Curitiba, agosto de 2008
Nanotecnologia:
a ameaça invisível
O triunfo científico de uma tecnologia libertadora, uma ameaça ambiental sem precedentes na história da humanidade
M
uitos ainda não se deram conta, mas vivemos hoje uma verda-
deira revolução científica. Trata-se da nanotecnologia, a ciência capaz de se aventurar pelo inexplorado mundo dos átomos. Entendida por alguns como a nova revolução industrial, ela é a técnica que nos permite manipular estruturas
inimaginavelmente
pequenas,
possibilitando, entre outras coisas, a criação de novas substâncias, materiais ou produtos - que tempos atrás seriam concebíveis somente na imaginação dos mais audaciosos cientistas. Tecidos que nunca mancham, colas super-poderosas, vidros inquebráveis e materiais ultra-resistentes. São apenas alguns dos exemplos que, em um futuro próximo, poderão estar nas prateleiras de qualquer supermercado. Méritos à nanociência. Mas trabalhar com estruturas tão pequenas – o prefixo nano refere-se à bilionésima parte do metro – pode envolver muitos riscos. Embora anuncie
Nanopartículas viajando pelo interior de um nanotubo de carbono (Ilustração: Robert Fletcher). 2008, debates sobre nanociência em
“A preocupação é legítima”, ga-
diversas capitais brasileiras. Em Curi-
rante o sociólogo Paulo Martins, pesqui-
tiba, o primeiro debate aconteceu em
sador da Renanosoma e um dos autores
agosto, no Sindicato dos Engenheiros
do livro Revolução invisível – desenvol-
um novo horizonte para o desenvol-
do Paraná, reunindo pesquisadores das
vimento científico, a nanotecnologia
mais diversas áreas vindos de todo o
pode representar uma ameaça ambien-
país. O objetivo do projeto, intitulado
tal sem precedentes, cujas dimensões
Engajamento Público em Nanotecno-
ainda desconhecemos.
logia, é promover uma discussão tão
Visando conscientizar a população e esclarecê-la quanto a essas potenciais ameaças, pesquisadores da
ampla quanto possível sobre as diversas implicações sócio-ambientais decorrentes desse novo saber - mostrando para
vimento recente da nanotecnologia no Brasil (São Paulo, Xamã, 2007). Segundo Martins, que também faz parte do Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo (IPT), o primeiro problema com que nos deparamos são os elevados investimentos em pesquisas cujos riscos ainda mal conhecemos. “Estamos em uma verdadeira corrida rumo
Rede de Pesquisa em Nanotecnologia,
a sociedade que as pesquisas em nano-
ao desenvolvimento de novos nanopro-
Sociedade e Meio Ambiente (Renano-
tecnologia podem, e devem, ser motivo
dutos, uma disputa acompanhada de
soma) estão promovendo, ao longo de
de sérias preocupações.
pouco ou nenhum interesse a respeito
Henrique Kugler
2
Nanotecnologia: a palavra da moda Foi somente a partir do ano 2000, durante a primeira grande iniciativa norte-americana em nanociência, que a palavra ‘nanotecnologia’ veio à tona. Foi a partir de então que ela começou a ser usada com cada vez
da toxicidade desses materiais.”
mico. Ele diz que, de acordo com a
Pouco sabemos sobre a ação das
evolução darwiniana, um ser vivo
nanopartículas no organismo
só pode criar resistência a uma po-
humano e no meio ambiente; no
tencial ameaça depois de a ela ter
entanto, as pesquisas continuam
sido exposto continuamente. “Mas
a todo vapor.
no caso da nanotecnologia, nós ainda não criamos essa defesa.”
De acordo com o químico Daniel Alves, da Universidae Fe-
Em princípio, podemos aco-
deral do Paraná, todo o cuidado
plar a um nanotubo de carbono*
é pouco. Há muitas constatações,
qualquer molécula. Bom por um
resultados de pesquisas nas
lado, perigoso por outro. A medi-
mais freqüência. Porém, mesmo
mais diversas áreas, que alertam
cina, por exemplo, utiliza-se desses
antes disso, pesquisadores das mais
para o fato de que alguns nano-
nanotubos para transportar o prin-
diversas áreas já trabalhavam com
materiais podem ser danosos ao
cípio ativo de uma droga qualquer
homem. “Alguns tecidos desen-
- dirigindo-a especificamente ao
volveram tumores após subme-
tipo de célula desejada, sem afetar
tidos à ação de nanopartículas.”
