Mas como é para um amigo, aceitarei a devolução. E dirigiu-se ao cofre. - Teve sorte por não ter já depositado o dinheiro - disse por cima do ombro. Voltou-se e estendeu ao rapaz quatro notas de cinquenta libras. - Obrigado, meu velho - disse o rapaz, apertando a mão de Silas. Nunca esquecerei o seu gesto. Mr. Windle viu-o guardar o dinheiro no bolso e sorriu, satisfeito consigo mesmo. O rapaz saiu da loja rapidamente. Bem, pensou o joalheiro, ainda ganhei cinquenta libras no negócio. Então, parou, ao olhar novamente para a jóia. Os olhos enganavam-no. Não era possível. Não! - Polícia! - Gritou - Fui roubado! Enquanto fui ao cofre, o anel verdadeiro foi substituído por um de imitação! Socorro! Polícia!

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O POLÍCIA E O HINO O. Henry Soapy moveu-se, inquieto, no seu banco da Praça Madison. Quando o pato bravo lança o seu grasnido a altas horas da noite, as mulheres que necessitam de um casaco de peles manifestam ternura excepcional para com os maridos e Soapy se agita no banco do parque, resulta fácil deduzir que o Inverno se encontra próximo. Uma folha seca tombou sobre os joelhos de Soapy. Era o cartão de visita do senhor Gelo, indivíduo que se costuma mostrar amável para com os residentes habituais da Praça Madison, anunciado cortêsmente a sua aparição anual. Na esquina de quatro ruas oferece ao vento norte, lacaio da mansão da intempérie, todo o seu vigor, para que os habitantes das imediações se preparem. Soapy compreendeu que chegara o momento de se nomear chefe de uma curiosa comissão de luta contra os rigores que se avizinhavam e, por esse motivo, moveu-se, inquieto, no banco. As suas ambições invernais não eram de modo algum exageradas. Não figuravam nelas a possibilidade de um cruzeiro pelo Mediterrâneo, os céus deslumbrantes do Sul ou a travessia da baía do Vesúvio. Três meses na cadeia constituíam tudo o que a sua alma ansiava. Três meses de alojamento assegurado, comida, cama e companhia satisfatória, a coberto do frio e dos uniformes, representava para Soapy a essência mínima do desejável. Durante muito anos, a prisão fora para ele, durante o Inverno, um verdadeiro quartel-general. Assim como alguns seus compatriotas afortunados, como ele habitantes de Nova Iorque, compram bilhetes para Palm Beach ou a Riviera, Soapy, ao principiar o frio, efectuava os seus humildes preparativos para a estadia anual atrás das grades. E, na verdade, o Inverno achava-se à porta. Na noite anterior, três jornais distribuídos por baixo do casaco, sobre os joelhos e em volta dos tornozelos, não conseguiram livrá-lo de arrepios periódicos enquanto dormia no seu banco perto da fonte que salpicava o solo da velha praça. Por conseguinte, a imagem da prisão assumia proporções especiais no seu espírito. Soapy experimentava franco desprezo pelas diversas instituições que, em nome da caridade citadina, eram franqueadas aos necessitados. Na sua opinião, a Lei mostrava-se muito mais bondosa que a Filantropia. Conhecia uma série interminável de centros municipais ou de beneficência particular onde obteria alojamento e comida, em condições modestas, bem entendido, porém para um indivíduo orgulhoso como ele, os dons da caridade resultavam sempre demasiado interesseiros. Cada benefício recebido das mãos da Filantropia deve ser pago com humilhação, dada a impossibilidade de o fazer em dinheiro. Nessa conformidade, à semelhança de César que teve o seu Bruto, um acto de caridade 35


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fica invariavelmente sublinhado pelo imposto de um banho e cada pão inteiro deve compensar-se com uma investigação pessoal e privada. É melhor, pois, aceitar a hospitalidade da Lei, porquanto esta, embora sujeita a regulamentos, não se imiscui indevidamente nas questões particulares de um cavalheiro. Decidido pela prisão, Soapy entregou-se com afinco à tarefa de concretizar a aspiração. Havia muitas maneiras simples de o conseguir, consistindo uma das mais indicadas em consumir uma lauta refeição num restaurante de luxo e declarar-se seguidamente insolvente, o que lhe valeria a transferência inevitável para as mãos das autoridades. Um magistrado compreensivo encarregar-se-ia do resto. Soapy abandonou o banco do parque e afastou-se da praça em direcção ao ponto em que a Broadway se une à Quinta Avenida, detendo-se por fim diante de um restaurante daqueles em que se reúnem os produtos mais selectos da vinha, o bicho de seda e o protoplasma. Assolava-o profunda confiança em si mesmo, principiando pelo botão mais baixo do fato e terminando no da extremidade setentrional. Barbeara-se recentemente, o casaco apresentava um aspecto razoável e usava gravata preta de nó permanente, que determinada dama altruísta lhe oferecera. Se conseguisse instalar-se a uma mesa daquele estabelecimento, o êxito seria garantido. Uma dose de pato assado, uma garrafa de Chablis, queijo Camembert e um charuto aromático bastariam para conferir ao caso a gravidade desejada. A despesa limitar-se-ia a um dólar; por outras palavras, a despesa do charuto. Não obstante, quando transpôs a porta, o maire notou a tempo as suas calças amarrotadas e os sapatos apreciavelmente consumidos. Um par de mãos fortes e hábeis apoderou-se dele e depositou-o, rápida e discretamente, no passeio, evitando assim o trágico destino de um pobre pato. Soapy resolveu abandonar a Broadway. O seu percurso que deveria terminar na prisão não se desenrolava sob os auspícios previstos. Impunha-se a elaboração de novo plano para ingressar no limbo. Numa esquina da Sexta Avenida, uma combinação de luz eléctrica e artigos expostos em determinado escaparate convertiam este em óptimo centro de atracção. Soapy muniu-se de uma pedra e arremessou-a à vidraça. Um grupo de curiosos dobrou a esquina com prontidão para se precipitar sobre o local da ocorrência, com um polícia na vanguarda. Soapy conservou-se imóvel, as mãos afundadas nos bolsos, sorrindo ante os botões metálicos. - Quem atirou a pedra? - bradou o defensor da Lei, convenientemente excitado. - Com certeza, não imagina que fui eu! - redarguiu Soapy com uma ponta de sarcasmo, mas amavelmente, como se considerasse o incidente providencial. O polícia nem sequer perdeu tempo em julgá-lo «possível cúmplice». Um indivíduo capaz de alvejar uma montra com um míssil de granito não fica à espera que o representante da autoridade apareça para encetar 36


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amena conversa. Em regra põe-se a correr. De súbito, o polícia descortinou um homem que se movia apressadamente para um automóvel estacionado a certa distância e lançou-se atrás dele, brandindo o bastão. Profundamente contrariado pelo segundo malogro, Soapy prosseguiu o seu caminho. No passeio oposto, distinguiu um restaurante despretensioso, apropriado para o público de boa boca e escassas possibilidades económicas. A baixela era tosca, a atmosfera pesada e a sopa tão clara que se distinguia perfeitamente o fundo do prato. Resultou portanto fácil para ele (apesar dos sapatos e calças acusadoras) entrar no estabelecimento e instalar-se a uma das mesas, onde devorou sucessivamente um bife suculento, torta de maçã e fruta. No final, revelou o seu segredo ao empregado: confessou que não dispunha nem de um cêntimo. - Vá chamar um polícia, depressa - concluiu. - Não é conveniente fazer esperar um cavalheiro. - Não precisamos do polícia para nada - retorquiu o homem em voz envinagrada e olhos coloridos como a cereja que costuma ornamentar um cocktail. - Don! Frank! Dois pares de mãos possantes desprovidas das mais elementares contemplações depositaram Soapy no passeio, onde ficou estendido. Transcorridos uns momentos, como um metro de carpinteiro ao abrir-se, pôs-se a endireitar as articulações. A seguir, sacudiu o pó que se lhe acumulara na roupa. As suas tentativas para ingressar na prisão começavam a transformar-se num sonho cor-de-rosa. A cela confortável afiguravase-lhe cada vez mais distante. Com um sorriso complacente, um polícia que se encontrava parado diante de uma drugstore próxima começou a mover-se no sentido oposto. Sòmente depois de transpor cinco quarteirões é que Soapy logrou reunir vigor e ânimo suficientes para traçar novos planos. Desta vez, a oportunidade apresentou-se de forma distinta. Imóvel ante uma montra estava uma rapariga de aspecto modesto que contemplava com aparente complacência os artigos expostos - tinteiros e apetrechos para barbear - consciente de que, a poucos metros, um polícia de estatura elevada e atitude severa a observava com atenção. Soapy optou pelo repugnante e execrável papel de «sedutor». O ar modesto, porém digno, da rapariga e a proximidade do agente da autoridade animavam-no, persuadido de que não tardaria em sentir no braço «a garra da Lei», garantia da tão desejada temporada na prisão. Endireitando a gravata oferecida recentemente e puxando os punhos da camisa, ligeiramente curtos, inclinou o chapéu convenientemente e acercou-se da moça. Principiou por olhá-la de modo significativo, em seguida pigarreou, sorriu e permitiu-se determinados trejeitos de efeito seguro, concluindo a tirada com uma sequência de frases sibilinas próprias do conquistador inveterado. Pelo canto do olho, apercebeu-se de que o polícia o contemplava fixamente. A rapariga desviou-se um pouco do escaparate, sem deixar de observar os objectos expostos. Soapy apro37


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ximou-se mais, levou dois dedos ao chapéu numa saudação irrepreensível e proferiu sem rodeios: - Vamos dar uma volta? O polícia não desviava os olhos deles. Bastava que ela erguesse a mão, para colocar Soapy a caminho do seu refúgio invernal. Quando ele sentia já o calor confortável da sala de espera da esquadra, a rapariga moveu o braço e pousou a mão no de Soapy. - Pois sim… desde que me ajudes a resolver uns problemas que me preocupam. Já estava para te falar há instantes, mas o «chui» nunca tirava os olhos de mim. Com a moça pendurada do braço - colada a ele como a hera ao tronco de uma árvore - e uma atitude deveras sombria, Soapy passou diante do polícia e deixou-o para trás. Tudo indicava que estava condenado a permanecer um homem livre. Na esquina seguinte, desembaraçou-se da companheira e afastou-se correndo. Só se deteve ao alcançar o baile onde à noite se reúnem os corações, os desejos e as obras mais alegres da cidade. As mulheres, envoltas em peles, e os homens, de espessos sobretudos, moviam-se despreocupadamente na atmosfera agreste. De repente, Soapy receou encontrar-se sob a influência de um sortilégio maligno que o imunizava da detenção, e a ideia horrorizou-o. Quando avistou novo polícia estacionado junto de um teatro de luzes brilhantes, recorreu ao truque do «escândalo público». Acto contínuo, começou a emitir exclamações incoerentes próprias de um ébrio. Ao mesmo tempo, pôs-se a dançar e gritar, escandalizando aqueles que passavam nas proximidades. O polícia empunhou o bastão firmemente… e limitou-se a voltar-lhe as costas, confidenciando a um transeunte que se detivera para observar a cena: - Deve ser um daqueles tipos da Universidade de Yale. Comemoram hoje a primeira vitória sobre a de Hartford, em râguebi. Armam rebuliço enorme, mas são inofensivos. Recomendaram-nos que não lhes ligássemos importância. Desconsolado, Soapy suspendeu a manifestação histriónica por se revelar infrutífera. Porventura nunca conseguiria que o detivessem? A prisão apresentava-se-lhe agora como uma utopia inacessível. Abotoou até acima o casaco extremamente leve para se defender do ar cortante e, de súbito, lobrigou um indivíduo de aspecto distinto que acendia um charuto à porta de uma tabacaria, o qual deixara o guarda-chuva de seda apoiado à parede, junto à entrada do estabelecimento. Soapy acercou-se, pegou no guarda-chuva e começou a distanciar-se, decidido, sem pressa. O homem do charuto tratou de o seguir. - O meu guarda-chuva… - Tem a certeza que é seu? - retorquiu Soapy em inflexão chocarreira. - Por que não chama um polícia? Diga que lho roubei. Olhe: ali está um. O dono do guarda-chuva deteve-se e Soapy imitou-o, adivinhando 38


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que a sorte se voltara de novo contra ele. Entretanto, o polícia observava-os com curiosidade. - A verdade é que… - titubeou o homem. - Bem sabe o que acontece às vezes. Se o guarda-chuva lhe pertence realmente, peço-lhe imensa desculpa. Levei-o, esta tarde, de um restaurante. No entanto, como o reconheceu… - Claro que o reconheci - grunhiu Soapy, enfurecido. O ex-dono do guarda-chuva afastou-se. O polícia apressou-se a acudir em auxílio de uma dama alta e ruiva, a qual acabava de atravessar a rua e pretendia abrir a porta de um automóvel luxuoso. Soapy encaminhou-se para a porta leste da cidade, ao longo de uma rua onde as brigadas municipais procediam a obras de conservação. Irritado, atirou o guarda-chuva para a valeta, mastigando uma fiada de impropérios contra os indivíduos que usavam uniforme azul e bastão. Precisamente quando ansiava por cair-lhes nas garras, eles decidiram considerá-lo um cidadão inofensivo. Por último, desembocou numa avenida onde o movimento era mais reduzido e rumou à Praça Madison, porquanto o instinto do lar palpita permanentemente no nosso íntimo, mesmo que se trate de um mero banco no parque. Num recanto singularmente tranquilo, imobilizou-se subitamente. Encontrava-se ante uma velha igreja de aspecto fantástico. Através de um dos vitrais, filtrava-se uma claridade suave. Correspondia, sem dúvida, ao lugar do coro, onde o organista acariciava o teclado com perícia, ensaiando a sós o hino dominical. Os acordes mais suaves e melodiosos alcançaram os ouvidos de Soapy, que se manteve diante da entrada, imóvel, como que transfigurado. A Lua brilhava, serena, e eram raros os transeuntes e veículos que deambulavam pela rua. Nos telhados piavam alguns pardais sonolentos e, por um momento, o templo e o cenário assumiram um típico aspecto rural. O hino que o organista tocava mantinha Soapy pregado ao solo, porque lhe era familiar e entoara noutros tempos, quando a vida se achava repleta de elementos agora tão remotos como uma mãe, rosas, ambições e amigos, sem excluir as ideias puras. O seu estado de espírito e a paz que emanava da velha igreja constituíam uma combinação susceptível de lhe sugerir uma alteração radical na alma. Repentinamente horrorizado, deu conta do abismo em que tombara, os dias da degradação, desejos fúteis, esperanças finadas, faculdades perturbadas - em suma, todos os móbiles baixos que lhe animavam a existência. Bruscamente, o seu coração reagiu com espontaneidade à nova chamada. Um forte impulso instantâneo impelia-o para a luta. Sentia-se capaz de combater contra o destino desesperado e decidiu regressar à superfície, voltar a ser um homem, vencer a adversidade à qual cedera. Tempo não lhe faltava, porquanto se podia considerar jovem. Ressuscitaria as velhas ambições e obedeceria cegamente àquilo que lhe ditassem. Uns 39


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breves acordes de órgão tinham bastado para lhe originar uma profunda revolução interna. No dia seguinte, procuraria trabalho nos bairros limítrofes da cidade. Algumas semanas antes, um comerciante de peles oferecera-lhe um lugar de motorista. Apresentar-se-lhe-ia para o aceitar, se ainda estivesse vago. Sentiu uma mão pousar-se-lhe no ombro. Voltou-se com prontidão e enfrentou o peito largo de um polícia. - Que faz aqui? - inquiriu o defensor da Lei. - Nada - declarou Soapy. - Então, acompanhe-me. - Três meses de prisão - sentenciou o juiz, na manhã seguinte.

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UMA PROBABILIDADE NUM MILHÃO S. Hopkins Adams O plano completo, escrito numa letra fina e regular, estava colocado em frente de Bassil. A sua aprendizagem científica havia-lhe criado o hábito de servir-se de esquemas, para evitar qualquer erro sempre possível. Eis a série de factos, em face dos quais as autoridades iriam encontrar-se: Factos positivos: - O professor Adrien Gohl, químico bastante conhecido, foi encontrado morto no seu laboratório, às 9 horas da manhã de domingo… Bassil meteu o seu plano num envelope, que lacrou e guardou no cofre-forte. Mais tarde, seria um verdadeiro prazer intelectual verificá-lo, ponto por ponto, e confrontá-lo com a autêntica evolução dos factos. Talvez houvesse uma possibilidade num milhão, para que algum pormenor não se desenrolasse conforme as previsões. Mas ele podia arriscar essa probabilidade. Bassil estava convencido de ser um homem excepcional, «um num milhão» também. E Gohl, o velho Gohl… despedira-o havia pouco, depois de longos anos de bons serviços! Ainda mesmo que encontrassem, entre os seus papéis, as cópias de algumas das mais importantes fórmulas do velho… que poderiam fazer? Ninguém poderia deduzir daí nenhuma acusação contra ele. Pelo menos, com fundamento legal. Nos arquivos de que se tinha apropriado, Bassil havia feito a descoberta de um autêntico filão. Reunidos a certas fórmulas subsidiárias que ele próprio redigira - e de maneira notável - os elementos conseguidos na origem, à custa de um sério risco, punham ao seu alcance tudo aquilo de que necessitava. Quase tudo, pelo menos. Faltava de facto um elo na corrente, mas esse devia encontrar-se no laboratório particular de Gohl. Para conseguir a fórmula completa, com as várias modalidades técnicas da sua aplicação, qualquer firma produtora de borracha pagaria seguramente uma fortuna. E essa fortuna… Bassil resolvera que seria sua. § Cinco horas. Era chegado o momento de iniciar o seu primeiro movimento estratégico. No gabinete do Dr. Dorman, que ficava exactamente no andar inferior àquele onde ele morava, Bassil simulou uma vertigem, afectando uma respiração ofegante. Observando-lhe a cara emagrecida e pálida, os dedos agitados e febris, o médico diagnosticou uma indigestão de origem nervosa e redigiu uma receita apropriada. - Obrigado, doutor! Receei que se tratasse de um ataque cardíaco! O pormenor havia sido perfeito. Saiu e conseguiu acomodar-se num 41


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lugar da frente do autocarro. No extremo da enorme ponte sobre o Hudson, do lado de Nova Jersey, os operários estavam ocupados a colocar compridas grinaldas de balões venezianos. - É esta noite?... - perguntou o condutor. - Pois claro!... - Respondeu o homem que cobrava os bilhetes. Bassil apeou-se do autocarro em Newark, e tomou um dos últimos comboios para Passic. Eram perto de duas horas da madrugada quando chegou, a pé, à casa de Gohl. Havia luz no laboratório. A porta da garagem estava aberta, exactamente do lado onde se encontrava o automóvel escolhido. A sorte ajudava-o. Poderia fazer sair o carro sem ruído, empurrando-o ao longo do caminho em declive, e só poria o motor em andamento quando estivesse bastante longe da casa para que não o ouvissem. Subiu deliberadamente a escada e bateu à porta: - Sou eu, senhor Professor! Eu, Bassil! O velho cientista abriu: - Que é que o traz por aqui a esta hora? - Não… não encontrei trabalho! Não quereria dar-me outra oportunidade, professor Gohl? § Com um último relance de olhos, Bassil encaminhou-se para a porta e fechou-a… fechou-a sobre o enigma que preparara. O automóvel rodou em silêncio pelo declive. Pouco depois rodava ao longo da estrada nacional. Quando tivesse passado a ponte, voltaria para o norte, na direcção de Nova Iorque. Daí seguiria para o grande armazém de ferragens, que já tinha observado e explorado cuidadosamente, e deixaria o carro vazio mergulhar na água barrenta do Hudson. Dirigir-se-ia então para casa, e às sete horas chamaria o médico… «- Sinto-me outra vez mal, doutor! Creio que é o coração! Peço-lhe que venha sem demora!» Às sete horas; onze minutos depois e à distância de trinta e cinco quilómetros do local do crime… e da hora que ele próprio fixara para a reconstituição a fazer pela polícia. Era um álibi perfeito. Chegou ao círculo de luzes da entrada da ponte. Havia uma iluminação a cores, que dava um aspecto estranho às pessoas que se encontravam ali paradas: o pessoal da ponte, um membro da policia estadual e vários civis. Bassil tinha preparado a importância exacta para pagar a portagem. Travou o carro, estendeu a mão para fora… Sentiu que lhe apertavam a mão, e ouviu brados alegres em volta. Um clarão de magnésio fê-lo pestanejar. Outro clarão. Outro ainda. Um grupo alegre e numeroso rodeava agora o carro. - O seu nome e a sua morada, se faz favor!... pediu um sorridente funcionário, que já tomara nota da matrícula do carro. Que significaria aquilo? Que… que poderia ser aquilo? Bassil fez a pergunta em voz 42


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rouca, uma voz que ele próprio desconhecia. Responderam-lhe imediatamente, várias pessoas falando ao mesmo tempo, com risos excitados. Mas as respostas ainda mais aumentaram a confusão no espírito de Bassil. O milionésimo? Que milionésimo? Que relação haveria entre ele e o milhão? O funcionário amável explicou pacientemente: acabavam de entregar-lhe o bilhete de trânsito com o número 1.000.000! Ele era o milionésimo automobilista que passava sobre a ponte! Parabéns! No dia seguinte, durante uma pequena cerimónia ser-lhe-ia oferecido um relógio de prata, como recordação!... Sim; e no dia seguinte todos os jornais publicariam a sua fotografia… e a do carro! O milionésimo automóvel! Uma probabilidade num milhão!... § No decorrer do inquérito, a polícia descobriu o plano, no cofre-forte de Bassil. O plano tinha sido rigorosamente executado. O carro do professor Gohl foi encontrado no fundo do Hudson, tal como estava previsto. Havia apenas uma ligeira modificação no esquema original: Bassil foi encontrado dentro do automóvel.

BORREGO PARA A MATANÇA Roald Dahl A sala estava quente e limpa, as cortinas corridas, os dois candeeiros de mesa acesos - o dela e o outro ao lado da cadeira vazia à sua frente. No aparador atrás dela, dois copos altos, soda, whisky. No balde, cubos de gelo acabados de tirar. Mary Maloney estava à espera que o marido voltasse do emprego. De vez em quando olhava para o relógio, mas sem ansiedade, apenas para se deleitar com a ideia de que cada minuto que passava a aproximava da hora a que ele voltaria. Havia nela, e em tudo o que ela fazia, um ar serenamente sorridente. A inclinação da sua cabeça enquanto cosia era curiosamente tranquila. A sua pele - pois era o sexto mês da gravidez - adquirira uma transparência maravilhosa, a sua boca era macia, e os seus olhos, com a expressão plácida que agora tinham, pareciam maiores, mais escuros do que antes. Quando viu no relógio que eram cinco menos dez, pôs-se à escuta, e uns momentos depois, com a pontualidade de sempre, ouviu o ruído 43


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dos pneus sobre o cascalho lá fora, e a porta do carro a bater, os passos junto à janela, a chave a dar a volta na fechadura. Poisou a costura, levantou-se e dirigiu-se para ele para o beijar à entrada. «Olá, querido», disse ela. «Olá», respondeu ele. Pegou no casaco dele e pendurou-o no armário. Depois foi preparar as bebidas, uma ligeiramente forte para ele, outra fraca para ela; e pouco depois estava de novo sentada na sua cadeira com a costura, e ele na outra, à sua frente, segurando o copo alto com as duas mãos e agitando-o levemente, fazendo tilintar os cubos de gelo. Para ela, era sempre um momento de grande felicidade. Sabia que ele não gostava muito de falar até acabar a primeira bebida e ela, por seu turno, sentia-se perfeitamente satisfeita em ficar calada, gozando a companhia dele depois de tantas horas sozinha em casa. Adorava entregarse ao prazer da presença daquele homem, e sentir - quase como um banhista sente o sol - o calor que emanava dele para ela quando estavam sós os dois um com o outro. Adorava-o por causa da maneira como ele se sentava descontraidamente na cadeira, a maneira como ele entrava pela porta ou se movia devagar pela sala com grandes passadas. Adorava a expressão concentrada, distante, dos olhos dele quando a olhavam, a forma estranha da boca dele e, especialmente, a maneira como não falava do cansaço que sentia, sentando-se calmamente, calado, até o whisky afastar parte desse cansaço. «Cansado, querido?» «Sim», disse ele. «Estou cansado.» E ao falar, fez uma coisa estranha. Levantou o copo e esvaziou-o dum trago, embora o copo ainda estivesse meio cheio, pelo menos. Ela não estava exactamente a olhar para ele, mas percebeu o que ele tinha feito porque ouviu os cubos de gelo a cair no fundo do copo vazio quando ele baixou o braço. Ele parou uns momentos, inclinado para a frente na cadeira, e depois levantou-se e foi lentamente preparar outra bebida. «Eu arranjo!», exclamou ela, levantando-se de um pulo. «Senta-te», disse ele. Quando ele voltou, ela reparou que a bebida agora tinha um tom escuro de âmbar devido à quantidade de whisky que ele deitara. «Queres que eu te vá buscar os chinelos, querido?» «Não.» Observou-o enquanto ele tomava a bebida amarelada, escura, e viu pequenos remoinhos oleosos no líquido por estar tão forte. «Acho terrível», disse ela, «que depois dum polícia chegar à posição que tu já tens, o continuem a fazer andar dum lado para o outro todo o dia». Ele não respondeu, por isso ela baixou outra vez a cabeça e continuou a costurar; mas cada vez que ele levava o copo à boca, ela ouvia os cubos de gelo a tilintar dentro do copo. 44


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«Querido», disse ela. «Queres que eu te vá buscar um bocado de queijo? Não fiz jantar porque é quinta-feira.» «Não», disse ele. «Se estás cansado de mais para irmos jantar fora», disse ela, «ainda há tempo. Há imensa carne e outras coisas no congelador, e podemos jantar aqui mesmo sem teres sequer de sair dessa cadeira.» Ela continuou a olhá-lo à espera duma resposta, com um sorriso, um pequeno aceno da cabeça, mas ele não fez qualquer sinal. «De qualquer maneira,» prosseguiu ela, «vou buscar-te queijo e umas bolachas primeiro.» «Não quero», disse ele. Ela remexeu-se na cadeira, inquieta, continuando a observá-lo com os seus olhos grandes. «Mas tens de jantar. Posso perfeitamente fazer o jantar em casa. Até gostava. Podemos comer costeletas de carneiro. Ou carne de porco. O que tu quiseres. Está tudo no congelador.» «Deixa lá», disse ele. «Mas, querido, tens de comer! Vou arranjar de qualquer maneira, e depois comes ou não, conforme o que te apetecer.» Ela levantou-se e poisou a costura na mesa ao lado do candeeiro. «Senta-te», disse ele. «Só um minuto, senta-te.» Foi só nesse momento que ela começou a sentir-se assustada. «Vá lá», disse ele. «Senta-te.» Ela voltou a sentar-se na cadeira, devagar, continuando sempre a fitá-lo com aqueles olhos grandes, desconcertados. Ele tinha acabado a segunda bebida e estava a olhar para dentro do copo, carrancudo. «Ouve», disse ele. «Tenho uma coisa para te dizer.» «O que é, querido? O que é que aconteceu?» Ele estava completamente imóvel, e continuava de cabeça baixa, e a luz do candeeiro ao seu lado iluminava a parte de cima da sua cara, deixando o queixo e a boca na sombra. Ela viu um músculo tremer junto ao canto do olho esquerdo dele. «Isto vai ser um choque para ti, receio», disse ele. «Mas já pensei muito no assunto e decidi que a única coisa a fazer é dizer-te imediatamente. Espero que não me censures muito.» E contou-lhe. Não levou muito tempo, quatro ou cinco minutos no máximo, e ela permaneceu o tempo todo muito quieta, a olhar para ele com um misto de horror e estupefacção à medida que ele se ia afastando dela cada vez mais com cada palavra que dizia. «E é isto», acrescentou ele. «Eu sei que é má altura para te estar a dizer, mas não havia outra maneira. Claro que te dou dinheiro e cuido de ti. Mas não é preciso haver espalhafato nenhum. Pelo menos, espero que não. Não ia cair bem no meu emprego.» O primeiro instinto dela foi não acreditar em nada daquilo, rejeitar tudo. Passou-lhe pela cabeça que talvez ele nem sequer tivesse falado, que tinha sido ela a imaginar tudo. Talvez se ela continuasse como se nada fora, mais tarde, quando acordasse, por assim dizer, talvez desco45


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brisse que afinal nada daquilo tinha acontecido. «Vou arranjar o jantar», disse ela num sussurro, e desta vez ele não impediu que ela se levantasse. Ao atravessar a sala, não sentiu os pés a tocar no chão. Não sentia nada… a não ser uma ligeira náusea e um desejo de vomitar. Todos os seus gestos eram automáticos - os passos a descer as escadas até à cave, o interruptor, a mão dentro da arca congeladora a pegar no primeiro objecto que encontrou. Tirou-o da arca e olhou para ele. Estava embrulhado em papel, por isso ela desembrulhou-o e olhou outra vez. Uma perna de borrego. Está bem, então, come-se borrego para o jantar. Levou-o para cima, segurando-o pelo osso com as duas mãos, e ao atravessar a sala viu-o de pé junto à janela de costas para ele e parou. «Por amor de Deus,» disse ele, ouvindo-a, mas sem se voltar. «Não faças jantar para mim. Vou sair.» Nesse momento, Mary Maloney limitou-se a aproximar-se dele e sem parar levantou a perna de borrego congelada bem alto e bateu com ela com toda a força na nuca dele. Era como se lhe tivesse dado com uma moca de aço. Deu um passo para trás à espera, e o mais engraçado é que ele continuou ali de pé pelo menos quatro ou cinco segundos, a baloiçar suavemente. Depois caiu com toda a força em cima da carpete. A violência da queda, o barulho, a mesinha a tombar, fizeram-na sair do estado de choque. Começou a despertar lentamente, sentindo-se gelada e surpreendida, e ficou um bocado a piscar os olhos, fitando o corpo, e segurando ainda aquele bocado de carne ridículo com muita força nas mãos. Muito bem, disse ela consigo mesma. Matei-o. Foi extraordinário como de repente ficou perfeitamente lúcida. Começou a pensar muito depressa. Como mulher dum detective, sabia muito bem qual seria a pena. Óptimo. Não lhe fazia diferença nenhuma. Na verdade, seria um alívio. Mas por outro lado, o que seria da criança? Será que os matavam aos dois… à mãe e ao filho? Ou será que esperavam até ao décimo mês? O que é que eles fariam? Mary Maloney não sabia. E decerto não estava disposta a arriscar fosse o que fosse. Levou a carne para a cozinha, pô-la num prato, acendeu o forno no máximo, e meteu-a lá dentro. Depois lavou as mãos e subiu a correr para o quarto. Sentou-se à frente do espelho, compôs a cara, retocou os lábios e a pintura. Tentou sorrir. Saiu um bocado esquisito. Tentou outra vez. «Olá, Sam», disse ela com vivacidade, em voz alta. A voz também saiu um bocado esquisita. «Quero batatas, se faz favor, Sam. Sim, e acho que também quero uma lata de ervilhas.» Estava melhor. Quer a voz quer o sorriso já estavam a sair melhor. Ensaiou mais umas quantas vezes. Depois desceu as escadas a correr, 46


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pegou no casaco, saiu pela porta das traseiras, atravessou o jardim e chegou à rua. Ainda não eram seis horas e as luzes da mercearia continuavam acesas. «Olá, Sam», disse ela com vivacidade, sorrindo para o homem que estava atrás do balcão. «Boa tarde, sra. Maloney. Como é que a senhora está?» «Quero batatas, Sam, se faz favor. Sim, e acho que também quero uma lata de ervilhas.» O homem voltou-se e estendeu a mão para a prateleira para tirar as ervilhas. «O Patrick decidiu que estava cansado e não queria ir jantar fora hoje», disse ela. «Costumamos jantar fora à quinta-feira, sabe, e não tenho legumes nenhuns em casa.» «Então, e a carne, Sra. Maloney?» «Não, carne tenho, obrigada. Tenho uma perna de borrego óptima, tirei-a do congelador.» «Ah.» «Não gosto muito de cozinhar carne congelada, Sam, mas vou arriscar desta vez. Acha que vai ficar boa?» «Na minha opinião», disse o merceeiro, «acho que não faz diferença nenhuma. Quer destas batatas de Idaho?» «Ah sim, óptimo. Duas dessas.» «Mais alguma coisa?» O merceeiro inclinou a cabeça para o lado, olhando para ela simpaticamente. «E para a sobremesa? O que é que lhe vai dar de sobremesa?» «Bem… tem alguma sugestão, Sam?» O homem deu uma olhadela à sua volta. «E que tal uma fatia grande de bolo de queijo? Eu sei que ele gosta.» «Perfeito», disse ela. «Ele gosta imenso de bolo de queijo.» E depois de estar tudo embrulhado e de ter pago, fez um grande sorriso e disse: «Obrigado, Sam. Boa tarde.» «Boa tarde, sra. Maloney. Eu é que agradeço.» E agora, disse consigo mesma dirigindo-se apressadamente para casa, a única coisa que estava a fazer naquele momento era a voltar para junto do seu marido, que estava à espera do jantar; e tinha de fazer um bom jantar, o mais saboroso possível, porque ele, coitado, estava cansado; e se, ao entrar em casa, por acaso deparasse com algo de inesperado, ou trágico, ou terrível, seria naturalmente um grande choque e iria ficar desesperada de dor e perfeitamente horrorizada. Mas atenção, ela não esperava encontrar nada. Estava só a voltar para casa com os legumes. A sra. Patrick Maloney ia para casa com os legumes na quinta-feira à tardinha para fazer o jantar para o marido. É isso mesmo, disse ela com os seus botões. É preciso fazer tudo bem e com naturalidade. Agindo com toda a naturalidade não vai ser preciso representar. Por isso, ao entrar na cozinha pela porta das traseiras ia a cantarolar 47


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e a sorrir. «Patrick!», chamou ela. «Como é que estás, querido?» Poisou o embrulho em cima da mesa e dirigiu-se para a sala; e quando o viu ali deitado no chão com as pernas todas dobradas e um braço torcido debaixo do corpo, foi de facto um grande choque. Todo o amor e desejo que sentia por ele cresceram dentro dela, e correu para ele, ajoelhando-se ao seu lado e começando a chorar perdidamente. Foi fácil. Não foi difícil representar. Uns minutos depois levantou-se e dirigiu-se para o telefone. Sabia o número da esquadra da polícia, e quando um homem a atendeu do outro lado ela exclamou: «Depressa! Venham depressa! O Patrick está morto!» «Quem é que fala?» «É a sra. Maloney. A sra. Patrick Maloney.» «E diz que o Patrick Maloney morreu?» «Acho que sim», soluçou ela. «Está deitado no chão e acho que está morto.» «Vamos já para aí», disse o homem. O carro chegou depressa, e quando ela abriu a porta da entrada, entraram dois polícias. Conhecia ambos os polícias, quase todos daquela esquadra, e caiu nos braços de Jack Noonan a chorar histericamente. Ele sentou-a cuidadosamente numa cadeira, e depois foi ter com o outro, que se chamava O’Malley, e estava ajoelhado junto do corpo. «Está morto?», perguntou ela a chorar. «Receio que sim. O que é que aconteceu?» Em poucas palavras ela contou que tinha ido à mercearia e que ao voltar o tinha encontrado no chão. Enquanto ela falava, a chorar e a falar, Noonan descobriu uma pequena mancha de sangue coagulado na cabeça do morto. Mostrou-a a O’Malley, que se levantou imediatamente e se dirigiu rapidamente para o telefone. Pouco depois chegavam mais homens. Primeiro o médico, depois dois detectives, um dos quais ela conhecia de nome. Mais tarde veio um fotógrafo da polícia, que tirou fotografias, e um homem que sabia de impressões digitais. Houve grandes conciliábulos em voz baixa junto do cadáver, e os detectives fizeram-lhe uma quantidade de perguntas. Mas trataram-na o tempo todo com muita amabilidade. Ela voltou a contar o que se tinha passado, dessa vez desde o princípio, desde o momento em que Patrick tinha entrado em casa e ela estava a costurar, e ele estava cansado, tão cansado que não tinha querido ir jantar fora. Contou que tinha posto a carne no forno - «Está agora a assar» - e que tinha dado um salto à mercearia para comprar legumes, e que ao voltar o tinha encontrado deitado no chão. «A que mercearia foi?», perguntou um dos detectives. Ela disse-lhe, e ele voltou-se e segredou qualquer coisa ao outro detective, que saiu imediatamente. Dentro de quinze minutos tinha voltado com uma página de apon48


