ISSN 1982-2766 (impresso) ISSN 2237-9126 (online)
ano IV • n. 8 • maio 2011
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Domínios da Imagem Revista do Laboratório de Estudos dos Domínios da Imagem na História (LEDI) do Departamento de História e vinculada ao Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Estadual de Londrina
Domínios da Imagem, Londrina, ano IV, n. 8,
maio
2011
Universidade Estadual de Londrina REITORA: Nádina Aparecida Moreno VICE-REITORA: Berenice Quinzani Jordão DIRETORA DO CENTRO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS: Mirian Donat CHEFE DO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA: Edméia Ribeiro COORDENADOR DO MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL: Silvia Cristina Martins de Souza EDITOR RESPONSÁVEL: Edméia Ribeiro – UEL • Alberto Gawryszewski – UEL COORDENADOR DO LEDI: Alberto Gawryszewski – UEL
CONSELHO CONSULTIVO Carlos Alberto Sampaio Barbosa – UNESP/Assis • Daniel Russo – Université de Borgnone • Darío Acevedo Carmona – Universidad Nacional de Colombia • Eddy Stols – Katholieke Universiteit Leuven – Bélgica • Francisco Alambert – USP • Mauro Guilherme Pinheiro Koury – UFPB • Patrice Olsen – Illinois State University • Renato Lemos – UFRJ • Rodrigo Patto Sá Motta – UFMG • Stella Maris Scatena Franco – UNIFESP • Terezinha Oliveira – UEM CONSELHO EDITORIAL E CIENTÍFICO Adalberto Paranhos – UFU• Ailton José Morelli – UEM • Ana Maria Mauad – UFF • Annateresa Fabris – USP • Annie Duprat – Université de Versailles Saint-Quentin-en-Yvelines • Áureo Busetto – Unesp • Cláudia Musa Fay – PUC / RS • Kátia Paranhos – UFU• Luciene Lemkhul – UFU • Luis Felipe Viel Moreira – UEM • Luiz Guilherme Sodré Teixeira – Fundação Casa de Rui Barbosa / RJ • Manoel Dourado Bastos – UDESC • Maria Cristina Pereira – USP • Maria Paula Costa – UNICENTRO • Miriam Nogueira Seraphim – Unicamp • Jorge Luiz Bezerra Nóvoa – UFBA • Rejane Barreto Jardim – UFPEL • Renata Senna Garraffone – UFPR • Solange Lima Ferraz – Museu Paulista • Tânia Garcia Costa – UNESP/Franca • Vânia Carneiro Carvalho – Museu Paulista PROJETO GRÁFICO E EDITORAÇÃO: Edições Humanidades IMAGEM DA CAPA: Retirada do livro 100 anos de propaganda. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p.55. TIRAGEM: 500 exemplares Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) Domínios da imagem / Universidade Estadual de Londrina. Centro de Letras e Ciências Humanas. Departamento de História. Laboratório de Estudos dos Domínios da Imagem na História. Programa de Pós-Graduação em História Social. Londrina, PR.
Ano I – n. 1 – nov. 2007 Semestral ISSN 1982-2766 (impresso) ISSN 2237-9126 (online)
1. Imagem – Estudos – Periódicos. 2. Imagem – História Periódicos. I. Universidade Estadual de Londrina. II. Centro de Letras e Ciências Humanas. III. Programa de Pós-Graduação em História Social. CDU 2 Todos os artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores, não cabendo qualquer responsabilidade legal sobre seu conteúdo à revista. Pede-se permuta • Pédese canje • On demande échange • We wask for exchange • Si richiedle lo scambio
Sumário
Das Formas Báquicas e do Grotesco Bakhtiniano em Imagens do Heavy Metal e do Hard Rock........................................................................................................ 7 Adriano Alves Fiore; Miguel Luiz Contani A Mulher Condescendente: uma reflexão sobre a reificação da imagem feminina nas capas dos jornais....................................................................................................19 Dulce Mazer O Cinema em Sala de Aula: representações da Idade Média em O Nome da Rosa de Jean-Jacques Annaud .............................................................................. 31 Edlene Oliveira Estudos Visuais: principais autores e questionamentos de um campo emergente .............41 Éverly Pegoraro Fiestas y Bicentenario en Bogotá. 2010. La Mirada de los Otros...........................................53 Marcos González Pérez Interfaces entre Arte e Política: construção, apagamento e desconstrução de memórias imagéticas....................................................................................67 Milton Genésio de Brito Imagem, Memória e Informação: um tripé para o documento fotográfico..........................77 Miriam Paula Manini Imagens da Contrarreforma Espanhola no Brasil: a vida de São João da Cruz na Igreja da Ordem Terceira do Carmo de Cachoeira, Bahia.......................................................................89 Roberta Bacellar Orazem; Maria de Fátima Hanaque Campos As Duas Faces de Jano em Bonnie e Clyde – uma rajada de balas..................................... 105 Soleni Biscouto Fressato
RESENHA
SILVA, Ana Cristina Teodoro da. Temporalidades em Imagens da Imprensa: capas de revistas como signos de olhares contemporâneos.................................................................................119 por Jorge Luiz Romanello
Imagem da capa
Neste número 8 da Domínios da Imagem, trazemos para ilustrar a capa uma categoria de imagem que tem encantado estudiosos/as da área, que é uma imagem publicitária. Destaque na sociedade contemporânea, as imagens de propagandas divertem e distraem, ao mesmo tempo em que formam e informam. Possuem características lúdica e espetacular, e seus discursos, que atraem, contribuem para que os imaginários sociais sejam tocados. A publicidade cumpre uma função imediata que é a necessidade de comunicar, de dizer ao/a outro/a o quanto produtos ou idéias são importantes e necessárias. Através da intertextualidade, aliando o discurso imagético com o escrito, traz uma quantidade exuberante de informações para brindar-nos com “o que é importante para o momento”. Tomando-a como objeto de análise a atração que exerce em estudiosos/as da imagem está também no fato de que não se constitui em fonte para um campo único do conhecimento, mas que apresenta interfaces com a Publicidade, Comunicação, Marketing, História, Antropologia, Psicologia, Sociologia, entre tantos outros. A imagem publicitária desta capa – propaganda que promovia o produto mais importante do nosso país àquela época, o café –, foi veiculada no jornal A Gazeta, em 1929. Edméia Ribeiro
Apresentação