as demais. Isso significa que efeitos
Existem mais de 700 pesquisas
colaterais e infecções hospitalares
no mundo que investigam esses
podem tornar-se coisas do passa-
materiais em escala nanométrica – ainda que não soubessem disso. Há mais de mil anos, os alquimistas já exploravam o universo desconhecido dos átomos,
possíveis perigos, e boa parte
do. “Mas por outro lado”, ressalta
em busca de novos conhecimentos
delas está registrada em um es-
Alves, “nada impede que a um na-
e também novas substâncias, que
tudo recentemente desenvolvi-
notubo seja acoplada uma molécu-
outrora classificaram como ‘elixir
do por Alves, intitulado Aborda-
la prejudicial ao nosso organismo,
gens para um trabalho seguro
podendo representar riscos ainda
com nanotubos de carbono.
não conhecidos. O mesmo meca-
da vida’. Na própria natureza podemos
nismo que pode-nos ser de grande Em ambientes controla-
encontrar processos que incluem
serventia, pode também causar
dos, como laboratórios dotados
efeitos desastrosos.” Ainda é im-
a formação espontânea de
de equipamentos de segurança
portante lembrar que mesmo ma-
nanopartículas. A maioria das
e sistemas de ventilação ade-
teriais já conhecidos podem ofere-
atividades que envolvem altas
quados, os riscos para quem tra-
cer perigos quando reduzidos a di-
balha com nanotecnologia são
mensões tão pequenas. É o caso do
minimizados. Mas fora destes
alumínio. Em condições normais, é
locais, para onde as nanopartí-
um elemento que não oferece peri-
culas cedo ou tarde escapam, a
go algum. Porém, quando reduzido
situação é muito mais delicada.
‘nano’ parece ter caído no gosto
à escala nanométrica, adquire pro-
Essas microestruturas possuem
priedades explosivas**.
popular. Por essa razão, o físico
um tempo de vida longo no meio
Marcos Pimenta, da Universidade
ambiente, podendo ser rapida-
Segundo Alves, ainda vai le-
Federal de Minas Gerais, não hesita
mente absorvidas por organis-
var algum tempo até adquirirmos
mos e, através da cadeia alimen-
todo o conhecimento probabilísti-
tar, retornar ao homem. “Uma
co referente a esses perigos. “Já há
vez inaladas ou em contato com
grandes projetos nesse sentido nos
a pele, tais partículas podem fa-
Estados Unidos e na Europa. Mas
cilmente chegar qualquer órgão
ainda precisaremos de pelo menos
de nosso corpo”, explica o quí-
mais dois ou três anos até que es-
energias, como queimas em elevadas temperaturas, são capazes de gerar essas pequenas estruturas. Mas, ao que tudo indica, o prefixo
em afirmar: “nanotecnologia é a palavra da moda”.
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tes eles sejam concluídos”, afirma. Por hora, temos apenas indícios. “Sabemos que partículas em escala nanométrica nos afetam sim. Só não sabemos como.” Priscyla Marcato, doutoranda em nanobiotecnologia pela Unicamp, aponta outra série de problemas vinculados à pesquisa em nanotecnologia: “Algumas nanopartículas podem ser mutagênicas, além de poderem alterar a população microbiana das águas e das florestas***. Mas ainda é difícil definir com segurança como elas interagem com o ambiente”, diz a pesquisadora. “Nosso conhecimento sobre isso ainda é muito limitado.”