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tamentos e houve outro conciliábulo, e por entre os soluços ela ouviu algumas frases segredadas - «…agiu naturalmente… muito bem disposta… queria fazer-lhe um bom jantar… ervilhas… bolo de queijo… é impossível que ela…» Passado um bocado, o fotógrafo e o médico foram-se embora e entraram outros dois homens, que levaram o corpo numa maca. Depois foise embora o homem das impressões digitais. Os dois detectives ficaram, e os dois guardas também. Mostraram-se extremamente simpáticos com ela, e Jack Noonan perguntou-lhe se ela não preferia ir para outro sítio qualquer, talvez para casa da irmã, ou mesmo para casa dele, onde a sua mulher tomaria conta dela e arranjaria um sítio para ela dormir nessa noite. Não, disse ela. Tinha a sensação de que nesse momento seria incapaz de dar um passo. Importavam-se muito se ela ficasse precisamente onde estava até se sentir melhor? Não se sentia nada bem nesse momento, mesmo nada bem. Então não seria melhor ela deitar-se? Perguntou Jack Noonan. Não, disse ela, gostaria de ficar onde estava, naquela cadeira. Um pouco mais tarde, talvez, quando se sentisse melhor, sairia dali. Por isso deixaram-na ali enquanto se ocupavam do que tinham a fazer, rebuscando a casa. Volta e meia um dos detectives fazia-lhe mais uma pergunta. Por vezes, Jack Noonan dirigia-lhe algumas palavras simpáticas ao passar junto dela. O marido dela, disse ele, tinha sido morto por uma pancada na nuca com um instrumento contundente pesado, quase de certeza um bocado grande de metal. Estavam à procura da arma. Talvez o assassino a tivesse levado, mas por outro lado talvez a tivesse deitado fora ou escondido em qualquer sítio dentro de casa. «É a velha história», disse ele. «Encontrando-se a arma, encontra-se o homem.» Mais tarde, um dos detectives aproximou-se dela e sentou-se ao seu lado. Perguntou-lhe se ela sabia de alguma coisa dentro de casa que pudesse ter sido usado como arma. Se ela se importaria de dar uma volta para ver se faltava alguma coisa… uma chave de fendas muito grande, por exemplo, ou uma jarra de metal pesada. Não tinham jarras de metal, disse ela. «Ou chaves de fendas grande?» Estava convencida de que não tinham uma chave de fendas grande. Mas talvez houvesse coisas dessas na garagem. A busca continuou. Ela sabia que havia mais polícias no jardim à volta da casa toda. Ouvia os passos deles lá fora no cascalho, e de vez em quando via a luz duma lanterna através duma abertura nas cortinas. Começava ficar tarde, quase nove horas, reparou, olhando para o relógio em cima da prateleira do fogão. Os quatro homens que faziam a busca aos quartos pareciam estar a ficar cansados, ligeiramente exasperados. «Jack», disse ela, quando o sargento Noonan passou outra vez ao pé dela. «Não se importa de me arranjar uma bebida?» 49


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«Claro que lhe arranjo uma bebida. É deste whisky que quer?» «Sim, se faz favor. Mas fraquinho. Talvez me faça sentir melhor.» Ele passou-lhe o copo. «Por que é que não toma uma bebida também?», disse ela. «Deve estar exausto. Tome uma bebida. Tem sido muito simpático para mim.» «Bem», respondeu ele. «Para dizer a verdade não é permitido, mas acho que vou tomar uma bebida pequena, para me dar energia para continuar.» Um a um, os outros foram entrando e ela convenceu-os a tomarem um whisky. Ficaram por ali de pé, um pouco constrangidos, de bebida na mão, pouco à vontade na presença dela, tentando reconfortá-la. O sargento Noonan foi até à cozinha, voltou muito depressa e disse: «Olhe, sra. Maloney. Sabe que o seu forno continua aceso e a carne ainda lá está dentro.» «Ai que horror!», exclamou ela. «Pois está!» «É melhor eu apagar-lhe o forno, não acha?» «Não se importa, Jack? Muito obrigada.» Quando o sargento voltou da segunda vez, ela olhou para ele com os seus olhos escuros, grandes, chorosos. «Jack Noonan», disse ela. «Sim?» «Não me faz um pequeno favor… você e os outros?» «Podemos tentar, sra. Maloney.» «Bem», disse ela. «Estão aí todos, e eram grandes amigos do Patrick também, e estão a tentar apanhar o homem que o matou. Devem estar cheios de fome, porque já passa muito da hora de jantar, e eu sei que o Patrick nunca me perdoaria, Deus o abençoe, se eu os deixasse continuar cá em casa sem os tratar como deve ser. Por que é que não comem o borrego que está no forno? Deve estar no ponto certo neste momento.» «Nem por sombras», disse o sargento Noonan. «Por favor», suplicou ela. «Comam-no, por favor. Eu estou incapaz de comer seja o que for, e muito menos uma coisa que tinha cá em casa quando ele cá estava. Mas para vocês não há problema. Faziam-me um favor se comessem o borrego. Depois podem continuar com o vosso trabalho». Houve grandes hesitações entre os quatro polícias, mas estavam nitidamente com fome, e acabaram por ser persuadidos a irem para a cozinha e a servirem-se. A mulher ficou onde estava, a ouvi-los através da porta aberta, e ouvia-os entre si, vozes espessas e pouco claras, porque tinham a boca cheia de carne. «Queres mais um bocado, Charlie?» «Não. É melhor não comermos tudo.» «Ela quer que se coma tudo. Foi ela que disse. Estamos a fazer-lhe um favor.» «Bom, está bem. Dá-me mais um bocado.» «Deve ter sido uma grande moca que o tipo usou para bater no desgraçado do Patrick», disse um deles. «O médico diz que ele tinha o crânio 50


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completamente esmigalhado, como se tivesse levado com um malho.» «É por isso que não deve ser difícil encontrá-lo.» «É isso mesmo que eu penso.» «Fosse quem fosse que fez aquilo, não vai andar por aí com uma coisa dessas mais tempo do que for preciso.» Um deles arrotou. «Na minha opinião, é aqui em casa que deve estar.» «Se calhar está mesmo debaixo do nosso nariz. O que é que achas, Jack?» Na sala, Mary Maloney começou a rir-se.

A SECRETÁRIA Prometeo Mazzanti Os dedos de Verónica moviam-se rápida e nervosamente sobre o teclado da máquina, transcrevendo a correspondência que havia ditado o gerente da firma comercial Lopes & Uribe. Há muito tempo que as dezassete horas tinham sido marcadas pelos ponteiros do relógio do escritório e os seus companheiros de trabalho já se haviam retirado em busca dos respectivos lares. Entretanto, Verónica continuava a decifrar as suas notas taquigráficas, executando o trabalho maquinalmente, sem que as palavras se coordenassem no seu cérebro, preocupado pela demora a que estava a sujeitar o seu noivo Alfred, que devia manter-se à sua espera em frente ao Banco de Boston. Haviam combinado jantar juntos e irem, depois, assistir a uma festa dada pela sociedade de folclore «El Ceibo». Verónica sentia-se nervosíssima, envidando todos os esforços para terminar o mais depressa possível a tarefa. Uma grande angústia invadia-a, pensando que, com o seu atraso, poderia perturbar o programa feito pelo noivo e, até contrariá-lo. Procurava dar atenção ao trabalho que executava, mas o espírito fugia e lá ia para o noivo, que passeava impacientemente em frente à porta de saída do escritório. O gerente da firma Lopes & Uribe era conhecido entre os empregados pela alcunha do «Bolinha», e o director-geral, um velhinho rabugento e implicante, fora mimoseado com o apelido de «Tempestade». Ele era o pesadelo do pessoal. A sua secretária, a menina Cora Castellani, tinha um gabinete separado, mas Verónica, secretária do «Bolinha», trabalhava no estreito e congestionado escritório geral, com os demais empregados. Esta promiscuidade não contrariaria muito Verónica, se não 51


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fosse o aborrecimento de ter que auxiliar os seus colegas, quando havia acumulação de trabalho. Ela considerava isto como uma injustiça e falta de consideração para com a sua posição e ficava ainda mais magoada pensando que ninguém a ajudava nas horas de apuro. O seu orgulho de mulher era cruelmente picado, quando, às dezassete horas, via as colegas tirarem das bolsas os estojos, retocarem a pintura e dirigirem-se, apressadas, para a porta, atirando-lhe um alegre «até amanhã». As lágrimas quase que caíam dos seus olhos de menina mimada. Só ela ficava ali presa, batendo o mais depressa possível na máquina, no desejo de terminar a correspondência de última hora. Da sua cadeira giratória podia ver, através da porta aberta do corredor, a entrada do gabinete particular do «Bolinha». De repente, ao virar a última página do caderno de taquigrafia, viu com o canto dos olhos o «Tempestade» que entrava calmamente no escritório do gerente. Verónica teve um gesto de enfado. A entrada do implicante velhote significava um atraso ainda maior no seu encontro com Alfred, pois a correspondência tinha de ser assinada pelo «Bolinha», para que ela mesma a colocasse na caixa do correio. A última carta que estava a escrever tinha uma porção de palavras longas e complicadas e a jovem soltando um profundo suspiro, procurou refrear a terrível impaciência, continuando a escrever mecanicamente: «Certas irregularidades cometidas pelo corpo dos nossos corretores, corpo este que gozava de nossa inteira confiança, foram descobertas graças a este lamentável acontecimento. Apesar da conveniência em encontrar uma atenuante para os culpados que caíram debaixo da sanção da lei, vemo-nos obrigados a fazer uma modificação geral nos nossos métodos administrativos. Assim, fazemos sentir aos nossos empregados em geral, que a firma não permitirá o jogo a dinheiro, sob pena de imediata demissão. Igualmente, não veremos com bons olhos o nosso pessoal interessado em jogos especulativos, e não ficaremos satisfeitos em saber que frequentam as corridas do Hipódromo Nacional…». - Graças a Deus! - exclamou Verónica levantando-se. Terminara a circular. Podia, agora, entregar a correspondência e retirar-se. Mas, a campainha do director soou… Tomou o caderno de notas, as cartas que deviam ser assinadas, e encaminhou-se para o gabinete do chefe. Ao chegar à sala destinada aos corretores, surpreendeu-se ao notar que alguém estava ali. Num canto, entre várias mesas e escrivaninhas em desordem, viu Mário Pierry meio escondido atrás de uma pilha de amostras de tapeçarias. Pierry era um bom rapaz, muito simpático, apesar dos demais corretores falarem bastante mal dele. Verónica interpretava aquela animosidade como uma demonstração de inveja que os roía devido à elegância e modos distintos de Pierry, bem como à sua linguagem fina, à sua eloquência, que faziam dele um valioso elemento de trabalho, muito considerado pelos chefes. O que mais a cativava em Pierry era a expressão dos olhos, inquietos e inteligentes, a cujo olhar ninguém 52


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podia resistir. Grande admirador dos desportos, praticava uma porção deles. Estava casado, tinha quase quarenta anos, e cultivava os desportos mecânicos com um entusiasmo que chegava quase à loucura. A indiferença que lhe manifestavam os companheiros havia servido para aumentar mais ainda a viva simpatia que Verónica sentia por ele. Não ignorava a jovem secretária que aqueles invejosos eram despeitados, pois julgavam que todo o homem que entregava as suas unhas aos cuidados da manicura e que tem sempre uma frase gentil para dizer, não pode deixar de ser efeminado, indigno de pertencer ao sexo forte. Notava-se perfeitamente que Pierry estava acostumado a lidar com muito dinheiro. Segundo os comentários, o jovem pertencia a uma família distinta, arruinada. Não faltava, entretanto, quem afirmasse que a esposa de Pierry possuía várias propriedades em seu nome e que se queixava sempre do pouco que o seu marido ganhava. Atribuíam a Pierry frequentes e arriscados jogos na Bolsa. Verónica entrou graciosamente no gabinete do chefe. Saudou com um movimento de cabeça o director-geral, e depositou as cartas sobre a mesa a fim de serem assinadas. Deu-lhe a caneta automaticamente e, enquanto ele ia traçando a sua assinatura, ela ia passando o mata-borrão, com uma pressa que não procurava encobrir. - Não lê as cartas antes de assiná-las? - perguntou o «Tempestade». «Sempre o mesmo este inveterado implicante… Sempre a encontrar falhas e a dar conselhos a todo o mundo!» O gerente sorriu. Sem dúvida, ele também estava ansioso por terminar e correr para casa. - Não é necessário. Confio na capacidade e eficiência da minha secretária, não é verdade, menina? - Ninguém é infalível - comentou com ar displicente o velho. - Mas a menina nunca erra… Raramente um pequeno engano dactilográfico… - Bem, queremos ainda ditar-lhe umas poucas linhas - falou o velhote. - São instruções para os nossos corretores. Deverão ser feitas hoje mesmo. O modo brusco pelo qual Verónica se sentou para tomar as notas foi propositado, para manifestar claramente a sua rebelião, o seu aborrecimento contra o abuso e a falta de delicadeza dos seus superiores. Quase que lhes disse que fossem para o inferno com os seus ditados, que ela também era humana, e tinha os seus compromissos e… um noivo quem não queria contrariar. Mas lembrou-se dos meses que estivera desempregada, no ano anterior, e o medo de se ver privada, de repente, da possibilidade de satisfazer todos os seus desejos e necessidades, fez com que se conseguisse dominar. Como Alfred estaria aborrecido! O último memorando era para Pierry. Terminava assim: «Depois de uma cuidadosa consideração, decidimos não apresentar denúncia às autoridades judiciais.» 53


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Voltando para a sua mesa de trabalho, Verónica tirou de uma gaveta um bloco de formulários. Enquanto os dedos recomeçaram a dança mecânica sobre os pequenos discos, os seus olhos pousaram no relógio. Seis e meia!... Alfred devia estar furioso! Conseguiria acalmá-lo? Aceitaria ele as suas desculpas? Debaixo da terrível apreensão, os dedos caíam vertiginosamente sobre as teclas, sem que as palavras chegassem a coordenar-se na sua mente febril e agitada. No escritório vazio, o batido dos saltos dos seus sapatos ressoaram. Verónica ia e vinha na sala dos corretores, depositando os envelopes nas respectivas escrivaninhas. Respondeu vagamente à saudação de «Tempestade» e «Bolinha» que saiam para a rua, para a liberdade! Voltou novamente à sala e deixou sobre a mesa de Pierry um volumoso envelope amarelo. O corretor sorriu-lhe, mas Verónica nem sequer correspondeu ao cumprimento. Rapidamente colocou as luvas e o chapéu. Nem tinha tempo para passar um pouco de pó no rostinho malicioso e travesso… De repente, ouviu um estrondo, rompendo o silêncio da casa. Ficou paralisada ao lado da porta aberta, apertando entre as mãos o chapéu. Depois, com passos vacilantes, adiantou-se até à sala dos corretores. Pierry jazia caído na almofada da poltrona. A seu lado, no chão, ainda fumegante, viu um revólver. Enquanto procurava apoiar-se no portal, acudiram ao seu espírito as últimas palavras que havia escrito: «decidimos não apresentar denúncia… autoridades… judiciais…» «Não apresentar denúncia.» Então… porque se havia suicidado Pierry? Os seus dentes batiam uns contra os outros, num tremor que a agitava toda, quando se aproximou do corpo do rapaz. Os pés pesavam-lhe e os joelhos dobravam-se sob o terror convulso que sacudia todo o seu corpo. Sobre a escrivaninha viu aberto o envelope amarelo e, estendido o memorando. As mãos geladas apertadas de encontro aos lábios, olhos atónitos, Verónica leu o conteúdo do mesmo. Havia ali um erro dactilográfico. A palavra NÃO havia sido omitida! Então compreendeu, horrorizada, o motivo absurdo e fatal daquele drama. Retrocedeu, apavorada, como se um monstro a quisesse agarrar e, girando sobre os calcanhares, correu espavorida para a rua, a gritar alucinadamente…

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DE MORTUIS… John Collier O Dr. Rankin era um homem ossudo, de grandes proporções, em quem um fato novo parecia logo fora de moda, como fotografia de há vinte anos. Isto era devido à forma do tronco, liso e rectangular, que poderia ter sido feito por um fabricante de malas de viagem. O seu rosto possuía uma expressão estática e rústica e o cabelo revolto ressentia-se da falta de pente. Tinha aquelas mãos enormes e grosseiras que podem ser um atractivo para um médico, numa pequena cidade de província, onde as pessoas ainda conservam uma certa queda pelo paradoxo, própria dos rurais, imaginando que quanto mais a pata se parecer com a do chimpanzé, mais precisa será na operação delicada de extrair os adenóides. Esta conclusão era perfeitamente justificável no caso do Dr. Rankin. Por exemplo, nesta linda manhã, se bem que a sua tarefa nada tivesse de mais delicado do que cimentar uma boa parte do chão da sua cave, empregava as mãos enormes e grosseiras com toda aquela precisão calma e vagarosa esqueceria uma esponja dentro dum paciente ou criaria a mais leve cicatriz desnecessária. O médico observou o seu trabalho sob todos os ângulos. Deu um toque aqui, um retoque acolá, até conseguir uma lisura tipicamente profissional. Varreu a terra que sobrara e atirou-a à fornalha. Fez uma pausa, antes de arrumar a pá e a picareta de que se servira, e ainda encontrou ocasião para o novo e artístico toque com a trolha, que fez a nova superfície ajustar-se precisamente ao chão que a rodeava. Nesse momento de suprema concentração a porta do vestíbulo lá em cima bateu com fragor de uma peça de artilharia, de pequeno calibre, o que fez o Dr. Rankin dar um salto como se tivessem disparado contra ele. O médico ergueu um rosto franzido e um ouvido atento. Ouviu dois pares de pés atravessarem pesadamente o ressonante soalho do vestíbulo. Ouviu a porta da casa abrir-se e os visitantes entrarem no átrio, com o qual a cave comunicava por uma escada de poucos degraus. Ouviu assobiar e depois as vozes de Buck e de Bud gritarem: “Doutor! Doutor! Eles estão a morder!”. Como se não se sentisse disposto a pescar naquele dia, ou como se o seu tipo grande e pesado experimentasse uma desagradável reacção ao ser subitamente alarmado, ou fosse simplesmente porque estava ansioso por terminar, sem que o incomodassem, a tarefa que tinha entre mãos para depois poder dedicar-se a outras mais importantes, o certo é que não respondeu logo ao convidativo grito dos seus dois amigos. Em vez disso ficou a ouvir o diálogo que se travou lá em cima: - “Se calhar saiu.” - “Vou escrever um bilhete, dizendo que estamos no ribeiro e para ele ir ter connosco.” 55


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- “Podíamos falar com a Irene.” - “Mas ela também cá não está, olha quem”. - “Devia estar, pelo estado em que a casa se encontra.” - “Dizes bem, Bud. Olha para esta mesa. Pode-se escrever o nome…” -“Psiu! Olhe!” Era evidente que o último a falar reparara que a porta da cave estava aberta e que havia luz lá em baixo. No instante seguinte, Bud e Buck metiam a cabeça por ela. - Olá, Doutor, afinal estava aí! Não nos ouviu chamar? O médico, embora pouco satisfeito pelo que acabara de ouvir, acolheu contudo com aquele sorriso estático os dois amigos que desciam a escada. - Pareceu-me ter ouvido alguém - disse. - Já nos íamos embora - adiantou Buck. Pensámos que não estava ninguém em casa. Onde está a Irene? - Foi fazer uma visita - disse o médico. - Olá, que se passa aqui? - disse Bud. Que está o senhor a fazer? A enterrar um dos seus doentes? - Oh, a água estava a aparecer através do soalho - explicou o Dr. Rankin. - Pensei que fosse alguma nascente que tivesse rebentado, ou coisa parecida. - Não diga isso! - exclamou Bud, assumindo uma atitude belicosa fingida. Então, Doutor, fui eu quem lhe vendeu esta propriedade. Não me diga que eu lhe impingi uma propriedade onde há uma nascente subterrânea. - Apareceu água - disse o médico. - Está bem doutor, mas pode consultar a carta geológica de Kiwins Club. Não existe na cidade melhor sub-solo que este. - Parece que lhe passaste o conto do vigário – brincou Buck, rindo-se. - Não - defendeu-se Bud. – Veja. Quando o doutor veio para aqui estava muito verde! Tem de admitir isso! - Comprou aquela sucata do carro do Ted Webber - disse Buck. - E teria comprado a propriedade do Jessop, se eu tivesse permitido - adiantou Bud. - No entanto recomendei-lhe esta. Ele e a Irene mudaram-se logo que se casaram. Não venderia ao doutor uma casa com uma nascente sob os alicerces. Não era capaz de o vigarizar. - Não falem mais nisso - disse o médico, embaraçado por estas manifestações de honestidade. Provavelmente foram as grandes chuvadas. - Ena pá! - exclamou Buck, olhando para o bico esbranquiçado da picareta. - O senhor cavou bem fundo. Até encontrar terra, hein! - A terra está a um metro e vinte de profundidade. - disse Bud. - Quarenta e cinco centímetros. - disse o médico. - Um metro e vinte - insistiu Bud. Posso mostrar-lhe o mapa. - Vamos, deixem-se de argumentos - intrometeu-se Bud. Que acha, doutor? Uma hora ou duas no ribeiro, hein? Os peixes estão a morder. 56


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- Não posso, rapazes - disse o médico. Tenho ainda de ir ver um ou dois doentes. - Ora, viva e deixe viver, doutor - zombou Bud. Dê-lhes a possibilidade de melhorarem. Pretende despovoar toda a cidade? - O médico baixou o olhar, sorriu e murmurou, como sempre o fazia ao ouvir esta piada: - Tenho pena, rapazes. Não posso ir. - Bem - conformou-se Bud, desapontado. Nesse caso o melhor é irmos andando. Como vai a Irene? - A Irene? - disse o médico. Melhor do que nunca. Foi fazer uma visita a Albany. Apanhou o comboio das onze. - Onze horas? - estranhou Buck. - Para Albany? - Eu disse Albany? - perguntou o médico. – Queria dizer Watertown. - Amigos em Watertown? - inquiriu Buck. - A senhora Slater - esclareceu Hankin. O senhor e a senhora Slater. Irene disse que morou perto deles, quando era menina, em Sycamore Street. - Slater? - disse Bud. Na casa ao lado da Irene? Não. - Sim, sim - disse o médico. - Ela esteve a falar-me neles ontem à noite. Parece que essa tal senhora Slater tomou conta dela numa altura em que a mãe esteve no hospital. - Não - disse Bub. - Foi o que ela me contou - disse o médico. Claro que isso já se passou há muitos anos. - Ouça, doutor. Começou Buck. - Bud e eu criamo-nos nesta cidade. Durante toda a nossa vida conhecemos a família de Irene. Estávamos constantemente a ir a casa dela. Nunca tiveram vizinhos chamados Slater. - Talvez - lembrou o médico - essa mulher se tivesse casado novamente, adquirindo um nome diferente. Bud abanou a cabeça. - A que horas foi a Irene para a estação - perguntou Buck. - Oh, há cerca de um quarto de hora - respondeu o médico. - Levou-a de automóvel? - Não, foi a pé. - Descemos a Rua Principal - esclareceu Buck - e não a encontrámos. - Talvez ela tenha atravessado o campo - lembrou o médico. - É uma caminhada dura, levando a mala - estranhou Buck. - Ela levou uma malinha pequena, só com o indispensável - disse o médico. Bud continuou a abanar a cabeça. Buck olhou-o e para o cimento acabado de colocar, ainda húmido. - Deus dos Céus! Exclamou ele. - Valha-nos Deus, doutor! - disse Bud - Um tipo como o senhor! O médico levou a mão à cabeça. - Que é isto? Que estão vocês, seus 57


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tolos, para aí a imaginar? - perguntou. - Uma nascente! - articulou Bud. - Devia ter percebido logo que não era nenhuma nascente. O médico olhou para o seu trabalho no cimento, para a picareta, para as faces grandes e preocupadas dos seus dois amigos, e ficou lívido. - Estou louco? - disse. - Ou estão vocês? Sugerem que eu… que Irene… que Irene… minha esposa… Oh, fora! Sim, saiam e tragam o xerife. Digam-lhe para vir aqui e cavar. Vocês… Fora! Bud e Buck olharam um para o outro, e permaneceram imóveis. - Saiam - Repetiu Hankin. - Não sei - disse Bud. - Não é como se ele não tivesse tido a provocação - disse Buck, por sua vez. - Deus sabe - acrescentou Bud. - Deus sabe - replicou Buck. - Você sabe. Eu sei. Toda a cidade o sabe. Experimente, porém, dizê-lo a um juiz. O médico voltou a colocar a mão na cabeça. - O que é isto…? O que é que…? Que estão agora a dizer? - Se não fosse exactamente aqui. - exclamou Buck. - Doutor, pode ver como é necessário pensar um pouco. Temos sido amigos, desde o começo. Bons amigos. - Mas precisamos pensar - acrescentou Bud. - É sério. Provocação ou não, há uma lei na terra. E há a tal coisa de ser cúmplice. - Estava a falar a respeito de provocação - interrompeu Hankin. - Está certo - respondeu Buck. - Você é nosso amigo, e se nunca pudesse ser justificado… - Justificado? - quis saber o médico. - Acabaria por saber, mais cedo ou mais tarde - comentou Buck. Poderíamos ter-lhe dito - disse Bud. - Somente… - Poderíamos - confirmou Buck. - E quase o fizemos. Há cinco anos. Antes do senhor se casar com ela. O senhor ainda aqui não estava há seis meses, mas nós logo simpatizámos consigo. Pensámos em lhe dar um lamiré. Chegámos a falar disso. Lembras-te, Bud? Bud concordou, com um aceno de cabeça. - É curioso - disse - Pus tudo em pratos limpos a respeito da casa do Jessop. Não deixei que o senhor a comprasse, doutor. Mas casar-se, isso era uma coisa diferente. Nós podíamos tê-lo avisado. - Nesse ponto somos responsáveis - disse Buck. - Tenho cinquenta anos - disse o médico. - Suponho que seja muita idade para Irene. - Nem que fosse o Tarzan e tivesse vinte e um anos, isso faria qualquer diferença - disse Buck. - Sei que muita gente não a considera uma esposa perfeita - disse o médico. Talvez não seja. É nova, cheia de vida. - Deixe-se disso! - exclamou Buck, irritado, olhando para o cimento 58


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fresco. - Deixe-se disso, por amor de Deus, doutor. O médico passou a mão pelo rosto. - Nem todas as pessoas têm os mesmos gostos - disse ele - Eu sou um tipo calado, não me abro com facilidade. A Irene… bem, é o que se pode chamar uma pessoa alegre. - É mesmo - confirmou Buck. - Não é uma boa dona de casa, bem sei - disse o médico. - Mas não é só disso que um homem precisa. Ela tem vivido bem. - Sim. - murmurou Buck - É verdade. - É isso que eu amo nela - confessou o médico - talvez por eu ser um homem triste, ter um feitio diferente. Não terá grande profundidade intelectual. Muito bem. É estúpida, mesmo. Não me importo. Preguiçosa. Não tem método. Eu tenho método que sobra. Ela tem-se divertido. É esplêndido. Não tem mal. Como se fosse uma criança. - Sim, se isso fosse tudo. - comentou Buck. - Mas - disse o médico, olhando-o em cheio - você parece saber mais do que isso. - Toda a gente sabe - respondeu Buck. - Um homem decente e correcto chega a um lugar como este e casa com a rapariga mais estouvada da cidade - comentou Bud, com amargura. E ninguém lhe diz nada. - Ficam-se todos a olhar. - E a rir - acrescentou Buck. Tu e eu, Bud, exactamente como todos os outros. - Nós prevenimo-la. - replicou Bud. Nós avisámo-la para tomar cuidado com os seus passos. - Toda a gente a aconselhou - confirmou Buck - Mas as pessoas cansaram-se de dar conselhos. Quando ela chegou aos motoristas de camiões… - Nunca foi connosco - disse Bud calorosamente. Pelo menos depois do senhor aparecer. - A cidade ficará toda do seu lado - opinou Buck. - Isso influenciará muito quando o caso for a julgamento - comentou Bud. - Oh! - exclamou o médico, subitamente. Que hei-de eu fazer? Que hei-de eu fazer? - Sossegue, doutor, - aconselhou Bud - quando para cá viemos a rua estava vazia, não estava? - Penso que sim - disse Buck. - Pelo menos ninguém nos viu descer à cave. - E não estivemos aqui em baixo - prosseguiu Bud, dirigindo-se directamente ao médico. - Compreendeu, doutor? Gritámos lá em cima, demorámos um minuto ou dois, e retirámo-nos. Nunca, porém descemos a esta cave. Desejaria que nunca o tivessem feito - disse Hankin, pesadamente. - Tudo o que tem a fazer é dizer que Irene saiu a passear e nunca mais voltou - aconselhou Buck. - Bud e eu podemos jurar que a vimos a sair 59


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da cidade, com um homem, num automóvel. Toda a gente acreditará nisso, sem dúvida. Combinaremos a coisa. Mas mais tarde. Agora, o melhor é darmos o fora. - E lembre-se - acrescentou Bud - nunca estivemos aqui em baixo. Até à vista. - É melhor cobrir… cobrir aquela coisa - disse Buck. Subiram os degraus, movendo-se com uma cautela de certo modo absurda. Ao ficar só o médico sentou-se num caixote vazio, segurando a cabeça entre as mãos. Estava ainda nessa posição quando a porta da varanda tornou a bater com estrondo. Desta vez não se sobressaltou. Ficou à escuta. A porta da casa foi aberta e fechada. Uma voz gritou: - Olá! Estou de volta. O médico ergueu-se, vagarosamente. - Estou aqui em baixo, Irene! - gritou ele. A porta da cave abriu-se. Uma mulher jovem apareceu no alto dos degraus. - És capaz de adivinhar? - disse ela. - Perdi o raio do comboio. - Oh! - exclamou Hankin. - E voltaste pelo campo? - Sim, como uma tola. Poderia ter alugado um carro e apanhado o comboio noutra estação, mais adiante. Mas não pensei logo nisso. Se me levasses até ao entroncamento, ainda seria possível que eu… - Quem sabe? - respondeu o médico. - Encontraste alguém, ao regressar? - Nem uma alma. Ouve, ainda não acabaste esse trabalho da ruptura de água? - Parece-me que vou ter de repetir tudo novamente. - disse o médico. - Desce aqui, querida, para eu te mostrar…

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O VERMELHO E O NEGRO Robert Andrea Estava sentado no meio da sala, perto de uma pequena mesa, exactamente debaixo da lâmpada que projectava sombras nas paredes; tinha o rosto voltado para o chão cujo asseio era duvidoso, e a sombra da lâmpada não permitia ver-lhe o olhar. Tinha os cabelos desgrenhados e muito compridos; era magro e esbelto, e a camisa «sport» e as calças de caqui que vestia deixavam adivinhar uma musculatura nervosa. Num canto da pequena sala, dois agentes em uniforme conservavamse de pé perto de uma pequena mesa onde estava o telefone. Vigiavam o homem sentado sob a lâmpada. - Que está a fazer o capitão? - perguntou um deles. - Provavelmente foi tomar um café - disse o outro. - Em geral é a esta hora que ele se concede um momento de descanso. - Gostaria muito que ele se despachasse. Em princípio, o meu serviço termina dentro de trinta minutos. - Não estejas tão apressado. Afinal, não tens nada que fazer. - Achas? Primeiro preciso de dormir, e depois, tenho dezenas de coisas a fazer de manhã. A minha mulher quer… - Compreendo. És um homem muito ocupado. - Mas que mosca te mordeu? - perguntou o mais novo dos dois agentes. - È aquele rapaz ali sentado - disse o outro. - Pergunto a mim próprio o que o teria levado a agir assim. - Oh!, deixa-te disso. Quantos já viste passar por aqui? Amoleceste ou quê? - Não, não amoleci, mas não sei porquê, aquele rapaz tem uma expressão diferente. É o seu primeiro delito, sabes. - Sim, eu sei… é sempre preciso haver uma primeira vez para estes vadios. A porta abriu-se nesse momento e um homem à paisana, de ombros largos e rosto queimado entrou na sala. Fez um movimento na direcção do rapaz sentado sob a lâmpada e disse: - É este o pequeno Nolan? - Sim, capitão, é ele - respondeu o agente mais velho. - O capitão tinha um rosto rude; possuía uma compleição atlética e havia qualquer coisa de rígido na sua atitude, mas os seus olhos exprimiam lassidão. Ele disse: - Qual de vocês o trouxe aqui? - Fui eu - respondeu o agente mais novo. Deu um passo para o capitão e estendeu-lhe um bocado de papel. - Aqui está o relatório que eu fiz - acrescentou ele. O capitão percorreu-o durante alguns minutos. Soltou um suspiro quase imperceptível. 61


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- Bem - disse numa voz firme. - Levanta a cabeça. Vais responder a algumas perguntas. O rapaz ergueu ligeiramente a cabeça. - Chamas-te Gérard Nolan… Moras sozinho, no 1261 Prospect Boulevard. É isto? - Sim, é isso. O capitão passou a mão pelos cabelos grisalhos. - Que idade tens? - Dezoito anos. - Espero que reconheças de que aquilo de que te acusam é grave. É a primeira vez que te encontras envolvido num caso deste género? - Sim. - O rapaz levantou a cabeça e fixou o capitão com os seus grandes olhos. - Mas não fui eu que bati no velho para lhe tirar o dinheiro. Não fui eu… O capitão olhou-o nos olhos e disse: - Ouve, Nolan, mentir não te ajudará. Pelo contrário… - Mas se lhe digo que é um erro! - gritou o rapaz animando-se pela primeira vez. - Porque haveria de proceder assim por umas míseras notas? - Bem! Está aqui tudo, Nolan. - O capitão acendeu um cigarro. - Estavas sozinho nas proximidades, quando o velho foi atacado. Foi o que li no relatório. Deteve-se, depois interpelou o agente mais novo. - Wilcox, patrulhava de carro cerca da uma hora da manhã, quando viu um homem atacar outro perto do bloco nº 1000 da Avenida de Crestview. É isto? - Sim - respondeu Wilcox. - Parou o carro, - continuou o detective - mas antes que chegasse junto da vítima, o agressor tinha fugido. Depois de ter ido procurar uma ambulância ao posto da polícia mais próximo, inspeccionou todo o quarteirão e só encontrou Nolan, aqui presente. - Exactamente, capitão - disse Wilcox. - Em todo o quarteirão apenas ele se encontrava na rua. À uma hora da manhã é um sítio absolutamente sossegado. Nolan voltou-se na cadeira e disse: - O que fez o golpe podia ter facilmente entrado em qualquer casa. Não é o que lá falta. - Eu sei - disse o detective numa voz suave. Deu várias voltas à mesa e acrescentou: - Tu não trabalhas, Nolan. - Não. Eu… tive uma discussão com o patrão. Estava empregado no Kramer, um grande armazém. - Que fazias na rua? - Eu… eu passeava… - À uma hora da manhã? Vamos, meu amigo, há coisas melhores para fazer a essa hora. O telefone começou a tocar. O agente mais velho levantou o ausculta62


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dor. - Está… sim. Pedimos-lhes para telefonar. Pode dizer-nos. - Depois de ter ouvido durante um momento disse: - Bom, está bem, vou transmitir ao capitão. Desligou, depois dirigiu-se para o detective e murmurou-lhe qualquer coisa ao ouvido. O capitão olhou uma vez mais para o rapaz sentado na cadeira. - Acabam de nos telefonar do hospital. O velho retomou a consciência. - Não sei do que estão a falar - disse o suspeito. Contudo, no mesmo instante, o rosto pareceu reflectir uma espécie de alívio. - Para a próxima vez, pequeno - se a houver - procura ser um pouco menos brutal com a tua vítima, sobretudo se ela tiver sessenta anos. Uma pancada com a coronha de uma arma faz sempre mais mal do que se imagina. Poderias tê-lo morto. - Que arma? Não tenho nenhuma. O capitão esmagou a ponta do cigarro. - Está bem. Desembaraçaste-te dela antes de caíres nas mãos de Wilcox. Mas isso não te servirá de nada. O velho recuperou a consciência e vamos levar-te ao hospital. Ele poderá identificar-te. O rapaz abateu-se de novo sobre a cadeira. - Está bem, capitão, ganhou. Fui eu. Fui eu quem lhe bateu. Eu… queria exactamente tirar-lhe algumas notas. É duro quando se é completamente só como eu e não se tem trabalho. O detective voltou-se para o agente mais novo: - Wilcox, vá buscar o aparelho registador. Nolan deseja fazer as suas confissões. As confissões oficiais não duraram mais do que uma dezena de minutos. Quando tudo acabou, Nolan perguntou: - Quanto tempo ficarei preso, capitão? Quero dizer, agora que o velho está bem. O retinir agudo do telefone voltou a soar. O agente mais velho pegou no auscultador. - Sim?... Exactamente, diga-nos… Decorrido um momento, acrescentou: - Que diz? Tem a certeza? Sim, compreendo… Desligou o telefone. - É outra vez do hospital, capitão. O velho que o rapaz feriu… acaba de morrer. Recobrou a consciência há uns minutos, depois teve um ataque. Pensam que foi devido à pancada. Nolan agitou-se na cadeira gritando: - Eu não queria bater-lhe com tanta força! Juro que não fiz de propósito. É preciso que me acreditem! O detective sacudiu a cabeça. - Tenho muita pena, rapaz. Somos obrigados a prender-te por assassínio. 63


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Fez um sinal aos dois agentes. - Levem-no. Quando deixaram a sala, o capitão sentou-se na cadeira que o jovem assassino acabava de deixar. Pensava: Mais um que tombou no negro. É como a roleta: nasce-se, é-se lançado no caminho e rodopiamos; se se tem sorte, pára-se no vermelho e se não se tem, no negro, como Nolan. O capitão ficou ainda sentado um longo momento, perguntando-se quem seria o seguinte…

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A ESPOSA PERFEITA Frank Donovan A palavra «trabalho» trouxe-lhe um sorriso de escárnio aos lábios. Ele também tinha trabalhado, mas o seu serviço era um pouco diferente dos outros empregos comuns. Só trabalhava das quatro às seis da manhã. Havia começado há um ano, e admirava-se de não ter pensado nisso antes. Era tão simples que ás vezes ficava receoso. A única coisa que tinha a fazer era atravessar o corredor de um dos grandes hotéis (nunca se incomodara com os de segunda categoria) e experimentar as portas. Algumas encontravam-se fechadas. Com essas nunca se preocupara. Mas outras estavam somente encostadas. Sempre se surpreendera com a percentagem de pessoas tão descuidadas a ponto de deixarem as portas abertas durante a noite. Quando uma pessoa se recolhe, geralmente deixa as suas coisas em cima da cómoda. Uma em cada dez contrariava esse hábito. Como era tão simples apanhar os objectos da cómoda e retirar-se com eles! Tão simples como ele chamar-se Johnny. Fazia, geralmente, uns duzentos ou trezentos dólares por noite, e sem correr o mínimo risco. Por diversas vezes se encontrara na situação embaraçosa de ter de explicar ao ocupante do quarto que acordara, o que estava fazendo ali. Respondia sempre da mesma maneira: - Sou o detective da casa. Estou a verificar se alguém deixou a porta aberta. A gerência não pode responsabilizar-se pelos objectos de valor, se os senhores não fecham as portas. Os ocupantes desculpavam-se sempre, principalmente se não estavam sós, e prometiam, de futuro, fechar a porta. Acabou de beber o café e pediu outra chávena. Instintivamente, meteu a mão no bolso onde se encontrava o produto daquela noite. Tinha sido simples como sempre. Sorriu um pouco ao lembrar-se do casal do apartamento que assaltara naquela noite. As suas promessas de amor, ainda lhe soavam ao ouvido. Não o tinham pressentido na outra sala arrecadando tudo o que podia. O relógio atrás do balcão marcava seis horas. Mas não podia ir para casa antes das sete. Judy, a mulher, imaginava-o a trabalhar num dos turnos da noite de certa fábrica em Burbank. Aquilo era engraçado! Ele como qualquer imbecil, a trabalhar numa fábrica. E começou a pensar, novamente, em Judy. Estavam casados havia apenas seis meses. Pensava no seu narizinho arrebitado, que se franzia quando sorria, e nos olhos lânguidos que, quando pousavam nele, só deixavam transparecer amor. Tinham passado a lua-de-mel em Palm Spring, no melhor hotel da cidade, e levado uma vida de reis durante quinze dias. A mulher censurara-o por ser tão extravagante, mas ele sabia que ela gostava. Ela imaginava-o superintendente de uma fábrica! Nunca perguntara 65


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onde trabalhava ou o que fazia - e isso era um alívio. Não se podia negar - era uma esposa perfeita! Lá fora, o horizonte começava a clarear com o nascer do sol. Levantou-se do tamborete, procurou uns cobres nos bolsos. Pensar em Judy tornara-o expansivo; por isso deixou uma boa gorjeta… Foi andando, até à esquina onde deixara o carro e, ligando a chave, pôs o motor a funcionar, esperando que aquecesse. Enquanto esperava, tirou do bolso a colheita daquela noite, para ver se era boa. Ali estavam uma carteira com trezentos dólares, em dinheiro, um par de botões de punho em ouro e uma aliança de mulher… Ficou com a respiração suspensa, quando leu a inscrição que se encontrava na aliança: Para Judy, com amor, Johnny.