Colegas, Mais um número da Revista Domínios da Imagem chega até diversos/as estudiosos/as da imagem. Primeiro subseqüente ao III ENEIMAGEM e, levando em consideração o grande número de trabalhos instigantes e interessantes que recebemos de participantes deste evento, convidamos alguns para submeterem seus artigos a este número. Desta forma, este volume é composto por muitos trabalhos e interessantes reflexões que contribuíram para o êxito do referido evento. Entre eles está o artigo de Milton Genésio de Brito, no qual podemos perceber a complexa relação entre contexto político e produção artística, em análise feita a partir de quadros datados do início do século XIX, que retratam Napoleão Bonaparte como personagem principal. Outro dois artigos, também apresentados no referido Congresso, trazem-nos reflexões sobre o uso do cinema como fonte para a pesquisa histórica, assim como o mesmo pode constituir-se em importante material para ser trabalhado/analisado em sala de aula. Edlene Oliveira, através do filme O Nome da Rosa, traz interessantes reflexões acerca da construção e reforço de estereótipos e preconceitos sobre a Idade Média, ao mesmo tempo que, tomado como fonte, pode proporcionar, possibilitar a construção do conhecimento, constituindo-se em importante meio para desconstrução de estigmas e pré-conceitos. Soleni Biscouto Fressato, através de um filme que ficou marcado por retratar um casal de assaltantes, buscou analisar, utilizando suas palavras, “em que medida o filme Bonnie e Clyde é uma biografia do famoso casal de assaltantes norte-americano e, ao mesmo tempo, uma representação da juventude nos revolucionários anos 1960.” Estudioso da Colômbia, Marcos González Pérez também expandiu suas reflexões feitas no III ENEIMAGEM neste artigo intitulado Fiestas y bicentenario en Bogotá, 2010: la mirada de los otros analisando a comemoração do Bicentenário da Independência Colombiana através de imagens não oficiais, produzidas para a mencionada celebração. Roberta Bacellar Orazem e Maria de Fátima Hanaque Campos centram seus estudos no período colonial brasileiro, tomando quatro pinturas de cenas da vida de São João da Cruz, produzidas no século XVIII no teto da igreja da Ordem Terceira do Carmo de Cachoeira – Bahia. Neste trabalho, as autoras partem de uma perspectiva iconográfica e iconológica para delinear suas análises. No campo da Comunicação Éverly Pegoraro contribui com este número da Domínios propondo uma reflexão sobre, em suas palavras, “as formas pelas quais a Cultura Visual – nos seus mais variados processos e produtos – é elaborada, consumida e circula para reforçar ou resistir a articulações dos mais variados objetivos: políticos, econômicos, culturais, etc”. Ainda neste campo de conhecimento, e, abordando a temática feminina, Dulce Mazer apresentanos reflexões sobre a exposição do corpo feminino na mídia impressa através da fotografia.
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Sempre presente entre os trabalhos apresentados nesta Revista, a fotografia enriquece mais uma vez este volume através do artigo de Miriam Paula Manini no qual encontraremos reflexões a partir de “três eixos conceituais que orbitam em torno da fotografia: imagem, memória e informação”, denominado pela autora como tripé fotográfico. Outra contribuição está no artigo de Adriano Alves Fiore e Miguel Luiz Contani através do qual mostram-nos como o Hard Rock e o Heavy Metal, além de “músicas transgressoras”, constituem-se em gêneros musicais que têm buscado, também no auxílio visual, forma de demonstrar quebra de regras e busca pela liberdade. Finalizando os trabalhos, na seção Resenha encontraremos notas sobre o livro de Ana Cristina Teodoro da Silva intitulado Temporalidades em Imagens da Imprensa: capas de revistas como signos de olhares contemporâneos, apresentado por Jorge Luiz Romanello. Mais uma vez nossa intenção está em oferecer um número com qualidade e trabalhos instigantes. Que tenhamos todos/as uma boa leitura! Edméia Ribeiro
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Das Formas Báquicas e do Grotesco Bakhtiniano em Imagens do Heavy Metal e do Hard Rock Adriano Alves Fiore Mestre em Comunicação – área de concentração em comunicação visual – pela Universidade Estadual de Londrina – UEL (2011). Graduado em Direito pela UEL (1992) e em Comunicação Social e Jornalismo pela Faculdade Pitágoras, Campus Metropolitana de Londrina (2009). Realiza pesquisas em teoria da comunicação e linguagens com ênfase em música (gêneros: Heavy Metal e Hard Rock) e suas correlações com história, filosofia, semiótica, mitologia clássica greco-romana. Atua em revistas e sites especializados em Rock como crítico de música e comportamento social (e do indivíduo).
Miguel Luiz Contani Mestre em Educação pela UFPR (1988); doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP (1995); docente da UEL. Pesquisador nas áreas de teoria da comunicação, teoria da informação e estética da comunicação. Atua nos programas de mestrado em Comunicação e Ciência da Informação, na mesma universidade. Realiza atualmente estágio de pós-doutoramento na Universidade Federal do Paraná, junto ao grupo de Desenvolvimento Urbano no Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento.
Resumo
A linguagem do Rock é essencialmente paródica, alegórica, carnavalesca e imagética. Uma tipologia de conteúdo de imagens é obtida por meio do conceito de carnavalização enunciado por Mikhail Bakhtin e, com ela, este trabalho analisa o emprego e a significação de figuras do campo do grotesco, das deformidades físicas e das monstruosidades na linguagem visual do universo do Hard Rock e Heavy Metal. O corpo teórico também inclui as contribuições de Vilém Flusser e de Junito de Souza Brandão. O estigma rebelde do Hard Rock e do Heavy Metal multiplicase e revigora sua influência com a popularização crescente desses gêneros musicais – que vêm sendo efusivamente retratados por meio de forte apelo imagético – como consequência de os responsáveis pelo marketing das bandas invocarem, sempre mais, o auxílio visual nas figuras que contêm alusões à quebra de regra e de busca pela liberdade. Palavras-chave: Linguagem Visual; carnavalização bakhtiniana do grotesco; leitura de Imagens.