Nanopartículas em nosso dia-a-dia Ao contrário do que se pensa, nanotecnologia não é uma palavra distante de nosso cotidiano. É verdade que muitos produtos revolucionários com nanopartículas em sua formulação só estarão no mercado dentro de pelo menos uma ou duas décadas. Porém, alguns já estão no mercado brasileiro há anos. Tintas, materiais têxteis, materiais de construção, cosméticos e principalmente fármacos e produtos de informática são apenas alguns exemplos. Além de muitos outros, como filtros de proteção solar, equipamentos eletrônicos em geral, e até raquetes e bolas de tênis. Mas, no Brasil, raramente as empresas que os produzem declaram nos rótulos que esses materiais resultam de processos
Nanotecnologia: a ameaça invisível
nanotecnológicos. “E não dispomos de mecanismos de controle eficientes para efetuar a regulamentação do mercado”, afirma Alves. Órgãos como a Anvisa, o Inmetro e o Instituto Brasileiro de Toxicologia ainda não estão aptos a avaliar a qualidade e a segurança desses produtos, uma vez que o aparato técnico necessário para tal ainda está concentrado nos laboratórios das grandes empresas e nos grandes centros de pesquisa. “Ou seja, os nanoprodutos foram colocados no mercado sem regulamentacão alguma, tanto no Brasil quanto no resto do mundo.” Alves conta que, antes de colocarmos um produto qualquer no mercado, há uma série de testes aos quais ele deve ser submetido. “Um deles, obrigatório, é a avaliação da toxicidade em organismos aquáticos.” Já foram realizadas pesquisas com peixes e microcrustáceos, e os resultados não foram animadores: alguns animais apresentaram lesões cerebrais ou morreram 48 horas depois de entrar em contato com nanopartículas de prata – as mesmas que já estão no mercado, em alguns eletrodomésticos e principalmente em cosméticos. Mas, segundo Alves, ainda há um outro tópico importante a ser considerado nessa discussão: a sociedade simplesmente desconhece todas essas potenciais ameaças inerentes à nanotecnologia. “Alguém perguntou às pessoas se elas assumem ou não os riscos?”, indaga o químico. “Os nanoprodutos foram colocados no mercado à revelia de qualquer discussão pública.”
Henrique Kugler
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Os números Uma pesquisa realizada pela organização norte-americana Woodrow Eilson Center, em 2006, fez um levantamento de quantos nanoprodutos haviam no mercado mundial naquele ano. Os resultados foram divididos por área, e foram constatados nada menos do que 230 produtos ao todo. Hoje, porém, esta quantia já foi superada – mas ainda não sabemos ao certo quais são os novos números. Segundo estudo da Lux Research, no ano de 2005 os nanoprodutos movimentaram um total de US$32 milhões em todo o mundo. Em
Gráfico 1 - Produtos nanotecnológicos por categoria (fonte: Woodrow Wilson Center, 2006).
2008, esse valor triplicou para US$100 milhões. Para 2010, estima-se que a soma chegue a US$500 milhões. E, de acordo com as previsões do mesmo estudo, até 2015 essa conta atingirá proporções astronômicas: US$ 3 trilhões! “É uma quantia e tanto”, brinca Martins. Segundo ele, o Brasil não medirá esforços para garantir pelo menos uma parte ínfima desse mercado. Entretanto, as nações do Terceiro Mundo, somadas, não terão mais do que algumas migalhas desse montante - não mais do que 1%, estimam os otimistas. Porém, na ótica dos governos, 1% de um total de US$3 trilhões é uma quantia considerável – e muito bem-vinda em qual-
Gráfico 2 - Produtos nanotecnológicos por região (fonte: Woodrow Wilson Center, 2006).
quer orçamento público. Isso explica por que as iniciativas em nanociência do governo brasileiro estão majoritariamente focadas no desenvolvimento de novas patentes - deixando em segundo plano as pesquisas
Alfredo Mendes, que foi coordenador
quatro redes de pesquisa: Rede de
da área nanotecnológica do Ministério
Nanobiotecnologia; Rede de Nanodis-
de Ciência e Tecnologia (MCT) durante
positivos, Semicondutores e Materiais
os anos de 2003 e 2007.
Nanoestruturados; Rede Nacional de Materiais Nanoestruturados; e Rede
O primeiro investimento em na-
de Nanotecnologia Molecular e de In-
notecnologia no Brasil data de 1987.
terfaces. Oficialmente, estas quatro
Foram investidos US$10 milhões, apli-
redes cooperativas encerraram suas ati-
produtos e serviços em nanotecnologia,
cados na área de semicondutores. Em
vidades ao final de 2005. Foram então
pois queremos aumentar a competiti-
seguida, somente em 2001 tivemos
criadas outras dez redes, que hoje vêm
vidade da indústria nacional”, confirma
uma nova ação do governo, criando
dando continuidade ao trabalho.