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O CORAÇÃO DELATOR Edgar Allan Poe É verdade! Nervoso, muito nervoso, terrivelmente nervoso fui e sou; mas por que motivo hão dizer que eu sou doido? A doença havia apurado os meus sentidos, não os havia destruído, não os havia embotado. O que em mim suplantava todos os mais sentidos era a acuidade do ouvido. Ouvia tudo o que ocorria, quer fosse no céu, quer fosse na terra. Ouvia até muitas coisas que ocorriam no inferno. Por que dizem, então, que eu estou doido? Escutem! E observem a serenidade, a sã lucidez com que lhes posso contar a história toda. É impossível dizer como foi que esta ideia primeiro penetrou no meu cérebro; mas, uma vez concebida, obsidiou-me dia e noite. Não existia móbil. Não existia paixão. Eu era amigo do velho. Nunca me fizera mal. Nunca me insultara. Eu não lhe cobiçava o ouro. Creio que foi o olho! Sim, foi isso! Tinha um olho de abutre - um olho dum azul pálido, coberto duma membrana. Sempre que me fitava, gelava-me o sangue; e assim, a pouco e pouco - muito lentamente - foi-se gerando em mim a decisão de matar o velho, como o único modo de me libertar para sempre daquele olho maldito. Agora aqui é que está o nó da questão. Julgais-me doido. Os doidos nada sabem. Mas devíeis-me ter visto o tino com que procedi - a cautela - a previsão - a dissimulação com que operei! Eu nunca fora mais afável para com o velho do que durante a semana que precedeu o seu assassínio. Todas as noites, cerca da meia noite, desandava o fecho da sua porta e abria-a - oh, com que extremos cuidados! E então, depois de abrir uma estreita fresta, introduzia uma lanterna de furta-fogo, tendo o cuidado de evitar que a sua luz pudesse ser vista, e depois enfiava a cabeça. Oh, havíeis de rir, se vísseis quão astutamente eu enfiava a cabeça pela fresta da porta! Movi-a lentamente - muito lentamente afim de não perturbar o sono do velho. Levava-me uma hora a passar a cabeça pela exígua abertura, até o poder ver estendido na cama. Ah, teria um doido procedido com todos estes cuidados? E depois, quando já tinha a cabeça toda dentro do quarto, apagava a lanterna cautelosamente - muito devagarinho, de modo a que só um ténue raio ficasse incidindo sobre o olho de abutre. Fiz isto durante sete longas noites - sempre à mesma hora, à meianoite - mas sempre encontrei fechado o olho; era assim impossível levar a cabo o meu plano; pois o que me incomodava, o que se tornava para mim incomportável, não era o homem, mas sim o olho maldito! Todas as manhãs, ao romper do dia, entrava com todo o descaro no quarto dele, e falava-lhe afoitamente, tratando-o pelo seu nome com todo o carinho e perguntando-lhe como passara a noite: Vedes, pois, que era mister que ele fosse um homem muito perspicaz para suspeitar 67


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de que todas as noites, ao bater das vinte e quatro, eu espreitava o seu dormir! Na oitava noite fui mais cauteloso do que de costume ao abrir a porta. O ponteiro dum relógio é mais ligeiro do que era a minha mão. Antes daquela noite nunca eu sentira o alcance das minhas forças - da minha sagacidade. Mal podia exprimir a minha sensação de triunfo! Pensara eu que eu me achava ali, abrindo a porta, pouco a pouco, e que ele nem sequer sonhava o que eu secretamente fazia ou pensava! Ri-me francamente, escutando os ralos da parede. Ufanei e regozijo, a esta ideia; e talvez ele me ouvisse, pois que se mexeu na cama subitamente, como que sobressaltado. Pensais talvez que recuei - mas não! O quarto estava escuro como breu, mergulhado em trevas espessas (pois, por medo dos gatunos, as portadas das janelas estavam solidamente aferrolhadas) e, por isso, eu sabia que ele não podia ver a abertura da porta; continuei, portanto, a abri-la de mansinho, mas com mão firme. Já tinha a cabeça dentro e ia abrir a lanterna, quando me escorregou o polegar no puxador da porta, e o velho deu um pulo na cama, exclamando: Quem anda aí? Quedei-me imóvel e em silêncio. Durante uma hora não mexi um músculo, e nesse lapso de tempo não o ouvi deitar-se de novo. Continuava sentado na cama, de ouvidos à escuta; - tal qual como eu, que passei noites após noites escutando os ralos da parede. Daí a pouco ouvi um leve gemido, que eu sabia ser o gemido do terror mortal. Não era um gemido de dor ou de queixume - Tudo baldado; porque a Morte, aproximando-se dele, pairava na sua frente com a sua negra sombra, e envolvia a vítima. E era a lúgubre influência da invisível sombra que o fazia sentir - embora nada visse nem ouvisse - sentir a presença da minha cabeça dentro do quarto… Tendo esperado muito tempo, muito pacientemente, sem o ouvir deitar-se, resolvi abrir uma estreitíssima fenda na lanterna. Depois abria-a - não podeis imaginar com que requintes de cautela - até que, finalmente, um ténue raio, semelhante ao fio de uma teia de aranha, atravessou a fenda e incidiu em cheio sobre o olho do abutre. Estava aberto - arregalado - e eu fiquei furioso ao fitá-lo. Via-o com perfeita nitidez - todo azul, velado duma membrana hedionda que me gelou até à medula; eu, porém, nada mais podia ver do rosto ou do corpo do velho; pois dirigira o raio, como que por instinto, precisamente sobre o ponto maldito. E agora não vos disse eu já que aquilo que vós erradamente tomais por loucura nada mais é do que hiper-agudeza dos sentidos? -Agora, chegava-me aos ouvidos um ruído abafado, soturno, acelerado, semelhante ao que faz um relógio embrulhado em algodão. Eu conhecia muito bem esse ruído. Era o palpitar do coração do velho. 68


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Multiplicou a minha fúria, do mesmo modo que o rufar do tambor espicaça a coragem do soldado. Apesar de tudo, porém, refreei-me e mantive-me quieto e em silêncio. Quase nem respirava. A lanterna imobilizara-se-me na mão. Tomei a peito ver com que firmeza podia deter o raio sobre o olho. Entrementes, o diabólico palpitar do coração redobrava de intensidade. Batia cada vez com mais força e mais depressa. O terror do velho devia ser extremo! As pancadas eram cada vez mais fortes, cada vez mais fortes, reparais bem? Já vos disse que sou nervoso: sou-o de verdade. E agora, àquela hora avançada da noite, no silêncio pavoroso daquela velha casa, um ruído assim tão estranho excitava-me até às raias dum terror incoercível. Todavia, consegui reprimir-me por mais uns minutos. As palpitações, porém, continuavam num crescendo de intensidade! Parecia-me que o coração do velho ia rebentar. Apoderou-se de mim então uma nova ansiedade - e se os vizinhos ouvissem aquelas insólitas pancadas? Chegara a hora do velho! Com um berro de raiva dei a força toda à lanterna e saltei para dentro do quarto. Agitou-o todo um tremor - mas só um. Num instante arrastei-o para o soalho, e atirei-lhe para cima a pesada cama. Sorri então alegremente, ao verificar que tudo estava consumado. Durante muitos minutos, porém, o coração continuou a bater com um som abafado. Isto, no entanto, não me incomodava; não se podia ouvir do outro lado da parede. Por fim cessou. O velho estava morto. Afastei a cama e examinei o cadáver. Sim, estava rígido como pedra, morto e bem morto. Pousei a mão sobre o coração e conservei-a aí uns poucos de minutos. Não se percebia a mais ténue palpitação. Não havia que duvidar: estava morto! Aquele olho nunca mais me atormentaria. Se ainda me tendes por doido, mudareis de parecer logo que vos descreva as ponderadas precauções que tomei para ocultar o cadáver. A noite ia avançando e eu apressava-me na minha tarefa, mas em silêncio. A primeira coisa que fiz foi esquartejar o cadáver. Cortei-lhe a cabeça, os braços e as pernas. Depois arranquei três tábuas do soalho do quarto e sepultei tudo entre os barrotes. Tornei a colocar as tábuas tão habilmente, tão atiladamente, que não havia olho humano - nem mesmo o dele - que pudesse lobrigar fosse o que fosse de anormal. Nada havia que lavar - não havia mancha nenhuma. O sangue caíra todo numa bacia que eu tivera a prudência de utilizar - ah! ah! Quando terminei todo este trabalho eram quatro horas, e ainda estava tão escuro como se fora meia-noite. Ao bater a última badalada no sino ouvi que alguém batia à porta da rua. Desci para abri-la, serenamente, afoitamente - pois que tinha eu agora que recear? Entraram três homens, que se apresentaram, com toda a delicadeza, como agentes da polícia. Um vizinho ouvira um grito durante a noi69


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te; levantaram-se suspeitas de que algum crime se tivesse perpetrado, e eles, os agentes, haviam sido incumbidos de passar uma busca ao prédio. Sorri - pois que havia eu de temer? Dei as boas vindas aos recém chegados e franqueei-lhes a casa. O grito, expliquei, fora eu próprio que em sonhos o soltara. O velho, acrescentei, achava-se ausente na aldeia. Acompanhei os visitantes por toda a casa. Pedi-lhes que examinassem que examinassem bem. Levei-os, por fim, ao quarto dele. Mostrei-lhes os seus tesouros, arrumados, intactos. No entusiasmo da minha confiança, levei cadeiras para o quarto e convidei-os a descansarem das suas fadigas, enquanto eu, na desvairada audácia do meu perfeito triunfo, colocava a minha cadeira mesmo no sítio por baixo do qual jazia o cadáver da minha vítima. Os agentes estavam satisfeitos. As minhas maneiras haviam-nos convencido. Eu estava perfeitamente à vontade. Eles estavam sentados, e, enquanto eu lhes respondia jovialmente, conversavam sobre coisas familiares. Passado pouco tempo, porém, senti-me empalidecer e, no meu íntimo, desejei que eles se fossem já embora. Doía-me a cabeça e parecia ter uma zoeira nos ouvidos; eles, porém, continuavam sentados e não cessavam de cavaquear. A zoeira nos ouvidos tornava-se agora mais nítida: falei mais alto para me livrar daquela sensação; mas o ruído continuava e era cada vez mais nítido, até que, por fim, percebi que o ruído não residia dentro dos meus ouvidos. Nesta conjuntura, fiquei, sem dúvida, muito pálido; mas falei com mais fluência e engrossei a voz. O ruído, porém, intensificava-se - e que podia eu fazer? Era um ruído abafado, soturno, acelerado, muito semelhante ao que faz um relógio embrulhado em algodão. Arquejava, ofegante - e, todavia, os polícias nada ouviam. Falei mais depressa, mais entusiasticamente; o ruído, porém, aumentava de intensidade. Levantei-me e pus-me a discutir sobre frioleiras, num tom de voz forte e com gestos violentos. Por que é que eles não se iam embora? Comecei a andar de um lado para o outro, batendo pesadamente com os pés no chão, fingindo-me enfurecido pelas considerações dos homens mas o ruído aumentava, aumentava sempre… Ó meu Deus! Que podia eu fazer? Espumei, disparei, praguejei. Agarrei na cadeira em que estivera sentado e pus-me a raspar com ela as tábuas do soalho, mas o ruído suplantava tudo e cada vez se ouvia mais. Era cada vez mais forte - cada vez mais forte, cada vez mais! E, no entanto, os homens continuavam a conversar prazenteiramente e sorriam. Era possível que eles não ouvissem? Deus omnipresente! - não, não! Eles ouviam - eles suspeitavam! - eles sabiam! - estavam zombando do meu horror! Era o que eu pensava, e é o que penso. Mas tudo, fosse o que fosse, era preferível àquela agonia. Tudo era mais tolerável do que aquela irrisão! Não podia suportar por mais tempo aqueles sorrisos hipócritas! Sentia 70


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que tinha de gritar ou de morrer! E então as pancadas continuavam escutai! - a bater cada vez com mais força! Cada vez com mais força! - Patifes! Bradei então, no auge do desespero, não dissimulem mais! Confesso o crime! Arranquem essas tábuas! Aqui, aqui - vejam, são as palpitações do seu hediondo coração!

O HOMEM LEOPARDO Jack London Tinha um olhar sonhador e distante e com a sua voz triste e insistente, gentil como a de uma moça, parecia a plácida encarnação de uma profunda melancolia. Era o Homem Leopardo, mas não parecia. A sua ocupação, de onde tirava a subsistência, era aparecer numa jaula de leopardos amestrados, diante de grandes assistências, que devia emocionar mediante certas demonstrações de coragem. Os seus patrões recompensavam-no de acordo com as emoções produzidas. Como disse, ele não parecia o que era. Anémico, de quadris e ombros estreitos, parecia dominado não por uma depressão profunda, mas por uma tristeza suave e delicada, que suportava com suavidade e mansidão. Eu já estava há uma hora tentando tirar alguma coisa dele, mas o homem aparentava carecer de imaginação. Na sua opinião, não havia nenhum romantismo, nem actos de bravura ou qualquer emoção na sua carreira pitoresca. Tudo era uma infinita e cinzenta monotonia. Leões? Sim, lutava com eles. Não tinha tal nada de extraordinário. Era necessário apenas não beber. Qualquer pessoa podia reduzir um leão à imobilidade, batendo-lhe com uma bengala. Uma vez, lutara com um durante meia hora. Bastava bater-lhe no focinho cada vez que ele investia. Quando o animal se tornava manhoso e avançava de cabeça baixa, só era preciso atirar com a perna para a frente. Quando o leão tentava agarrar a perna, recuava-se e batia-se de novo no focinho da fera. Era só. Com olhar distante e fala macia e fluente, mostrou-me as cicatrizes. Eram muitas. Uma delas, bem recente, mostrava o lugar onde um tigre lhe rasgara o ombro até ao osso. Pude ver os rasgões bem remendados no casaco que vestia. O braço direito, do cotovelo para baixo, parecia ter passado por uma debulhadora, tal o estrago feito por dentes e garras. Mas ele afirmava que isso não era nada. Os velhos ferimentos só o incomodavam um pouco no tempo húmido. De repente, o rosto iluminou-se ao lembrar-se de alguma coisa; tinha 71


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tanta vontade de dar-me uma história quanto eu de consegui-la. - Deve conhecer a história do domador que tinha um inimigo. Não? Fez uma pausa e olhou pensativamente um leão doente, na jaula em frente. Está com dor de dentes - explicou. - Bem, o número de sensação desse domador era meter a cabeça dentro da boca de um leão. O homem que o odiava assistia a todos os espectáculos do circo, na esperança de ver um dia o leão fechar a boca no decorrer do número. Acompanhou o circo por todo o país. Passaram-se os anos, ele ficou velho, o domador ficou velho, o leão ficou velho. E, afinal, um dia, viu o que tanto havia desejado. O leão fechou a boca e nem houve necessidade de chamar um médico. O Homem Leopardo olhou para as unhas de um modo que seria crítico se não fosse tão melancólico. - Ora, isso é que eu chamo paciência, e que é muito a meu jeito. Mas não era o jeito de um camarada que eu conheci, um francês pequeno, magro, anguloso, que engolia espadas e era politiqueiro. “Chamava-se De Ville e tinha uma linda mulher, que era trapezista e costumava saltar lá de cima numa rede, virando o corpo no ar do modo mais elegante que se possa imaginar. “De Ville tinha um temperamento vivo, tão ligeiro quanto a sua mão, e esta era tão ligeira quanto a pata de um tigre. “Um dia, o director do circo chamou-o de “gringo” ou de alguma coisa parecida. Ele empurrou-o contra a frágil tábua de pinho que usava no seu número de arremesso de facas tão depressa que o director não teve tempo de pensar e, ali, diante do público, De Ville cortou o ar com as suas facas, cravando-as na tábua em torno do corpo do director, tão perto que elas lhe furaram as roupas e algumas arranharam-lhe a pele. “Os palhaços tiveram que arrancar as facas para que o homem pudesse sair, porque estava verdadeiramente pregado. Daí por diante, todos tomaram cuidado com De Ville e ninguém se atreveu a mostrar mais do que uma reservada cortesia com a sua mulher. Ela era um pouco leviana, é verdade, mas toda a gente tinha medo de De Ville. “Havia, porém, um homem, chamado Wallace, que não tinha medo de coisa alguma. Era o domador de leões e tinha também o número de meter a cabeça na boca do leão. Fazia isso com qualquer dos animais do circo, mas preferia o “Augusto”, grande leão de bom génio, em que se podia sempre ter confiança. Como eu dizia, Wallace não tinha medo de coisa alguma, viva ou morta. Chamávamo-lo de “Rei”, e isso é o que ele era. Lembro-me de uma vez em que, completamente bêbado, entrou, para ganhar uma aposta, na jaula de um leão irritado e lutou com ele até ao fim, de mãos vazias, dando socos no focinho do animal. De Ville…” Houve um barulho atrás de nós e o Homem Leopardo voltou-se calmamente. Numa jaula dividida ao meio por uma grade, um macaco que metera a mão entre os barrotes fora agarrado por um grande lobo cinzento que procurava arrancar-lho à força, parecendo este esticar-se, 72


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cada vez mais, como se fosse um elástico. Os companheiros do infortunado macaco faziam um barulho infernal. Não havia nenhum guarda perto e, por isso, o Homem Leopardo deu alguns passos em frente, desfechou um golpe firme no focinho do lobo com a bengala e voltou, com um sorriso triste de desculpas, para retomar a sentença inacabada, como se não tivesse havido interrupção. “…olhava muito para Wallace e este para aquela, enquanto De Ville fechava os olhos. Demos conselhos a Wallace, mas não adiantou. Troçou de nós, como troçou de De Ville no dia em que empurrou a cabeça do francês num balde de cola, porque queria brigar. De Ville miseravelmente sujo, mas conservou-se frio como um pedaço de gelo e não fez ameaças. Entretanto, vi-lhe nos olhos um brilho que vira muitas vezes nos olhos das feras. Saí dali para dar um conselho a Wallace. Ele riu, mas depois disso deixou de olhar tanto para Madame De Ville. “Passaram-se muitos meses. Nada aconteceu e comecei a pensar que os meus receios eram infundados. Estávamos no Oeste, naquela época, dando espectáculos em S. Francisco. Uma noite, com o circo cheio de mulheres e crianças, saí à procura de Red Denny, o encarregado de toldos, que me pedira um canivete. Passando por uma das barracas, olhei por um buraco da lona para ver se descobria Denny. Não estava ali mas vi Wallace vestido e à espera da hora do seu número, na jaula dos leões. “Wallace apreciava, divertindo-se muito, uma discussão acalorada entre dois trapezistas. A barraca estava cheia de gente, que também apreciava a discussão, à excepção de De Ville, que olhava para Wallace com indisfarçável ódio. Wallace e os outros estavam muito interessados na discussão e não prestaram atenção a esse olhar nem ao que aconteceu a seguir. “Eu, porém, vi tudo, através do buraco da lona. De Ville tirou o lenço do bolso, fez menção de enxugar o suor do rosto, pois fazia calor e, ao mesmo tempo, passou perto de Wallace, pelas costas. Não parou. Sacudiu o lenço e seguiu até à porta, de onde olhou rapidamente para trás. Esse olhar imediatamente me alarmou, porque vi nele não somente ódio, mas também triunfo. “De Ville precisa ser vigiado”, foi o que pensei. Na verdade, suspirei de alívio quando o vi sair do circo e tomar a carreira para a cidade. Pouco depois, entrei no circo, onde finalmente encontrei Red Denny. Wallace fazia o seu número, emocionando o público. Estava particularmente inquieto e irritou os leões até que todos começaram a rugir, isto é, todos menos o velho “Augusto”, que estava muito gordo, velho e indolente para se irritar com alguma coisa. “Afinal, Wallace bateu com o chicote nos joelhos do velho leão, fazendo-o tomar posição. O velho “Augusto”, piscando os olhos, abriu a boca e Wallace meteu a cabeça. Então, as mandíbulas do leão aproximaramse e fecharam-se com rapidez.” O Homem Leopardo sorriu maliciosamente e o olhar distante desapareceu do seu rosto. 73


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- E este foi o fim de Wallace - disse ele, com a sua voz triste e lenta. - Depois que a confusão serenou um pouco, aproveitei e fui cheirar a cabeça de Wallace. E, aí, dei um espirro… - Era… era? - perguntei ansiosamente. - Rapé. De Ville tinha-o atirado para a cabeça de Wallace, na barraca, quando sacudiu o lenço atrás dele. O velho “Augusto” não tivera intenção de fazer aquilo. Espirrara, apenas.”

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UM CRIME ENGENHOSO Roberto Arlt As alegações dos três irmãos da suicida foram confrontadas. Não tinham mentido. O mais velho Juan, permanecera das cinco da tarde até à meia-noite (a senhora Stevens suicidou-se entre sete e dez da noite) detido numa esquadra, por imprudente participação num acidente de trânsito. O segundo irmão, Esteban, estivera no povoado de Lister desde as seis da tarde daquele dia até às nove do seguinte. Quanto ao terceiro, doutor Pablo, não se afastara em nenhum momento do laboratório de análise de leite da Cia. Erpa, mais exactamente do sector de doseamento da gordura. O curioso é que, naquele dia, os três irmãos tinham almoçado com a suicida, comemorando o seu aniversário, e ela, por sua vez, em nenhum momento deixara entrever uma intenção funesta. Todos comeram alegremente e, às duas da tarde, os homens retiraram-se. As suas declarações coincidiram em tudo com as da criada que, desde há muitos anos, trabalhava para a senhora Stevens. Essa mulher, que não dormia no emprego, às sete da noite foi para casa. A última ordem que recebeu foi a de dizer ao porteiro que trouxesse o jornal da tarde. Às sete e dez o porteiro entregou o jornal à senhora Stevens, e o que fez esta antes de se matar pode ser presumido logicamente. Reviu os últimos lançamentos da contabilidade doméstica, pois o livro estava na mesa da copa, com os gastos do dia sublinhados. Serviu-se de uísque com água e nessa mistura deixou cair, aproximadamente, meio grama de cianeto de potássio. Pôs-se a ler o jornal, depois bebeu o veneno e, ao sentir que ia morrer, levantou-se, para logo tombar no chão atapetado. O jornal foi achado entre os seus dedos contraídos. Tal foi a primeira hipótese, construída a partir de um conjunto de coisas pacificamente ordenadas no interior da residência, mas esse suicídio estava carregado de absurdos psicológicos e não queríamos aceitá-lo. No entanto, só a senhora Stevens podia ter posto o veneno no copo. O uísque da garrafa não continha veneno. A água misturada também era pura. O veneno, claro, podia estar no fundo ou nas paredes do copo, mas esse copo tinha sido retirado de uma prateleira onde havia uma dúzia de outros iguais: o eventual assassino não havia de saber qual copo que a senhora Stevens escolheria. De resto, o laboratório da polícia informou-nos que nenhum copo tinha veneno nas paredes. A investigação não era fácil. As primeiras provas - provas mecânicas, como eu as chamava - sugeriam que a viúva morrera por suas próprias mãos, mas a evidência de que, ao ser surpreendida pela morte, estava distraída na leitura do jornal, tornava disparatada a ideia do suicídio. Essa era a situação quando fui designado pelos meus superiores para continuar a investigação. A informação de laboratório era categórica: havia veneno no copo que a senhora Stevens usara, mas a água e 75


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o uísque da garrafa eram inofensivos. O depoimento do porteiro era igualmente seguro: ninguém visitara a senhora Stevens depois que lhe entregara o jornal. Se após as diligências iniciais eu tivesse concluído o inquérito optando pelo suicídio, os meus superiores nada teriam objectado. Porém, concluir o inquérito nesses termos era a confissão de um fracasso. A senhora Stevens tinha sido assassinada e havia certo indício: onde estava o invólucro do veneno? Por mais que revistássemos a casa, não encontrámos a caixa, o envelope ou o frasco do tóxico. Aquilo era eloquente. E havia outra questão: os irmãos da morta eram três malandros. Os três, em menos de dez anos, tinham desbaratado os bens herdados dos pais, e seus actuais rendimentos não eram satisfatórios: Juan trabalhava como ajudante de um advogado especializado em divórcios. Mais de uma vez a sua conduta anterior se mostrara suspeita, dando margem à presunção de chantagem. Esteban era corretor de seguros e havia feito um seguro para sua irmã, sendo ele mesmo o beneficiário. Quanto a Pablo: era veterinário, mas tivera sua cédula profissional cancelada, após ser condenado por dopar cavalos. Para não morrer de fome empregarase na indústria leiteira, no sector de análises. Assim eram os irmãos. Já a senhora Stevens tinha enviuvado três vezes. No dia de seu “suicídio” completara 68 anos, mas era uma mulher extraordinariamente conservada, corpulenta, forte, enérgica, de cabelos viçosos, e tinha condições de pretender novo casamento. Dirigia a casa com alegria e pulso firme. Adepta dos prazeres da mesa, a sua despensa estava magnificamente provida de vinhos e comestíveis, e não há dúvida de que, sem aquele “acidente”, teria vivido cem anos. Supor que uma mulher como ela seria capaz de suicidar-se era desconhecer a natureza humana. A sua morte beneficiaria cada um dos três irmãos com duzentos e trinta mil pesos. O cadáver foi descoberto pelo porteiro e pela criada às sete da manhã, quando esta, não conseguindo abrir a porta, que estava trancada por dentro, chamou o homem para a ajudar. Às onze da manhã, como creio ter dito anteriormente, estava em nosso poder a informação do laboratório. Às três da tarde, eu deixava o quarto em que estava detida a empregada, na sua própria casa, com uma ideia na cabeça: o assassino arrancara um vidro da janela para entrar na casa, e após deitar veneno ao copo recolocara o vidro no lugar. Era uma fantasia de romance policial, mas convinha verificar a hipótese. Saí da residência da senhora Stevens decepcionado. A minha especulação era falsa. A massa dos vidros não tinha sido removida. Decidi caminhar e pensar um pouco, o “suicídio” da senhora Stevens preocupava-me bastante. Não policialmente, mas, diria, desportivamente. Estava diante de um assassino sagaz, possivelmente um dos três irmãos, que se valera de um expediente simples e ao mesmo tempo mis76


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terioso, impossível de ser detectado na nitidez daquele vazio. Absorvido em conjecturas, entrei num café, tão ausente do mundo que, embora detestasse bebidas alcoólicas, pedi um uísque. Quanto tempo esteve a bebida, sem ser tocada, diante dos meus olhos? Não sei. De repente, vi o copo de uísque, a garrafa da água, o pratinho com gelo. Atónito, fiquei olhando aquilo. Uma hipótese dava grandes saltos em meu cérebro. Chamei o empregado, paguei a bebida que não tomara, apanhei um táxi e fui à casa da criada. No quarto, sentei-me à frente dela. - Olhe-me nos olhos - disse-lhe - e veja bem o que vai responder: a senhora Stevens bebia uísque com gelo ou sem gelo? - Com gelo, senhor. - Onde comprava o gelo? - Não comprava, senhor. Em casa há um frigorífico pequeno que faz gelo em cubos - e a criada, prosseguiu: - Agora me lembro, o frigorífico estava estragado. Ontem, o senhor Pablo consertou-o num instante. Uma hora depois encontrávamo-nos na residência da senhora Stevens: o químico de nosso laboratório, o técnico da fábrica que vendera o frigorifico, o juiz de instrução e eu. O técnico retirou a água do depósito do congelador e vários cubos de gelo. O químico iniciou o seu trabalho e, minutos depois, disse: - A água está envenenada, os cubos também. - Olhámo-nos, contentes. O mistério tinha terminado. Agora era um mero jogo a reconstituição do crime. O doutor Pablo, ao trocar o fusível do frigorífico (era este o defeito, segundo o técnico), lançara no congelador certa quantidade de veneno dissolvido em água. Sem suspeitar, a senhora Stevens preparara o uísque. Retirara um cubo do congelador (o que explicava o prato com gelo derretido, encontrado na mesa) e colocara-o no copo. Sem imaginar que a morte a esperava a viciara a leitura do jornal, até que, julgando o uísque suficientemente gelado, tomara um gole. Os efeitos não tardaram. Faltava prender o veterinário. Em vão o esperámos em sua casa. Ignoravam onde estava. No laboratório da indústria leiteira informaram-nos que chegaria só às dez da noite. Às onze, o juiz, o meu superior e eu apresentamo-nos no laboratório da Erpa. O doutor Pablo, quando nos viu em grupo, levantou o braço, como se quisesse repudiar as nossas conclusões. Abriu a boca e caiu ao lado de uma mesa de mármore. Um enfarte vitimara-o. No seu armário estava o frasco do veneno. Foi o assassino mais engenhoso que conheci.