Abstract
The language of Rock has the nature of parody, allegory, carnival and imagery. A typology of image content was obtained through the concept of carnivalization as stated by Mikhail Bakhtin, and by means of it, this text analyses the use and signification of pictures containing grotesque, physical deformities, monsterized types in the visual language of Hard Rock and Heavy Metal worlds. The theoretical fundaments also include the contributions from Vilém Flusser and Junito de Souza Brandão. The stigma of the rebel behavior from Hard Rock and Heavy Metal spread and reinforce their influence with the steady popularization of these musical genders – which have been enthusiastically portrayed through powerful imagery appeals – as a consequence of the bands’ marketing staffs always adopting visual support to foster allusions to rule breach and search for liberty. Keywords: Visual Language; bakhtinian carnivalization of the grotesque; image reading. Recebido em: 10/03/2011
Aprovado em: 28/04/2011
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Adriano Alves Fiore, Miguel Luiz Contani
Das Formas Báquicas e do Grotesco Bakhtiniano em Imagens do Heavy Metal e do Hard Rock
Introdução As narrativas humanas – desde a mais remota Antiguidade – estão marcadas com momentos em que se discorrem os conceitos de beleza e/ou os de feiúra. O ato de classificar aquilo que se pode considerar belo ou feio é universal; é uma prática inerente a todos os povos. Dentre as inúmeras mitologias que se ocupam, em larga escala, de ideias estéticas, sobressai-se a grega (difundida pela dominação romana), servindo de principal supedâneo para as decorrentes civilizações europeias ocidentais e para o atual Mundo globalizado. Esopo1, o fenomenal fabulista, é sempre representado como um indivíduo feio, gago e corcunda, que nem sequer consegue se expressar através de palavras. Sócrates2 é geralmente comparado a um sileno 3, e desta concepção se origina o famoso encômio de Alcebíades (uma espécie de supergalã
daquele período) acerca da aparência física pouco agradável do grande filósofo: “que tem o aspecto externo de um sileno, mas que sob estes traços esconde uma profunda beleza interior” (ECO, 2007, p.28). O clássico enlace matrimonial entre Vênus4 e Vulcano5 talvez seja o zênite (o ponto culminante) corroborativo do motivo de antagonismo paradoxal da beleza e da feiúra (aliada à deformidade); dos opostos que se agregam. O mito de Dioniso6 tem a sua inclusão na literatura e na vida coletiva dos gregos protelada em virtude do altíssimo poder de transformação e pendor para o confronto e resistência contra valores preestabelecidos que suscita. Comparados a ele os outros principais deuses olímpicos mostram-se excessivamente conservadores, no dizer de Brandão (1998, p. 137): “[...] Um deus tão libertário e ‘politicamente’ independente, não poderia mesmo ser aceito pela pólis de homens e de deuses tão apolineamente
É considerado o primeiro cultivador da fábula no Mundo Ocidental, pois a sua longeva origem se presume ocorrida no Oriente. Esopo é um personagem meio lendário e meio real que pode ter nascido e vivido na Frígia (região da atual Turquia) por volta dos séculos VII e VI a.C. 2 Sócrates (cerca de 470/469-390 a.C.) é tido como um dos mais influentes filósofos gregos apesar de nada haver escrito. Platão e Xenofonte tornam-se seus dois intérpretes. 3 Dão a Sileno dois pais, que pode ser tanto o deus Mercúrio como Pã, e lhe atribuem a dupla função de mentor e de babá para com Dioniso, sempre o acompanhando em divertidas e espalhafatosas andanças. Também se costuma chamar os sátiros (divindades campestres sob a aparência de homenzinhos muito peludos, chifrudos e semicapros com pés de bode) idosos de silenos. 4 Vênus, em grego Afrodite, é a deusa da beleza e dos prazeres assim como mãe dos amores, das Graças, dos jogos e dos risos. São infinitas as suas ligações com os habitantes do céu, da terra e do mar, contudo, trata os seus desafetos com extrema impiedade. “O seu filho Cupido é tão amável e cruel como ela” (COMMELIN, p.68-71). 5 Vulcano, em grego Hefestos, é o deus do fogo. Coxo, sempre está a fazer papel de bobo entre os deuses olímpicos e o seu manquejar provoca constantes piadas ou gargalhadas infindáveis da elegante corte divina. Vulcano tem as suas forjas instaladas no centro dos vulcões, sobretudo no Etna (localizado na Sicília), onde ciclopes-ferreiros trabalham sem cessar sob a sua orientação. Além de feio e disforme é também muito astuto e reservado, aprontando das suas com maestria, pois gosta de fazer os outros rirem: engendra a rede invisível e inquebrantável, que expõe ao ridículo Vênus e seu amante Marte e fabrica o trono de ouro mágico que prende a sua mãe Juno. 6 Provavelmente, Dioniso e/ou Baco tratam-se de duas palavras de origem trácia. A primeira, com o significado de “filho do céu”. A segunda, presume-se que forme o verbo “ser tomado de um delírio sagrado”. De qualquer forma, Dioniso é divino, pois descende diretamente do todo-poderoso Júpiter (em grego Zeus) com a mortal Sêmele (filha de Cadmo, chefe da civilização beócia), e a nenhuma outra divindade ajusta-se melhor o epíteto de possuidor de uma “loucura sagrada ou manía”. 1
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patrilineares e tão religiosamente repressivos”. O Rock apresenta essa condição natural de rebeldia. Há quase sessenta anos – considerase o seu debute oficial o ano de 1954, quando Bill Haley and the Comets gravam a canção Rock Around The Clock – vem encantando multidões de jovens com sua atitude contrária ao decoro e às conveniências como o gênero musical mais difundido em nosso Planeta. O Hard Rock e o Heavy Metal, os dois rebentos “encrenqueiros” mais célebres do Rock and Roll, apresentam uma gênese ainda mais conturbadora do que aquela provocada pela geração dos baby boomers.7 No princípio dos anos 70, o Mundo já se vê copiando os padrões de vida dos Estados Unidos e do Reino Unido. É uma época de contradições, na qual se incentiva a moda da contracultura (com seus ideais de liberdade total) ao mesmo tempo em que há o esforço dos governos para controlar as aberturas políticas e culturais. Os “velhos roqueiros” (em sua maioria, pertencentes à classe média) permanecem fiéis ao seu estilo predileto de música (ou seja, ao incipiente Hard Rock da década de 60) e ao lema “sexo, drogas e Rock and Roll” que, juntamente com seus textos compositivos, melodias e harmonias sofisticadas, faz apologia à busca pelo prazer fácil e pelo dinheiro a qualquer custo. Entrementes o “novo público” (em grande parte, advindo do baixo extrato social) é atraído pelo ritmo mais forte e envolvente das guitarras distorcidas e das letras que tratam os problemas cotidianos de pessoas comuns, tais quais o sexo, a falta de dinheiro, o desemprego e a solidão. (FRIEDLANDER, 2002, p. 329, 330). Processa-se assim um