em segurança e toxicologia. “Nossas pesquisas estão direcionadas para o desenvolvimento de novos processos,
5
Nanotecnologia: a ameaça invisível
Em 2004, os investimentos no
Há quem questione essa comple-
Brasil chegaram na faixa dos R$22 mi-
xa relação entre os setores público e pri-
lhões. Já em 2005, foi criado o Progra-
vado, especialmente quando o assunto
ma Nacional de Nanotecnologia, que
é pesquisa. Para Martins, esse não é um
contou com reforços de fundos setoriais
problema exclusivo da nanotecnologia,
(recursos disponibilizados por empresas
mas sim de toda a estrutura industrial
interessadas na área). Nesta época, a so-
brasileira - e de como ela se relaciona
matória dos investimentos atingiu qua-
com as universidades e com os institu-
se R$40 milhões - a maior parte vinda
tos de pesquisa. “A chamada ‘burguesia
do governo. “Apesar de termos contado
brasileira’ sempre preferiu comprar tec-
com apoio do setor privado, não sabe-
nologia do que produzir alguma coisa”,
mos exatamente quanto as empresas
lembra o sociólogo.
investiram”, afirma Mendes. “Eram 49
sa área no MCT. Mas reivindica-se que o setor privado disponibilize a mesma quantia também. “Queremos uma participação mais equitativa por parte das empresas, como acontece em vários lugares do mundo. Não há por que ser diferente no Brasil.” Mas com investimentos privados ou não, uma coisa é certa para Mendes: “Queremos que o Brasil seja um país competitivo. E é com base nisso que os editais são lançados.”
empresas interessadas, mas nem todas
“Esse ano, o governo espera di-
falavam abertamente sobre o assunto.
recionar à nanotecnologia investimen-
Os interesses comerciais superam a ló-
tos da ordem de R$100 milhões”, revela
gica da transparência.”
Mário Baibich, atual coordenador des-
Editais: onde está
próprias redes de pesquisa, que enten-
Científico e Tecnológico (CNPq), sen-
dem a importância do assunto.”
do que apenas 5 foram aprovadas. “As
o R$1 milhão? A maioria absoluta dos editais lançados pelas iniciativas do governo é destinada ao desenvolvimento de novos produtos e patentes. Mas em setembro de 2007, o MCT assumiu o compromisso de lançar um edital visando estudar os impactos socioambientais dos nanoprodutos. Recursos da ordem de R$1 milhão estavam disponíveis para esse fim. Mas, por razões ainda não explicadas, o edital não saiu. “Na época, houve uma mudança na coordenação do ministério”, segundo Mendes, o que pode ter influenciado no insucesso do edital. Baibich diz que também não tomou conhecimento das razões pelas quais o estudo dos impac-
Desde o início das pesquisas em nanotecnologia no Brasil, apenas um edital foi lançado com o intuito de se estudar seus aspectos éticos e impactos ambientais. Foi o Edital MCT/CNPq n.13/2004, que, para Martins, merece
outras 25 não atenderam aos termos propostos, e também não apresentaram muita consistência”, afirma o excoordenador do ministério. Por isso não teriam sido contempladas, e, conseqüentemente, os R$100 mil disponíveis
destaque: “Foi a única oportunidade
não precisaram ser gastos. “Quando
que contemplou a participação das ci-
isso acontece, o que é raro, o recurso é
ências humanas no tema”. Resultou na
devolvido ao Tesouro Nacional”, explica
publicação de dois livros: Revolução
o ex-coordenador.
Invisível - Desenvolvimento recente da nanotecnologia no Brasil; e Nanotecno-
Porém, há quem desconfie: não
logia, Sociedade e Meio Ambiente em
houve interesse por parte do ministério
São Paulo, Minas e Distrito Federal. Esse
em fomentar estudos mais críticos e re-
edital previa um orçamento de R$200
flexivos sobre os impactos da nanotec-
mil. No entanto, apenas R$100 mil foram utilizados. “Os outros R$100 mil, não sabemos como e nem onde foram aplicados”, lamenta o sociólogo.
tos dos nanoprodutos não foi levado
nologia. “Para isso não temos dinheiro”, protesta Martins. “Mas para desenvolver produtos e colocá-los no mercado nós temos.” Por essa razão, suspeita o
em frente. “Mas essas coisas não têm
Mas Alfredo Mendes explica:
sociólogo, as ciências humanas rara-
caráter de urgência, porque já há traba-
após o lançamento do Edital n.13/2004,
mente são contempladas pelos editais.
lhos sendo feitos nessa linha”, argumen-
foram encaminhadas 30 propostas ao
“Eles querem novas patentes; mas nós
ta. “São estudos encomendados pelas
Conselho Nacional de Desenvolvimento
fornecemos novas perguntas.”