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O PEQUENO CINEMA DE EDGWARE ROAD Graham Greene Sob a fina chuva de verão, Craven ultrapassou a estátua de Aquiles. Os candeeiros acabavam de acender-se, mas já até Marble Arch, os carros seguiam-se em filas cerradas, e os rostos rudes perscrutavam a sombra, à espreita de alguém, não importa quem, de aceitável, com quem passar um bom momento. Craven passeava o seu azedume; erguera e apertara em volta do pescoço a gola do impermeável; estava num dos seus maus dias. Durante toda a travessia do Parque, imagens amorosas perseguiramno, mas o amor compra-se com dinheiro. Tudo o que um homem pobre pode oferecer-se, é a baixa luxúria. O amor exige um fato bem cortado, um automóvel, um apartamento ou, na falta dele, um bom hotel. O amor envolve-se em celofane. Não podia esquecer um só instante a gravata no fio escondida pelo impermeável, e os punhos puídos; transportava o corpo como um objecto odiado. (Conhecia por vezes momentos de felicidade na sala de leitura do British Museum, mas o seu corpo arrancavam-no a eles). As suas únicas recordações sentimentais eram as de gestos vergonhosos realizados nos bancos de jardins públicos. Na opinião das pessoas, o corpo morre demasiado cedo… para Craven, a inquietação era outra. O corpo continua a viver… e por entre as finas palhetas brilhantes da chuva, viu passar um homenzinho vestido de preto que se encaminhava para uma sala pública levando um estandarte: «A Carne Ressuscitará». Craven recordou-se de um sonho do qual, por três vezes, despertara em sobressalto: vira-se só na enorme, sombria e cavernosa sepultura do mundo inteiro. O nosso globo estava escavado de alvéolos para receber os mortos, e cada vez que tinha este sonho, Craven experimentava um novo sobressalto de horror ao ver que os corpos não apodreciam. Nem vermes, nem decomposição. Sob o solo do mundo, arrastavam-se massas de carne morta pronta a ressuscitar com as suas verrugas, os seus abcessos, as suas doenças de pele. Estendido na cama, acolhera como a «Boa Nova» a lembrança de que na realidade o corpo putrifica-se. Apressando o passo, desembocou em Edgware Road. Soldados de sentinela, grandes animais longos e lentos, de pernas esbeltas como serpentes nas calças estreitas, passeavam dois a dois. Craven olhou-os com ódio, detestando o seu ódio porque sabia bem que ele era apenas inveja. Via que qualquer daqueles homens tinha um corpo mais são do que o seu; a má digestão atormentava-lhe o estômago; tinha a certeza de que o seu hálito era fétido, mas a quem perguntar? Chegava secretamente a pôr por vezes perfume: era um dos seus mais repugnantes segredos. Porque lhe pediam que acreditasse na ressurreição daquele corpo que ele tanto desejava esquecer? Por vezes, à noite, nas suas orações (um pouco de fé religiosa permanecia escondida no seu corpo como um ver79


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me numa noz), pedia que o seu próprio corpo pelo menos não ressuscitasse nunca. Ele conhecia muito bem todas as ruas transversais próximas de Edgware Road. Quando estava de humor sombrio, caminhava até à exaustão total, olhando de lado para a sua imagem reflectida nas montras de Salmon e Gluckstein e as dos restaurantes A.B.C.. Foi assim que ele em breve notou os cartazes afixados em frente de Culpar Road. Eles não tinham nada de insólito porque a Companhia Teatral do Banco Barclay alugava por vezes aquela sala para aí realizar uma soirée, ou então nela projectavam em apresentação comercial algum filme desconhecido. Aquele teatro fora construído em 1920 por um optimista que imaginava que o preço módico do terreno compensaria o inconveniente de se encontrar a mais de um quilómetro da zona tradicional dos teatros. Mas nenhuma peça aí conhecera o sucesso e a pequena sala fora abandonada aos ninhos de ratos e às teias de aranhas. O estofo das cadeiras nunca fora renovado e a única vida que nela reinava agora era a animação efémera e fictícia criada por uma representação de amadores ou a projecção privada de um filme. Craven parou para ler o cartaz. Haviam evidentemente optimistas em 1939, porque só um homem cego pelo optimismo podia pensar que ganharia dinheiro transformando aquele local no «Lar do Filme Mudo». A primeira estação de «Clássicos do Cinema» (essa expressão pretensiosamente intelectual) era anunciada; não seria nunca seguida de uma segunda. Bom, os lugares não eram caros, e como estava fatigado, podia gastar um shilling para sentar-se e abrigar-se da chuva. Craven comprou o bilhete e penetrou nas trevas dos fauteils de orquestra. Numa escuridão espessa, um piano desfiava uma ária monótona que lembrava Mendelssohn. Craven sentou-se num fauteuil na coxia central e teve imediatamente a impressão de estar rodeada de vazio. Não, não haveria a segunda «estação». Num écran, uma mulher gorda vestida com uma espécie de túnica torcia as mãos cambaleando num passo estranhamente sacudido em direcção a um divã. Sentou-se e dirigiu olhares enlouquecidos de cão pastor através das madeixas desordenadas dos cabelos negros e rebeldes. Dir-se-ia por vezes que ela se dissolvia completamente para não ser mais que manchas, jactos de luz, linhas tortuosas. Uma legenda anunciava: Traída pelo amante, de nome Auguste, Pompília tenta pôr fim aos seus tormentos. Craven acabou por distinguir o que o rodeava: um deserto de fauteuils na penumbra, não havia vinte espectadores ao todo; alguns pares ciciando, cujas cabeças se tocavam, e vários homens solitários como ele e envergando o mesmo uniforme; um impermeável barato. Estavam espalhados, sentados aqui e ali como mortos, e a obsessão da Craven voltou a dominá-lo: cerrou os dentes de horror. Pensou lastimosamente: estou doido, os outros não têm estas sensações. Até um teatro vazio lhe lembrava aquelas cavernas onde os corpos aguardam a ressurreição. «Auguste, escravo do vício, ordena que lhe tragam vinho». 80


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Um actor vulgar e maduro, de aspecto germânico, apoiado num cotovelo, com o outro braço enlaçando uma mulher gorda com uma camisa curta. Os sons um pouco azedos da Canção da Primavera continuavam a soar estupidamente e o écran pestanejava causando uma sensação desagradável. Alguém tacteando o caminho na escuridão, roçou os joelhos de Craven e ultrapassou-o às apalpadelas; era um homem baixo. Craven teve a sensação desagradável de que uma longa barba lhe roçava os lábios ao passar. Ouviu em seguida um longo suspiro no momento em que o recém-chegado encontrava o fauteuil vizinho, enquanto que, no écran, os acontecimentos se desenrolavam com uma tal velocidade que Pompília estava já apunhalada - segundo supôs Craven - e jazia, forma lamentável e sem vida, entre os escravos em pranto. - Que aconteceu? Ela está a dormir? - sussurrou uma voz baixa e ofegante ao ouvido de Craven. - Não. Morta. - Assassinada? - perguntou a voz num tom de vivo interesse. - Não creio. Apunhalou-se. Ninguém silvou: chut! Ninguém se interessava bastante por aquela história para exigir silêncio. Separados por lugares vazios, os espectadores estavam em atitudes que traíam a sua indiferença e lassidão. O filme estava ainda longe do fim; havia crianças nas quais era preciso pensar: ia continuar na segunda geração? Mas o homenzinho barbudo do fauteuil vizinho parecia interessar-se apenas pela morte de Pompília. O facto de haver entrado precisamente nesse instante fascinava-o visivelmente. Continuava a murmurar para si próprio, com a mesma voz sufocada e Craven ouviu-o repetir a palavra: «coincidência», depois: «absurdo quando se pensa nisso», e ainda: «nem o menor vestígio de sangue». Craven não o ouvia; imóvel, as mãos apertadas sobre os joelhos, considerava, como já fizera inúmeras vezes, a ameaça da loucura que pesava sobre o seu cérebro. Era preciso sacudir-se, ir de férias, consultar um médico (Deus sabe que infecção trazia nas veias). Notou que o vizinho se dirigia directamente a ele. - Como? - perguntou-lhe com impaciência. - Que diz? - Haveria mais sangue do que pode imaginar. - De que está a falar? Craven tinha a impressão quando o homem se voltava para ele, que a sua respiração húmida o enlameava. Havia como que um embaraço na sua voz, uma espécie de gorgolejo. - Quando se mata um homem - repetiu ele. - È uma mulher - disse Craven irritado. - O resultado é o mesmo. - E, além disso, não se trata de um crime. - Pouco importa. Pareciam ter mergulhado numa inútil e absurda discussão no escuro. - É que eu, sei - declarou o homenzinho barbudo num tom de profunda vaidade. 81


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- Sabe o quê? - Essas coisas - respondeu ele com uma ambiguidade prudente. Craven voltou-se para tentar vê-lo distintamente. Era um louco? Havia naquilo um presságio do que lhe poderia acontecer um dia, a ele, aquelas frases incompreensíveis sussurradas a desconhecidos nos cinemas? Tentando ver, pensava: não, louco não, tenho ainda toda a razão. Quero conservar toda a minha razão. Só conseguiu distinguir um pequeno corpo negro dobrado sobre si próprio. O homem recomeçara a falar sózinho. Dizia: - Tagarelices! Que tagarelices! Dirão que era para cinquenta livros. Mas é mentira. Motivos, sempre motivos. Aceitam sempre o primeiro que aparece. Não procuram mais longe. Trinta anos de motivos. Que ingenuidade… E assim sucessivamente, sempre naquele tom de extrema suficiência, naquela voz sufocada. Eis pois o que era a loucura. Pelo que Craven podia observar, ele devia estar são de espírito… relativamente. Depois o homem voltou-se de novo para ele e cobriu-o de perguntas. - Diz que ela se matou? Mas como ter a certeza? Não se chega a saber que mão segurou o punhal. Numa brusca atitude de confiança, colocou a mão sobre a de Craven: os dedos estavam húmidos e pegajosos. O horror duma possível explicação invadindo-o, Craven perguntou: - Que quer dizer? - Eu sei - replicou o homenzinho. - Na minha situação, chega-se a saber quase tudo. - Que situação? - disse Craven que continuava a sentir aquela mão pegajosa sobre a sua. Tentava saber se ele perdera ou não a razão… apesar de tudo, podia haver uma dezena de explicações: o homem podia ter tocado em qualquer coisa doce. - Você diria na minha situação que ela é bastante desesperada. Por vezes, a voz parecia perder-se-lhe completamente na garganta. Acontecimentos incompreensíveis desenrolavam-se no écran; naqueles velhos filmes, quando se desvia os olhos deles nem que seja por um minuto, a intriga avança com uma rapidez!... Só os actores se deslocam com gestos lentos e sacudidos. Uma rapariga em camisa de noite tinha o ar de chorar entre os braços dum centurião romano; era a primeira vez que Craven os via, a um e a outro: «Entre os teus braços, oh Lucius, não receio a morte». O homenzinho gargalhou docemente; sabia. Retomara o seu monólogo. Fora fácil proceder como se ele não estivesse ali, sem aquela mão pegajosa que ele acabou por retirar. Parecia procurar apoiar-se nas costas da cadeira que estava na frente dele. A cabeça tinha tendência para inclinar-se bruscamente para o lado, como a de uma criança idiota. Numa voz distinta, pronunciou estas palavras inesperadas: - O drama de Bayswater. - Como? - disse Craven sobressaltando-se. 82


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Antes de entrar no Parque, lera aquelas palavras num cartaz do quiosque de jornais. - Como? - Disse: o Drama. - Pensar que põem o beco sem saída: Cullen em Bayswater! De repente: o homenzinho começou a tossir, o rosto voltado para Craven, dirigindo a sua tosse contra ele como por rancor. Readquiriu a voz fraca ao deixar a cadeira. - Vejamos… o meu guarda-chuva… - Não tinha guarda-chuva. - O meu guarda-chuva - repetiu ele - o meu… Pareceu perder a fala irremediavelmente. Tacteando, introduziu-se entre os joelhos de Craven. Aquele deixou-o partir, mas antes que o homenzinho tivesse atingido a cortina poeirenta da saída que ondulava ao vento, o écran ficou subitamente vazio e de um branco brilhante; o filme partira-se. Um candeeiro coberto de poeira acendeu-se bruscamente no teto. Iluminava precisamente o bastante para que Craven pudesse distinguir as manchas que lhe sujavam as mãos. Não era demência; a prova estava ali. Não era louco; estivera sentado ao lado de um louco, um louco que num beco… como lhe chamara: Colon, Collin…? Craven abandonou o lugar dum salto; a cortina negra agitou-se contra o seu rosto. Mas era demasiado tarde; o homem desaparecera e ele podia escolher entre três direcções. Em lugar de escolher uma ao acaso, Craven entrou numa cabine telefónica com uma lucidez e uma decisão invulgares nele, marcou o número da Sclotland Yard: 999. Não foram precisos mais de dois minutos para obter o serviço que desejava. Responderam-lhe com interesse e muita bondade. Sim, um crime fora cometido num beco, Cullen News. Tinham cortado o pescoço a um homem de uma orelha à outra com uma faca de pão, um crime atroz. Craven começou a contar que estivera sentado no cinema ao lado do assassino; só podia ser ele; ele próprio, Craven tinha vestígios de sangue nas mãos; e, continuando a falar, lembrava com desgosto a barba húmida. Devia haver nela uma enorme quantidade de sangue. Mas voz da Scotland Yard interrompeu-o: «Oh, não, ouviu ele, nós prendemos o assassino… sem dúvida possível. O cadáver é que desapareceu.» Craven pousou o auscultador. Disse em voz alta: «Porque me aconteceu isto? Porquê a mim?» Regressara ao horror do sonho… A rua sórdida onde a noite caía não era senão um daqueles inúmeros túneis ligando um ao outro os túmulos onde repousavam os corpos imperecíveis. Repetia: «É um sonho, um sonho.» Mas inclinando-se para o pequeno espelho por cima do telefone, viu o próprio rosto sujo de sangue como pelas finas gotinhas dum pulverizador. Começou a gritar: «Não quero enlouquecer! Tenho juízo. Não quero enlouquecer.» Em alguns segundos foi rodeado por uma pequena multidão enquanto um agente da polícia se aproximava.

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A ÚLTIMA GARGALHADA Lix Agrabee É a maior de todas as chalaças. Vou morrer dando gargalhadas… Ela é pequenina, macia e os seus lábios pareciam de veludo sob os meus. Eu era louco por ela e não podia acreditar na minha sorte, quando consentiu em vir morar comigo. Coisa estranha… mesmo neste instante em que a vejo, recostada à mesa, soprando o fumo de um cigarro perfumado no meu rosto coberto de suor, não posso dizer que estou arrependido. Valeu a pena enquanto durou. Depois de uma vida inteira com Emily, ela valeu o sacrifício. É o mesmo que tentar viver de asma, e possuir depois uma gatinha da Pérsia, de pêlo sedoso para acariciar. Não se encontram muitas vezes mulheres assim, em cidadezinhas como esta. Habitualmente casam-se muito jovens, encantadas por uma noite de luar e por algum fazendeiro jovem. Ou então vão para uma grande cidade, ou fogem com um caixeiro-viajante que mais tarde as abandona. Eu mal podia dormir à noite pensando nela, depois que veio passar as férias na pensão da velha Harkinson, embora não conseguisse descobrir o motivo por que escolhera Orrinville. Esta não é uma dessas aldeias pitorescas, de cartão de postal que se costumam ver nos livros de viagens. Agora sei, porque veio para cá. Mas naquela ocasião não sabia. Acho que ninguém na cidade se surpreendeu, quando ouviu dizer que Emily me abandonara, como sempre ameaçara fazer. Acho também que todos estavam satisfeitos por saberem que partira. Procurem compreender: todos gostavam de mim; mas não havia uma só alma que pudesse negar o ódio que tinha por Emily. Causava mais aborrecimentos com a sua língua do que vocês poderiam acreditar: criava eternos atritos com a maledicência, e que eu saiba destruiu pelo menos dois lares. Por isso creio que houve um suspiro geral de alívio, e talvez uma prece em acção de graças por minha causa. - Não sei como podem suportá-la tanto tempo - disse-me Tom Mc Cracken ao encontrar-me na rua. - Se me permite, a sua mulher era uma criatura mesquinha e insuportável, não era? - Bem… você sabe. Há de tudo neste mundo, Tom - respondi fracamente. - Não me parecia correcto invectivar-lhe o procedimento. - Ouvi dizer que a pequena Stone da pensão, está de olho em si. Sorriu, com ar de quem compreendia estas coisas. - Acho que não posso pensar em casar-me outra vez. Não sou livre. - Mas quem fala em casamento? Talvez ela queira tomar conta da sua casa. E o bom Mc Cracken piscou os olhos divertido. - Afinal de contas nada podem provar, ou podem? Qualquer cidadão tem direito de ter uma governanta, não é assim? Foi assim que após algum tempo Ella Stone veio tomar conta da casa. 85


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Todos os habitantes da cidade pareceram divertir-se com aquilo lembrando-se da nariguda Emily, da sua língua afiada e dos anos de vida miserável que me fizera passar. Não estou a lamentar o rumo que o caso tomou. Como já disse, valeu, enquanto durou. Mesmo no princípio eu não podia compreender o que Ella com seus cabelos brilhantes - embora depois de algum tempo começasse a notar que eram escuros na raiz - e suas mãos acetinadas tinha visto em mim, o taciturno e amargurado Lute Brown. Não era uma jovem extravagante. Mesmo depois que descobriu a caixa onde eu guardava as economias de vários anos, não me pediu coisas bonitas, nem outras frivolidades. Naturalmente a sua loucura era metódica. Mas eu nunca desconfiei; nunca sonhei. Comecei a achar que o meu café tinha um gosto amargo, mas logo Ella se aninhava nos meus joelhos, e acariciava-me o pescoço como uma gatinha brincando, corria as mãos entre os meus escassos cabelos grisalhos e… bem teria engolido até cicuta sem me queixar. Depois as dores começaram. Não liguei importância, ao princípio, mas quando pioraram tanto que não pude mais abandonar o divã da sala de estar, disse-lhe que era melhor chamar o velho doutor Bradley. Os seus olhos abriram-se muito. - Queridinho… dói assim tanto? Olha, meu amor, talvez, talvez uma massagem faça passar as dores. Mas eu estava em agonia. Pouco depois afastei a mãozinha macia que me acariciava tão delicadamente o corpo. - Acho que teremos de chamar o médico, Ella. Vá procurá-lo. Saiu e os minutos passaram. Fui cambaleando até á janela, para ver se chegavam e caí no chão, depois consegui pôr-me em pé outra vez. Por um segundo, fiquei sem saber o que pensar. Lá estava ela, sentada num velho banco entre dois carvalhos, levando, de quando em quando um cigarro à boca vermelha e apetitosa, soprando o cigarro entre os dedos de pontas escarlates, balouçando uma perna bem feita e o pé descalço. Fiquei sem saber o que fazer. Era impossível sair e ir buscar socorro. Era tarde demais para isso. Era tarde demais para muitas coisas. Agora eu via claro e compreendia tudo. Compreendi o motivo por que uma mulher daquelas escolhia uma cidadezinha onde é relativamente fácil fazer amigos e pescar um bom peixe. Ficaria muito bem, quando eu desaparecesse. Mas… como esperava livrar-se do meu cadáver? Creio que me viu, porque se pôs em pé com um sorriso satisfeito, atirou fora o cigarro e entrou. Estava segura. Era tarde de mais para que eu fizesse alguma coisa por mim, ou contra ela. Sabia disto e tinha a certeza de que eu também sabia. - Como te sentes agora, Lute? Perfeitamente à vontade, pensei, admirado. Parecia estar acostumada àquilo: acostumada a tratar com velhotes, depois a livrar-se deles levando o que puder obter. 86


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E foi assim que vim a saber. Sentada na beira da mesa, ela falou-me a seu respeito, fumando e olhando-me calmamente como se estivéssemos apenas a passar o tempo. Vivera numa fazenda isolada a cerca de cento e cinquenta milhas de Orrinville… - Fui-me aborrecendo por não possuir nada: nem roupas bonitas, nem divertimentos, nada… Por isso, concebera a ideia que pusera em prática com tanto sucesso. «Tu és o terceiro «trouxa» que liquido. Aliás, estas são pequenas viagens de negócios e nada mais - disse, rindo com ar indulgente, para consigo mesma. - Esta é a última. Já tenho o suficiente para viver no luxo o resto da vida. Obrigado, Lute, por me teres auxiliado». - Como te livras das tuas vítimas? - Muito simples. Levo-as comigo, como te levarei, quando voltar. Tu desaparecerás muito simplesmente, como eu, no que respeita a Orrinville. - Como me levarás contigo? - Não sou tão tola que não tenha planeado tudo - riu muito satisfeita com a sua esperteza. Farei o que já fiz antes; é claro que não posso deixar-te aqui. Se não houver um cadáver não haverá provas de crime e, o que é mais importante nenhuma suspeita. Toda a gente acreditará de bom grado que deixámos a cidade e ninguém pensará muito nisto. - Mas… mas como? - balbuciei. Eu estava numa agonia torturante; mas a minha vontade de ferro dava-me forças para esperar até ao fim a elucidação daquele mistério. Ella! A linda, macia, deliciosa Ella… uma assassina profissional. - Vais enterrar-me? Mostrou-se irritada com a minha estupidez. - Não sejas parvo; como poderia fazer isso? Não se passará um minuto sem que um bisbilhoteiro venha meter o nariz nesta casa para saber se é verdade o que todos suspeitam, mas não podem provar! Enterrar-te? Como poderia fazer isso aqui? Lá em casa há inúmeros lugares apropriados onde tu nunca serás descoberto. Mas aqui? Fica certo de que não há, nesta casa nem um cantinho onde eu possa livrar-me de ti. O seu sorriso satisfeito cresceu até se transformar numa legítima gargalhada. Estava desvanecida com o seu próprio eu. Serão assim todos os assassinos? Acharão todos que podem levar a coisa até ao fim? Porque naturalmente agora via que não é possível. - Vou colocar-te naquela mala enorme, existente naquele sótão, que cheira tão mal. Descobri-a um dia, quando passei uma revista a ver se podia deixar de comprar a mala, o que é sempre perigoso. Não levarei outra bagagem, portanto não levantarei suspeitas. Numa hora Tom levar-me-á à estação; ela já prometeu. Esta noite tu dormirás num leito permanente muito longe de Orrinville. Nada haverá para revelar… Começou a explicar os detalhes, mas eu não escutava. Os seus olhos arregalaram-se, quando comecei a rir. Mesmo com aquelas dores cruciantes o meu riso ainda soava como uma gargalhada. 87


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Não o pude evitar. É a melhor piada que já ouvi. E eu vou mesmo morrer dando gargalhadas. Ela não pode levar-me na mala. Sabem porquê? Porque Emily está lá dentro! Ah! Ah! Ah!

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A TISANA Léon Bloy Jacques considerou-se verdadeiramente ignóbil. Era odioso continuar ali, no escuro, como um espião sacrílego, enquanto aquela mulher, que ele desconhecia inteiramente, se confessava. Neste caso, porém, deveria ter-se afastado assim que ela chegara com o padre, ou pelo menos ter feito algum barulho a fim de adverti-los da presença de um estranho. Agora era demasiado tarde e a horrível indiscrição só poderia agravar-se. Desocupado, à procura, como as centopeias, de um recanto fresco, no fim desse dia canicular, tivera a fantasia, um tanto em desacordo com as suas fantasias habituais, de entrar na velha igreja; e pusera-se a devanear, com os olhos fitos na grande rosácea que aos poucos se extinguia. Alguns minutos depois se tornava, sem saber como, nem porquê, testemunha involuntária de uma confissão. É verdade que o que ouvia não passava de um cochicho indistinto e sem nitidez. Para o fim, porém, o colóquio pareceu animar-se. Aqui e ali distinguiam-se algumas sílabas, emergindo do rio opaco daquela conversa de confessionário, e o rapaz, que, por milagre, nada tinha de um refinado patife, sentiu medo de surpreender confissões que evidentemente não lhe eram destinadas. De repente, o que receava aconteceu. Pareceu operar-se violento redemoinho, cujas ondas bramiram, separando-se, como para deixar surgir um monstro, e o intruso, esmagado de espanto, ouviu estas palavras proferidas com impaciência: - Estou-lhe dizendo, padre, que pus veneno na tisana! E nada mais. A mulher, de rosto invisível, ergueu-se do genuflexório e, silenciosamente, desapareceu na espessura das trevas. Quanto ao padre, ficou imóvel como um cadáver, e alguns minutos se arrastaram antes que ele abrisse a porta e se fosse, por sua vez, com o passo tardo de um homem oprimido. Foi necessário o carrilhão persistente das chaves do sacristão e a ordem de sair, longamente bradada na nave, para que Jacques se pusesse de pé, tão aturdido o deixaram aquelas palavras que dentro dele repercutiam como um clamor. Havia reconhecido nitidamente a voz de sua mãe! Oh! Era impossível enganar-se. Reconhecera-lhe até o andar, quando a sombra da mulher, a dois passos dele, se levantara. Mas, então, tudo se desmoronava, tudo se esvaía, tudo não passava de monstruoso embuste! Vivia só com essa mãe, que não via quase ninguém e não saía de casa, a não ser para ir à igreja. Habituara-se a venerá-la de todo o coração, como a um exemplo único de bondade e rectidão. Volvendo os olhos ao passado, tanto quanto lhe era possível, nada via 89


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de turvo, nem de oblíquo, nem uma dobra, nem uma sinuosidade. Uma bela estrada branca a perder de vista, sob um céu pálido. Pois a existência da pobre mulher fora bem triste. Desde que o marido, de quem o jovem mal se lembrava, morrera na batalha de Champigny, ela não tirara o luto, ocupando-se apenas em educar o filho, do qual não se afastava um só dia. Jamais quisera mandá-lo à escola, receosa da influência dos contactos; encarregara-se por inteiro de sua instrução, edificara-lhe a alma com pedaços da sua. Viera-lhe até, desse regime, uma sensibilidade inquieta e nervos singularmente vibráteis, que o expunham a dores ridículas - e possivelmente a perigos verdadeiros. Quando ele atingira a adolescência, as loucuras juvenis que ela previra e agora não podia impedir, haviam-na tornado um pouco triste, sem que a sua doçura se alterasse. Nem admoestações nem incidentes. Aceitara, como tantas outras, o inevitável. Enfim, toda a gente falava dela com respeito, e somente ele, o seu filho muito amado, via-se agora forçado a desprezá-la - a desprezá-la humildemente e com os olhos em pranto, como os anjos desprezariam a Deus, se Deus não cumprisse as suas promessas… Sim, era de enlouquecer, de sair aos gritos pelas ruas. Sua mãe, uma envenenadora! Era insensato, era mil vezes absurdo, era absolutamente impossível, e, no entanto, era verdade. Não acabara ela própria de o declarar? Só mesmo arrancando a cabeça. Mas envenenadora de quem? Santo Deus! Não conhecia, entre os seus íntimos, ninguém que houvesse sido envenenado. O pai não o fora: recebera no ventre uma carga de metralha. A ele próprio, tampouco, teria ela tentado matar. Nunca estivera doente, nunca necessitara de tisana, e sabia-se adorado. A primeira vez que tardara a recolher-se - e por um motivo, decerto, inconfessável - ela é que adoecera, de inquietação. Tratar-se-ia de facto anterior ao seu nascimento? O pai desposara-a por sua beleza, quando ela tinha apenas vinte anos. Teria precedido ao casamento alguma aventura que pudesse implicar em crime? Não. Conhecia esse passado límpido, ele lhe fora contado cem vezes, e os testemunhos eram extremamente fiéis. Então, por que aquela confissão terrível? E por que, oh!, sobretudo, por que haveria de ter tocado a ele a desgraça de testemunhá-la? Tonto de horror e desespero, voltou para a casa. A mãe correu logo a beijá-lo. - Como tardaste, querido! E como estás pálido! Estarás doente? - Não - respondeu. - Não tenho nada, mas este calor excessivo me abate, e eu acho que seria incapaz de comer qualquer coisa. E você, mamãe, como está? Saiu para arejar um pouco, não é? Tenho impressão de que a vi de longe, no cais. - Saí, realmente, mas não me podes ter visto mo cais. Eu fui-me confessar, o que há muito tempo não fazes, “seu” maroto! Jacques espantou-se de não ficar sufocado, de não cair de costas, ful90


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minado, como nos ingénuos romances que tinha lido. Era verdade, então, que ela fora confessar-se! Ele não dormira na igreja, e essa abominável catástrofe não era um pesadelo, como, um minuto antes, absurdamente imaginara. Não caiu, mas fez-se muito pálido, e a mãe se assustou: - Que tens, meu filhinho? Estás sofrendo, ocultando alguma coisa de tua mãe. Devias ter mais confiança nela, que só ama a ti, que não tem senão a ti… Como me olhas, querido!... Mas que tens? Fazes-me medo… Tomou-o amorosamente nos braços: - Ouve-me bem, meu meninão. Eu não sou curiosa, bem sabes, e não quero, ser teu juiz. Não me digas nada, se não queres dizer, mas deixame cuidar de ti. Vais já para a cama. Enquanto isso, vou-te fazer uma comidinha bem leve, que eu mesma te levarei. E, se tiveres febre esta noite, eu te prepararei uma TISANA… Desta vez Jacques rolou no chão. - Até que enfim! - suspirou a mulher, um pouco fatigada, estendendo a mão para uma campainha. Jacques tinha um aneurisma no último grau, e sua mãe tinha um amante que não queria ser padrasto. Este drama simples desenrolou-se há três anos, nas imediações de Saint-Germain-des-Prés. A casa em que isso aconteceu pertence a um empreiteiro de demolições.

O ASSALTANTE Frank Colby Dóris Taylor puxou o capuz da capa impermeável para cima dos cachos cor de cobre do seu cabelo, apertou o cinto à cintura estreita, e tentou sorrir para a sua irmã Bárbara. - Bem - disse ela - acho melhor ir andando. - Não gostava de deixar o calor e a amizade da sala-de-estar dos Lacey, mas se não chegasse a casa antes de George teria outra cena. - Tem a certeza de que não quer que eu a acompanhe até à paragem do autocarro? - perguntou Bill Lacey. Dóris sacudiu a cabeça. - È só meio quarteirão. Além disso está a chover. A irmã acompanhou-a até à entrada. - Espera aqui até veres o autocarro aproximar-se - disse ela. Dóris olhou para a rua escura na direcção onde o autocarro deveria 91


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aparecer. - Está bem. Mas é melhor vestires qualquer coisa, Bárbara. Estás tão molhada… - Não tem importância - disse Bárbara. Fechou a porta atrás de si. - Dóris… é sobre George. Há alguma coisa que não quiseste dizer… diante de Bill. - Não. Só aquilo que disse. George… fica em casa, acabrunhado, e de repente levanta-se e sai. Isto duas e três vezes por semana. - Como esta noite? - Sim, como esta noite. - Ela respirou profundamente. - Isto… isto põe-me doida. - Mas, ainda o amas? De irmã para irmã, agora. Quero saber a verdade. - Claro que o amo! Achas que estaria assim tão preocupada se não o amasse? - Sim, podias. Ainda não estás casada há bastante tempo para… - Não se trata de outra mulher, Bárbara. Trata-se simplesmente… de mim. Bárbara ficou a olhar para o alagado asfalto da rua. - Estou a pensar numa coisa. Vou chamar Bill e vamos acompanhar-te até ao autocarro. - Não, por favor. Não é preciso. - Não te quero deixar apreensiva - disse Bárbara. - mas… - Lá vem o autocarro - disse Dóris. - Adeus, minha querida. - E começou a descer os degraus do pórtico. - Telefono-te amanhã. - Dóris! Espera. - Dá boa-noite por mim a Bill - disse Dóris, por cima do ombro. E correu tão depressa quanto permitiam os seus saltos de oito centímetros, primeiro pelo caminho da casa, depois pela rua, em direcção à paragem do autocarro. Os faróis do autocarro iluminaram-na, e então, quase antes de que ela desse conta, o autocarro estava à sua frente. Dóris chamou, mas o motorista não estava a olhar. De pé, ao lado dele, estava uma rapariga, e o motorista dividia a sua atenção e entre a jovem e a estrada. Dóris susteve a respiração e observou as duas luzes vermelhas de trás do autocarro desaparecerem na cortina de chuva. A paragem ficava diante de um terreno baldio cheio de árvores e arbustos, e ela recuou, de modo que os galhos que se projectavam para fora do terreno detivessem a maior parte da chuva que caía sobre ela. Daí a dez minutos passaria outro autocarro. Olhou para a capa impermeável que comprara naquela mesma tarde. Vira-a numa montra e sabia que George haveria de gostar. Por isso a comprara. Dóris mordeu os lábios e piscou os olhos para não chorar. Parecia que tudo que ela via ou ouvia, mesmo tudo em que ela pensava, estava de certo modo associado com o seu marido. E de certo modo… ela estava a fracassar como esposa. Se, pelo menos, ele lhe dissesse o que não estava 92


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certo… Olhou com inveja na direcção da casa de Bill e Bárbara, escondida agora pelas árvores. Bill nem de perto era tão bonito como George… mas, Bill nunca deixara Bárbara sozinha. Amava Bárbara. De súbito, lembrou-se daquilo que sua irmã lhe dissera à porta… a respeito de ter pensado numa coisa. E havia um toque de preocupação na sua voz. Não, preocupação não… Temor. Mas, temor de quê? Então Dóris compreendeu de repente. A filha de uma vizinha fora atacada perto dali. Violentada e morta. Dóris estremeceu. A rua escura parecia-lhe agora ainda mais escura, e a chuva batia-lhe mais fria de encontro ao rosto. Puxou o impermeável ainda para mais perto de si, e olhou outra vez na direcção da casa. Talvez… Uma mão fechou-se sobre a sua boca, um braço forte de homem envolveu-lhe o corpo, prendendo-lhe os braços aos flancos. Ela tentou gritar, mas a mão grande impediu a saída do ar. Ela mordeu-a até sentir o gosto salgado de sangue, e deu com os pés para trás, batendo com os saltos dos sapatos. Mas foi inútil. Sentiu-se levantada e levada para dentro do terreno, na completa escuridão debaixo das árvores. Passou-se uma eternidade. Ela nada podia ver. Podia apenas ficar deitada, esmagada contra o chão molhado, duro, resistindo, aterrorizada. E então tudo terminou, e o peso esmagador deixou-a. Por cima da cidade passou um relâmpago, cortando o céu e perto de si ela ouviu a respiração de um homem. Repentinamente, outro relâmpago riscou o céu e tudo se tornou claro, numa luz amarelo-esverdeada, quando Dóris olhou directamente para o rosto do assaltante. O rosto dele não estava bonito, naquele momento. Estava contorcido, bestial. Os lábios estendidos, retorcidos. - Dóris! - murmurou o homem naquele breve instante do relâmpago. - Oh, meu Deus! Então o relâmpago passou e a escuridão voltou. A escuridão… e o horror paralisante do que ela ficara a saber. Dóris não podia falar. Não podia mover-se. Podia apenas ficar ali deitada, a ouvir o marido a arrastar-se entre os arbustos, em direcção à rua. E desmaiou.