cadinho de elementos sensórios e de dura realidade urbana que provoca a moldagem de um “Hard Rock tanto mais explosivo quanto não–conformista e provocante”: o Heavy Metal. A linguagem do Heavy Metal e do Hard Rock tem a natureza carregada de humor, ironia e sarcasmo. A sua ascendência é irrefutavelmente “subversiva”, transgressora e contestadora por excelência. Utiliza-se do riso e da imagem grotesca do corpo para enfrentar e se opor às adversidades da vida e do destino, ridicularizando os infortúnios e as desgraças do Mundo. Constrói um universo próprio, uma realidade especial dentro das sociedades já constituídas e organizadas. O Heavy Metal pode também se tornar sombrio, melancólico e trágico, alternandose muitas vezes entre os estados de alegria, insanidade e bufonaria. A “loucura báquica e/ou dionisíaca”, com sua embriaguez, sua fertilidade e seu erotismo ininterruptos ajusta-se maravilhosamente nesse meio. A irreverência inata do Hard Rock e do Heavy Metal sendo rica de elementos gro tescos, co nti nuamente, fo menta transformações, mudanças e metamorfoses importantes. Compreender a carnavalização bakhtiniana é compreender esse processo, daí sua importância metodológica neste estudo. As formas atribuídas às imagens dos corpos irregulares, ou deformados, ou alterados devido a razões naturais ou provocadas pela ação dos homens (ou deuses) são essencialmente paródicas, alegóricas e carnavalescas, encontrando-se inseridas no material visual de incontáveis
Terminada a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), milhares de soldados-combatentes e outros tantos ajudantes que os acompanham nas campanhas militares (geralmente, em um número cinco vezes maior) retornam para seus lares e nações de origem. O fenômeno atinge diversos países, destacando-se os EUA. A geração de jovens que se enquadra nesse espaço de tempo entre 1946 até 1964 costuma ser denominada baby boomer generation. Esses numerosos jovens adolescentes, apreciadores do Rock and Roll massificado pelo rádio e pela emergente mídia televisual, exercem uma pressão social incrível. Eles criam uma poderosa classe consumidora que se encontra atrás de uma identidade própria, contraposta ao tradicionalismo marcante da Música Clássica e de outros gêneros musicais preferidos por seus pais e avós.
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grupos do Rock Pesado. Os responsáveis pela imagem e propaganda (produtores, empresários, ilustradores, desenhistas, a gente do marketing) dessas bandas e/ou artistas encontram-se sempre empenhados na criação de representações capazes de despertar interesse de todas as pessoas tanto no aspecto positivo como no negativo, e, ao atingir esse propósito, os lucros gerados pelo comércio de produtos vão surgir e se multiplicar. A fundamentação teórica adotada neste estudo é proveniente das formulações do semioticista, crítico literário e pensador russo Mikhail Mikhailovich Bakhtin (1895-1975) por meio do conceito de carnavalização, por ele criado e desenvolvido a partir da obra A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. O objetivo principal é capacitar a leitura de imagens nas diversas figuras apresentadas, como, por exemplo, capas de discos, revistas, fotografias e pinturas, ambicionando-se assim, explicar o motivo do enorme uso de ilustrações grotescas consideradas horripilantes, hostis ou provocantes no visual dos produtos dos grupos do Hard Rock e do Heavy Metal. A carnavalização bakhtiniana esclarece este assunto. D a i m a g e m g ro t e s c a d o c o r p o n a carnavalização bakhtiniana A palavra grottesca ou grottesco, que advém do substantivo grotta e que significa gruta, é de origem italiana. No século XV, serve para designar excêntricas decorações ou pinturas encontradas em paredes subterrâneas das Termas do Imperador Tito em Roma. Tais representações inovam, pois carregam um jogo ornamental diferente, em que formas vegetais, animais, humanas e dos reinos dos inanimados são misturados 10
com excepcional liberdade artística. Há uma fantástica distorção das ordens do Mundo sério e bem-composto. A partir de então, o termo: “grotesco” passa a nomear todos os demais adornos ou obras do estilo assim como vem representando uma violação brutal da aparência física e bela tida como normal. Nos dia de hoje, adquire o sentido de mau gosto, defeituoso, ridículo e até monstruoso. Bakhtin afirma que o aspecto primordial do grotesco é a deformidade e a sua função é a de liberar o homem das formas de necessidade inumana (atroz, cruel) em que se baseiam as ideias dominantes sobre o Mundo. O grotesco – assim como o banquete – tende a se apresentar em um “hiperbolismo” positivo, e um tom alegre e triunfal, oferecendo sempre novas possibilidades de mudança, isto é, de pôr tudo de ponta-cabeça, ou de criar uma ordem universal diferente e distinta, ou ainda de suscitar uma outra estrutura de vida. Seus sinais característicos e marcantes de estilo são o exagero (ou a “hiperbolização”), o hiperbolismo (ou a utilização descomedida), a profusão e o excesso. As imagens do corpo, da vida corporal e da alimentação (de banquete) podem ser levados ao fantástico, tocando a monstruosidade, vindo a se constituírem (com toda a sua fartura e superabundância) em um autêntico princípio de tudo o que existe. O pesquisador russo confere um destaque especialíssimo ao riso e ao grotesco (e suas manisfestações com monstros, gestualidade licenciosa, banquetes orgiásticos, palhaços de todos os tipos, deformidades físicas, dentre outras) na cultura cômica popular. Nota que o riso é a essência do Carnaval e se põe a estudá-lo profundamente. Cunha o termo carnavalização para sustentar as suas teorias de âmbito sociológico e filosófico na linguagem, vindo a se transformar em um dos
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Das Formas Báquicas e do Grotesco Bakhtiniano em Imagens do Heavy Metal e do Hard Rock
grandes nomes mundiais da crítica literária e, talvez, no maior especialista em François Rabelais e Fiódor Dostoiévski. As obras destes autores inserem-se em uma atmosfera caótica e largamente humorada sempre propensa a funcionar ao revés de tudo aquilo que se classifica de lugar-comum –, daí sua afinidade com o que se apresenta no universo do Hard Rock e do Heavy Metal. São as três características mais importantes do riso bakhtiniano: o universalismo cômico, a liberdade utópica e a verdade popular nãooficial. O universalismo cômico do riso é aquele que através de todos os modos ritualísticos e/ ou de espetáculos carnavalizadores confronta abertamente o tom sério emanado de órgãos do poder público leigo, laico ou religioso. A liberdade utópica do riso se estende tanto em lugares coletivos (ou praças públicas) como em festins domésticos ou reservados, onde, momentaneamente, encontra-se uma suspensão de todo o sistema oficial,
Figura 1. Capa do disco B-Day (Germany: AFM, 2002) da banda alemã do Heavy Metal: Tankard. Disponível em: <www.metal-archives.com>. Acesso em: 08 mar., 2011.