Henrique Kugler
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A opinião dos cientistas Para a comunidade científica, não há nada de novo nessa acalorada discussão referente aos riscos e benefícios oriundos da nanotecnologia. Afinal, a história
mais equilibrado, no sentido de admiti-
as precauções necessárias em relação à
rem a presença de certos riscos ineren-
segurança tanto dos cientistas quanto
tes ao desenvolvimento de seus traba-
da população como um todo.
lhos”, diz. O físico Marcos Pimenta, da “Mas a ciência não pára”, diz o
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), é um deles.
pesquisador. “O cientista é movido pela curiosidade, e quando pesquisamos es-
Coordenador da Rede Nanotu-
tamos explorando o desconhecido.” No
bos de Carbono****, Pimenta afirma
que se refere à nanotecnologia, é preci-
que, paralelamente ao estudo de um
so levar em conta que não há nenhuma
material qualquer, devemos estudar
comprovação de que esses novos mate-
também seus impactos sobre a socie-
riais sejam mais nocivos do que outros
dade e sobre o meio ambiente. “Cabe
que já existem. Para ilustrar, o físico
ra em Política Científica pela Unicamp
aos agentes governamentais fomentar
da UFMG cita o exemplo dos leitores
e pós-doutora na mesma área pela
pesquisas exatamente sobre esse tipo
de CD-Rom, que levam arsênio em sua
Columbia University (EUA), questiona
de risco”, afirma o físico. Que procedi-
composição. “Sabemos que o arsênio é
um ponto em particular. Em sua opi-
mentos devemos adotar e que cuidados
altamente venenoso, mas não é por isso
nião, o que os cientistas normalmente
devemos ter? Como operacionalizar o
que proibimos seu uso na indústria de
propõem ao grande público são meras
descarte desses novos materiais? São
computadores. Basta termos uma série
promessas. “São muito poucos os pes-
perguntas que, para Pimenta, devem ser
de cuidados especiais ao trabalharmos
quisadores que defendem um discurso
respondidas - para que se possa tomar
com ele.”
da ciência moderna se fez vinculada a essa eterna dualidade, sempre presente no desenvolvimento de qualquer nova técnica. Mas Noela Invernizzi, douto-
Nanoteoria da conspiração Grandes e poderosas corporações, ganância por lucros exorbitantes e tendência à monopolização absoluta. Para os mais pessimistas, a nanotecnologia será apenas mais uma das áreas em que nossa submissão ao imperialismo será declarada - apenas mais um instrumento de dominação. Mas talvez estas previsões alarmantes não sejam tão hiperbólicas quanto aparentam. Unilever, Kraft, Ambev, Nestlé, Bayer, L’ Oréal, Natura, Samsung, Monsanto e Syngenta - são algumas das empresas transnacionais que estão investindo pesado em nanotecnologia. Porém, de acordo com Guillermo Foladori, da Universidad Autonoma do México, isso é motivo para muitas preocupações. “Basta analisarmos o histórico de algumas dessas empresas”, afirma. “A Syngenta, por exemplo, detentora de 23% do mercado mundial de agrotóxicos, é responsável pelo envenenamento de 10 mil camponeses por ano*****. É no mínimo uma irresponsabilidade deixarmos a pesquisa em nanotecnologia nas mãos de organizações comprovadamente criminosas como essas”, alerta Foladori.
7
Nanotecnologia: a ameaça invisível
Pimenta lembra que, há poucos
diz que, normalmente, é assim que as
anos, organizações extremistas da Euro-
coisas acontecem. “No fundo é assim,
pa propuseram uma moratória contra as
infelizmente.”
pesquisas em nanotecnologia. “Foi uma atitude que não colou”, diz. Para ele, o
O químico da Unicamp Fernando
que precisamos é ter um clima de trans-
Galembeck, outro importante pesqui-
parência, e criar moratórias proibindo
sador na área nanotecnológica, afirma
as pesquisas não é o melhor caminho.