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COM A BOCA NA BOTIJA Niel Franklin A sensação aterrorizava-a. Jazia sobre o lado esquerdo e o peso morto do seu corpo parecia povoado por alguma força invisível que a comprimia contra o soalho. Uma leve sensação na mão esquerda vibrou através do seu corpo amortecido e somou a sua mensagem à gritante actividade do seu cérebro. O cérebro gritava: «Socorro, por amor de Deus! Alguém tem que me socorrer… por favor…» As palavras chocavam-se inutilmente contra o mecanismo paralisado das cordas vocais e a boca permanecia calada. Os únicos músculos voluntários que não haviam sido afectados pela paralisia, eram os que controlavam a visão. Os seus olhos implorativos percorriam o interior da pequena casa, procurando alguma pista, algum indício de socorro e salvação. «O que é que se está passando comigo?» A pergunta martelava-lhe no cérebro. Aquele não fora um dia diferente na vida de Mary Barnes. Enviuvara havia uns três anos, mas fora amparada pelo seguro do marido. Vivia uma vida simples, mas satisfeita, numa casinha. Tinha bastante energia para uma mulher de mais de cinquenta anos. Hábil cozinheira, deliciava-se em preparar saborosas tortas, que os vizinhos e amigos, a quem fornecia, não se cansavam de elogiar. Elevou o olhar esgazeado para o relógio sobre a lareira e viu que eram três e quarenta e cinco. Já estava deitada ali há duas horas. Pensou se aquilo não seria a morte, mas adivinhou que não, por causa dos movimentos da vista e da sensação que tivera na mão esquerda. «O que é que me aconteceu?» Procurou no cérebro, mas não conseguiu descobrir nada fora do comum que tivesse causado a paralisia. Os primeiros sintomas haviam surgido, quando abrira a janela, sobre a pia da cozinha, para conversar com Betty, a sua vizinha mais próxima. Um pequeno relvado separava as duas casas e ambas costumavam conversar de janela para janela. Haviam falado durante alguns minutos e depois voltaram ao trabalho. Mary estava parada perto da pia, preparando a massa para uma torta de maçã, quando o nevoeiro começou a envolver-lhe o cérebro e o entorpecimento começou a paralisar-lhe o corpo. A sensação produziu um estado de quase terror e ela pensou em telefonar imediatamente ao médico. Virou-se e as pernas pareciam dois pedaços de madeira sem vida, mas ela arrastou-se até à porta da sala de estar e de repente sentiu que os braços não obedeciam mais. Caiu no chão e a paralisia tomou conta de todo o corpo. Ficou deitada, com o olho esquerdo a menos de uma polegada da superfície polida do soalho. Mil pensamentos atravessaram-lhe a mente. 95


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O que era aquela coisa que tomara conta do corpo?... Estava morrendo… ou já morta?... Seria isso o que se sentia ao morrer? Os seus olhos passearam pelas madeiras do soalho. A sala daquele ângulo parecia um imenso auditório, com vastas colunas, representadas pelos pés da mesa e das cadeiras. Havia pó na mesa e na cadeira mais distante. Ela precisava de limpar e polir o soalho, quando se levantasse… se é que ainda viesse a levantar-se. Tentou mover a mão e teve a impressão de que realmente a estava movendo, mas não podia ter a certeza. O tiquetaque do velho relógio da lareira começou a soar-lhe mais alto aos ouvidos. O chip-chip da torneira da pia da cozinha, às vezes coincidia com o tiquetaque do relógio e depois separavam-se, causando-lhe uma impressão irritante sobre os nervos, que não obedeciam à sua vontade. Tentou lutar contra os sons, procurando ignorá-los, mas eles pareciam cada vez mais fortes, engolfando-se no cérebro num verdadeiro mar de ruídos. Subitamente os olhos fixaram-se no relógio. O carteiro… chegaria dentro de alguns minutos. Estava sempre por ali um pouco antes das quatro. Esperou. Os minutos passaram-se, antes que ela ouvisse os passos na escada da frente. «Graças a Deus» - pensou ela. «Ele está aqui… mas que bem me fará isso?» O pensamento aconchegou-se no cérebro. «Ele não espreitará pela janela. Porque é que havia de fazê-lo. Tentou produzir um som, um grito de socorro, muito embora o cérebro transmitisse o grito, a boca estava selada e não houve som algum. O barulho da caixa da correspondência foi o prelúdio dos passos que desceram os três degraus de madeira da porta. Os olhos encheram-selhe de lágrimas, que escorreram pelo rosto e caíram no soalho. O seu desamparo aumentou a sensação de terror e tentou morder os lábios para conter as lágrimas. Os músculos faciais permaneciam imóveis e ela sentiu-se ainda mais desamparada. Subitamente ouviu o seu nome a ser chamado e reconheceu a voz de Betty. Os seus olhos lançaram um lampejo de alívio. Betty iria ajudá-la. A voz tornou a chamar e ela ouviu a janela da outra casa a ser fechada. Um minuto mais tarde, bateram na porta da traseira. Rezou para que Betty entrasse. As pancadas voltaram a soar… então a voz da outra vizinha fez-se ouvir, explicando que não via Mary há muitas horas. - Obrigada, Margaret - a voz de Betty soou bastante próxima. - Não era nada de importante. Os passos desceram os degraus. Mary tentou chamar, mas em vez de ouvir a sua própria voz, ouviu os passos de Betty afastando-se na direcção da outra voz. «Nada de importante» - pensou Mary. «Porque é que não fora importante? Porque não abrira a porta? Volte, Betty, encontre-me e ajude-me!» Olhou novamente para o relógio e viu que eram quatro horas e vinte minutos. «Quanto tempo posso aguentar aqui desta maneira, até que a paralisia tome conta do meu corpo totalmente? Morrerei… mas se tenho 96


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de morrer que seja já. Enlouquecerei se ficar aqui deitada sem saber se estou viva ou morta. O meu corpo parece um tronco. Não imagino se um tronco sente isto… vendo, ouvindo, absorvendo sons e visões, como uma esponja, mas incapaz de um movimento, sem ninguém para auxiliar-me ou encontrar-me, quanto tempo ficarei aqui?... Quando encontrarão o corpo de Mary Barnes?... Meu Deus! Alguém tem de me ajudar… ou então que a morte me leve deste meio termo entre viva e morta.» A cabeça doía-lhe com a mistura de tantos pensamentos que se interligavam numa verdadeira fábrica de desespero e desamparo. Uma nuvem cobriu-lhe o cérebro e ela adormeceu profundamente. Durante o sono, criou visões de Mary correndo com desenvoltura, pela praia arenosa de um lago. As pernas estendiam-se em longas passadas, de fantásticas proporções. Ela parava em certos momentos e atirava seixos às águas sossegadas do lago. A sua energia multiplicada por cem, agarrou um grande penedo e com a máxima facilidade ergueu-o e atirou-o à distância. Ela mergulhou no lago quase no centro. A agitação provocada nas águas fez com que ela gritasse alegremente… mas não houve qualquer som e justamente essa ausência de som fez com que ela despertasse. Os seus olhos abriram-se, quando ela ouviu os últimos ruídos do vidro a partir-se. Soava como se uma janela tivesse sido arrombada. Manteve os ouvidos bem abertos, à espera de novos sons. A orelha comprimida contra o soalho, percebeu os sons inconfundíveis de passos furtivos na escada de fundo. O ruído da fechadura soou claramente, quando a maçaneta da porta foi aberta. As dobradiças rangeram, quando a porta foi girada cuidadosamente nos gonzos. A escuridão caíra, enquanto Mary dormira e já não conseguia ver nada. De súbito a luz de uma lanterna feriu-lhe a retina. Foi dirigida primeiro ao chão, depois às janelas e aos móveis. Atrás da fonte de luz, uma leve claridade delineava o rosto e o tronco de um rapaz bastante jovem. Ela tentou mais uma vez chamar a atenção, mas foi incapaz de qualquer som. Freneticamente tentou mexer a mão que parecia ainda ter alguns movimentos, mas foi inútil. Olhou o círculo de luz, enquanto ele brincava pela sala como uma imensa borboleta, movendo-se e de repente parando sobre os móveis, banhando cada um deles com a sua luz amarelada. Um brilho prateado prendeu a atenção do foco de luz. Ele moveu-se em direcção ao objecto. A mão do rapaz penetrou no círculo de luz, em direcção ao relógio novo de Mary. Então a luz dirigiu-se para ela, fazendo com que o seu coração saltasse, à medida que se aproximava da porta onde ela jazia deitada. Cada vez mais perto, como uma borboleta tentada por uma flor. Fez uma longa curva pelo local onde ela sabia que estavam as suas pernas. A curva foi feita em sentido inverso, subiu pelo seu corpo, e parou, quando encontrou o rosto. Um reconfortante sentimento de alívio fez com que a sua mente se relaxasse e fitou a luz, os olhos implorando e agradecendo pelo auxílio que 97


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finalmente ali estava. Tentou falar novamente, mas sabia que o que tinha de dizer precisava de ser dito apenas com os olhos. Quando ela fitou a luz o rapaz deu um passo atrás como que hipnotizado. Repentinamente, afastou-se daquele olhar fixo. O terror enchia-lhe os olhos de adolescente, enquanto ele se capacitava do lugar onde estava e o que havia encontrado. Cinco passos trouxeram-no até onde Mary estava caída. Ajoelhou-se ao lado dela, e deixou a lanterna cair no chão. O medo estava estampado nos seus olhos, quando fechou a mão em torno do pulso da mulher. Ela sentiu o calor! A luz da lanterna iluminava completamente o rosto de Mary e o garoto chegou bem perto, olhando-a bem dentro dos olhos. «Ele deseja um sinal», pensou Mary. «Alguma coisa que o faça saber que estou viva.» Moveu rapidamente os olhos para um lado e para o outro. O rapaz arquejou, os seus olhos arregalaram-se e uma expressão espantada desenhou-se no seu rosto. Virou-se desajeitadamente, dando um pontapé na lanterna para debaixo do sofá com pressa. Começou a correr, meio agachado e quando chegou à porta ergueu-se e agarrou selvaticamente a fechadura. Mary ouviu-o saltar sobre o terraço e cair no caminho ao lado. Os seus passos em frenética correria foram desaparecendo ao longe. As lágrimas corriam dos olhos de Mary fazendo um pequeno lago no soalho. As suas preces haviam sido atendidas. Finalmente ela fora encontrada… e o socorro já devia estar a caminho. A sua mente relaxou-se e caiu num sono profundo, sabendo que tudo terminaria em bem. Na manhã seguinte, um garoto com livros do 7º ano sob o braço, passou pela casinha. Os homens vestidos de branco pegaram na maca e colocaram-na dentro da ambulância. A forma de um corpo desenhava-se sob o lençol branco e o garoto sabia que a mulher estava morta. Um quarteirão adiante assobiou e um sorriso atravessou o seu rosto, enquanto sentia o metal no bolso. Daria o relógio a Diana no seu décimo aniversário. A velha tinha «pateado» e não poderia chamar a polícia. Ele assustara-se na noite anterior, mas era uma dessas coisas que acontecem uma vez num milhão! Esta noite seria melhor… a casinha da rua Oito seria mais fácil…

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NÃO BALOICES O BARCO Donald Martin Jim Logan escutou a notícia transmitida pela telefonia, sentado no interior da cabana na orla do lago. O locutor mostrava-se deveras excitado, justificadamente, porquanto a ocorrência deveria ficar registada de forma indelével na história local. O Banco de Riverville fora assaltado por um desconhecido, o qual, empunhando um revólver de calibre 38, mantivera em respeito os empregados e clientes, enquanto ordenava ao caixeiro que reunisse todo o dinheiro existente nas gavetas. Por fim, com mais de vinte mil dólares num saco de lona, o assaltante partira no carro que deixara à entrada, com o motor em marcha, desaparecendo numa nuvem de poeira, antes que as vítimas tivessem ensejo de sair correndo. Logan reflectiu que o homem praticara uma proeza notável, sobretudo por operar sem ajuda. No fundo, constituía uma réplica excelente aos apologistas do adágio: «A união faz a força». Recorrendo à inteligência e arrojo, um indivíduo solitário ainda se podia aventurar a cometimentos admiráveis. Involuntariamente, experimentou certa afinidade com o desconhecido, embora ele não costumasse recorrer às armas de fogo para obter dinheiro. Na realidade, considerava a sua técnica (cortejar mulheres ricas e forçar as portas de residências abastadas) bastante mais satisfatória e artística. (Era esse o motivo por que passava o Verão nas montanhas. A polícia cansara-se dos seus primores de técnica e resolvera lançar-lhe a luva). Meia hora mais tarde, novo noticiário informou que o assaltante do Banco abandonara o carro junto à encosta das montanhas que circundavam o lago, na margem do qual Logan tinha a cabana. O locutor acrescentou que a Polícia da Estrada seguia uma pista em direcção ao bosque. Que existiria nos assaltos aos Bancos, susceptível de provocar uma excitação tão intensa? Provavelmente, o arrojo com que eram executados, a consecução de algo que, no íntimo, todo o homem honesto sonhava realizar. Logan olhou, através da janela aberta, para o lago. Dentro de uma hora, anoiteceria. O assaltante disporia de uma excelente oportunidade de escapar aos perseguidores, se transpusesse as montanhas e o lago antes de amanhecer. Evidentemente que, para tal, necessitaria de uma embarcação. Transpôs a porta e contemplou as montanhas, cujo aspecto tranquilo convidava à meditação. O Sol ocultara-se para além dos pinheiros que sulcavam o cume e as águas do lago começavam a perder a tonalidade azulada, substituída pelo reflexo das trevas que se acercavam. De súbito, divisou um movimento entre os arbustos, os quais estremeciam um após outro, indicando a passagem de um corpo com lentidão. Por fim, afastaram-se e surgiu um homem, que estacou e encheu os pulmões de ar, ao mesmo tempo que contemplava o lago, como se acabasse de deparar com a Terra da Promissão 99


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Por último, descortinou Logan de pé junto ao pequeno molhe e, após um breve instante, levou a mão ao interior do casaco, para exibir um revólver. Logan reagiu com certa indiferença, apoiando as mãos nos quadris, enquanto o outro avançava com um desprendimento que se lhe afigurou forçado. À medida que se acercava, notou o saco de lona debaixo do braço. - Não se mova - ordenou o recém-chegado. - Se o fizesse, arriscava-me a cair no lago. - Tem telefonia na cabana? - Sim. - Nesse caso, não necessito apresentar-me. Decerto sabe quem sou. - Ignoro-o - retrucou Logan. - No entanto, sei o que fez. Quando o desconhecido se encontrou a curta distância, Logan principiou a sentir uma remota apreensão, ao vislumbrar a sua expressão brutal, na qual perpassava igualmente uma mescla de temor e desespero. O assaltante do Banco deixava transparecer claramente no seu aspecto o trajecto que acabava de cobrir. O fato exibia o resultado do contacto com numerosos espinhos e os sapatos achavam-se riscados e cobertos de poeira. - Quem está lá dentro? - Ninguém. O olhar do desconhecido endureceu por um instante, revelando desconfiança. Finalmente, persuadido de que Logan não mentira, aproximou-se mais deste, detendo-se na beira do molhe. - Como se chama? - inquiriu. - James Logan. Calculo que você não tem nome. - Para si, não. - Que tenciona fazer? - inquiriu Logan, esforçando-se por falar com naturalidade. Não obstante, a inquietação intensificava-se, ao pressentir o nervosismo do interlocutor. Na verdade, uma arma carregada nas mãos de um indivíduo excitável não constituía uma circunstância tranquilizadora. Os olhos do assaltante moviam-se constantemente de Logan para a cabana e desta para as árvores ao longe na outra margem do lago, cada vez menos nítidas sob os últimos clarões do dia. Por fim, cravou-os no barco imobilizado junto ao molhe e voltou-os de novo para Logan. - Quem costuma utilizar o bote? - Eu, para passear no lago. Permaneço aqui todo o Verão. - Pode transportar duas pessoas? - Não vê dois bancos? - Percebo pouco de barcos. De quanto tempo precisaríamos para atravessar o lago? - Remando ambos? - Remando só você. - Hum… - Logan fitou o desconhecido, pensativamente. - Talvez uma hora, em condições normais. 100


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- E com um revólver apontado ao peito? - Pouco menos de uma hora. - Muito bem. Partamos. - Agora? Não tardará em escurecer. - E então? Não conhece o caminho? - Sim. O desconhecido contemplou a embarcação com uma réstia de preocupação. - Oferece segurança? - perguntou com relutância. - Decerto. O essencial consiste em não esquecer a velha recomendação: «Não baloices o barco». - Sabe conduzi-lo? - Não é necessário possuir a cédula marítima para manejar os remos de um barco desta envergadura. - Bem. Toca a mexer. Logan perguntava-se como deveria proceder, agora que a situação lhe oferecia uma variedade de perspectivas. Todavia, a presença do revólver reduzia consideravelmente o campo das hipóteses. Restava-lhe principiar a remar e aguardar que se proporcionasse um ensejo prometedor. De momento, apoquentava-o o que aconteceria quando alcançasse a outra margem. Nessa altura, teria escurecido por completo e não se encontraria vivalma nas cercanias, pelo que o seu companheiro forçado poderia abatê-lo e afastar-se tranquilamente, sem que o crime se tornasse conhecido até ao Inverno, quando os caçadores principiassem a aparecer. Constituiria um termo deveras inglório para quem se orgulhara sempre de viver ponderando todas as emergências. - Não me resta outra alternativa - declarou, com um encolher de ombros. - É a primeira coisa acertada que lhe oiço dizer - redarguiu o desconhecido, contraindo os lábios num sorriso repugnante. - Ora bem. Como se entra? Era óbvio que nunca pusera os pés no interior de uma embarcação e a nova experiência o perturbava notavelmente, circunstância que intrigava Logan, ao recordar que ele assaltara um Banco sem a mínima ajuda. Registou o facto no cérebro e preparou-se para o explorar na primeira oportunidade. Por fim, os dois homens acomodaram-se nos bancos do barco e Logan começou a mover os remos, afastando-se da margem. À medida que se distanciavam, o desconhecido denunciava nervosismo crescente, mantendo-se numa posição rígida, apenas a cabeça se voltando para esquadrinhar a superfície líquida. Transcorridos alguns minutos, a ondulação acentuou-se e, quando a embarcação principiou a oscilar mais fortemente, as faces do homem tornaram-se lívidas. - Sente-se mal? - inquiriu Logan. - Desconfio muito das condições de segurança do bote. Não há perigo 101


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de se voltar? - Só se não tivermos cuidado. - Não tente qualquer ardil. Se cairmos na água, encher-lhe-ia o estômago de balas. - Tranquilize-se. Não sabe nadar? - Não. Detesto a água - grunhiu o desconhecido. - Só de a ver, sinto calafrios. Repare: é negra e sem fundo, como um poço. Que profundidade tem o lago neste ponto? - Não sei ao certo, mas a suficiente para nos cobrir várias vezes. - Desde garoto que tenho aversão pela água. Nunca esquecerei a ocasião em que arrastaram para terra um homem afogado. Aplicaram-lhe a respiração artificial por mais de meia hora, sem resultado. A partir de então, evitei aproximar-me de locais dessa natureza. - O assaltante falava rapidamente, como se procurasse abreviar a travessia. - Maldita água… Logan observava-o em silêncio, continuando a mover os remos ritmicamente, enquanto a proa da embarcação abria caminho com suavidade. A escuridão acentuava-se, deslizando das montanhas como um manto denso. A cabana mergulhara nas trevas atrás dos dois homens, que pareciam isolados do mundo. - Ainda falta muito? - quis saber o desconhecido. - Devemos achar-nos a um terço do percurso. - Não pode remar mais depressa? - Prefiro não correr riscos desnecessários. - Que espécie de riscos? - Por um lado, a ondulação aumenta durante a noite; por outro, nunca me aventurei até tão longe depois do escurecer e não quero perder-me. - Quer dizer que existe o perigo de ficarmos sem saber onde nos encontramos? - Ou o de nos voltarmos. - Julgava que estes botes nunca se voltavam - bradou o desconhecido, rangendo os dentes. - Não é impossível, sem os cuidados indispensáveis. Aliás, ignoro até que ponto a ondulação se avoluma neste lugar. Não viajamos num couraçado, e ninguém em plena posse das suas faculdades mentais se aventura no lago depois do pôr-do-sol. - Por que não o disse antes? - Não mo perguntou. - Preste atenção. Tudo o que acontecer, acontecerá a você. - Nada sofreremos - afirmou Logan com prontidão, ansioso por evitar que o outro se alarmasse demasiado. - Aproveito a oportunidade para lhe recomendar que tenha cuidado com a arma. Se se disparar acidentalmente, o coice poderá contribuir para que o barco se volte e iremos os tês pela borda fora: você, eu e o dinheiro. - Afaste o dinheiro do espírito. Logan prosseguiu remando, através da escuridão, agora completa. Ao 102


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assaltante, a viagem na noite sem luar, afigurava-se como que um pesadelo interminável desenrolado num universo estranho. De súbito, regressou à realidade, ao notar que Logan deixara de remar. - Que aconteceu? - perguntou, lutando por dissimular o pânico. - Custa-me admiti-lo, mas perdemo-nos. - Perdemo-nos? Como é possível? Se continuarmos a avançar, alcançaremos a margem, certamente! - Não, necessariamente. O lago tem mais de quarenta quilómetros de comprimento. Se por acaso nos deslocarmos para o norte ou para sul, arriscamo-nos a remar eternamente sem avistar terra. - Que tenciona fazer? - A única solução consiste em deixar o barco à deriva até ao romper do dia. - Para que me capturem com a maior das facilidades? Deixe-se de fantasias e continue a remar. - À parte o facto de ter os braços dormentes, pormenor que decerto não o impressiona, devo esclarecer que se porventura rumarmos para o sul, depararemos com uma zona de rebentação. - Rebentação? - Rápidos - elucidou Logan. - A partir dali, as águas deslocam-se furiosamente por entre rochedos aguçados. Quase soltou uma gargalhada ao verificar que o outro engolia a explicação fantasista e ficou persuadido que poderia pôr em prática o seu plano destinado a apoderar-se dos vinte mil dólares. Após uma pausa prolongada, durante a qual parecia reflectir freneticamente, o desconhecido proferiu: - Já que me meteu nisto, arranje uma solução. Proceda como entender, mas conduza-me a lugar seguro. - Que me sucederá, se formos afortunados ao ponto de alcançarmos a outra margem? - Depende. Se o conseguir, talvez não o incomode. - Asseguro-lhe que estou ansioso como você por pousar em terra firme; mais, na verdade, por que não me aguarda um futuro tão tenebroso. A corrente move-se para sul, e não me surpreenderia que estivéssemos deslizando nessa direcção. Quando o barco começa a vogar muito depressa, deveremos encomendar as almas ao Criador. Esmagar-nos-emos nos rochedos como sacos de farinha. - Escute - articulou o assaltante em inflexão ansiosa. - Se me conduzir a lugar seguro, não se arrependerá. Como prova de gratidão, pouparlhe-ei a vida. - Não posso tentar o impossível - argumentou Logan, com um encolher de ombros. - Idealize um processo. Oriente-se pelas estrelas, por exemplo. - Num lago, resulta impraticável. De resto, nada entendo de astronomia e não conheço as estrelas. - O bote começa a ser arrastado! - balbuciou o desconhecido, transpi103


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rando copiosamente, mau grado a baixa temperatura. - Desconfio que fomos apanhados pela corrente. - É possível - admitiu Logan, imperturbável. - Uma vez que sabe nadar, decerto me salvará, se tombarmos na água. - Por entre uma corrente impetuosa, nem eu próprio… - Tenho aqui mais de vinte mil dólares - murmurou o homem, erguendo o saco de lona. - Dar-lhe-ei cinco mil. Que diz? - É muito dinheiro - reconheceu Logan. - Olhe: vou entregar-lhos imediatamente. - O assaltante abriu o saco e extraiu alguns maços de notas, que lançou aos pés do companheiro. Agora, safemo-nos daqui. - Não pretendo outra coisa - declarou Logan, guardando o dinheiro. - Esforce-se, por favor. No fundo, você é o comandante do navio e, como tal, responsável pela sua segurança. - Muito bem; sou o comandante. Para já, desfaça-se da arma, a fim de conjurarmos o perigo de se disparar involuntariamente e pregar connosco na água. O assaltante hesitou visivelmente, porém o medo acabou por vencer e, com um movimento brusco arremessou o revólver para longe, o qual mergulhou no lago com um som ominoso. - Em seguida - prosseguiu Logan - manter-nos-emos quietos e calados, até descobrirmos a direcção da corrente. - Boa ideia. Conservaram-se silenciosos por mais de meia hora. Cada vez que o desconhecido fazia menção de falar, Logan opunha-se com energia, alegando que necessitava de se concentrar profundamente. Por fim, este último divisou as copas das árvores principiando a destacar-se das trevas e compreendeu que se achavam prestes a alcançar o objectivo que idealizara. - Esteve a rezar? - perguntou. - Porquê? - Olhe para detrás de si. O outro obedeceu e descortinou igualmente as árvores avançando ao seu encontro. - Terra! - exclamou dramaticamente. - A fortuna protegeu-nos - observou Logan, pegando nos remos, que recomeçou a mover. Instantes depois, a embarcação embatia na areia e o assaltante apressou-se a saltar para terra, enquanto aquele sublinhava: - Acalentava a secreta esperança de que nos salvaríamos. O outro voltou-se e encarou-o com animosidade. - Desapareça daqui! Leve os cinco mil dólares e agradeça à Providência eu não conservar o revólver. Mas tenha cuidado com a língua, porque o procurarei se me denunciar! Logan não esperou que repetisse a ordem e pôs-se a remar para o largo com a maior rapidez possível, de regresso à cabana. Deixaria escoaremse duas semanas, ou talvez três, e completaria então a sua obra. 104


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Na verdade, três semanas deveriam bastar para que pudesse agir sem correr qualquer risco. Embora o outro dispusesse de milhares de dólares, que alimentos conseguiria comprar numa ilhota situada no centro do lago, onde ninguém passava?

“VENDETTA” Guy de Maupassant A viúva de Paolo Saverini vivia sozinha com o filho numa pobre casita dos arredores de Bonifácio. A cidade, construída nos arrabaldes das montanhas virava-se para a costa da Sardinia. Do outro lado, numa espécie de «fiord» que serve de porto, avistam-se as barracas dos pescadores italianos, partindo também daí um pequenino barco, que faz a viagem para Ajaccio. Na montanha, completamente branca, a mancha das vivendas parece ainda mais branca. São como ninhos de pássaros, penduradas nas alturas, onde as calamidades raramente podem chegar. O vento que sopra ininterruptamente, parece querer varrer a costa de todos os seus perigos. As ondas quebrando-se na mansidão das costas emitem flocos de neve flutuando na mansidão do mar. A casa da viúva Saverini, situava-se no alto dum precipício, com três janelas completando o desolado panorama. Vivia sozinha, com o seu filho Antoine e o cão Semillante, um enorme animal, de comprido pêlo e que no geral serve para guardar rebanhos. O seu jovem dono costumava usá-lo para a caça. Certa noite, depois duma discussão, Antoine Saverini foi chacinado por Nicolas Ravolati que se escapou nessa mesma noite para Sardinia. Quando a idosa mulher recebeu o corpo do filho que os marinheiros lhe trouxeram não chorou sequer, mas ficou por longos instantes a olhar para ele emocionada; depois, levantando a sua mão enrugada, prometeu-lhe vingança. Não quis ninguém ao seu lado e assim se atirou para cima da cama, ao lado do corpo, com o cão deitado aos seus pés, de cabeça virada para o dono e cauda entre as pernas. O jovem, vestido com um casaco apertado continuava deitado, parecendo dormir; mas o sangue cobria-o, ensopava-lhe a camisa e as calças e algumas manchas salpicavam-lhe o cabelo e barba. A mãe começou a falar para ele. Ao ouvir o som da sua voz o cão moveu-se. «Meu filho, meu pequenino, será vingado. Dorme, dorme que serás 105


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vingado, ouves bem? É a tua mãe que to promete! E tu sabes que ela sempre cumpriu as suas promessas». Devagar, curvou-se sobre ele e colocou os seus lábios frios sobre os outros já mortos. Depois, Semillante, começou a uivar, com um longo, penetrante e horrível uivo. Os dois, mulher e cão, continuaram assim até de manhã. Antoine Severini foi enterrado no dia seguinte e em breve o seu nome deixou de ser ouvido em Bonifácio. Não tinha irmãos ou primos, homens para cumprirem o juramento. Só a sua mãe continuava a pensar nele, mas afinal não passava já de uma velha. Do outro lado do canal, ela via desde manhã até à noite uma pequena mancha branca na costa. Era a pequena aldeia de Sardinian Longosardo, onde os criminosos corsos se refugiam no mais aceso das perseguições. Obrigavam a população a silêncio e esperavam até à altura de poderem regressar. Ela sabia que Nicolas Ravolati lá se encontrava. Sempre só, permanecia todo o dia junto da janela, olhando a aldeia e planeando a vingança. Como poderia ela fazer alguma coisa sem ajuda ela, uma inválida tão perto da morte? Mas houvera prometido, houvera jurado sobre o corpo. E isso não o podia esquecer. Mas que fazer? O cão continuava a seus pés levantando a cabeça e uivando duma maneira estranha. Desde a morte do dono fazia-o frequentemente como se a sua alma inconsolável de besta recordasse algo inesquecível. Uma noite, quando Semillante começou a uivar, a mãe teve uma ideia - uma ideia, de vingança selvática. Preparou-a até de manhã; depois, foi até à igreja. Rezou, de joelhos no chão, pedindo ao Senhor que a ajudasse, que desse ao seu frágil corpo a força necessária para vingar o seu filho. Voltou para casa. No pátio tinha um velho barril que tapou com paus; depois chamou Semillante e colocou-o neste improvisado canil. O cão uivou durante todo o dia e toda a noite. De manhã a velha trouxe-lhe água, mas mais nada - nem sopa nem pão. Passou outro dia. Semillante levou-o todo a dormir. Mas no dia seguinte os seus olhos brilhavam e pareciam querer saltar. Também durante todo o dia a mulher não lhe deu algo de comer. O animal latia furiosamente. E isto durante outro dia. Então, a senhora Saverini pediu a um pescador algumas redes que lhe cabiam pelo lado do marido e fez com elas um espantalho com forma humana. Colocou um pau no pátio e atou o boneco em frente da casota de Semillante. O cão, surpreendido, olhava a estranha figura sossegadamente sem se cansar de farejar. Depois, a velha comprou um pedaço de carne e ao chegar a casa acedeu uma fogueira perto do canil e cozinhou a carne. Semillante excitado pelo cheiro que ia direito ao seu estômago, saliva106


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va, de olhos fixos na comida. A seguir, a velha apertou bem o pedaço de carne ao pescoço do espantalho. Com um salto o animal alcançou a garganta do boneco e começou a arrancar a carne, pedaço por pedaço. A velha olhava silenciosamente. Depois fechou de novo o bicho, não lhe deu comida durante dois dias e recomeçou o estranho exercício. Treinou o cão durante três meses para a sua batalha. Ensinara Semillante a devorar o pescoço do espantalho sem ter sequer qualquer carne atada. Depois, então, como recompensa, dava ao animal um pedaço de carne. Assim que via o «homem», Semillante começava a agitar-se e logo que a dona lhe gritava - Vai! - o animal atirava-se. Quando a viúva viu que os treinos já chegavam, foi confessar-se e comungar, no domingo seguinte, com um fervor quase de beatitude; depois, pegou no cão e dirigiu-se para o outro lado do canal. Na mala levava um bom pedaço de carne. Semillante não comia nada havia dois dias. Ela deixava-o cheirar a carne e desejá-la. Chegaram a Longosardo. Perguntou por Nicolas Ravolati. Uma velha abriu uma porta e chamou: - Nicolas! Ele voltou-se. Largando o cão, ela gritou: - Vai, vai! Come-o! O esfomeado animal atirou-se à garganta do assassino. O homem agarrou-o e caíram ambos no chão. Por alguns instantes os pés do homem espadanaram o chão, mas foram acalmando à medida que Semillante lhe arrancava pedaços da garganta. Dois pescadores lembravam-se perfeitamente de terem visto uma velha com um cão que comia qualquer coisa que a velha lhe dava. Ao anoitecer regressou a casa. E dormiu melhor naquela noite.

A ESPOSA DE JOHN ROSSITER Charles G. Norris Na minha opinião, um dos lugares mais fascinantes dos Estados Unidos é Palm Beach, e o local mais interessante nele é «Whitney’s». O nome não é «Whitney’s», realmente, mas quem já esteve em Palm Beach sabe de que estabelecimento estou a falar. O «Whitney’s» é restaurante e casa de jogo, e mais cedo ou mais tarde, todos os forasteiros em Palm Beach acabam por dar lá com os costados. Não há hotel, nem restaurante em França, Itália, Alemanha ou Espanha, que se possa comparar com o «Whitney’s» em matéria de comida. Ali não existem menús: pede-se o que quiser, desde «sopa de pato» até 107


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«língua de passarinho en brochett» - e o espantoso é que se recebe o que se pediu. Mas na primeira visita ao “Whitney’s” não se faz justiça ao que nos é servido, pois dentro em pouco, à proporção que a sala se vai enchendo, os olhos começam a crescer. Em cada mesa identifica-se um personagem famoso ou famigerado. Depois do almoço, todo este público brilhantemente vestido passa para a sala de jogo. Pelas duas horas, o salão acha-se mais ou menos cheio, às três está apinhado, e assim permanece até às primeiras horas da manhã. É muitíssimo mais interessante e muito melhor servido do que em Monte Carlo. Eu senti-me profundamente impressionado, quando lá estive, e apenas procurava uma oportunidade para conhecer Mr. Whitney em pessoa. Fomos encontrá-lo num escritório pequeno e formal, num espaço apenas para uma enorme escrivaninha de tampo móvel e uma ou duas cadeiras. Talvez houvesse também um cofre. Não me recordo desse detalhe. O escritório era protegido por uma grade de ferro e por um empregado uniformizado que nos deu entrada, depois de Mr. Whitney ter anunciado que nos recebia. Defrontei-me com um homem de rosto singularmente inexpressivo, queixo quadrado, olhos frios - tal como havia esperado. Tem o jogo como negócio e orgulha-se da direcção eficiente e perfeita que lhe presta. Dizem que ganha três milhões de dólares por estação, e eu duvido disso como duvido dos salários fabulosos que supostamente recebem as estrelas de cinema. O homem entretanto, tinha uma personalidade marcante. Interessavame. Simpatizara com ele. Gostaria de conversar mas achei isso difícil. Não se mostrava muito comunicativo. Lá pelas tantas perguntei quanto perdia em cada estação com os cheques sem cobertura e as dívidas não saldadas. Enunciou uns duzentos mil dólares, e não pareceu achar a quantia pesada. Ao falar nisso, uma luz brilhou-lhe nos olhos e os lábios entreabriram-se-lhe num leve sorriso. - Um dia destes tive uma experiência muito divertida - confessou ele. - Achava-me no meu escritório, certa manhã, quando me avisaram de que uma senhora desejava falar-me. «Mrs. Rossiter» - disse-me o homem. - Eu conhecia John Rossiter, por isso mandei-a entrar. «Antes de pronunciar uma palavra, ela começou a chorar. Nada de soluços espalhafatosos. As lágrimas encheram-lhe os olhos e desceram pelas faces, enquanto ela as secava constantemente com o lenço, lutando por se dominar. Não gosto destas coisas e fujo sempre que possível, mas desta vez fora apanhado desprevenido. Tive pena dela antes mesmo de a ver abrir a boca. «O marido andara a jogar na minha casa - contou-me ela e na quarta-feira, dia anterior, deixara cinquenta mil dólares no pano verde. Eu conhecia John Rossiter há uns cinco ou seis anos. Aparecia anualmente por aqui e sempre trocávamos um cumprimento amigável, mas não passávamos disso. Sempre simpatizara com ele. Era um homem direito, 108


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bom desportista, e muito estimado, frequentando as altas rodas onde sempre gozou de estima geral. Apesar de vê-lo aqui todos os dias não fazia ideia de quanto jogava, nem do que ganhava ou perdia. Mantinha uma conta comigo e no fim do mês saldava-a prontamente, quando havia que saldar. «Mrs. Rossiter explicou que o grande desgosto da sua vida fora sempre o jogo praticado pelo marido. Suplicara-lhe inúmeras vezes que se afastasse dos mercados de títulos e de cartas e ele prometera-lhe atender à sua vontade, mas acabava sempre por afrouxar, caindo no vício outra vez. Os cinquenta mil dólares que perdera na véspera tinhamnos deixado completamente depenados. Agora - oh, eu esqueci exactamente o que ela me disse - iam ter de vender a casa que já estava hipotecada, arranjar dinheiro com as apólices de seguro de vida, tirar as duas meninas da escola, sendo ela própria obrigada a procurar emprego. Era uma longa história. Não me recordo dos detalhes, mas confesso que fiquei terrivelmente penalizado. Tirar as meninas da escola creio que foi o que me amoleceu. Não sei dizer com exactidão. Bem, de qualquer forma, assegurei-lhe que não gostaria de ver os meus clientes serem tão profundamente prejudicados. Pode chamar sentimentalismo, mas no fundo é também uma maneira de fazer negócio. Não é bom reclame espalhar por aí, que as pessoas perdem até o que não têm, em minha casa. Em resumo, concordei em devolver-lhe o dinheiro que o marido perdera, mas com uma condição, e tornei este ponto muito claro: John Rossiter jamais deveria tornar a pisar o salão de jogo. Não gosto de lidar com esse tipo de gente. Se não tinha dinheiro não devia jogar. Ela prometeu-me solenemente, com as lágrimas a correrem pela cara, e eu dei-lhe o dinheiro, ficando com cara de idiota, enquanto ela me beijava as mãos, pedindo a Deus todas as bênçãos para a minha cabeça - coisas que uma mulher precisa dizer para desabafar ao receber um favor que reputa importante. «Não pensei mais no caso até à tarde seguinte, quando repentinamente o recordei. O gerente do salão veio avisar-me que John Rossiter acabara de entrar na sala da roleta e jogava numa das mesas. Via de regra nunca me meto com o que se passa lá fora, mas aquilo deixou-me furioso e por isso fui verificar pessoalmente. «Fui ao seu encontro e perguntei-lhe: «- Posso falar-lhe por um instante? «E quando nos encontrámos a certa distância dos presentes, perguntei-lhe que diabo viera fazer à minha casa outra vez. «- Desejo saber o que significa isto - exclamei. - A sua mulher veio procurar-me ontem de manhã contando-me as suas dificuldades, devido aos cinquenta mil dólares que o senhor perdeu aqui e eu devolvi-lhe o dinheiro perdido com a condição de jamais vê-lo pisar este salão outra vez. Ora como ousou voltar, depois do que houve? «Rossiter encarou-me, espantado, e disse: «- Mr. Whitney, deve haver algum engano. Eu não sou casado!». 109