com suas restrições e barreiras hierárquicas. Por fim, a verdade popular não-oficial do riso também vai de encontro à seriedade autoritária e oficializada que se amalgama com a violência, com as interdições e com o poder tirânico, inspirador do terror místico (ou divino) e do temor moral que atormenta as populações pobres, oprimindo e obscurecendo a consciência do homem; essa verdade é diferente, é resultado de brilhos de consciência humana que se põem a enfrentar todos os tipos de medo e de intimidação impostos, tais como tabus, mandamentos, leis, castigos de além-túmulo e do inferno. Os três tipos do riso bakhtiniano ainda podem contar com a ação protetora do sorriso flusseriano da ironia, que é o resultado da convicção fundamental de que nenhum problema filosófico pode ser solucionado. [...] É uma atividade tristemente lúdica a Filosofia. A modéstia e a resignação da Filosofia são poses que fazem parte do jogo triste (da vida) (FLUSSER, 2006, p. 201).
Figura 2. Capa do CD: Hanging in the Balance (Blackheart Rec., 1984) do grupo norte-americano do Heavy Metal: Metal Church. Disponível em: <www.metal-archives.com> Acesso em: 08 mar., 2011.
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A figura 1 participa do clima jucundo, ou prazenteiro, e familiar do Carnaval. Bakhtin (1999, p.138-148) salienta que o discurso regurgitante (transbordante) de imagens de banquete e/ou de festa encontramse intimamente ligados aos elementos do cômico popular. O lépido “gordinho” (protagonista da figura 1) “convida todos os seus ouvintes a beber em grandes copos o conteúdo do seu tonel” em sua Antestéria (confraternização báquica em forma de banquete popular), onde “os amantes da boa vida e da alegria” veem-se cercados de uma intimidade (familiaridade) não-oficial. Seu aspecto físico traz à memória diversas representações do deus Dioniso (figura 3), por exemplo. A sua larga risada comporta as três formas do riso bakhtiniano em um tom saudável, ou seja, não-beligerante. Ele se apresenta disfarçado de momo8 com a sua coroa sobre a cabeça do seu demoníaco companheiro de farra. Em sentido tanto literal quanto figurado, a “metaleira”9 trapezista da figura 2 expõe o motivo do ventre na corda bamba. Bakhtin fala através de Rabelais (1494-1553): “[...] O que vos aparece do céu, e chamais Fenômenos, o que a terra vos exibe, o que o mar e outros rios contêm, nada é comparável ao que está oculto na terra.” (BAKHTIN, 1999, p.323). Shakespeare (1564-1616), muito provavelmente, inspira-se em Rabelais para formular a sua célebre máxima oriunda das páginas de Hamlet: “Existem mais coisas no céu e na terra, Horácio, do que possa
sonhar tua vã Filosofia”. O ventre – esse baixo material topográfico do corpo humano – torna-se a grande fonte abscôndita (oculta) de entranhas, de urina e de excrementos que se constituem na matéria-prima ideal do vocabulário popular com suas imprecações e suas formas variadas de louvor e de injúria. E o próprio Rabelais faz um comentário sobre a barriga de sua personagem Gargamelle, encontrando-se grávida de Gargântua: “Que bela matéria fecal devia crescer dentro dela!” (RABELAIS, 1957, p.33). A avantajada cavidade abdominal proporciona um universo de perpétua falta de acabamento, onde a ambivalência determina o caráter orgânico e cômico dos elogios e dos insultos, isto quer dizer que se pode injuriar louvando como também é possível louvar injuriando. (BAKHTIN, 1999, p.140-143). A moça (da figura 2), que se apresenta com aprestos típicos da indumentária headbanger (longas unhas “falsas” e ameaçadoras, maquiagem de cor escura ou não-padronizada, o corte de cabelo à la moicano apreciado igualmente pelos punks, calças justas de “peles de animais”), de fato, chama mais a atenção devido ao seu hiperbólico ventre exposto e revestido de uma couraça metálica – ou metaleira. Há uma pose de superioridade em seu rosto que substitui qualquer forma de riso, por outro lado, essa aparência excessivamente arrogante e rebelde combina-se com demonstrações assisadas de consciência, como se vê no “símbolo da paz” pendurado em volta do pescoço e
“Momo, em grego momos, de etimologia ainda não bem definida: talvez se relacione com o verbo mokân, mokâ-sthai, ridicularizar, chasquear, zombar. [...] Em nossa língua, lá pelos fins do século XVI, ‘momo’ se documenta com o sentido de farsa satírica. [...] Daí, para se passar a Rei Momo, o rei da folia carnavalesca, em que a sátira, a farsa e o sarcasmo imperam, não deve ter sido muito difícil” (BRANDÃO, 1997, p. 228). 9 O termo “metaleiro” é criado pela mídia brasileira na ocasião do primeiro Rock in Rio Festival, entre os anos de 1984 e 1985. O seu emprego transporta uma conotação depreciativa, assim sendo a maioria dos diletantes do Rock Pesado não o aceita de bom grado. Costuma-se usar a expressão headbanger, mas até esta denominação internacional é muitas vezes preterida por entusiastas dos diferentes gêneros do Heavy Metal, como, por exemplo, pelos do Black Metal: “Hellbanger é um equivalente do headbanger entre os apreciadores de Metal Extremo. É pouco utilizado, mas preferível ao pejorativo metaleiro” (CAMPOY, 2010, p. 86). 8
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Das Formas Báquicas e do Grotesco Bakhtiniano em Imagens do Heavy Metal e do Hard Rock
na tentativa lúdrica (ridícula ou risível) de contrabalançar um peso hipopotâmico com uma quase que imperceptível sombrinha corde-rosa. A ambivalência ideológica é clara. Do Dionisismo e da representação de Pã Dioniso – ou Baco – é o último dentre os doze maiores deuses 10 do panteão greco-latino a ser aceito publicamente pelo mito e literatura, isto lá pelo século VI a.C. É verdade, porém, que Homero já o havia citado, com muita discrição, no episódio de Licurgo, contado pelo poderoso guerreiro aqueu Diomedes na Ilíada (livro VI). A razão é de ordem política. Dioniso é uma divindade divertida, bonacheirona, humilde e essencialmente do campo, ou seja, é um deus dos campônios. O êxtase e o entusiasmo que faz arder em todos os lugares em que é adorado são vistos como uma terrível ameaça ao status quo vigente das cidadesestados gregas, “cujo suporte religioso são os aristocratas deuses olímpicos.” (BRANDÃO, 1998, p. 117). A religião de Baco – ou “o deus do povo” – colide com a oficial (dos eupátridas, isto é, da classe governante) e, destarte, pode vir a se configurar um núcleo de inconformismo social. Embora nas festas dionisíacas, havendo, por conseguinte, a quebra de todos os interditos, o estado sempre os tolerou, uma vez que toda ruptura com tabus de ordem política, social e sexual visava não apenas à imprescindível fecundidade e à fertilidade, mas era algo que atingia tão-somente o mundo da sensibilidade, sem chegar à reflexão, como na tragédia (obra
teatral em verso). [...] Uma das características fundamentais de Dioniso, o “deus do povo”, é sua universalidade social. Também os escravos participavam dessa confraternização ou Antestérias (ou “abrir tonel”). (BRANDÃO, 1998, p. 133).