que “desenvolver produtos sem simul-
“Intervenções autoritárias não levam a nada”, argumenta o químico. Primeiro estuda-se os materiais, em seguida estuda-se os perigos inerentes a eles. “Inverter esse caminho talvez não seja tão praticável quanto se diz”. Muitas vezes as descobertas da ciência
taneamente avaliar propriedades ecotoxicológicas e impactos socioambientais é um erro cabal”. Ele acrescenta, ainda, que é saudável discutirmos as decisões sobre os rumos da ciência em todas as esferas da sociedade. Mas com algumas ressalvas: “Passarei a ser radicalmente
são mais rápidas do que o conhecimen-
contra isso enquanto o Brasil tiver uma
to sobre seus potenciais riscos. Somen-
população majoritariamente ‘evangéli-
te após anos, ou mesmo décadas, aca-
co-crente’, dominada pelo fundamenta-
bamos nos dando conta do perigo que
lismo dito cristão ou por qualquer outro
certos materiais representam. Pimenta
fundamentalismo”.
Quando indagado sobre os possíveis impactos socioambientais dos nanoprodutos, Galembeck opina: “Há riscos sim, mas há também muito exagero e ignorância”. Para ele, as pesquisas sobre propriedades de nanoestruturas ainda desconhecidas não devem ser sustadas apenas por não sabermos no que elas podem resultar. E propõe um desafio: “Se for assim, sugiro que não usemos mais nenhuma gota de água (onde também encontramos as ditas nanoestruturas) para finalidade alguma, até que a tal regulamentação que alguns sociólogos buscam seja definitivamente aprovada”.
“Tememos que as nanotecnologias acabem inserindo-se nas tendências econômicas dominantes, que estão nos direcionando a uma crescente desigualdade social em todo o planeta”, afirma o economista. As grandes corporações estão patenteando a maior parte das descobertas em produtos nanotecnológicos, e a patente é a garantia de lucros monopólicos por mais vinte anos. “Essa dinâmica certamente retarda a difusão dos benefícios da ciência para os segmentos sociais que deles mais necessitam.” A maior parte das tecnologias de ponta hoje são desenvolvidas na esfera privada, sob segredos industriais e por pesquisas baseadas em contratos de sigilo - mesmo quando envolvem pesquisadores de universidades públicas. Para alguns, essa é uma situação a se lamentar. “O conhecimento hoje é cada vez mais fechado dentro dos muros das grandes corporações”, diz Daniel Alves, da Universidade Federal do Paraná. E o sucesso dessas empresas raramente está vinculado a algum benefício real para a sociedade, desprezando os possíveis danos ao ser humano e até mesmo as agressões ao meio ambiente. “Trata-se de um embate entre lucro e ética”, segundo Alves. “Enquanto não houver regras para essa disputa, vale a lei do mercado, que é a lei do mais forte.”
Henrique Kugler
8
Discussão pública: Enquanto isso, no Primeiro Mundo... O debate sobre nanociência já está em estágio bastante avançado em alguns países desenvolvidos, como Estados Unidos, Canadá, Austrália, Inglaterra e países nórdicos em geral. Lá, as discussões estão sendo conduzidas principalmente por organizações nãogovernamentais, como por exemplo a Friends of the Earth (FOE), o Erosion, Technology and Concentration Group (ETC Group) e o International Union of Food Workers (IUF). Para eles, a grande batalha é contra a possível centralização dos benefícios da nanotecnologia nas mãos de alguns poucos grupos econômicos. Na Austrália, o FOE propôs em 2002 uma moratória questionando o prosseguimento das pesquisas sem antes avaliar seus impactos. Lá, o foco da discussão foi a presença de nanoprodutos na indústria alimentícia e na agricultura - que não contavam com nenhuma regulamentação. Com base em reivindicações como essa, o próprio governo australiano passou a tomar medidas importantes, como solicitar mais pesquisas para esclarecer os possíveis riscos a que estavam sujeitos. “É curioso notar que, da noite para o dia, algumas empresas do setor passaram a omitir dos rótulos de seus produtos a informação de que continham nanotecnologia em sua formulação”, conta Noela.