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ESCONDERIJO HUMANO Dahlia Graham Eram dez da noite de sábado, quando Dave Hanson e Madison Joe entraram discretamente no local onde deveriam principiar as operações necessárias imediatas para chegarem até à Pera do Paraíso. Muito junto um do outro, permaneceram assim bastante tempo sem se moverem do lugar, em silêncio, acostumando os olhos e os ouvidos ao que os rodeava. Encontravam-se na secção de embalagem e expedição de uma firma importadora de sedas preciosas, e o facto de haverem chegado a esse ponto no seu tortuoso caminho à Pera do Paraíso, pode ser considerado como prova da sua perícia de homens experimentados no uso de ferramentas ilícitas. Até ao momento, porém, nada poderia ser encontrado de comprometedor na pessoa de Madison Joe ou de Hanson. A tampa do alçapão do armazém cedera à força das suas mãos enluvadas e o hábil conhecimento do delicado manejo dos fios de alarme permitiu-lhes descer até ao primeiro andar sem dificuldades, sem obstáculos de qualquer espécie. Agora, tudo o que havia entre eles e a Pera do Paraíso resumia-se a uma camada de madeira dura envernizada, uma sobrecapa de pinho de duas polegadas, seis polegadas de concreto reforçado, um tecto raso de gesso e depois de um declive de dezoito a vinte pés, a caixa forte à prova de roubo. Era com o propósito de demonstrar que não existiam caixas fortes à prova de roubo e, aproveitando a oportunidade, apoderar-se de um brilhante avaliado em quarenta mil dólares que Madison Joe e Dave Hanson haviam dedicado mais de três semanas ao cuidadoso e aturado estudo do problema em todos os seus múltiplos aspectos. Livres da pesada carga de ferramentas e demais utensílios necessários para rebentar o pavimento e forçar a caixa de jóias os ladrões resolveram - e provaram - que era empresa fácil chegar até à secção de embalagem e expedição dos importadores de seda. Agora… Madison Joe bateu suavemente no chão com o pé. - Aqui, é onde começamos a trabalhar. Passa um pouco das dez, Dave, e aposto seja o que for em como acabaremos o serviço domingo de manhã. A caixa de ferramentas está por aí? Dave Hanson apontou com o polegar um montão desarrumado de caixotes de embalagens que havia num canto escuro. - Penso que está ali - disse. - Deve ser uma dessas caixas. Vi o conferente do expresso depositá-la no elevador ao meio-dia de hoje. Não poderíamos calcular a hora de entrega com mais pontualidade. Dez minutos depois da nossa caixa subir, eram horas de fechar o elevador. Os conferentes nem sequer tiveram tempo de abri-la. Se o tivessem feito… - Não percamos tempo a pensar no que poderia ter acontecido - interrompeu Madison Joe. - O facto é que conseguimos essa velha caixa de embalagem e a arrumámos de maneira a parecer conter sedas e a encontrar-se aqui, quando precisássemos dela, não é assim? Pois, en111


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tão… Nada de espantos. No nosso ofício não se pode confiar na sorte. É necessário prever tudo. Toca a trabalhar e desencaixota as nossas coisas, enquanto eu meço o compartimento. Precisamos de ter cuidado para que o buraco que vamos abrir vá sair por trás do tabique de baixo. Ao mesmo tempo, temos que evitar bater numa daquelas colunas de aço. Enquanto Madison media o comprimento e a largura do compartimento, o sócio com uma tenaz abria em silêncio a tampa de uma caixa repleta de papéis muito apertados e que continha um estojo completo de ferramentas. - Começaremos a perfurar aqui - disse Madison alumiando com a lanterna o ponto que marcara no chão. Depois disso pouco falaram. Os dois ladrões empregaram todas as suas faculdades na tarefa de praticar um orifício suficientemente grande para lhes permitir passar por ele e penetrar na joalharia. Passavam apenas alguns minutos das dez, quando começaram mas, embora, fossem ambos habilíssimos no nefando emprego da gazua e da tocha de acetileno, cuja chama derrete o aço, despontava já a aurora, quando a maciça porta da caixa forte se escancarou gemendo sob a pressão da poderosa alavanca manejada pelas forças combinadas dos dois consumados ladrões. Durante mais de cinco horas haviam trabalhado arduamente, retesando músculos e nervos num trabalho intenso. A fadiga alterava-lhe os semblantes e nos seus olhos brilhava a febril e desesperada expectativa do triunfo. Dave Hanson lançou um olhar por cima do ombro à frente da loja. Os candeeiros da iluminação pública estavam ainda acesos parecendo cada vez mais desbotados à medida que fulgia a claridade acinzentada da aurora. - Temos de acabar antes que nasça o sol - murmurou. - Acabaremos - replicou Madison confiante, enquanto a porta cedia com estridente ruído. Indicou as gavetas de aço que enchiam quase toda a caixa. - Não serão precisos nem cinco minutos para abri-las todas acrescentou. Uma exclamação sufocada escapou-se dos lábios de Hanson. Agarrou o braço do companheiro e mostrou o fundo da caixa. - Olhe para aqui! Enganaram-nos… fomos derrotados, quando já atingíamos a etapa final. Madison Joe contemplou em silêncio o que Hanson descobrira. Era muito pouco: um pedaço de arame e nada mais. Fixava-se engenhosamente na parte interior da porta da caixa. Ao funcionar de um modo normal o mecanismo que prendia o arame conectava-se e soltava-se automaticamente. Tudo isto compreenderam os dois ladrões com um relancear de olhos. Hanson inclinou-se. - Passe pelo buraco que há no chão - disse endireitando-se. Estamos perdidos. Temos de fugir imediatamente! Não tardará a aparecer um batalhão de polícias e detectives a rodear a casa. É óbvio que fizemos soar o sinal de alarme assim que abrimos a porta. Pode verificá-lo por si próprio. 112


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Madison Joe riu com aspereza. - Vejo-o tão bem como você, mas não saio assim, sem uma recompensa pelo meu esforço. Se quiser, pode ir. Dave Hanson encolheu os ombros. - Estamos ambos metidos no negócio - disse tranquilamente. § Madison grunhiu encolerizado, enquanto mergulhava a ponta de um pincel de aço na fechadura de uma das gavetas fazendo-a saltar com um rancoroso movimento de lábios. Tirou-a e à primeira vista parecia vazia. Mas Madison viu que continha um objecto. Tratava-se de um estojo em forma de coração. Por uma fracção de segundo os seus olhos reluziram de inesperado prazer. Tivera a grande sorte de acertar com a gaveta exactamente que guardava a Pera do Paraíso. Não havia o menor engano a respeito do estojo. Estava cansado de o contemplar na vitrina da joalharia. O célebre e incomparável brilhante ali estava ao alcance de sua mão, mas… Madison Joe não revelou a sua extraordinária descoberta. Com um negligente gesto de desgosto, semicerrou a gaveta e voltou-se vivamente. Uma expressão de alívio reflectiu-se-lhe no rosto ao verificar que o companheiro não o observara. Hanson ocupava-se nesse momento em colocar uma mesa sobre uma escrivaninha, encontrava-se completamente absorto na sua tarefa de preparar tudo para uma fuga rápida da loja não podendo pois, observar os movimentos de Madison. Recuando a mão este abriu uma outra gaveta. Um instante depois o estojo encontrava-se muito bem escondido no seu bolso. Medindo a distância que ia da mesa ao buraco do tecto, com um olhar severo, Dave Hanson, volveu os olhos para o companheiro. - Encontrou alguma coisa? - perguntou. - Nada - replicou Madison. - A gaveta está vazia. Dá-me raiva ter que o deixar, mas… - Ou isso ou deixar que lhe deitem a mão. Mais vale que ponhamos uma distância entre nós - insistiu Hanson. - Está a amanhecer muito depressa. Não tivemos sorte, nada mais nos resta fazer. Fingindo que o fazia de má vontade, Madison, afastou-se. Agora, tinha o brilhante em seu poder, sentia-se bastante ansioso por se afastar dali, contudo achou que uma súbita mudança de atitude poderia despertar as suspeitas de Hanson. As pedras raras são tão belas quanto valiosas, exercem, no entanto, maligna influencia sobre os ambiciosos. Três minutos antes, Joe Madison não tinha a mais remota intenção de espoliar o companheiro. Agora, estava disposto a enganar, atraiçoar… a matar se necessário fosse, a fim de possuir, ele só, a famosa Pera do Paraíso. - Sou mais alto - disse Hanson. - Saio primeiro. Subo e depois puxo-o a si. - Está bem - concordou Madison. - E quando chegarmos ao terraço 113


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separamo-nos. Entendido? Deste modo, teremos ambos, maior probabilidade de escapar. Quando chegaram lá acima, Madison lançou um olhar perscrutador por cima do telhado do edifício. O que viu lá em baixo bastou, até certo ponto, para fazer vacilar a sua coragem e duvidar se poderia realizar com êxito a fuga planeada, quanto mais conservar o brilhante incomparável. A polícia e os agentes da companhia de seguros acorriam em grande número. § Durante mais de uma semana, depois daquela madrugada em que se separou de Dave Hanson, Madison levou uma vida estritamente recolhida, contudo não se pode dizer que se sentia satisfeito consigo próprio devido ao aspecto que as coisas haviam tomado. Tinha o brilhante em seu poder e não observara a mínima indicação de que a policia o perseguisse ou de que Hanson estivesse na sua pista. Madison sabia, no entanto, que a primeira representava uma contingência provável e a segunda, embora nada o indicasse, uma certeza absoluta. As primeiras edições dos jornais de segunda-feira espalharam aos quatro ventos a notícia do roubo, comentando, ao mesmo tempo, o facto estranho de só ter sido roubada a Pera do Paraíso. Salvo se Dave Hanson tivesse perdido o uso das faculdades mentais… ou, a não ser que estivesse morto… não poderia deixar de compreender que fora miseravelmente ludibriado, traído, pelo companheiro. Aquela primeira noite de segunda-feira, Madison resolveu ir procurar uns indivíduos que se dedicavam à compra de objectos roubados. Do primeiro ao último, todos largaram a rir ou zombaram dele. A oferta mais elevada que conseguiu não ultrapassava trezentos dólares! - É grande de mais, a forma é demasiado invulgar e, além disso, todos a conhecem. Deste modo, resumiu um deles as razões para não comprar a Pera do Paraíso, e Madison regressou, assim, sentindo os primeiros dissabores do seu penoso triunfo, ao quarto que alugara num bairro distante daqueles que anteriormente frequentara. Tinha uma pequena fortuna em seu poder e praticamente necessitava de um níquel, via-se, pois, coagido a permanecer naquele sítio à espera dos acontecimentos. No dia seguinte, escondeu o brilhante debaixo de uma tábua solta do soalho do quarto. Ali permaneceu até quinta-feira. Começou a experimentar, então, um certo mau estar, um nervosismo intenso que o irritava sem piedade. E pôs-se a imaginar coisas. Tirou a jóia do esconderijo e ficou metade da noite de vigia procurando encontrar qualquer lugar onde a pudesse ocultar de tal forma que, nem mesmo acidentalmente, viesse a se encontrada. Foi enquanto pensava no esconderijo perfeito onde o brilhante pudesse permanecer oculto sem qualquer risco que Madison chegou à conclusão de que é mais fácil perder uma coisa do 114


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que escondê-la intencionalmente. Encontrou, por fim, uma ideia que tinha o mérito de ser original e mesmo diabólica. Antes de se meter na cama, colocou a automática debaixo do travesseiro. Durante as cinco noites seguintes, dormiu serenamente sem ser incomodado excepto pelos próprios sonhos. Depois, chegou o que fora tão longamente esperado… o termo da incerteza e o princípio do surpreendente episódio. Madison despertou com todos os sentidos alerta. Através das pálpebras apenas entreabertas olhou para os pés da cama. Entre ele e a janela viu uma figura vacilante que se movia indecisa na sua direcção. - Hanson - pensou e meteu a mão debaixo do travesseiro. Os músculos enrijeceram-lhe. Espreitou cautelosamente. Antes que Hanson tivesse tempo de se aproximar um passo mais, Madison colocou-se, de um pulo, no meio do quarto. Quando os seus pés tocaram o chão, Hanson lançou-se para trás e Madison girou redondamente. - Mão ao alto! - gritou uma voz e um raio de luz ofuscante feriu Madison em pleno rosto. Arrebatado pela excitação do momento, não fez caso da ordem. Levantou a automática e disparou. Simultaneamente ao estampido da sua pistola ecoou um outro tiro. Madison deu uma volta completa, tossiu de modo estranho … e caiu. - Agora, você - disse a voz - ou fica quietinho ou meto-lhe também uma bala no corpo! - Estou quieto - disse Hanson, e continuou sem se mover enquanto o inesperado personagem acendia a luz. Hanson soltou um grunhido de surpresa. - Howell! - exclamou. - Ora, nada mais natural - disse o detective, enquanto apertava o braço esquerdo, inutilizado pela ferida do ombro. - Sabia que você e Joe se tinham separado e calculei que a melhor maneira de os apanhar juntos seria seguir-lhe os passos. Pensei que talvez, assim, pudesse saber o que foi feito dessa famosa Pera do Paraíso que vale quarenta mil dólares. O pior é que Madison tinha medo de si e atirou antes de terem tempo de discutir. Onde está esse brilhante? Dave Hanson olhou-o com ar desconcertado. - O brilhante? - repetiu. - Como posso saber? - Aposto o que oferecem como recompensa em como um de vocês o tem. Madison Joe endireitou-se, apoiando-se no cotovelo. - Não o tenho - disse, e perdeu os sentidos. Depois de Madison ter sido conduzido ao hospital e o detective receber tratamento, Hanson foi chamado à polícia. Ali, durante três horas consecutivas interrogaram-no de um modo que só a polícia sabe fazer. Saiu-se muito bem e foi-lhe permitida a liberdade ainda que sob vigilância. Em liberdade um indivíduo tem mais e maiores probabilidades de se trair do que numa cela sozinho preso como suspeito. 115


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No outro dia Dave Hanson apresentou-se no hospital. A bala fora extraída do peito de Madison Joe, mas… - Desta não me livro - sussurrou o ferido. - Os doutores são uns idiotas pensando que me salvo, mas de mim, eu entendo mais do que eles. Porque veio? Pensa que lhe vou dizer onde está o brilhante? - Que tolice, Joe - murmurou Hanson. - Você está muito pior do que eu. Não sou, porém, homem capaz de odiar um antigo camarada. E muito menos em tal situação. Além disso, encarando bem as coisas, amaldiçoada seja a famosa Pera do Paraíso pelo que nos trouxe. - Que boa partida lhe preguei - murmurou Madison. - Não sei como pude fazê-lo, mas quando pus os olhos naquele estojo perdi a cabeça. Agora… enfim, alegro-me que tenha vindo. Há uma esplêndida recompensa. Li, outro dia, no jornal… Mil notas não são assim para desprezar e… quem sabe o que pode acontecer? - Não me interessa - replicou Hanson. - Posso passar sem elas. Durante alguns instantes Madison permaneceu em silêncio olhando o amigo a quem atraiçoara. A sua mão tocou a de Hanson. - Sentir-me-ia melhor - disse - sabendo que poderia ganhar essa recompensa. Seria assim como uma espécie de indemnização, compreende? Vamos… mais perto… e ouça o que tenho para lhe dizer. Viraram o meu quarto de pernas para o ar, furaram as paredes centímetros por centímetro e nada encontraram. Espere ainda uns dias até que tenham a certeza de que não está lá… e, então, vá e diga o que lhe acabei de contar. Ganhará pelo menos metade da recompensa e ficará livre de qualquer suspeita. Quando Howell esteve aqui, hoje de manhã, disse-lhe que tinha feito todo o «trabalho» sozinho. Deixo-lhe, a si, a oportunidade de cobrar essa recompensa como uma espécie de legado. Compreende? Três dias depois Madison demonstrou que sabia mais do que os médicos. Cruzou a fronteira do Além. Dave Hanson pôs uma gravata preta e dirigiu-se à polícia. Aí, pediu para falar ao detective Howell. - Está em casa, doente - informou o tenente. - O ferimento do ombro? - perguntou Hanson. - Não. Uma dor nas costas; apareceu-lhe um tumor. E para que quer você saber? Vem entregar o brilhante de graça? - Não - replicou Dave Hanson. - Vim dizer-lhe que Madison passou o brilhante para Howell na noite em que este foi ao quarto dele. - Está a acusar o detective Howell de cumplicidade? - exclamou o tenente. - Nada disso. O que lhe digo é que ele tem a Pera do Paraíso. Madison escondera-a dentro do cano da automática. A bala acertou no ombro de Howell e impeliu a pedra. Não foi encontrada no quarto de Madison, nem nas paredes nem em qualquer outra parte, portanto é lógico supor que esteja no corpo de Howell. Certamente desviou-se. Talvez seja o tumor que lhe apareceu nas costas. Durante quinze minutos houve na polícia um tumulto de vozes agitadas. Depois, mandaram uma mensagem ao detective Howell. Levaram116


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no ao hospital. Ali, alojada entre a terceira e quarta costela, foi encontrada a Pera do Paraíso.

HOMEM ESTÁ MORTO Roy Carol Renick sentiu a bala penetrar sob o ombro esquerdo e cambaleou até à vitrina da loja. Não tinha havido estampido. Os carros passaram quando o sinal da esquina abriu e um deles, um coupé preto, virou ao fim da estrada, para além. Uma senhora idosa, empurrada e acotovelada pelos transeuntes apressados, parou para olhá-lo, mordendo o lábio. A dor veio quente e horrível e ele sentiu um líquido quente escorrer do corpo. Fechou os olhos. «Que aconteceu?» - pensou. «Que aconteceu comigo?» - Bêbado? - disse alguém. - Não - disse a velha. - Ele está doente. Será que ninguém … Renick abriu os olhos, respirando com rapidez e a suar. Apoiou-se no vidro da vitrina e tentou falar, mas as palavras morreram-lhe na garganta. Um homem corpulento abriu passagem. - O senhor está bem? «Eu pareço estar bem, idiota?», pensou Renick, balançando a cabeça. Faça alguma coisa! - pediu. O desespero e a dor abateram-no, enquanto via a sua camisa branca empapada de sangue. Assustou-se. O seu casaco escondia o sangue da vista de todos. - Ele teve um ataque - disse a velhota. - Sim - disse o homem, empurrando-a com o cotovelo. - Eu trato dele. - Pode ir-se embora, minha senhora. A velha afastou-se. - Raios! - disse o homem. - Será que não sabe que…? Renick fitou um par de furiosos olhos azuis atrás dos óculos sem aro. O homem vestia um fato azul e estava em pé diante de Renick a protegê-lo. - A minha mulher está a chegar. - Renick conseguiu falar, curvando-se com a dor. - Estou à espera. - Claro - disse o homem de fato azul. - Não se preocupe. Não fará juntar gente aqui. A dor abateu Renick e ele sentiu os dedos do homem agarrá-lo pelo braço. O homem parecia nunca sorrir. - Vamos, Renick, para o meu carro. 117


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- Como é que sabe o meu nome? - balbuciou Renick. Havia com o homem algo de errado. Ele sentiu que estava paralisado e quando se mexia, parecia andar de joelhos. Pôs a mão perto do ombro e os dedos ficaram tintos de sangue. Outro espasmo de dor sacudiu-o. As pessoas passavam e ele tentou dizer alguma coisa. Desistiu, tossindo. - Deixe-me ajudá-lo - disse o homem de azul. - Não - balbuciou Renick. - Vá-se embora! Mas Renick não podia fazer nada. Dedos de aço agarraram nos seus braços e sacudiram-no, e o mundo nessa tarde ensolarada ficou negro em toda a volta. As mãos fortes agarraram-no e forçaram-no a andar até à esquina, longe das aglomerações. - Ande, homem! Vá andando, Renick! - Não… chame um guarda! Ele não podia falar. As suas palavras morriam, eram remotas. - Fique quieto, Renick. O meu carro está ali. Ele lutou com os pés, batendo na calçada, mas só conseguiu que o outro corresse ainda mais. Subitamente, parou de lutar. - Assim é melhor - disse o homem. - Estou a sangrar - disse Renick. - Chame o médico. - Claro. Estou a tentar ajudá-lo. Renick olhou para o homem e sentiu-se idiota. - Carro? - Ali - disse o homem, apontando um coupé preto. O homem segurou-o e empurrou-o. Renick tentou entrar no carro, mas o homem não deixou. Andaram até um pátio e o homem forçou-o a entrar. - Aí! Renick viu que a parede de tijolos e o chão estavam molhados e escorregadios. Naquele lugar nunca tinha entrado o sol. Ele tentou coordenar os pensamentos, mas o mundo fugia rapidamente. Por que queria alguém matá-lo? - É daqueles que não morrem, hem? - disse o homem. - Atirei sobre si do carro, mas não acertei, não é verdade? Renick ficou pasmado. - Quê? - Eu deixei o revólver no carro também - disse o homem. Renick tentou correr. O homem atirou-o contra a parede do pátio. Ele tentou gritar, mas nada soou. Somente uma espécie de murmúrio rouco. E Renick viu o punhal. - Raios! - disse o homem. - Estava perfeito. Silenciador e tudo. Boa iluminação, tudo… e eu tinha que errar. Esmurrou Renick no lugar exacto do tiro. - Por que é que não morreu, hem? Assim não tinha que me arriscar! Renick viu o homem tirar o punhal. A lâmina era longa, fina e brilhante. Renick curvou-se e começou a correr cegamente. Ele bateu no homem no meio do caminho e o homem sentou-se no chão. 118


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Renick cambaleou e caiu no chão oleoso, agarrando-se com as mãos à calçada do pátio. O homem bravejou: - Miserável! Renick corria com esforço sobre-humano e cego de dor. Parou, de repente, apalpando com a mão. Era o punhal, enterrado nas costas. Ele pegou no cabo e puxou-o. O punhal saiu. Não estava muito fundo, mas sentia mais sangue a correr pelas costas. - Renick! Ele virou-se, a cambalear, e atirou o punhal para o homem. Uma mulher gritou na esquina. O homem de azul ficou perto da parede, logo a seguir à esquina, a observar… Renick corria, esbarrando nas pessoas, que apareciam à sua frente. Agora estava outra vez em frente da loja. - Socorro! - gritou. Alguma coisa o afogava, subindo na garganta. Ele engoliu, forçando aquela coisa quente a ir para baixo. - Laurie! - chamou ele.- Laurie! - repetiu chamando a esposa. Ele não a podia ver ali. Ela devia estar a vestir o casaco vermelho e aquele chapeuzinho vermelho de que ele gostava tanto. Ele corria para cima e para baixo na calçada em frente da loja, cambaleando para lá e para cá, sabendo que o homem de azul estava ali. Ele não percebeu, mas deixou enormes pegadas vermelhas e o sangue pingava por todo o passeio. Uma mulher viu as pegadas sangrentas e gritou. A rua começou a agitar-se e a agrupar-se em redor de Renick. - Ajudem-me - disse ele. Ninguém queria ajudá-lo. Renick balançou os braços sem força, tentando contar que um homem de fato azul estava a matá-lo. Ele tinha sido atingido por uma bala e apunhalado nas costas. Correu para um homem e o homem fugiu dele. - Guarda! - gritou alguém. - Polícia! Parecia que estava a correr através de um túnel brilhante, e o túnel continuava a estreitar-se, sempre brilhante… brilhando mais e mais. Agora não corria mais, embora pensasse que sim. Estava ali defronte da loja, a andar para cá e para lá. Alguns dos homens do enorme grupo que se tinha formado à sua volta, começaram a ir contra ele, como se fosse um animal selvagem. Renick não podia enxergar bem. Havia um cone brilhante, e tudo em redor do cone estava escuro. O fim do escuro parecia pele e além da pele tudo era negro. Ele apalpou a vitrina. - Que aconteceu homem? - perguntou alguém. Ele amaldiçoou quem tinha falado. Olhou para os pés e caiu de joelhos. A palma das mãos tocaram a calçada quente. Sentiu o sangue nas costas, no lado e no peito e o cone brilhante ficou ainda mais brilhante. 119


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- Ele está a sangrar - disse alguém. - Por que ninguém faz nada? - gritou outro. - Aqui está um guarda - exclamou ainda outro. - Cripes! - Que está a acontecer aqui? - disse uma voz autoritária. - Que é isto? Vamos, afastem-se. Andem! Renick viu as calças azul-escuro e os sapatos engraxados. Um guarda… - Mister, que aconteceu aqui? O cone brilhante foi-se fechando, fechando, cegando Renick. Ele fez um esforço e caiu na calçada. - Morto - disse o guarda. A multidão murmurou. À esquina, uma mulher de casaco vermelho e chapeuzinho vermelho falou rapidamente com um homem de fato azul. O homem assentiu, voltou-se rapidamente e foi para o coupé preto, partindo em seguida. A mulher respirou fundo, olhou para os dois lados antes de atravessar a rua em direcção à loja. Enquanto empurrava a multidão defronte da vitrina, ela dizia: - Que aconteceu? Que aconteceu? - Homem morto - disse alguém. - Assassinado. Ela olhou rapidamente para a esquina, mordendo o lábio. Depois abriu passagem até ao meio da multidão e, sem olhar para o corpo do seu marido, porque sabia muito bem que era ele quem estava ali, começou a gritar.

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SEXTA-FEIRA, DIA DE PAGAMENTO Fred Donaldson O quarto era sombrio e desconfortável, iluminado por uma lâmpada nua que pendia do tecto coberto de poeira. Sob a luz brilhante da lâmpada, quatro homens e uma mulher, fatigados, conversavam. O chefe - pequeno, gordo e já velho -, limpava os óculos. O som de líquido a correr misturava-se aos variados ruídos do tráfego, lá fora. Erguendo os óculos contra a luz, para inspeccioná-los, o homem gordo falou numa voz surpreendentemente alta para uma pessoa de físico semelhante: - Todos sabem o que devem fazer? Houve um repetido murmúrio de afirmativa, quando os quatro se puseram de pé, numa atitude de cansaço. - Sentem-se! - ordenou, irritado, o homem gordo. - Ainda não terminámos. Apontando para o magrizela do grupo, resmungou: - Está bem, Lou, ouçamos a tua parte. - Por Deus, «Lentes» - gemeu Lou - já ensaiámos isto uma dúzia de vezes. «Lentes» olhou raivosamente para o homem durante um momento e percorreu as fisionomias dos outros. - Prestem bastante atenção agora todos - gritou. - Vamos fazer isto cuidadosamente. Não quero nenhum erro ou esquecimento. - Parou para acender um escuro e comprido charuto, atirando uma baforada de fumo em direcção ao tecto. - Muito bem, Lou - disse, finalmente. - vamos ensaiar de novo. Lou suspirou, acariciando distraidamente a longa e tortuosa cicatriz que partia do queixo até à loura cabeleira. - Bem - começou monotonamente. - Estarei na direcção do carro. Deverei estar na esquina da Rua Principal com a Quatro, à uma hora e quinze, exactamente. Neste momento, você e os rapazes já saíram e pulam para o carro. Dobro a esquina e continuo pela rua Quatro, até que os guardas nos alcancem. - Correcto, Lou. - «Lentes» enxugou a testa e a calva, molhadas de suor, e acenou para Carl. Este levantou-se vagarosamente, os olhos afundados sob as sobrancelhas hirsutas. Sorveu o resto da bebida que tinha no copo e recitou lentamente: - Entro à uma hora e cinco minutos, dirijo-me ao balcão do centro e preencho um talão de depósito; demoro, fazendo horas, até que você e o garoto entrem. Exactamente à uma hora e doze, começaremos o espectáculo. Sentou-se, com movimentos lentos, ajeitando o corpo maciço na cadeira dura. 121


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«Lentes» rodou o charuto para o outro lado da boca, acenando aprovativamente. - Está certo, Carl. - concordou. - Mas não cometa erros. «Garoto»? O «Garoto», muito corado, relanceou os olhos pelo quarto, nervoso. - Como Carl já disse - começou, os cabelos negros a reluzir -, eu entro e espero até à uma e doze. - Que diabo, «Garoto»! - e «Lentes» deu um murro na mesa. - Comece de novo e desta vez fale como deve ser. O «Garoto» corou mais ainda, e disse com petulância: - Entro à uma hora e sete, peço um troco; começo uma discussão, alegando que fui enganado; prolongo a disputa até vocês chegarem. E começamos a festa. - Muito bem, muito bem, assim é melhor. - «Lentes» tirou os óculos, limpando-os cuidadosamente. À uma hora e onze entro eu e mostro o revólver ao tesoureiro, obrigando-o a encher o saco de notas. Assim que o fizer - apontou para Carl - você e o rapaz puxam os revólveres. Lembrem-se! Queremos muito movimento. Quanto maior for a multidão que conseguirmos reunir, mais fácil será o nosso trabalho. Fez uma pausa e fumou pensativamente. - Vocês sobem - e fez um gesto largo com as mãos - a natureza humana é esquisita. As pessoas têm mais dificuldade em ver o que se passa sob os seus próprios olhos. E é por isso que conseguimos assaltar um Banco no meio duma multidão, e escapar ao castigo. - Parou outra vez para estudar os rostos à sua volta e continuou: - Sexta-feira é dia de pagamento e haverá muitas pessoas no interior do Banco e muitas também do lado de fora. Lembrem-se apenas disto: queremos causar muita confusão, a fim de distrair todas as atenções; empurrem as pessoas, ameacem disparar os revólveres. Quando saírem, apliquem o mesmo tratamento aos que estiverem na rua. Depois de tudo acabado, eles não terão a certeza de nada. «Lentes» parou, fatigado do seu longo discurso, e olhou para a mulher escandalosamente pintada que estava ao seu lado. - Continue, Helen. Helen empurrou para trás os cabelos falsamente louros, alisando o vestido ordinário de cetim vermelho. - Quando sair do banco com o saco das compras cheio de dinheiro, estarei do lado de fora com um saco idêntico, contendo alimentos variados. Acendeu um cigarro e prosseguiu com voz rouca e abafada: - Enquanto estiverem a empurrar as pessoas, eu aproximo-me e sou também empurrada; usarei um vestido cinzento, muito claro e um lenço vermelho ao pescoço, para que vocês me descubram imediatamente. Durante a confusão, trocamos os sacos. Então saltam para o automóvel e desaparecem. Misturo-me com a multidão, volto para o hotel e aguardo a chamada. - Certo! - «Lentes» ficou em pé, esfregando as mãos com rapidez. - É um plano perfeito. Apenas, procurem lembrar-se disto… nada de revólveres de verdade. 122


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Os seus olhos, quase escondidos atrás das lentes muito grossas, percorreram o grupo. - Não queremos ser presos por trazer armas - explicou. - Se a polícia nos apanhar, seremos apenas quatro sujeitos num carro, levando revólveres de brincadeira e um saco de frutas e verduras. E a nossa liberdade será muito mais fácil, em vez de vinte anos, teremos apenas cinco. Helen estará livre para nos conseguir imediatamente um advogado. Ainda que tenhamos de cumprir a pena por causa do dinheiro, não será muito mau. «Lentes» examinou, mais uma vez, os rostos fatigados. - Alguma pergunta? - Como não obtivesse resposta, prosseguiu… Ensaiemos outra vez, rapazes. Houve um coro de protestos, mas ele acalmou-os com um aceno de mão. - Ouçam - declarou. - Quando começarmos este trabalho, amanhã, queremos estar absolutamente seguros do que acontecerá. Agora, Lou, que tal começar de novo? § Carl atirou fora o cigarro e consultou de novo o relógio. - Uma e cinco - murmurou. - Está na hora de entrar. Atravessou o olho electrónico e a grande porta envidraçada abriu-se. Hesitou um momento e depois dirigiu-se para o balcão central do Banco. Havia muita gente, e longas filas de pessoas estendiam-se junto dos guichets. - Que diabo! - pensou Carl. - Estas filas provavelmente irão estragar o horário calculado. Começou a preencher o talão de depósito, vagarosamente, desperdiçando tempo. Após olhar para a porta pela terceira vez, ficou subitamente aliviado ao verificar que o «Garoto» cumprira o combinado. O rapazinho parou, indeciso, ao ver as longas filas em frente dos guichets. Olhando de relance para Carl, encolheu os ombros e levantou as palmas das mãos, pedindo uma sugestão. Carl levantou a cabeça ligeiramente, em resposta. O «Garoto» caminhou, de repente, até à cabeça da segunda fila e agarrou um homem pelo braço. - Que diabo pensa que está a fazer? - gritou o rapazinho. O homem ficou espantado e começou a protestar descontroladamente. O «Garoto» agarrou-o pelo casaco, abanando o punho cerrado sob o nariz do adversário: - Não me venha com desculpas! - gritou. - Sabe perfeitamente o que eu estou a dizer! Carl observava, admirado, orgulhoso do engenho do rapaz. Subitamente, o homem foi empurrado com brutalidade e caiu de costas. A multidão afastou-se do guichet, interessada no desenvolvimento da briga. Quando o «Garoto» levantou o pé para bater no homem, uma mulher gritou e, acima do alarido, ouviu-se a voz de «Lentes»: 123


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- Ninguém se mexa! Isto é um assalto! Desencadeou-se imediatamente a confusão no Banco, enquanto todos tentavam afastar-se do revólver que «Lentes» manejava com displicência. O «Garoto» e Carl empunharam as armas, afastando as pessoas dos guichets. «Lentes» ordenou a um empregado que abrisse a porta de bronze que separava os funcionários do Banco da área de circulação pública; depois de entrar, reuniu todos os empregados a um canto. Destacando um, empurrou-lhe o saco para as mãos. - Encha-o e ande depressa! - rosnou - Limpe todas as prateleiras, mas não coloque dinheiro trocado. Despache-se! «Lentes» empurrou o homem, rudemente, em direcção aos guichets. Este, assustado, encheu rapidamente o saco, devolvendo-o ao bandido, que pegou nele e mandou que o empregado se juntasse aos colegas. - Muito bem - gritou «Lentes». Ninguém se mexa até chegarmos lá fora! O primeiro que atravessar a porta, será liquidado! - Caminhou lentamente para trás, dizendo por cima dos ombros: - Vamos, rapazes! O trio iniciou a retirada até à porta, gritando, praguejando e brandindo as armas. Ao chegar ao passeio, correram para o carro, empurrando os transeuntes. «Lentes» abriu caminho entre a multidão, para atingir o vestido cinzento, perto da esquina. Empurrando brutalmente a mulher, agarrou o saco que ela levava e entregou-lhe o seu; sacudindo-o outra vez, saltou para o carro, que Lou punha a trabalhar. O pesado automóvel dobrou a esquina, e Lou carregou no acelerador, aumentando a velocidade. - Acalme-se! - ordenou «Lentes» - Quer que nos prendam por excesso de velocidade? Em breve, os quatro estavam a rir e a brincar, no interior do carro. A tensão desaparecera gradualmente. - Viram aquela velha? - perguntou o «Garoto», rindo - Garanto que ela molhou as roupas… Carl bateu nas costas do rapazinho. - Bom trabalho, «Garoto»! Você improvisou muito bem. - É verdade - concordou «Lentes». - Foi tudo feito de acordo com o que eu planeei. E tudo rigorosamente no horário. Atrás deles, soou repentinamente a sirene de um carro da polícia, aumentando o volume do som à medida que se aproximava. «Lentes» praguejou. O «Garoto» culpou Lou, e a sua mania da velocidade, pelo facto dos «chuis» lhes virem na pista. - É melhor encostar o carro - disse «Lentes». - Parece que nos apanharam. Deixem que eu fale. Lou estacionou o automóvel junto do passeio e desligou o motor, enquanto o carro da polícia os alcançava; um outro, à frente deles, aproximava-se. Polícias cercaram o carro, as armas aperradas para enfrentar qualquer 124


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reacção. - Saiam com as mãos levantadas! - ordenou um oficial. - Há alguma novidade, guarda? - perguntou Lou, sorrindo. - Há muitas novidades - respondeu o polícia, desanimado. Os quatro homens saltaram do carro, as mãos erguidas sobre as cabeças. Foram revistados, imediatamente, e o automóvel foi submetido a uma busca rigorosa. - Está bem, espertinho. - Um dos guardas dirigiu-se com aspereza a «Lentes» - Onde está o dinheiro? - Que dinheiro? - retorquiu «Lentes». - Tenente - exclamou um guarda surpreso. - Não há nada no carro, além de um saco de verduras e quatro revólveres de plástico! O oficial foi verificar pessoalmente o interior do automóvel. Reuniu-se ao grupo, furioso, com os olhos a brilhar de cólera. - Vamos levar estes palhaços para a esquadra - disse ele, irritado. - Não sei o que se passa, mas garanto-lhes que encontraremos a solução. Uma hora mais tarde, após serem meticulosamente interrogados por um grupo de polícias embaraçados, «Lentes» obteve, finalmente, permissão para telefonar. - Venha à esquadra com algum dinheiro para as fianças, menina - disse ele. - Tire-nos daqui. - Dinheiro para as fianças? - repetiu Helen, num tom amargo. - Seu imbecil! - Que há? - Seu gordo, imbecil imundo e cego! Entregou o saco a outra rapariga…

O BILHETE DO SUICIDA Arnold E. Grisman - Viva, Gaspar! - disse eu. Durante sete anos planeara aquele «viva», e esforcei-me por pronunciá-lo como convinha, mas Gaspar nem sequer pestanejou. Olhou-me, simplesmente, com calma, com aqueles doidos olhos azuis. - Mr. Andrew Hale - disse ele polidamente. Conversámos durante algum tempo como velhos amigos, o que, sob certos aspectos, era verdade. Nenhum de nós se referia ao revólver que eu tinha na mão. Eu conhecera Gaspar durante muito tempo. Para falar verdade, quando entrara para a companhia, logo depois de sair da escola, ele foi o meu chefe. E bom chefe. Orgulhava-se tanto do seu conhecimento do 125