Sem sombra de dúvida, Pã11 é a principal divindade campestre – e grotesca – que mais empresta atributos físicos à aparência caprina do diabo e, este por seu turno, tem sido sempre associado ao Rock, sobretudo ao Heavy Metal. Esses traços, obviamente, estão relacionados com o desditoso bode que é levado para o deserto, como um rito sacrifical, para a expiação das impurezas de todo o povo de Israel. (BÍBLIA, Lv 16, 1-34, p.183). A pomposa e ruidosa comitiva de Dioniso (da figura 3) desfilada através dos traços barrocos de Cornelis de Vos encontra-se perpetuamente em movimento, assombrando pela multiplicidade e pela novidade de suas transformações (metamorfoses e hibridações). Esse itinerante séquito é dado a imiscuir-se em todos os lugares com todas as gentes e povos, sem se preocupar com as diversas modalidades de religião ou etnia. O deus do vinho faz-se acompanhar por criaturas exageradamente grotescas em uma atitude acintosa e ao mesmo tempo alegre, uma provocação alicerçada no universalismo cômico do riso bakhtiniano, ou seja, da risada que se dirige contra todo o mundo sério, regulador e despótico. Dioniso, Sileno (o sábio sátiro encerrado em eternal embriaguez, montando no burrico da figura
São aceitos como principais deuses e deusas do panteão greco-romano, residentes do Olimpo (ou “Monte da Luz”), situado entre a Macedônia e Tessália na Grécia: Zeus (ou Júpiter, em latim), Hera (ou Juno), Apolo (ou Hélio, ou Febo, ou Pítio, ou ainda muitos outros epítetos), Artemísia (ou Diana), Atena (ou Minerva), Afrodite (ou Vênus), Hefestos (ou Vulcano), Ares (ou Marte), Hermes (ou Mercúrio), Poseidon (ou Netuno), Hades (ou Plutão) e Dioniso (ou Baco). Hades, senhor dos infernos e geralmente tranquilo, prefere morar em seu palácio nas entranhas da Terra. 11 Filho de Hermes e da ninfa Dríope, ou em outra versão de Zeus e de Tímbris, Pã significa “tudo”, pois se narra que diverte “a todos os deuses” no instante em que é apresentado a eles, envolto em uma pele de lebre com seu aspecto grotesco: cheio de cabelo e barbas, com pés e cornos de bode. “É selvagem, barulhento e libertino, seu maior prazer era estar no meio das formosas Ninfas. [...] Fazia parte do cortejo de Baco” (SPALDING, 1965, p. 196). 10
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3) e seus seguidores homens e/ou bestiais representam o caos (ou as mudanças) que é necessário que ocorra para que a humanidade siga o seu curso natural de progresso. É certamente o único deus grego que, revelando-se sob diferentes aspectos, deslumbra e atrai tanto os camponeses quanto as elites intelectuais, políticos e contemplativos, ascetas e os que se entregam a orgias (BRANDÃO, 1998, p.138).
O diabo (na nossa concepção desse termo) conhece o seu dever, e nós duvidamos do nosso. O seu projeto é claro, e ele o realiza, especialmente na época atual, com êxito admirável. Mas nós somos “livres”, isto é, podemos tanto seguir o diabo como a divindade, e erramos, portanto, em círculos mal traçados. O progresso retilíneo é coisa do diabo.12 A humanidade, se progrediu, o fez graças a ele. (FLUSSER, 2006, p.23).
Figura 3. Tela O Triunfo de Baco do pintor flamengo Cornelis de Vos (1584-1651). Disponível em: <www.arteespana.com> Acesso em: 08 mar., 2011.
Figura 4. Capa do disco intitulado Beastiality (UK: Heavy Metal Rec., 1981) do grupo inglês do Hard Rock: the Handsome Beasts. Fonte: HM LPs.
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Figura 5. O irritadiço semicapro sátiro Phil do desenho Hércules (EUA: Walt Disney Pictures, 1997). Fonte: [S.l.] na Internet
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Como o riso carnavalesco, o corpo do homem (que comporta em si todos os elementos e todos os reinos da natureza: animal, vegetal, mineral e propriamente humano) não é algo fechado e acabado, é renovável, é o centro que abrange em seu seio a imensa diversidade do universo com todos os seus fenômenos e forças mais distantes. Esse ponto de vista reduz o inteiro cosmo à habitação familiar do homem, de onde todo o temor é deixado de lado. O corpo – e a imagem que dele resulta – é tão importante que, a rigor, é chamado de mídia primária na área de Comunicação Social. O “gordinho simpático” da figura 4 ostenta uma notável similaridade física com Baco e com o seu coadjuvante suíno, além disso, exibe uma das mais importantes marcas do fã do Rock: os cabelos compridos. Os dois grotescos personagens complementam-se em um ambiente coletivo (que também pode ser entendido como “a praça pública” d a c a r n ava l i z a ç ã o ) , ex p re s s a n d o - s e veementemente com “palavras de linguagem corporal”. O nosso corpo é uma riqueza comunicativa incalculável. Um levantamento das linguagens faciais pode resultar em um dicionário muito maior que o Aurélio. A quantidade de músculos e de possibilidades de movimentos de cada músculo pode gerar uma “palavra” de linguagem corporal – os vincos, a presença do tempo, a pele, os cabelos, os movimentos de cada músculo da face ou dos membros visíveis, há uma infinidade de frases possíveis nessa linguagem. Imaginem quando se juntam as “falas” do rosto, dos ombros, do pescoço, da testa, dos cabelos ou sua ausência, dos braços, das mãos, dos dedos, da postura. Sem sombra de dúvida, é esta a mídia mais rica e mais complexa (BAITELLO, 2005, p.32).