da ilusão democrática às implicações sociais Não há dúvidas: as tecnologias de ponta que surpreenderam a humanidade nas últimas décadas foram marcadas por um desenvolvimento bastante acelerado – quase sempre acompanhadas por um escasso período de experimentação. “Muitas dessas novas descobertas têm sido colocadas no mercado com uma velocidade assustadora, em meio a controversas totalmente polarizadas que supervalorizam seus benefícios e ignoram seus riscos”, comenta Noela. “Raramente damos atenção às avaliações a longo prazo.” Foi o que aconteceu com os transgênicos, e agora se repete de certa forma com a nanotecnologia. Para a pesquisadora, que também faz parte da Rede Latinoamericana de Nanotecnología y Sociedad (Relans), o primeiro passo
Em 2004, outra moratória foi proposta pelo ETC Group, durante o Fórum de Johannesburgo. “Foi uma ação bastante comentada por cientistas da Europa e dos Estados Unidos. Mas, no Brasil, o assunto quase não foi divulgado”, diz a pesquisadora. No mesmo ano, a Royal Society também demonstrou preocupação quanto ao tema. O governo britânico, conseqüentemente, seguiu os passos do governo australiano e solicitou mais pesquisas na área de riscos. “Na Europa, há um receio de que os nanoprodutos venham a ter a mesma rejeição que tiveram os transgênicos.”
para que possamos nos conscientizar plenamente é a discussão pública. Ela diz que, além de avaliarmos os riscos, também devemos levar em conta uma série de implicações sociais que essas novas descobertas impõem sobre os países em desenvolvimento. “É muito provável que os benefícios da nanotecnologia per-
Para Noela, tais manifestações foram de vital importância. “Elas foram capazes de levar a temática para uma esfera pública de discussão, o que deu ótimos resultados.” Ela diz que isso influenciou instituições de financiamento à pesquisa científica, que passaram a considerar também as preocupações sociais quanto ao desenvolvimento da nanotecnologia.
maneçam, como já estamos acostumados a ver, concentrados nas mãos de pequenos grupos. Para que isso não aconteça, é necessário levarmos a discussão aos mais diferentes segmentos da sociedade.” Paulo Martins concorda: “Todos devem participar do processo decisório que definirá os rumos da nossa produção científica em nanotecnologia – inclusive o
9
Nanotecnologia: a ameaça invisível
público não-especializado. Primeiro
dos. “Precisamos sim desenvolver tec-
Mas Baibich parece ter uma resposta:
porque é este o público que finan-
nologias de ponta, mas não orientadas
“Ora, mais inclusão social do que tive-
cia as pesquisas. E, segundo, porque
somente para mercados que possam
mos com a rápida ascensão dos CPU’s?
é ele que será diretamente afetado
comprá-las.”
Isso só foi possível graças à nanotecno-
por seus resultados.”
logia”. Para Noela, entretanto, não é As populações menos incluídas
Para tornar esse diálogo pos-
suficiente. “Poderíamos ir muito além
poderão se beneficiar dessas novas
sível, Noela sugere o que alguns cha-
disso”, argumenta. “Diagnósticos e tra-
descobertas? “Não”, enfatiza Noela.
mam de ‘avaliação construtiva de
tamentos mais eficazes para doenças,
“Pelo contrario, elas ficarão cada vez
formas de armazenamentos de ener-
mais excluídas. Nas últimas quatro dé-
gia, filtros mais eficientes de água para
cadas temos desenvolvido tecnologias
populações carentes, enfim, uma série
sumamente poderosas, porém as desi-
de investimentos em nanociência que
gualdades sociais cresceram de forma
poderiam exercer impactos muito mais
assustadora. Ou seja, há algum nexo
positivos para a população que real-
errado nisso tudo”, denuncia a estu-
mente precisa”, diz. “Mas nada disso
diosa.
está sendo levado tão a sério quanto
tecnologias’. São políticas que prevêem a discussão das pesquisas no exato momento em que elas estão sendo desenvolvidas, ou até mesmo antes. “É o que já acontece em alguns lugares da Europa, especialmente nos países nórdicos”, conta a pesquisadora. Ela ainda lembra que, nas fases iniciais do desenvolvimento de uma nova tecnologia, normalmente observamos uma forte presença do estado em termos de financiamento. “Por isso, esse é o momento ideal para promovermos a discussão.” A idéia é que haja uma presença ativa de grupos representativos de vários
a busca incessante por novas patentes Ela lembra que o próprio MCT possui uma secretaria destinada a dar
com finalidades unicamente comerciais.”
conta desse impasse: a Secretaria de Ciência e Tecnologia para Inclusão So-
Outro pesquisador que ques-
cial (Secis). “Mas que parcela de nos-
tiona o atual modelo de desenvolvi-
sos investimentos está sendo realmen-
mento científico é Guillermo Foladori,
te destinada a esse fim?”, questiona.