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serviço, e parecia satisfeito com a oportunidade que tinha de mostrar o que sabia. Naturalmente nunca consegui fazer nada que o satisfizesse completamente, porque Gaspar era um homem competente e meticuloso, verdadeiro sacerdote no culto da rotina de escritório. Não havia nenhum movimento que ele fizesse no decorrer de um dia de trabalho que não tivesse sido racionalmente pensado e resolvido. Como disse, Gaspar era um homem competente, competentíssimo. Fora do trabalho, não tinha interesses. Morava num quarto pobremente mobilado nos subúrbios, e, ao que parecia, nunca saía, a não ser para ir para o escritório. - Você não melhorou absolutamente nada o seu nível de vida - disse eu, correndo os olhos em redor. - Porque haveria de melhorar? - perguntou ele, sacudindo os ombros magros e ossudos. Ele tinha aquela espécie de cortesia servil, mas de qualquer modo havia malícia no seu gesto. - Pois eu posso imaginar motivos para isto - disse eu. Sorriu. Apesar do calor, não havia sequer uma gota de suor na sua cabeça pálida e calva, e entretanto eu sentia o suor escorrer-me pelas costas abaixo, e apertei um pouco mais o revólver. - Nunca convenceu ninguém - disse ele, quase com afectação. - Nunca convencerá. - Talvez não - concordei. Observava-lhe as mãos cuidadosamente juntas em cima da mesa, diante dele. Eram a única parte do seu corpo que se movia, dobrando-se continuamente num movimento macio. Mãos hábeis. E disso podia eu ser testemunha. Gaspar suspirou e olhou-me zombeteiramente ao longo do nariz fino como uma lâmina de faca. - Não - disse ele - realmente eu não galguei posições neste mundo. Trinta e cinco anos com Carter & C.ª, e ainda auxiliar de contador. O velho Gaspar, dizem, é fiel e seguro como um relógio. Na realidade, presentearam-me um dia destes com um relógio. - As mãos arquearam-se e tocaram suavemente uma na outra, como se tivessem prazer no contacto de um dedo contra o outro. - Não estamos em absoluto destinados a elevar-nos - disse ele com tristeza. - O senhor provavelmente não compreenderia tal coisa, Sr. Hale. Bonito, folgazão, tesoureiro de Carter & C.ª, aos trinta e três anos. Algo saltou dentro daqueles doidos olhos azuis. Observando-os, compreendi muita coisa. Ele odiara-me desde o momento em que eu começara a subir de posição na companhia. Quando não podem conseguir qualquer outra compensação, certos indivíduos fazem do próprio ódio uma carreira. Eu próprio descobri isso. - Ponha uma folha em branco na máquina - ordenei, fazendo um movimento para a máquina que estava ao lado dele. - Coloque as mãos onde eu as possa ver. - Mas como é que pretende que faça tal coisa? - perguntou-me Gaspar, com um sorriso a torcer-lhe os lábios, enquanto o resto da cara se mantinha imóvel. Depois riu-se. - Vai matar-me de qualquer maneira. 126


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Por que hei-de cooperar? Para Gaspar, aquilo era uma grande piada. Era um homem que sabia gozar a sua própria astúcia, e novamente se riu, zombando de mim. Mas também já estava preparado para isso. - Porque eu posso fazê-lo morrer depressa ou devagar - disse eu. - Escolha. Ele hesitou, ainda calmo, como um jogador de xadrez que estivesse a discutir consigo próprio as vantagens de cada um dos dois ou três lances possíveis. Levantou as sobrancelhas ralas fazendo ondas de rugas no seu crânio ossudo e calvo. - E como poderei saber que você cumprirá o que diz? - perguntou-me. - Dou-lhe a minha palavra de honra. O olhar dele zombou de mim, mas Gaspar agarrou numa folha de papel e meteu-a no rolo da máquina. Ditei devagar, sem lhe dar qualquer oportunidade a enganar-se ou omitir alguma palavra. «Durante o período de 1945 a 1947, forjei a assinatura de Andrew Hale em cheques no valor de mais de um quarto de milhão de dólares sobre Carter & C.ª, depositando as importâncias em várias contas fictícias, das quais mais tarde retirei o dinheiro, escondendo-o. Por este crime, Andrew Hale foi condenado injustamente. Antes de pôr fim à vida, desejo afirmar a inocência de Andrew Hale, e acalmar finalmente a minha própria consciência.» Fora exactamente isso, em resumo, o que Gaspar fizera… e levado mais pelo ódio e por um sentimento pessoal de frustração do que propriamente pela cobiça. Não creio que Gaspar desse absolutamente qualquer valor ao dinheiro, a não ser como cifras que ele amorosamente escrevia naqueles seus livros impecáveis. E no meu julgamento eu não conseguira, em absoluto, convencer quem quer que fosse, juiz, jurados e imprensa. Os dedos compridos e ágeis bateram nas teclas com rapidez. - Consciência escreve-se com s antes do c? Não que ele não soubesse, naturalmente. - Escreva como quiser. Terminou e voltou a pôr as mãos em cima da mesa. - Mais alguma coisa? - perguntei. Gaspar encolheu os ombros. - Você parece que levou a melhor - reconheceu ele, secamente. - Muito bem - disse eu. - Tire o papel da máquina e coloque-o onde eu possa vê-lo. Dei um passo mais para perto, tendo o cuidado de não tocar no papel ou noutra coisa qualquer. Depois de ter lido o que ele escrevera, fiz sinal para que colocasse a folha em cima da mesa. - Agora assine - ordenei. Assinou por baixo da última linha. Quando baixou a caneta, levantei um pouco o revólver e disparei. Gaspar morreu com um sorriso de ironia no rosto. 127


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No dia seguinte a polícia agarrou-me em Ellenville, a quatrocentos quilómetros de distância. Eu não estava muito preocupado. Não era segredo que me encontrava em Ellenville, pois dirigira-me para lá logo que saíra da penitenciária, e ninguém sabia que eu saíra da cidade. Além disso, por mais que a polícia suspeitasse, não poderia jamais deixar de levar em consideração a carta deixada pelo suicida. Eu levara sete anos a planear aquilo. O detective que conduziu a maior parte do interrogatório era um homenzito de rosto vermelho chamado MacManus. Parecia estar terrivelmente aborrecido. E, além disso, dava-se ares de estar muito seguro de si. Parecia estar prestes a adormecer entre cada pergunta. A princípio senti-me encorajado pela sua indiferença. - Onde esteve ontem à noite? - No meu quarto. Fui para a cama às nove horas. - Costuma deitar-se assim tão cedo? - Adquiri este hábito nos últimos sete anos. - Alguém o viu ir para o quarto? - Sim. A dona da pensão. - Pode provar que não saiu do quarto? - Acho que não. Calma, calma, dizia eu a mim próprio. Não há razão para se preocupar. Rotina policial, apenas. Notei então que mudava a expressão do rosto, o que, a princípio, não me pareceu ter qualquer significação. Poderia ser uma cócega, uma contracção, e notei-a da mesma forma que notara a ruga na cortina verde, na janela. Nada. MacManus começou a levantar-se da mesa como se uma mola poderosa o erguesse, contra sua própria vontade. E então rugiu: - Deixe de me fazer perder tempo! - exclamou, atirando para o lado, com um movimento do punho cerrado, a cadeira que se encontrava no seu caminho. - Você matou-o, temos a prova. Fiquei assustado, devo reconhecer, mas não iria entregar-me tão facilmente. Pelo menos depois de sete anos de cadeia. - Matou quem? - perguntei. - Sabido, hein? - disse ele. - Quer armar em sabido, hein? Segurou-me por um braço e sacudiu-me. Parecia considerar aquilo como uma ofensa pessoal. Voltou-se e agarrou numa folha de papel de cima da mesa. Era a carta que eu fizera Gaspar escrever. - Já alguma vez viu isto? - perguntou-me ele. Li com cuidado o que eu próprio ditara na noite anterior. Ainda estava igual. Tudo direito. Voltei-me para MacManus e afirmei nunca ter visto aquela folha de papel. - Sim? - retorquiu o polícia. - Pois olhe bem para ela, seu sabido. Se se tratava de um «bluff», o homenzinho estava a representar muito bem. As minhas mãos começaram a tremer. Eu não podia evitá-lo. Li novamente a carta. Reli-a ainda mais duas vezes. Três, quatro vezes. 128


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Continuava a não ver nela nada de errado. Cheguei mesmo a examinar as costas do papel. Não, não havia nada. Então, de repente, percebi. Comecei a falar, a negar violentamente, gaguejando, até que a minha voz se perdeu num sussurro. Eu sabia que a polícia me apanhara. O nome assinado naquela folha de papel era realmente o de Gaspar, mas o recorte da letra era exactamente o meu. Aquela letra era a minha.

Á ESPERA DA POLÍCIA J. Jefferson Farjeon Não sei para onde foi Mr. Wainwright - disse Mrs. Mayton. Na realidade não lhe interessava saber para onde ele fora. Tudo quanto lhe interessava a respeito do quarto das traseiras do segundo andar era que Wainwright pagava regularmente os seus três guinéus por semana por cama e comida, e fora os banhos. Mas a vida, particularmente à noite, era aborrecida na sua pensão e, de vez em quando, era preciso interessar-se por alguma coisa. - Ele saiu? - perguntou Monty Smith. Também não lhe interessava saber se Wainwright saíra ou ficara, mas era tão delicado como pálido e procurava sempre agradar aos outros. Acho que ouvi fechar a porta da rua - respondeu Mrs. Mayton. - Talvez ele tenha ido levar uma carta ao correio - sugeriu Miss Wicks, sem parar de tricotar. Tricotava há setenta anos, e parecia disposta a tricotar outros setenta. - Talvez não tenha sido ele - sugeriu Bella Randall. Bella era a flor da pensão, mas ninguém tirara vantagem do facto. - Acha que pode ter sido outra pessoa? - perguntou Mrs. Mayton. - Acho - respondeu Bella. Todos discutiram com ardor a hipótese. Mr. Calthrop, acordando de um cochilo, juntou-se à conversa, sem ter a mínima ideia do que se tratava. - Talvez tenha sido Mr. Penhor - disse Mrs. Mayton, finalmente. - Ele está sempre a entrar e a sair. Mas não tinha sido Mr. Penbury, pois o excêntrico indivíduo apareceu em pessoa na sala, alguns momentos depois. A sua entrada interrompeu a conversa e o silêncio voltou a reinar. Penbury tinha sempre uma influência silenciadora. Tinha um cérebro e, ninguém o entendia quando usava o cérebro, todos se sentiam ressentidos com ele. Mas em circunstância alguma Mrs. Mayton tolerava um silêncio de 129


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mais de três minutos. E assim, quando o silêncio atingiu esse limite máximo, voltou-se para Penbury e perguntou: - Foi Mr. Wainwright quem saiu há pouco? Penbury encarou-a com uma expressão estranha. - Porque pergunta isso? - disse ele. - Por nada. Queria apenas saber. - Compreendo - disse Penbury, vagarosamente. O ambiente pareceu tornar-se mais pesado ainda, mas Miss Wicks continuou a tricotar. - E todos querem saber? - acrescentou Penbury. - Pensamos que ele talvez tenha ido deitar uma carta ao correio - murmurou Bella. - Não, Wainwright não foi deitar uma carta ao correio - retorquiu Penbury. - Está morto. O efeito foi instantâneo e galvânico. Bella estremeceu. Os olhos de Mrs. Mayton arregalaram-se. Monty Smith abriu a boca e permaneceu boquiaberta. Mr. Calthrop, num segundo, perdeu o sono. Miss Wicks mostrou-se decisivamente interessada, embora não parasse de tricotar. - Morto? - murmurou Mr. Calthrop. - Morto - respondeu Penbury. - Está estendido no chão do quarto. Monty deu um pulo da cadeira, depois sentou-se de novo. - O senhor… o senhor não quer dizer…? - gaguejou ele. - Quero dizer exactamente isso - respondeu Penbury. Tinham havido inúmeros silêncios na sala de Mrs. Mayton, mas nenhum igual àquele. Miss Wicks interrompeu-o. - Não se devia chamar a polícia? - sugeriu ela. - A polícia já foi chamada - disse Penbury. - Telefonei para lá antes de vir para a sala. - Quanto tempo… isto é… quando espera o senhor? - gaguejou Monty. - A polícia? Dentro de dois ou três minutos - respondeu Penbury. A sua voz perdeu, de súbito, a expressão de sarcasmo e tornou-se prática. - Não acha que devemos aproveitar esses dois ou três minutos? - Perguntou ele. - Vamos ser todos interrogados e talvez possamos esclarecer alguma coisa antes que a polícia chegue. Mr. Calthrop indignou-se. - Mas nada temos com isso! - exclamou ele. - A polícia não acreditará, necessariamente, no que a gente disser - retorquiu Penbury. - É por isso que proponho que examinemos antecipadamente os nossos álibis. Não sou médico, mas pelo rápido exame que fiz do corpo cheguei à conclusão de que a morte não deve ter ocorrido há mais de uma hora. Olhou para o relógio e acrescentou: - Naturalmente, a morte não pode ter ocorrido há mais de uma hora e meia, pois são nove e dez e às vinte para as oito vimos Wainwright sair da sala de jantar e dirigir-se para o quarto… 130


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- Como é que o sr. sabe que ele foi para o quarto? - perguntou Miss Wicks. - Porque, como estava com dores de cabeça, fui atrás dele, para ir ao meu quarto tomar uma aspirina, e o meu quarto fica junto do dele - explicou Penbury. - E, se o que penso está correcto, ele foi morto entre as oito e dez e as nove e dez, de maneira que aquele ou aquela que provar que esteve nesta sala durante esse tempo não será suspeito. - Nós todos estivemos fora desta sala - observou Miss Wicks. - É uma pena – murmurou Penbury. - Mas o senhor também esteve - exclamou Monty, nervosamente agressiva. - Sim, também estive - respondeu Penbury. - Por isso vou explicar em primeiro lugar o meu álibi. Às vinte para as oito acompanhei Penbury ao segundo andar. Antes de entrar no quarto, ele fez-me uma observação esquisita que, nas circunstâncias actuais deve ser repetida. «Há uma coisa nesta casa com a qual não estou muito satisfeito» - disse ele. - «Uma só?» - respondi. - «O senhor é mais feliz do que eu». Depois disso, ele entrou no quarto e foi a última vez que o vi vivo. Entrei no meu quarto, tomei dois comprimidos de aspirina. Fui ao quarto de banho para buscar água. A propósito, Mrs. Mayton, o jarro do meu quarto está outra vez vazio. Então, como as dores de cabeça continuassem, achei que uma caminhada me faria bem. Saí, e fiquei na rua até cerca das nove horas. Quando a senhora ouviu o barulho da porta da rua, Mrs. Mayton, não era Wainwright que saía. Era eu que entrava. - Espere um momento! - exclamou Bella. - Como é que o senhor sabe que Mrs. Mayton ouviu o barulho da porta da rua? O senhor não estava aqui! Penbury olhou-a com interesse e respeito. - Inteligente - murmurou ele. - Agora não fique muito tempo a pensar numa resposta! - resmungou Mr. Calthrop. - Não preciso de tempo nenhum para pensar numa resposta - retorquiu Penbury. - Sei porque ouvi do lado de fora da porta. Mas posso continuar a expor o meu álibi?... Como ia a dizer, voltei. Subi para o meu quarto. Fez uma pausa. - No chão - prosseguiu - encontrei um lenço que não era meu e que não estava lá quando saí. Imaginei que poderia ser de Wainwright e fui ao quarto dele perguntar-lhe. Encontrei-o caído no chão, perto da cama, a cabeça voltada para a janela, um braço estendido para a lareira, e uma punhalada no coração. Mas não havia sinais do punhal… Pareceu-me um ferimento pequeno mas profundo. Atingiu em cheio… A janela estava fechada. O assassino só podia ter entrado pela porta. Saí do quarto e fechei a porta. Sabia que ninguém poderia entrar enquanto não tivessem chegado o médico legista e a polícia. Resolvi providenciar para ninguém entrasse. Desci. O telefone, como sabem, é na sala de jantar. 131


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Muito inconveniente, aliás. Devia ser na entrada. Passando por aqui, ouvi a vossa conversa. Ouvi Mrs. Mayton dizer: «Não sei para onde foi Mr. Wainwright». E o senhor, Smith, dizer: «Ele saiu?». E Mrs. Mayton respondeu: «Acho que ouvi fechar a porta da rua». Depois, fui à sala de jantar, telefonei à polícia e vim para aqui. - Mrs. Mayton perguntou-lhe, irritada: - E porque é que o senhor ficou aqui sentado durante três minutos sem nada nos dizer? - Estava a observar - respondeu Penbury, friamente. - Pois muito bem! - exclamou Mr. Calthrop. - Eu acho o seu álibi simplesmente fraco! Fraquíssimo! Quem vai provar que esteve fora durante todo esse tempo? - Ás oito e meia, tomei um café no bar de Junker Street - respondeu Penbury. - Fica a mais de um quilómetro e meio de distância. Bem sei que não é uma prova, mas os empregados do bar conhecem-me e poderão comprovar. Bem, quem quer falar agora? - Eu - exclamou Bella. - Saí da sala para assoar o nariz. Fui ao meu quarto procurar um lenço, e aqui está ele. E mostrou, triunfalmente, um lenço. - Quanto tempo esteve fora da sala? - perguntou Penbury. - Cinco minutos, mais ou menos. - Tanto tempo para procurar um lenço? - Mas não assoei apenas o nariz. Passei pó de arroz, também. - A situação parece favorável - admitiu Penbury. - O senhor quer falar agora, Mr. Calthrop? Todos nós sabemos que o senhor é sonâmbulo. Há uma semana atrás o senhor entrou no meu quarto, não foi? O senhor perdeu um lenço? - Que diabo quer o senhor insinuar? - exclamou Mr. Calthrop, irritado. - Mr. Calthrop esteve a cochilar durante esta última hora? - perguntou Penbury. - E se tivesse cochilado? - gritou Calthrop. - Saí destra sala sem saber e matei Wainwright sem motivo! Não é isso? Tirou um cigarro, depois acalmou-se. - Fique sabendo que saí da sala, cerca de vinte minutos, a fim de procurar o jornal na sala de jantar, para decifrar as palavras cruzadas - e apresentou o jornal. - Aqui está ele! Penbury sacudiu os ombros. - Seria a última pessoa do mundo a refutar tão solene declaração - disse ele. - Mas permita-me sugerir que faça o seu depoimento na polícia com menos exaltação. E a senhora, Mrs. Smith? Monty Smith tinha acompanhado a conversa com ansiedade e já tinha a sua explicação pronta. Tinha-a recapitulado três vezes mentalmente e não estava disposta a cometer o erro de Mr. Calthrop. Falando vagarosa e cuidadosamente, pois sabia que se falasse depressa começaria a gaguejar, respondeu: 132


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- Saí da sala pelo seguinte: lembrei-me de repente que me esquecera de devolver a chave de Mr. Wainwright. Ele emprestara-me a chave à tarde, porque eu tinha perdido a minha. Fui entregar a chave, mas, quando cheguei ao primeiro andar, encontrei Mrs. Mayton, que me pediu para ajudá-la a consertar a cortina da janela, que se prendera na sanefa. Ajudei-a e voltei para aqui com ela. Todos nos viram chegar juntos. - É verdade - confirmou Mrs. Mayton. E eu saí para consertar a cortina. Penbury encarou Monty com severidade. - E que me diz da chave? - perguntou. - A chave? A cortina distraiu-me. Voltei para aqui com a chave no bolso. - Quer dizer que ainda a tem consigo? - Sim. - E o senhor não foi ao quarto dele? - Não, graças a Deus! Penbury encolheu os ombros de novo. Não parecia satisfeito. Mas voltou-se para Miss Wicks e a velha perguntou, continuando a tricotar: - É a minha vez? - Se quiser ter a bondade. Apenas «pro-forma». - Compreendo - disse ela, sorrindo. - Não precisa desculpar-se. Saí da sala para procurar umas agulhas de tricot, estas de aço que estou a usar agora. O meu quarto, como o senhor sabe, fica também no segundo andar. Depois de pegar nas agulhas, ia descer, quando ouvi Mr. Wainwright tossir… - O quê? - exclamou Penbury. - A senhora ouviu Wainwright tossir? A que horas? - Um pouco antes das nove, parece - respondeu Miss Wicks. - Que tossezinha irritante, não é? Como irrita os nervos da gente! De manhã, de dia, de noite. E ele não se incomodava. Uma coisa de deixar qualquer pessoa doida. Fez uma pausa. O ambiente tornou-se de súbito mais tenso. - Continue - murmurou Penbury. - Vou continuar - respondeu Miss Wicks. - Porque não? A porta do seu quarto estava aberta, Mr. Penbury, e eu entrei para perguntar ao senhor se não podia tomar qualquer providência. Mas o senhor tinha saído, como nos contou. E, de repente, ouvi Mr. Wainwright tossir de novo. Aquela tossezinha intolerável, interminável! Não pude aguentar mais e, fora de mim, bati à porta do quarto de Mr. Wainwright. O lenço que o senhor encontrou no quarto dele era meu, Mr. Penbury. Devo tê-lo deixado cair lá. Fez uma nova pausa. E outra vez, Penbury murmurou: - Continue. Miss Wicks voltou-se para ele, com súbita ferocidade. Mr. Calthrop quase deu um pulo da cadeira. Monty sentia um suor frio escorrer-lhe pelo rosto. Bella torcia os dedos, contendo-se para não dar um grito. 133


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Mrs. Mayton estava imóvel. - Quer fazer o favor de não me interromper mais? - gritou a velha. Penbury humedeceu os lábios. Miss Wicks tricotava rapidamente e o barulhinho das agulhas era o único ruído na sala. De repente, a velha continuou com voz alterada: - «Entre» - disse Mr. Wainwright. «Com licença», respondi. Ele, todo sorridente, perguntou-me então: «Veio queixar-se da minha tosse outra vez?» - «Não!» - respondi - «Vim curá-la!» - E mergulhei-lhe no coração uma agulha de tricot. Igual a esta. Assim! Empunhou uma agulha com a mãozinha seca e amarela e, com um vigor inacreditável, cravou a agulha numa almofada. No mesmo instante, bateram à porta da rua. - A polícia! - murmurou Mr. Calthrop. Mas ninguém se mexeu. Num estado de profunda emoção ouviram os passos da criada subindo da cave, a porta que se abria e passos de alguém que entrava… - É ele mesmo. Ouvi a tossezinha, quando ele saiu, há dez minutos disse Miss Wicks sorrindo. - Mas agradeço-lhe muito, Mr. Penbury. Eu estava tão aborrecida como todos eles.

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OS VIZINHOS DA PORTA PRÓXIMA Pauline C. Smith Ed Grant pôs o jornal de lado e voltou-se para a sua mulher. - Bem, como te tens dado com a tua nova vizinha? - perguntou. Evelyn baixou os olhos para a malha que tinha no regaço. - Está tudo bem - disse. - Falei com ela alguns minutos antes de jantar, enquanto estava ao portão - disse Ed. - Contou-me que costumavam viver na Califórnia. Parece uma mulher simpática e vulgar. Evelyn segurou na lã, inspeccionando. - Ela disse isso? - Gostas dela, não gostas? - Penso que sim. - Terás alguém que te faça companhia, durante o dia - insisitiu Ed. Evita pensares demasiado em ti própria. - Não a vejo, amiúde. Algumas vezes falo com ela, quando está a pendurar a roupa lavada na corda. - Bem, é bom para ti - disse ele rapidamente, com um olhar entendido. Evelyn apanhou a lã novamente e manejou as agulhas. A malha era uma espécie de receita, uma recomendação física da família. - Ela pendura a roupa como se estivesse zangada com ela - explicou. Põe as molas nas camisas como se estivesse apunhalando-as. - Evie! - O tom de Ed era áspero. - Bem, ela fá-lo - insistiu Evelyn. - Talvez seja porque tem sempre muitas camisas. Eram catorze. Duas camisas lavadas todos os dias. Talvez o marido dela tenha alguma fobia por camisas limpas. Ed agitava o jornal, enquanto se acalmava. - Evie! Deves deixar de imaginar coisas! Não deves tentar encontrar fobias e neuroses em tudo aquilo que as pessoas fazem. Não é saudável. Pensava que tinhas tirado análises e sido examinada vezes suficientes nos últimos oito meses, para te encontrares mais recomposta da tua depressão nervosa. Evie pensava na força convulsiva que a mulher do andar ao lado fazia ao estender a roupa lavada na corda, com uma violência controlada. - Talvez ela esteja cansada de lavar e engomar tantas camisas todas as semanas - disse. - talvez esteja doente e morra por isso. Podia ser o motivo dela estar sempre apunhalando as camisas com as molas. - Evie, estavas quase boa agora! - Ed falava com uma calma forçada. - Não deves permitir que a tua imaginação corra e te ponha fora de ti dessa maneira. Não é saudável. Poderás ter uma recaída. - Desculpa, Ed. - Pegou na lã outra vez. - Não quero imaginar coisas. - Isso é que é ser boa rapariga - replicou com calma. - Ela não te contou o que o marido faz? - É verdade - disse Evelyn, com as agulhas tinindo. - Vende cutelaria 135


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para restaurantes. Facas e coisas semelhantes. - Bem vês! - disse Ed. - Os vendedores têm de ser asseados. É a razão porque ela muda tanto de camisas. Evelyn estudava a camisola. A lã cinzenta era muito morta. Decidiu que faria um pequeno desenho nela - encarnado talvez. - Já o viste alguma vez? - Não. - Ed tirou os óculos e limpou-os - E tu? - Todas as manhãs. Sai para o trabalho um pouco depois de ti. Tem o carro arrumado no caminho, mesmo por baixo da nossa janela da cozinha. Vejo-o enquanto estou preparando o pequeno almoço. Ed voltou a página do jornal para a secção dos desportos: - Que aspecto tem ele? - perguntou. - É muito alto e magro - disse Evelyn. - Tem boca afiada como uma faca. Veste sempre de cinzento. Faz-me lembrar uma cobra cinzenta. - Evie! - A voz de Ed soou zangada novamente. - Pára com isso! - Está bem. - Levantou-se. - Penso em ir deitar-me já. No seu quarto, parou um momento à janela. Havia luz na outra janela próxima - uma janela do feitio de uma laranja oblonga. Foi para a cama, tomou um sedativo e adormeceu. Por cima da água de sabão com que todas as manhãs ela lavava os pratos, via o homem da porta aparecer a seguir, dirigir-se rapidamente para o seu carro, entrar com a sua mala de amostras, e com as feições tão afiadas como as facas que vendia. Depois o carro arrancava, com ruído e ele partia. Através das breves visitas às traseiras, Evelyn aprendeu a conhecer a mulher; pelos seus longos e apressados passos quando ia abrir a tampa do caixote para lhe deitar os papéis de embrulho, fazendo ressoar a tampa metálica para trás, pelas suas pequenas e violentas brigas com o vestuário na corda de pendurar a roupa; pelos seus colóquios consigo própria, cujas palavras eram inaudíveis, mas de tom claro - algumas vezes um resmungar queixoso e outras, um monólogo violento e arrebatado. Evelyn crescia em conhecimento dela, sentia-o perfeitamente. E algumas vezes à noite ouvia sons da porta próxima. Não sons muito altos nem conversação. Sons abafados. Teria de usar a sua imaginação para dizer se eram sons de cólera ou, talvez, de sofrimento. E ela tinha prometido a Ed não imaginar coisas. Quando o carro ficou parado no passeio durante dois dias ela mencionou-o a Ed. Este baixou o jornal que estava a ler. - Oh! - disse amavelmente. - Estará ele doente? - Talvez esteja - replicou Evelyn. - Também não a tenho visto. É melhor ires ver o que se passa. Pode ser que estejam ambos doentes. - Não, não quero lá ir. Ed mirou o jornal e depois a mulher. - Porque não? Tens falado com ela. Seria a coisa mais natural a fazer. Evelyn curvou-se sobre a sua ocupação, a malha que tinha no colo. Ela 136


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podia pensar que ele estava bisbilhotando. Irritação e indulgência debatiam-se na expressão de Ed. Por fim, disse suavemente: - Julgo que ela não pensará nisso. - Pode ser que sim! Passou mais um dia, sem que nenhum rumor viesse das traseiras. Evelyn prestava atenção e observava, enquanto na porta da casa próxima tudo dormia. No dia seguinte, a sua nova vizinha apareceu para pendurar roupa. Não mais se movia com fúria controlada. Pendurava as peças de roupa, mesmo as camisas, como se fossem estruturas inanimadas e impessoais, nunca como se estivesse lutando com um odiado adversário. Parando no muro divisório, Evelyn descansou as mãos na paliçada. Inclinou-se. - Vi o carro do seu marido no passeio - começou. As palavras pareciam filtrar-se vagarosamente, através do cérebro da outra mulher, adaptarem-se ao seu pensamento, procurando um meio por onde e como começar. Olhou para o carro, e depois para Evelyn. - Anda em viagem - disse - e a sua expressão subitamente cobriu-se com um véu, alheou-se. Passou com a ponta da língua pelos lábios. - Foi assistir a uma convenção. Era demasiado longe para ir a guiar. Apanhou o comboio e deixou o carro para mim. - Oh, foi assim - disse Evie simpaticamente. - Estávamos receosos que ele estivesse doente. - Não, não está. Não está doente. Abruptamente a mulher recuou, movendo os lábios como se estivesse a murmurar palavras adicionais de explicação, numa tentativa para reduzir o pouco natural ao comum. Depois voltou-se, entrando pela porta das traseiras e fechando-a atrás de si. - O homem que é nosso vizinho está na cidade - disse Evelyn a Ed nessa tarde. Ele sorriu. - Então, sempre lá foste, apesar de tudo. Evelyn abanou a cabeça: - Acabava de assomar ao jardim, quando ela veio pendurar a roupa. - Ah! Penso que falaste com ela. - Sim. Falei. - Evelyn inclinou-se para a malha. - Ela pegou no carro e foi-se embora esta tarde. Fazendo ruído com o jornal, Ed dispôs-se a ler. - Mas não demorou muito tempo - continuou Evelyn. - Quando voltou, trazia dois cães grandes. Ed poisou o jornal. - Ela fez isso? - Dois cães grandes e magros - disse Evelyn. - Prendeu-os nas traseiras, usando o fio da corda para os ligar à estaca da roupa. Ela teve uma grande lavagem esta manhã, e depois da secagem, foi comprar os cães e 137


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atou-os com a corda da roupa. - Talvez ela tenha horror a estar sozinha, enquanto o marido anda fora, e tivesse comprado os cães para servirem de guardas. - Talvez. - Evelyn sentia-se pronta a desistir dos sedativos que tinha utilizado para a ajudar a dormir todos estes meses. Empurrando o pequeno frasco de comprimidos, para o fundo da mesa de cabeceira, deitou-se. Pensou na mulher da porta vizinha, nos cães, no carro e no passeio. A mulher, os cães e o carro. Por fim, levantou-se passeando pela casa às escuras. Junto da janela da cozinha, à noite, reparou num raio de luz que atravessava o pátio da casa próxima. Os seus olhos seguiram-no. Ouviu uma rápida rosnadela e um grunhido - depois o barulho de algo a ser engolido, fanhoso som de animal esfomeado sendo satisfeito. A luz fez um arco, dirigindo-se para casa onde desapareceu. Por bastante tempo, Evelyn permaneceu à janela. Depois foi para o quarto, tomou um sedativo e adormeceu. - Ela não gosta de cães - contou Evelyn a Ed, alguns dias mais tarde. - Nem tem de gostar. São unicamente guardas. E não animais de estimação. - Ela leva-os a passear todos os dias. Solta-as e sai com eles. Quando volta está cansada e os cães também. Depois de escurecer dá-lhes um suculento jantar. Evie pensava no aparelho mastigador dos cães, as suas línguas preguiçosas e o andar fatigado da mulher, a sua cara esgotada de tudo, menos de debilidade. Todos os dias ela retirava os cães das cordas, enrolando -as enquanto eles rebolavam no chão com os olhos fechados, arquejando satisfeitos. - O que é que ela disse acerca do marido? - perguntou Ed. - Parece que a convenção que ela mencionou está durante muito tempo. - Não diz nada. Só passeia os cães. Passeia-os e alimenta-os. Ed baixou o jornal e perguntou: - Nunca mais conversaste com ela? Segurando as agulhas com firmeza, Evelyn encarou-o. - Não a vejo, para falar com ela. Não pendura já nada na corda da roupa. Parece não fazer nada no pátio, excepto soltar os cães e voltar a amarrá-los novamente. - Bem, isso é demasiado mau. Quero que tenhas companhia. Talvez possas passear… - Não! - protestou Evelyn enfaticamente, cortando-lhe a frase. Não quero passear com ela nem com os cães. Deixou cair a malha na cadeira e foi para a cama. Saciados e entorpecidos, os cães estavam calmos, crescendo gordos e mandriões, enquanto atrasavam relutantemente o passo no fim das suas cordas atadas, e, arrastando-se, descansavam sonolentamente. Evelyn fazia malha sossegadamente. A camisola estava quase pronta, a camisola acinzentada e pouco interessante onde ela tinha feito um pe138


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queno desenho de um vermelho brilhante. - Levou os cães a passear de carro hoje! - contou a Ed na sexta-feira. Ed olhou-a por cima dos óculos. - Ela fez isso? - E voltou sozinha. Depois entrou em casa, pegou em duas malas, saiu, pô-las no carro e desapareceu rapidamente. - Talvez fosse essa a razão porque ela levou os cães - disse Ed. - Ela vai de viagem. - Vai de viagem, talvez, sim! - Ou talvez, a renda da casa seja demasiado alta. - Ed bocejou, poliu os óculos e colocou-os cuidadosamente no nariz. - Ela não os devia ter exercitado tanto, fê-los esfomeados. - Abriu o jornal e pô-lo nos joelhos. - Deve ter-lhe custado um dinheirão de carne esses brutos. Evie retirou as agulhas do fio e dobrou a camisola. Levantou-se. O desenho estava todo acabado. - Penso que não - disse. - Penso que, apesar de tudo, não lhe deve ter custado absolutamente nada.