Philoctetes, ou simplesmente Phil, é o divertido e libertino sátiro “treinador de heróis” do desenho Hércules da Disney (figura 5) muito parecido com a imagem do inseparável amigo de Dioniso: Representavam Sileno como um velhote baixo, atarracado, calvo, obeso (algumas vezes com cornos), constantemente embriagado... [...] Dizia-se que esse velho voluptuoso, nos seus momentos de lucidez, era um grande sábio (SPALDING, 1965, p.235).
O bode também é destinado para os sacrifícios ao deus Baco e da sua constituição física é arquitetada a figura de Pã, conferindo a esta deidade um caráter ruim e os cascos caprinos acabam por se transformar na característica mais famosa do diabo, um dos símbolos atribuídos ao gênero musical do Heavy Metal e aos seus apreciadores. Conclusão O grotesco e o sublime completamse mutuamente, produzindo uma beleza autêntica que o clássico puro é incapaz de atingir. A forma imagética grotesca dos deuses Dioniso e Pã encontra na concepção bakhtiniana da carnavalização um poderoso aliado que leva à compreensão a sua constante capacidade de versatilidade de transformação ou de metamorfose. A ambivalência, o hiperbolismo, o riso alegre ou o acintoso são componentes essenciais nesse processo que defronta o tempo e instiga a evolução humana. As imagens báquicas e carnavalizantes inseridas no universo visual dos produtos relacionados ao chamado Rock Pesado encontram-se sempre a ousar,
O progresso retilíneo de Flusser tem correspondência com a ideia bakhtiniana do progresso horizontal, em que o homem renascentista, graças à navegação marítima, vence o espaço terrestre, triunfando depois sobre as horizontais do espaço e do tempo, deixando para trás a religiosa “vertical hierárquica medieval” Bakhtin (1999, p. 322). A Idade Moderna e os Grandes Descobrimentos proporcionam uma nova relação entre o ser humano e o Mundo.
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modificando o antigo e incorporando o novo, permitindo a associação de elementos heterogêneos e o consequente afrontamento ao senso comum e ao establisment, o que é fascinante e convidativo. Os estilos do Rock Pesado encantam as multidões com sua produção musical na mesma proporção que influenciam com o seu grande conjunto de imagens sustentado por uma temática grotesca e amedrontadora. Esse visual associado ao fascínio, à ambigudade e à ambivalência, à quebra de regra, à provocação, à vitalidade e ao rejuvenescimento, à sensação de imortalidade e de invencibilidade e, principalmente, à ilusória sensação de liberdade plena (de fato, utópica) faz do Heavy Metal um autêntico camaleão cibernético, que se renova (renasce) e multiplica permanentemente sob uma representação artística de espetáculo cênico (e musical) muito bem elaborada. A origem marginal e desrespeitadora do Hard Rock e do Heavy Metal tem uma afinidade congênita, e por inteiro, com a falta de compromisso celebrada pela imagem orgíaca e rebelde de Dioniso e de Pã que, já na Antiga Grécia, sofrem perseguições políticas, pois com seu êxtase e entusiasmo ridicularizam o medo imposto pelo tom sério através do riso e do sarcasmo, ameaçando perigosamente a estrutura socioeconômica em vigência e incomodando os manipuladores da religião oficial tão bem guardada pelos outros tradicionais e despóticos deuses do Olimpo. Bakhtin compreende perfeitamente o uso indiscriminado das anomalias físicas humanas no imaginário dos povos e artistas espalhados pelo Mundo. O inconformismo genético do Hard Rock e, mais ainda o do Heavy Metal, colide com muitos preceitos impostos pelos sistemas de valor da sociedade: o estado, a religião e a família. Milhões, ou talvez mais de um 16
bilhão, de jovens e adultos no Mundo inteiro sentem ao se relacionar com esses gêneros tão vibrantes de música uma maneira particular de afrontamento às regras oficiais que, por via de regra, sempre se encontram bem sustentadas pelas forças de “segurança pública”, satisfatoriamente propagadas pela mídia, que é a grande artífice e produtora daquilo que se conhece por senso comum. Ele (o Heavy Metal) vê-se eternamente na condição de “vigilante”, isto é, de um oponente inconcusso das normas oficiais – e/ ou consuetudinárias – impositivas e injustas. Os responsáveis pelo gerenciamento de marketing da maioria dos grupos do Heavy Metal e do Hard Rock aproveitam-se de toda a tecnologia mais avançada para criar imagens que venham a chocar pelo grotesco (monstruosidade), mascaradas sob a áspera ironia flusseriana e o riso carnavalizador bakhtiniano, que é livre e desprendido. Eles se encontram, em qualquer momento, esplendidamente municiados de um arsenal infinito de figuras ou representações – muito desse conjunto imagético constituído do grotesco dionisíaco –, e têm a capacidade de desenvolver poderosas formas de expressão artística (no propósito de visibilidade, aceitação e consumo) valendo-se do visual dos símbolos já consagrados, com a intenção de gerar fortunas em negócios. O Heavy Metal é contrário ao sistema, mas é abrangido e se favorece com ele. Referências BAITELLO Jr., Norval. A Era da Iconofagia: ensaios de Comunicação e Cultura. São Paulo: Hacker Editores, 2005. BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. São Paulo/Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1999. BEASTIALITY. Capa do disco. The Handsome Beasts. (UK: Heavy Metal Rec., 1981). Grupo
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FLUSSER, Vilém. A História do Diabo. 2.ed. São Paulo: Anablume, 2006.