economista da Universidad Autonoma
interesses, e não somente da comunidade científica – que normalmente focaliza sua avaliação na mera eficiência das novas técnicas. “Mas precisamos questionar, sobretudo, se a competitividade comercial é realmente o melhor caminho para nosso pleno desenvolvimento.” Na opinião de Noela, a busca inconseqüente por competitividade a qualquer custo tem-se mostrado uma alternativa ingênua – uma fórmula questionável para um país com tantas desigualdades. “Essa linearidade de pensamento é uma lógica que nunca funcionou, e nem vai funcionar.” Para a pesquisadora, deveríamos direcionar nossas tecnologias para suprir nossas próprias necessidades - que são diferentes das necessidades dos países desenvolvi-
A foto mostra o grafite feito por um grupo contrário à pesquisa com nanoestruturas nas ruínas de uma antiga fortaleza em Grenoble, na França. A manifestação foi feita em protesto ao projeto de instalação de um laboratório de nanotecnologia naquela cidade (foto: David Monniaux).
Henrique Kugler
10
do México e coordenador da Relans. Quando indagado sobre os caminhos da nanotecnologia no mundo, ele opina: “É preciso nos precavermos dos ‘nanoutópicos’, os cientistas que vêem no desenvolvimento de novas técnicas a libertação da humanidade.” Para o economista, eles freqüentemente se esquecem do mais importante: que a realização do ser humano não deve ser baseada no frenético desenvolvimento material, mas sim em relações sociais harmônicas.
para melhorar a vida do ser humano, mostra-se também como uma potencial ameaça para o planeta. Divididas as opiniões entre os apocalípticos e os integrados, não resta muito a fazer senão promover o debate. Enquanto isso, apenas uma certeza ainda permanece intocada: a de que discutir o tema em toda sua plenitude é uma tarefa por demais desafiadora. Paulo Martins sabe disso, e por isso afirma com convicção: “Eu vejo a nanotecnologia com os olhos da responsabilidade.” Henrique Kugler
Seja como for, esse é o contexto em que se insere a complexa discussão referente ao desenvolvimento recente da nanotecnologia no Brasil e no mundo. A mesma ciência que, neste início de século, surge como uma esperança
* Dentre todos os materiais conhecidos, os
Oberdörster E. Manufactured Nanomaterials
nanotubos de carbono são os que apresentam
(Fullerenes, C60) Induce Oxidative Stress in the
maior resistência mecânica. São estruturas
Brain of Juvenile Largemouth Bass. Environ.
mais duras que o diamante, e podem ser até cem vezes mais fortes que o aço - com apenas 1/6 de sua densidade. Além de poderem conduzir eletricidade, são também os melhores condutores de calor que existem. Foram descobertos em 1991, pelo físico japonês Sumio Iijima.
Health Perspect. 112, 1058-1062 (2004) Günter Oberdörster, Eva Oberdörster and Jan Oberdörster.
Nanotoxicology:
An
Emerging
Discipline Evolving from Studies of Ultrafine Particles Environ. Health Perspect. 113, 853-839 (2005).
** Até mesmo a água apresenta comportamento inesperado
escala
Lima A.R., Curtis C., Hammermeister D.E., Call
nanométrica. Se mantida no interior de
quando
reduzida
em
D.J., Felhaber T.A. Acute toxicity of silver to
nanotubos de carbono, ela se mantém sólida até
selected fish and invertebrates. Bull. Environ.
os 27° C, e torna-se vapor aos 45° C.
Contam. Toxicol. 29, 184-189 (1982).
*** Bianchini A, Wood CM. Mechanism of acute
**** Uma das dez redes de pesquisa em
silver toxicity in Daphnia magna. Environ Toxicol
nanotecnologia criadas pela Coordenação de
Chem. 22, 1361-1367 (2003). Lee, K.J., Nallathamby P.D., Browning L.M., Osgood C.J., Xu X.-H.N. In Vivo Imaging of
Nanotecnologia do MCT em 2005. ***** Apesar de alarmante, a acusação procede.
Transport and Biocompatibility of Single Silver
É o que prova o estudo Why Paraquat Should be
Nanoparticles in Early Development of Zebrafish
Banned, publicado em 2004 pela pesquisadora
Embryos. ACSNano 1, 133–143 (2007).
britânica Barbara Dinham.
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Nanotecnologia: a ameaça invisĂvel
Universidade Federal do Paranรก