O HOMEM SENTADO À MESA C. B. Gilford Byron Duquay encontrava-se sentado à mesa octogonal de tampo verde. À sua direita, havia uma pequena caixa com fichas de poker vermelhas, brancas e azuis; à esquerda, uma mesa com rodas contendo whisky, bourbon, água tónica, uma dúzia de copos e um balde de prata cheio de cubos de gelo. Byron Duquay entretinha-se, sozinho, com um baralho de cartas que os seus dedos de unhas bem cuidadas manuseavam com perícia. A sua expressão serena não se alterava à medida que as cartas se voltavam sobre o pano verde. Imperava na sala, como de resto em toda a casa, silêncio absoluto, apenas alterado pelo leve ruído das cartas. De súbito soou o estalido metálico do fecho da porta da entrada, que se achava fora do campo visual de Duquay, pelo que este proferiu em tom amigável: - Pode entrar, quem quer que seja. Esperava um amigo para uma partida de poker, mas o homem que se apresentou no instante imediato não viera, claramente, para jogar as cartas. Era de estatura média, extremamente magro, trajando calças cinzentas sulcadas de manchas, camisa branca de mangas arregaçadas, sem gravata, com os cabelos ruivos desgrenhados. O rosto macilento 139


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achava-se contraído de forma pouco tranquilizadora e, na mão direita, via-se uma faca de dimensões apreciáveis. Byron Duquay não fez menção de se levantar, mas suspendeu os movimentos das mãos e indagou: - Que deseja? O desconhecido não se preocupou em responder; e, depois de lançar um olhar desconfiado em redor, perguntou: - Estamos sós? - Depois de o dono da casa anuir com um movimento de cabeça, prosseguiu. - Óptimo. Não se arme em esperto e nada lhe acontecerá. - Que deseja? - insistiu Duquay, imperturbável. No entanto, o outro continuou a não lhe satisfazer a curiosidade, considerando porventura se existia algo que pudesse desejar. A rápida inspecção à sala levou-o a fixar a vista nas garrafas à esquerda de Duquay e a expressão iluminou-se-lhe. - Apetece-me beber - disse. - Então, sente-se. Duquay aguardou que se instalasse na cadeira, à sua frente, com a mão direita sobre a mesa, a lâmina da faca, que não media menos de quinze centímetros, refulgindo em contraste com o fundo verde. - Prefere bourbon ou whisky escocês? Levemente admirado por lhe ser facultada a escolha, o intruso hesitou. - Bourbon - decidiu, por fim. - Uma dose abundante com gelo. Seguiu-se um prolongado silêncio, enquanto Duquay preparava a bebida nas condições estipuladas. Por último, impeliu o copo para o lado oposto da mesa e o desconhecido estendeu a mão livre para o levar aos lábios. - Preciso de algum dinheiro - anunciou, após um longo trago - e das chaves do seu carro, assim como a indicação do local onde se encontra estacionado. Quero também mudar de roupas. Duquay não esboçou o mínimo movimento para o comprazer. - É um assaltante com exigências originais - observou. - Guarde as opiniões para si. - O intruso tornou a levar o copo à boca. - Despache-se. - Ainda não se apresentou. - O meu nome não vem ao caso. - Deve ser Rick Masden. O sorriso de orgulho que assomou às faces do gatuno revelou que a conjectura era acertada. - Vejo que costuma ouvir o noticiário da Rádio. - Uma vez por outra. - Pois bem, sou na verdade Rick Masden, o tipo que anavalhou duas pessoas num bar, a semana passada: a minha pequena e o imbecil pelo qual me trocara. Dois dias depois, apanharam-me, mas, ontem de manhã, consegui fugir… porque tive artes de me apoderar de outra faca. 140


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- Importa-se que beba na sua companhia? - inquiriu Duquay, pegando numa das garrafas. No entanto, a mão esquerda de Masden largou o copo e bateu energicamente no tampo da mesa. - Beberá mais tarde! - rugiu. - Expliquei-lhe o que queria, e gosto pouco de esperar. - Analisemos calmamente a situação - propôs Duquay. A mão direita de Masden afastou-se ligeiramente da mesa e a faca oscilou impacientemente entre os dedos. - Preste atenção, amigo. Ou procede imediatamente como lhe ordenei ou sofrerá a sorte dos outros. Todavia, Duquay nem vacilou. - Não se impaciente - retrucou, com inflexão autoritária. - Antes de principiar a retalhar-me o corpo, escute o que tenho para lhe dizer. Masden pareceu pressentir qualquer perigo indefinido e transigiu: - Sou todo ouvidos - resmungou. - Ora bem. Encontramo-nos sentados em lados opostos de uma mesa, distanciados de dois metros, aproximadamente. O senhor dispõe de uma faca e eu, de momento, acho-me desarmado. Não obstante, tenho estado a pensar no que aconteceria se decidisse recorrer à violência. Evidentemente que tentaria defender-me. Sabe como? Do seguinte modo. Se fizesse o menor movimento para abandonar a cadeira eu impeliria a mesa para cima de si. Embora a sua idade seja bastante inferior à minha, suplanto-o em corpulência. Por conseguinte, o senhor ficaria no chão, por baixo da mesa ou, na pior das hipóteses, de encontro à parede oposta, com a mesa entre ambos. Acompanha o meu raciocínio? Fascinado, mau grado a desconfiança e cólera, o interpelado respondeu: - Perfeitamente. - Nesse caso, passemos à segunda fase das operações. Observe a secretária à esquerda, atrás de mim. Julgo que pode ver o objecto a que me refiro, sem mudar de posição. Utilizo-o para abrir cartas, mas trata-se na realidade de uma adaga turca cravejada de pedras preciosas. O resto é simples. No instante em que empurrasse a mesa para cima de si, apoderar-me-ia da adaga e encontrar-nos-íamos igualmente armados. Masden fitou Duquay com estranheza, quando este se calou por um momento, pestanejando repetidas vezes em silêncio. - A segunda fase pode considerar-se uma espécie de preparação para a luta. A terceira consistiria no início da luta. Detenhamo-nos um pouco na questão das armas. Que género de faca é a sua? - De cozinha, muitíssimo aguçada. Entregou-ma um companheiro na prisão. - Se não leva a mal - volveu Duquay, com um ligeiro sorriso - julgo que desfrutaria de certa vantagem no tocante às armas. Pelo menos, não trocaria a adaga turca pela sua faca de cozinha. 141


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- Oiça cá… - Mais importante do que a questão das armas é a dos homens envolvidos. A propósito: Que idade tem? - Dezanove. - E eu trinta e cinco. Talvez a balança se incline um pouco para o seu lado, nesse capítulo. Quanto pesa? - Sessenta quilos. - E eu oitenta e cinco, um ponto a meu favor, desta vez. De que forma nos comportaríamos? Descreverei as minhas qualificações, em primeiro lugar. Fui defesa internacional na selecção de râguebi de há dez anos e efectuei exibições enaltecidas pela Imprensa da especialidade na equipa de basquetebol da Universidade. Pratiquei, com assiduidade, ténis, natação e numerosos outros desportos. Além do mais, conservo a forma física em perfeito apuro através de exercícios físicos diários. Não engordei uma só grama desde que concluí os estudos. É alguma coisa, não concorda? Falemos agora de si. Masden empalideceu; o à-vontade inicial dissipava-se gradualmente. Humedeceu os lábios para responder, mas não logrou pronunciar um único som. - Permita-me que o analise como o vejo. Sofre de alimentação deficiente crónica, não em resultado de passar fome, mas por falta de assistência adequada desde criança, que o privou de ingerir aquilo que mais lhe convinha. Já reparou que é anormalmente magro? Aposto que principiou a fumar aos nove anos. Pelo menos assim o sugere a intensa camada de nicotina nos dedos. Provavelmente, agora, fuma algo de mais activo que simples tabaco. Notei também que lhe agrada beber. Proceda a uma rápida comparação e ver-se-á forçado a admitir que sou o mais forte. Masden enrugou a fronte, as sobrancelhas abundantes quase unindo, mas conservou-se calado. - Ainda não discutimos o factor fundamental - tornou Duquay. - Refiro-me propriamente à coragem pelo perigo, poder para enfrentar os riscos necessários. Não nego que a sua intromissão nesta casa exigiu arrojo. No entanto, a circunstância deveu-se a possuir uma faca e a imaginar que eu me encontrava desarmado. Agora, todavia, até que ponto mantém a intrepidez? Quase se eclipsou, ousaria aventurar. Depois de se persuadir de que existe o perigo de ficar marcado na luta, o futuro deixou de se lhe apresentar tão risonho, hem? - Tudo isso não passa de bluff! - disse Masden, recuperando finalmente a fala. O sorriso de Duquay alargou-se. - Parece-lhe? Para se certificar, basta que tente abandonar a cadeira. (Registou-se novo silêncio, agora quase palpável, mas o intruso não se moveu). - Não devo descurar determinado facto. Conquanto não seja um modelo de coragem, você teria um excelente motivo para sustentar uma luta. Se me matasse, a sua situação não se agravaria e obteria o meu 142


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dinheiro, o carro e tudo o mais que resolvesse levar. Por outro lado, se sucumbisse, não ficaria pior do que a partir do momento em que se evadiu. Algo semelhante a esperança brilhou no olhar incaracterístico de Masden. - Que lucraria em lutar comigo? - É uma pergunta pertinente. Na realidade, aparentemente, eu poderia deixá-lo apoderar-se daquilo que entendesse, contribuindo para dificultar o trabalho da Polícia e protelando a sua captura por dois ou três dias ou mesmo uma semana. De resto, subsistiria a esperança de que, desde que eu não oferecesse resistência, se retiraria, limitando-se a amordaçar-me. Contudo, não confio em si a esse ponto. Você adora a violência e, com alguns homicídios no seu activo, não hesitaria em alongar a lista, silenciando-me definitivamente. As sobrancelhas de Masden afastaram-se e a expressão denunciou inequívoca malícia. - Para remate - continuou Duquay - detesto-o solenemente. É um ser desprezível, que se refugia atrás do cabo de uma faca, para cometer acções mais hediondas. Não me importaria de correr o risco de ficar ferido ou até morrer em troca do privilégio de o deixar marcado. - Com que então está disposto a um pequeno duelo? - observou Masden, contraindo a mão que segurava a faca. - Pode contar com isso, se tentar levantar-se. O criminoso levou o copo aos lábios, esvaziou-o e franziu os lábios perante o efeito do álcool. - Muito bem. Comece quando quiser. - Não afirmei que tencionava começar coisa alguma - frisou Duquay. - Expliquei-lhe apenas como procederia, se você tomasse a iniciativa. A quietude tornou-se ainda mais impressionante e prolongada, enquanto os dois homens se encaravam, ambos com as mãos bem visíveis sobre a mesa. Por fim, Masden sugeriu: - Por que não me entrega o que desejo? Contento-me com um punhado de dólares, um fato e as chaves do carro. Decerto o tem no seguro e, assim, não ficará muito prejudicado. - Nem pensar nisso. - Então ficamos aqui, eternamente? Declarou que, se procurar levantar-me, empurrará a mesa e pegará na adaga. Portanto, ou lutamos ou continuamos transformados em estátuas. Lembro-lhe que o tempo urge para mim. - Um clarão repentino assomou aos olhos de Masden. - Começo a compreender. Espera uns amigos para jogar as cartas e tenciona reter-me até que cheguem… - Pelos vistos estou sendo bem sucedido. Com efeito, espero-os dentro de poucos minutos. - Não julgue que leva a sua avante. - Ainda está a tempo de optar por uma das alternativas. - Seria louco se aguardasse, imóvel, até à aparição dos seus amigos! 143


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- A menos que estabeleçamos um acordo. - Explique-se - pediu o criminoso, cujo corpo tremia de indecisão. - Confesso que no fundo, a perspectiva de ficar com o corpo sulcado de cortes não me seduz. Por conseguinte, negociemos a minha integridade física em troca da sua fuga… de mãos vazias, claro. - Ainda não o entendi bem. - A questão é esta. Sentir-me-ei em perigo, enquanto você empunhar a faca e, se saltar repentinamente, não poderei adivinhar se o fará para partir ou atacar-me. Desse modo, na eventualidade de se mover, qualquer que seja a sua intenção, terei de me defender, estabelecendo-se luta, tanto se quisermos como não. Compreendeu agora? - Acho que sim. - O pormenor básico da situação consiste, pois, na sua faca. Você quer partir e eu pretendo esquivar-me à luta. No entanto, desde que conserve a faca, não conseguirá mover-se para lado algum sem provocar a luta. Por outras palavras: a única solução resume-se em arremessá-la para o centro da mesa. - O quê?! - Dessa forma, nenhum de nós se magoaria. - Que me aconteceria? Como antigo praticante de râguebi, não teria dificuldade em… - Uma vez que a mesa está entre nós, poderia alcançar a saída antes que eu conseguisse agarrá-lo. - Mas telefonaria à Polícia. - É um rapaz atilado - Duquay esboçou um sorriso divertido. - A possibilidade não me ocorrera, mas, na minha qualidade de cidadão cumpridor da lei, receio que não me restasse outra alternativa. Assentemos num acordo: o meu telefone pela sua faca. - Hem? - O telefone encontra-se sobre a secretária, ao alcance da minha mão. Se quiser, voltar-me-ei e desligarei a ficha da tomada. Em seguida, depositará a faca na mesa e partirá correndo. Que diz? Masden contraiu o rosto, visivelmente imerso em profundas reflexões, enquanto contemplava Duquay, como que avaliando até que ponto procederia como indicava. - Seja - aquiesceu, decorrido um momento. - Desligue o telefone. Mas note que não perderei de vista os seus movimentos. Se cometer o erro de pegar na adaga e não no aparelho… - Preste atenção. Com lentidão, procurando evitar o mínimo movimento brusco, mas sem desviar o olhar do adversário, Duquay estendeu o braço esquerdo e pousou a mão no telefone. A seguir, puxou-o com violência e o cordão pendeu, solto. - Está satisfeito? - inquiriu, largando o aparelho, que tombou no espesso tapete com um som abafado. - Agora queira colocar a faca no centro da mesa, onde nenhum de nós a alcançará com facilidade. - (Verificou144


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se uma larga pausa, sem que qualquer dos dois homens se movesse). Então? Lembre-se de que, enquanto a empunhar, não poderá abandonar a cadeira. Finalmente, Masden capitulou com manifesta relutância e, com uma sacudidela do pulso, arremessou a faca para o lugar indicado. - Agora, atenção ao que faz, porque me vou retirar. - Lamento não lhe desejar boa sorte. De súbito, registou-se um pequeno ruído claramente audível, que provocou a reacção imediata do criminoso, o qual impeliu a cadeira para trás com um pontapé, apressando-se a correr para a saída. Duquay permaneceu imóvel, mas firmou as mãos no tampo da mesa e gritou: - Sam, agarre esse homem que é um assassino! Seguiu-se breve luta na dependência contígua, mas ele não se levantou para intervir, contentando-se em escutar. Por fim, soou a pancada característica de um punho colidindo com uma região ossuda e o silêncio restabeleceu-se. Duquay reclinou-se no espaldar da poltrona, nitidamente aliviado, a fronte perlada de suor… O capitão Sam Williams entrou pela segunda vez na sala de Byron Duquay, cerca de duas horas mais tarde, período de que necessitara para confiar Rick Masden aos cuidados da esquadra de Polícia mais próxima e redigir o relatório da captura. - Não voltarei a sentar-me tranquilamente para jogar o poker consigo! - observou, meneando a cabeça. - Nunca o imaginei com semelhante capacidade para o bluff… - Exagera, Sam. Fui afortunado, simplesmente. Antes de Virgínia sair, esta noite, pedi-lhe que me ajudasse a abandonar a cadeira de rodas e a instalar-me nesta poltrona. Assim, sinto-me menos inválido. Se permanecesse no lugar habitual, nunca conseguiria iludir Masden. Sam concordou e lançou uma olhadela, através da porta aberta do quarto, para a cadeira de rodas, que brilhava na obscuridade. Na verdade, se Rick Masden porventura dera conta da sua existência, não a relacionara com o homem sentado à mesa.

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UM MENINO CONDUZ O INQUÉRITO William Irish A menina que estava sentada à minha frente, na sétima classe, chamava-se Monique. Não me lembro muito bem dela, porque então eu tinha apenas nove anos (agora farei doze dentro em breve). No recreio da tarde, persegui-a no pátio puxando-lhe as tranças e gritando: «Ding! Ding!». Ela repetia continuamente: - Direi a um polícia! - Um polícia! - dizia eu. - O meu pai é inspector da Segurança! Como a atormentavam sem cessar, Monique adquiriu o hábito de ficar dentro da aula para almoçar. Um dia, ao sair, vi um chupa-chupa na sua pequena malinha aberta. Um daqueles que custam cinquenta francos. Um amarelo, de limão, o gosto que eu prefiro. - Onde o arranjaste? - perguntei-lhe. - Deram-mo, mas é um segredo. As raparigas tentam sempre dizer que é um segredo, quando se lhes pergunta qualquer coisa. - Aposto que o roubaste! - Não, não é verdade! - disse ela. - Foi um senhor que mo deu. Estava à esquina da rua, quando vim para a escola, esta manhã. Pôs bruscamente a mão na boca. - Ooooh! Esqueci-me! Ele tinha-me dito para não falar disto a ninguém! Ou nunca mais me daria um chupa-chupa! - Deixa-me comer um bocadinho e não o repetirei a ninguém. - Juras? Teria jurado fosse o que fosse para comer o chupa-chupa. Estendi a mão e jurei… No dia seguinte, à tarde, quando Monique abriu a malinha, era um de laranja que ela tinha. E a laranja, é também um dos gostos que eu prefiro. - Para amanhã, prometeu-me um de caramelo - disse-me ela. - Disseme que se se esquecesse eu iria buscá-lo com ele. Tem uma grande casa na floresta, que está toda cheia de chupa-chupas, de pastilhas elásticas e de «tablettes» de chocolate! Quando saímos da escola, às três horas, eu fiquei um pouco para trás. Monique ao passar por mim puxou-me pela manga. - Olha - disse ela baixinho - está ali o senhor que me dá os chupa-chupas. Acreditas-me agora? Olhei, mas não havia nada de extraordinário para ver. Apenas um homem com um fato velho e braços compridos como os dos macacos, que lhe chegavam até aos joelhos. No dia seguinte, Monique não veio à escola durante todo o dia, e o Director entrou na nossa aula exactamente antes das três horas. Queria saber se alguém vira Monique na véspera, quando vinha para a escola. 147


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Eu ia contar-lhe o que ela me dissera, da casa na floresta que estava cheia de bombons, mas lembrei-me que havia jurado. Por isso, não podia dizer nada. Nunca mais vimos Monique, e durante perto de uma semana quase que também não vimos o papá em casa. Decorrida uma semana, voltou de novo a jantar connosco. E todos nós, os camaradas, na escola, não tardámos a esquecer Monique. Na quinta, eu tinha também uma menina na minha frente. Era uma nova que se chamava Janine. Ela era louca por giz de cor. Trazia-os sempre nas algibeiras, e quando se via riscos amarelos ou cor-de-rosa num muro ou na parede de uma casa, podia-se ter a certeza de que Janine passara por ali. Com aquela mania, ela quase nunca tinha dinheiro. Pensem bem, o giz de cor, custa facilmente cem francos a caixa, e por vezes chegava a usar duas caixas numa semana. Também fiquei surpreendido, um dia, no recreio, por a ver desembrulhar um chupa-chupa. Era amarelo. De limão. Exactamente o que eu prefiro. - Ontem - disse-lhe eu - quiseste que te emprestasse cinco francos para comprares caramelos, e depois compraste um chupa-chupa de cinquenta, aldrabona! - È mentira! Foi um senhor que mo deu esta manhã, quando eu vinha para a escola! No dia seguinte, quando saímos para o recreio, Janine voltou-se para mim e cochichou-me por cima do ombro: - Fica! Eu tenho outro. Ela só abriu a caixa, quando todos os outros já tinham saído e mostrou-mo. Era de laranja, o gosto que eu prefiro. Saboreando-o eu tentava lembrar-me de qualquer coisa a propósito de um chupa-chupa de laranja. Tinha a impressão de que isto já me acontecera… No dia seguinte, quando jogava à bola, vi um homem que se mantinha imóvel à minha frente. Tinha grandes olhos brilhantes e braços quase tão compridos como os dos macacos do jardim zoológico. Ele quase que não me olhava. Lancei a bola muito alto, e, como a seguia com o olhar, um nome pareceu-me de repente cair do céu azul, em pleno rosto: Monique! Agora, eu já sabia onde vira estes olhos engraçados. Sabia quem partilhara comigo um chupa-chupa de laranja e um outro de limão! Ele deralhos, e depois ela nunca mais voltara à escola. Agora, eu sabia o que sentia necessidade de dizer a Janine… Era preciso que ela não fosse com aquele homem, de outra maneira acontecer-lhe-ia qualquer coisa. Corri para a escola, entrei no pátio e comecei a bater docemente no vidro, para que Janine voltasse a cabeça e me olhasse. Consegui-o, mas, quando me preparava para lhe fazer sinais, M.elle Blanchet ergueu os olhos e viu-nos. Mandou-me imediatamente entrar. - Thomas - gritou ela -, vá sentar-se. Não atrás de Janine, do outro lado. 148


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- Depois, decorridos dois minutos, para melhor mostrar o seu desagrado, disse: - Pode ir-se embora, agora, Janine. E amanhã, trate de chegar à hora. Então não me pude conter. Gritei: - Mademoiselle Blanchet, não a deixe ir-se embora! Peço-lhe. Senão, ela vai buscar bombons em… Vi Janine arrumar os livros, e quando ela se dirigiu para a porta, foi mais forte do que eu: - Janine, não vás! Espera-me no pátio! Desta vez, M.elle Blanchet desceu do estrado e veio junto de mim, vermelha como um tomate: - Quer que mande chamar o prefeito? - gritou ela. Janine estava furiosa: - Hipócrita! - Cochichou-me antes de fechar a porta. Por pouca sorte, o papá tinha regressado cedo e eu não pude falar-lhe de Janine. Apenas começara a contar-lhe que M.elle Blanchet me pusera de castigo, puxou-me as orelhas e disse-me para ir para o quarto. Fechou-me lá à chave. Agora, provavelmente, era demasiado tarde. De súbito, ouvi a campainha do telefone, depois, passado um instante, a minha mãe que dizia: «Oh! Tom, não… não é possível.» Ela tinha a voz muito trémula e o papá respondeu: «Tinha a certeza de que ele recomeçaria…» Corri para a porta: - Papá, abre-me só um minuto! Posso dizer-te como é ele! Eu vi-o! Mas a porta da entrada já se tinha fechado. Abri a janela do meu quarto que dava para o alpendre, e deslizei ao longo dos postes. Uma vez no chão, parti a correr. Seguia o mesmo caminho de todas as manhãs, quando ia para a escola; apenas eu nunca tinha ido à escola à noite. Fui até à esquina, e preparava-me para dar meia-volta, quando vi a boca de água para caso de incêndio à beira do passeio. Na extremidade, havia um traço de giz cor-de-rosa. Eu continuei a avançar pelo passeio. Havia muitas montras, mas, num recanto, descobri um ziguezague cor-de-rosa. Voltei à esquerda e, por ali, era tudo muito engraçado, não se assemelhava nada ao nosso bairro. Velhos candeeiros e velhas casas todas demolidas. Mas ali, marcas de giz, havia inúmeras! Quase todas as paredes estavam cobertas delas. Por sorte, estava tudo escrito com giz branco, porque o giz de cor custa muito caro. Enfim, vi um sítio de onde partia um traço amarelo, um traço que continuava todo a direito, saltando simplesmente as portas e as janelas. Era tão fácil de seguir que me pus a correr para ir mais depressa. Decorrido um momento, vi qualquer coisa mais escuro do que o resto, da qual me aproximei lentamente. Sabia o que devia ser e preferia não pensar nisso, porque já não tinha muita coragem. Aquela parede negra que se elevava ao fim dos campos e que se tornava cada vez mais alta à medida que eu avançava, era a floresta. Acabei por chegar lá, e vi árvores de um lado e de outro. A estrada continuava e, como continuava a haver postes eléctricos, não era apesar de tudo tão terrível como eu pensava. 149


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Quando me parecia ver qualquer coisa mexer, começava a correr. Foi num desses momentos, quando eu corria através de uma espécie de clareira, que o meu pé bateu em qualquer coisa e eu me estatelei ao comprido com o ruído de ferro-velho. Era a caixa de ferro de Janine, a sua caixa de provisões que ela tinha trazido até ali, pensando enchê-la de bombons. - Oh, Janine! - disse eu muito trémulo. - Ele matou-te? Mais longe, havia um outro espaço descoberto. Corri para lá, porque tinha muito medo de ficar mais tempo junto da caixa. Vi então uma velha casa. As janelas já não possuíam vidros. Comecei por dar uma volta em torno dela, depois encostei-me a uma das janelas e pus-me à escuta. Não consegui ouvir nada, mas era porque o meu coração batia muito forte. Então, reunindo toda a minha coragem, trepei à janela e penetrei no interior. Coloquei a mão no corrimão, e comecei a subir um degrau após outro. Uma vez, houve um deles que rangeu e eu imobilizei-me pelo menos durante cinco minutos. Mas nada aconteceu. No patamar, vi uma porta à minha direita. Estava simplesmente encostada, porque já não tinha fechadura. Empurrei-a, e no chão vi um volume escuro, como um saco atirado ao acaso. Disse «Janine?» e vi o saco começar a agitar-se. Dois pés surgiram, dois pequenos pés atados um ao outro. Fui imediatamente retirar os sacos vazios e arrisquei-me a acender um fósforo junto ao chão. Os olhos de Janine brilhavam, mas a faces estavam todas negras, tanto ela havia chorado sob os sacos. - Onde foi ele, Janine? - perguntei-lhe imediatamente. - Disse que ia cavar a cova. Depois voltaria para me matar com a sua faca! Tirou-me um cabelo, aqui, na testa, e serviu-se dele para ver se a faca cortava bem! Descemos docemente a escada, colando-nos à parede e eu à frente. Eu dizia a mim próprio que em breve estaríamos lá fora, quando de repente aquilo aconteceu. Não deveríamos ter ficado ambos sobre o mesmo degrau. Houve um ruído como um tiro de espingarda, o degrau partiu-se e o meu pé desapareceu no buraco. Quando quis levantar-me vi que estava preso em baixo. Janine fez tudo quanto pôde para me ajudar, mas dir-se-ia que eu tinha caído numa armadilha. - Janine, vai-te embora, tu! - supliquei-lhe. - Irás sempre a direito, com a Lua atrás de ti e chegarás à estrada… - Não, não! Não vou sem ti! Isso… isso não estaria bem, Thomas… Então ficámos um momento sentados sem dizer nada. Lá fora, houve um ruído, como quando se caminha sobre pequenas pedras, e nós apertámo-nos fortemente um contra o outro. Ambos vimos a sombra ao mesmo tempo. Projectava-se sobre o chão do vestíbulo, no meio do luar. Uma grande cabeça negra e os ombros. Depois a sombra mexeu-se. Tornou-se grande, enorme, e um par de longas pernas empurrou-a, como se fosse um homem sobre andas. A escada tremeu um pouco quando ele colocou 150


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o pé no primeiro degrau. Bruscamente deteve-se. Penso que devia ter visto a blusa branca de Janine. Um ruído, depois uma luz amarela, era a de um fósforo. Eu não me enganara. Era precisamente o homem que esperava na rua, mas de que me servia isso agora? Subiu um degrau e inclinou-se sobre nós, quase dobrado em dois. Eu não tinha ainda doze anos, não pude dominarme por mais tempo! - Papá - gritei eu. - Oh! Papá, depressa! - Sim, é isso, chama pelo teu papá - disse ele estendendo o longo braço para a blusa de Janine. Chama pelo teu papá. Ele encontrar-te-á cortado aos bocadinhos. Eu já não sabia onde me achava, de tal maneira estava aterrorizado. Com a minha perna livre, dei-lhe um pontapé. O meu pé acertou-lhe em cheio no estômago, quando ele menos o esperava. O fósforo apagouse. E houve um barulho terrível, muito mais forte do que quando eu fiquei com o pé preso. O homem rolou pela escada abaixo e isto levantou uma nuvem de poeira. Quando consegui ver de novo o luar, havia um grande buraco no meio da escada. O corrimão caíra e toda a escada estava inclinada para o lado, como se quisesse afastar-se da parede. Mas o melhor de tudo, é que o meu pé estava livre! Subimos rapidamente, com as mãos no chão, até ao quarto onde ela estivera atada; procurámos coisas para bloquear a porta. Mas havia apenas duas velhas caixas de embalagens que não pesavam muito. Empurrámo -las contra a porta. Ouvimo-lo subir docemente, resmungando. Depois desatou a rir, e compreendemos que já devia estar no patamar. Depois, deu um pontapé na porta. As caixas recuaram um pouco e, eu voltei a empurrar Janine, mas de novo recuámos. Então ele deu outra vez um grande pontapé. Desta vez, tivemos de empurrar muito, Janine e eu, mas não chegámos a fechar completamente a porta. Ao quarto pontapé, foi o fim. Janine e eu, caímos por terra, com as caixas sobre nós, e a porta empurrou-nos contra a parede. Ele precipitou-se para o meio da sala sem nos ver. Quando se voltou, eu atirei-lhe uma caixa contra as pernas, depois libertámo-nos, eu dum lado, Janine do outro. Eu consegui deslizar para o patamar, mas tive de regressar, porque ele barrava a passagem a Janine brandindo a faca. Ela corria de um lado para o outro, procurando passar-lhe por debaixo dos braços, mas ele saltava na frente dela tentando atingi-la com a faca. De súbito, a mão dele bateu-me em plena fronte. Foi como se uma estrela brilhante me tivesse atingido, e fui projectado contra a parede. Deslizei por terra, e a última coisa que vi foi o saco que ele atirava para lançar sobre a cabeça de Janine. Depois chegaram homens a correr com lanternas eléctricas. Fechei os olhos e creio bem que fiquei como adormecido durante alguns minutos, lamentando não ter podido salvar Janine. Quando voltei a abrir os olhos, flutuava entre o tecto e o chão. E vi que Janine parecia fazer como eu. Estávamos ambos no ar. Então disse para 151


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mim próprio que talvez estivéssemos mortos e nos tivéssemos tornado anjos; depois compreendi que era simplesmente um homem que a segurava nos braços e a mim também. - Docemente, hem, ao descer a escada! - disse o que me levava. Era o meu pai, nem mais nem menos, do que o papá, eu via-o no quarto, agitando o braço de cima para baixo, com todas as forças. Tinha qualquer coisa negra na mão e dois outros homens tentavam segurarlhe o braço. Eu ouvi-o dizer: - É pena que eu não tenha chegado um pouco antes! É preciso que eu o leve vivo, agora que há testemunhas. Mas o diabo me leve se não o levo desmaiado. Levaram-nos imediatamente a casa do médico, Janine eu. Ele disse que não tínhamos nada, mas que teríamos provavelmente maus sonhos. Pergunto ainda a mim mesmo como podia ele ter adivinhado os sonhos que teríamos.

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A CARA DO OUTRO Joseph Shallit - Eu sei que o senhor mal pode esperar que eu tire estas ligaduras do seu rosto. Há três horas que está quieto, não é? Bem… tenha paciência, mais uns cinco ou dez minutos. Preciso de esperar por Miss Roberts, minha assistente. Deve estar a chegar do almoço. Inferno! Por que diabo a deixou ir-se embora antes de terminar o serviço? Quer conservar-me aqui o resto da vida? - Eu sei que o senhor deve sentir-se mal com o rosto todo coberto e sem poder falar. Mas eu digo-lhe… alguns cirurgiões poderão pensar que sou excessivamente meticuloso, mas gosto de ter alguém que me ajude a tirar as ligaduras. É uma operação muito importante, particularmente em cirurgia plástica. A experiência ensinou-me que, na precipitação podem vir pequenas partículas de tecidos grudadas à gaze, retardando a cicatrização. Em nome de Deus, porque não cala essa boca? Porque não vai lá fora tomar um café? - Se os seus lábios e o nariz estiverem nas condições que espero, não vejo motivo algum para que o senhor não possa voltar para casa imediatamente. Entretanto, preciso de vê-lo durante duas semanas para ter a certeza que a cicatrização progride satisfatoriamente. Espera por isso! Vou sumir-me para o Canadá. Não, irei para Montreal, talvez Saskachewan ou Manitoba. Procure-me lá qualquer dia e veja se me encontra. - Entretanto, antes de deixar o consultório, quero que o senhor dê a sua opinião sobre os resultados da operação. Tenho um ficheiro completo das reacções dos pacientes. Afinal de contas, é essa a única maneira de avaliar se fui bem sucedido ou não, se realizei o que o paciente queria. Mas antes de perguntar isso, devo perguntar por que motivo o paciente recorreu à cirurgia plástica. Porquê? Eu digo-lhe. Claro que lhe vou dizer. Porque matei um sujeito e não quero ser apanhado. Isso ficará muito bem aí no seu livro. Veja se escreve as palavras certas. Quer saber quem matei? Toda a gente sabe. Você estava a ler a notícia no jornal, quando entrei no seu consultório. O retrato dele estava na primeira página. Jerry Carter. Isso mesmo. Eu sou o indivíduo que o matou. Ouviu? A polícia nada sabe a meu respeito. Mas não quero arriscar-me. Nunca se sabe. Pode ser que alguém descubra algum dia. Nessa altura já não estarei aqui. Terei uma cara diferente. Tomou nota de tudo? Óptimo. - Por falar das reacções dos pacientes lembro-me do caso de um homem que sofreu vasta remodelação feita por um certo cirurgião de Filadélfia, há cerca de cinco anos. Quando o paciente se viu ao espelho, depois que as ligaduras foram retiradas, verificou que tinha a cara exacta do seu pior inimigo, um comerciante rival que ele odiava havia anos. O 153


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que é que o senhor acha disto? Situação engraçada, não? Impagável, doutor. Impagável. Você devia estar a trabalhar no palco. - O senhor sabe que eu tenho estado a pensar nessa história há dois dias? Não me tem saído da cabeça desde que ouvi a terrível notícia a respeito de Jerry Carter. Por amor de Deus, cale essa boca, língua de trapos. - O senhor deve ter lido o assunto. Já teve notícia de crime tão revoltante? Foi um grande choque para mim. O bom e generoso Jerry… O homem que tinha mais amigos do que ninguém. Como poderia alguém ser capaz de matá-lo? Quem fez isso devia ser um indivíduo completamente sem coração, ou então louco! Nunca conheci quem quer que fosse que não simpatizasse imediatamente com o rapaz! Aqui está um que não simpatizava, doutor. Aqui mesmo. Aqui está um que o odiava de morte. - Como ia dizendo, comecei a pensar se não haveria alguma coisa que eu pudesse resolver quanto àquele crime horrível. Nada me ocorria. Nada. Não sou nenhum Philo Vance. Então lembrei-me da história que acabo de contar, e ocorreu-me se, por algum capricho do destino, o assassino viesse para às minhas mãos, eu saberia o que fazer. Tornaria o seu rosto exactamente igual ao de Jerry. Sem dúvida isso castigá-lo-ia mais do qualquer pena que a justiça lhe pudesse aplicar. Você está maluco, doutor. Está maluco. Não, não está a regular bem… - Seria perfeito. Onde quer que o assassino fosse levaria consigo a marca do crime. Todas as vezes que se olhasse ao espelho, veria um cadáver. Que pouca sorte a minha. Tinha que vir parar às mãos de um maluco! Por que diabo aqueles dois médicos que fui procurar primeiro, estavam fora da cidade? - Confesso que sou um desses tipos antiquados que acreditam no destino. Tenho-o visto em acção muitas vezes para que possa ser céptico. Tenho-o visto agir de modos tão misteriosos, que não o reconheci, senão muito tempo depois… guiando as minhas mãos sem eu saber. Todas as vezes que eu ouvia falar da morte de Jerry, tinha esse sentimento. Imaginei o assassino vindo aqui. Imaginei as feições de Jerry, imaginando o que teria de fazer para remodelar um rosto de modo que se parecesse com o dele. O homenzinho está doido. Completamente doido! - Ah! Aqui está ela! Miss Roberts, o nosso paciente está ansioso por ver os resultados da nossa pequena operação. Vamos tirar essas ligaduras. É impossível. Ele não podia suspeitar de coisa alguma. Não podia. Eu não me mostrei nervoso, quando entrei aqui. Não estava absolutamente nada nervoso. A não ser, quando o vi lendo os jornais. Ele não sabia, porque é que eu estava a suar. Não podia saber. Está doido. - Bem, agora esteja quieto, meu velho. Isto não lhe dói pois não? É uma coisa louca. Não poderia fazer o que disse, mesmo que soubesse quem eu era. Como podia? O Destino. Maluco. Maluco. - Por favor, esteja quieto! Terminaremos dentro de um minuto, e então o senhor poderá vestir-se e ir-se embora, mas eu não quero que alguma 154


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coisa corra mal no último momento. Mas, se ele… se ele soubesse… Doutor, se você fez alguma coisa dessas, eu mato-o! - Muito bem, aí vem o último pedaço de gaze. Miss Roberts, traga o espelho da mesa. Juro que o mato se fez alguma coisa idiota como… - Aqui tem o espelho… dê uma olhadela e veja um homem novo! Será a minha imaginação ou… CARTER! Meu Deus! - Eh! Onde é que o senhor vai? Fique aqui quieto. Vamos buscar a sua roupa! Onde vai? Volte para aqui. O senhor não pode ir assim para o corredor… Detenha-o, Miss Roberts! Ele está louco. Eia! Volte para aqui! Agarrem-no! Ele vai a descer a escada. O homem está transtornado. Chamem a polícia! Chamem uma ambulância! Chamem… § - É o que lhe digo, Miss Roberts, quando ele confessou tudo à polícia, fiquei admiradíssimo. Ali estava a situação por mim imaginada… o assassino nas minhas mãos… e eu tinha-a descoberto, tarde de mais para torná-lo parecido com Jerry Carter.

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Domingos Cabral Perumquiam erum quissimet officius, occullaut re ium quo inctio omnihit es nectat liquas et omnimustis verfere consed moluptas dem quati re, susdandae nima quodi que veriam fugia sequos est, sin plamus esequo culla volo od ut erro Perumquiam erum quissimet officius, occullaut re ium quo inctio omnihit es nectat liquas et omnimustis verfere consed moluptas dem quati re, susdandae nima quodi que veriam fugia sequos est, sin plamus esequo culla volo od ut erro

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