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A Mulher Condescendente: uma reflexão sobre a reificação da imagem feminina nas capas dos jornais Dulce Mazer Mestranda Acadêmica em Comunicação pela Universidade Estadual de Londrina, É bacharel em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo (2010) e em Secretariado Executivo (2000) pela mesma universidade. É pós-graduada (*lato sensu*) em Marketing e Comunicação pela Faculdade Estadual de Ciências Econômicas de Apucarana (2004). Tem experiência nos campos de Jornalismo e de Administração, com ênfase em Comunicação e em Marketing. Atua nos segmentos editoriais de rural, agronegócios e assessoria de imprensa. Atualmente desenvolve pesquisa em comunicação, hiper-realidade e representação da imagem e da corporeidade feminina na mídia impressa.
Resumo
Tomando como pressuposto a valorização das imagens técnicas na civilização ocidental contemporânea, este trabalho observa, por meio de pesquisa exploratória, a exposição individual subjetiva do corpo feminino nas capas de um jornal impresso. Com a intenção de suscitar a discussão de alguns dos impactos sociais da fotografia na mídia impressa, este trabalho considera o consentimento e a autorização de uso de imagem, em seu significado mais abrangente, como o elemento transformador da criatividade e da presença humana em mercadoria. Nesse sentido, o corpo-imagem feminino, ao ser publicado consensual e sensualmente na capa dos jornais, dá à imagem da mulher um caráter mercadológico. As próprias revistas de celebridades são fruto das práticas hedonistas de consumo, adequadas ao modelo de gestão corporal vigente. Esses veículos são, portanto, objeto de consumo visual. Para levantamento de dados foi utilizado o jornal Folha de Londrina durante o primeiro quadrimestre de 2010. A escolha do veículo serve como pano de fundo para a compreensão aplicada da relação entre os leitores de determinado veículo impresso e as fotografias nele publicadas, baseando-se no conceito de identificação de Morin. O presente artigo propõe também a reflexão sobre a temática da subjetividade exacerbada, levantada por Paula Sibilia. Observamos alguns fenômenos comunicacionais, como identificação, hiper-realidade, evocação de simulacros e exposição da subjetividade na publicação de imagens femininas em produtos midiáticos. Análises sobre a filosofia da iconofagia, como a devoração das imagens pelo homem, também contribuem para o desenvolvimento de reflexões deste trabalho. Palavras-chave: Comunicação; corpo; mulher; mídia.
Abstract
Considering the value of technical images in contemporary Western civilization, this paper observes, through exploratory research, a subjective exposure of the female body on the covers of newspapers and considers the consent and authorization of use of image as the transforming element of creativity and human presence into merchandise. In this sense, the female bodyimage,to be published consensus and sensually on the covers of newspapers, gives the image of a woman character of market. For data collection we used the newspaper Folha de Londrina during the first quarter of 2010. We have observed some communication phenomena, such as identification, hyperreality, and simulacra evocation of exposure of subjectivity in the publication of images of women in media products. An analysis of the philosophy of iconofagia also contributes to the development of this work. Keywords: Communication; body; woman Recebido em: 17/03/2011
Aprovado em: 02/05/2011
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A Mulher Condescendente: uma reflexão sobre a reificação da imagem feminina nas capas dos jornais
Percebe-se, entre os diversos estilos editoriais, uma ânsia e oportunidade de expor a subjetividade ao espaço coletivo. É nas capas de jornais, e nesse sentido entra o exemplo de um veículo impresso de grande circulação na região de Londrina (PR), que a exposição da imagem feminina em trajes miúdos ou, ao menos, valorizadores da bela silhueta, transpassa a simples-exibição corporal e confere ao corpo um caráter mercadológico, aliando a subjetividade da pessoa fotografada e o anúncio dos serviços profissionais por ela prestados ao atual esquema de valores estéticos. As imagens corpóreas ocupam um espaço valioso entre as imagens propagadas diariamente por veículos de moda, de comportamento, nas redes sociais, no cinema, na publicidade etc. Este artigo observa a veiculação e destaque de imagens corpóreas em veículos cotidianos, tomando como recorte as capas e o caderno Folha 2 do jornal Folha de Londrina, considerando sua semelhança com outros jornais. A partir da leitura habitual de vários jornais, as observações aqui propostas tornam-se relevantes para as publicações diárias de maneira geral. O artigo observa também as construções de gênero e sexualidade cristalizadas na sociedade contemporânea e propõe uma reflexão sobre os usos da imagem feminina no contexto do jornal diário. Para tanto, foram analisadas as capas e colunas sociais de 113 exemplares1 do diário Folha de Londrina, equivalentes a quatro meses de publicação.
Destacada de seu contexto, a imagem produzida em estúdio pode mais se assemelhar a uma fotografia publicitária ou de moda, que uma fotografia jornalística. Acima, a foto da maquiadora I.R..na capa do jornal. Abaixo, a mesma imagem ganha formato de pôster na página 6 da Folha 2, a coluna social da mesma edição.
Edições de 18260 a 18372 publicadas no 1º. quadrimestre de 2010, sendo que duas edições receberam o número 18334.
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Durante um ano os jornais foram lidos e do montante destacou-se toda imagem publicada na capa do veículo durante o primeiro quadrimestre de 2010 que fizesse referência à subjetividade da pessoa fotografada, ou seja, no contexto jornalístico, foram selecionadas para este recorte as 35 edições que apresentaram na capa uma imagem corpórea na qual o assunto fotografado era a pessoa em si e suas características, não se tratando de fatos comuns à comunidade de leitores. As fotolegendas não apresentavam os elementos indiciais de notícia como os que compõe um primeiro parágrafo de qualquer artigo noticioso como o que, ou quem, fez o quê, quando, onde, como e por quê? Destas, 32 capas apresentaram imagens de corpo feminino e apenas três deram destaque à beleza do corpo masculino. A aparição de homens em apenas 8,5% dos destaques de capa para a coluna social do referido jornal serve apenas de base para outras análises referentes ao estudo de gênero em imagens, parte de uma pesquisa maior, cujo objetivo é verificar e refletir sobre a majoritária aparição do corpo feminino na mídia e sua relação com a hegemonia cultural. A predominância de imagens corpóreas femininas em produtos midiáticos a partir de uma linguagem erotizada pode ser observada pelo leitor ou telespectador mais atento, porém, poucos estudos já demonstraram numericamente esta diferença entre gêneros na mídia. Em um trabalho interessante a autora Sabrina da Cruz aborda à violência simbólica2 de gênero nas imagens de mulheres nas propagandas de cerveja. Para ela,
o desafio é inserir o debate sobre as formas de representação das mulheres na mídia, dando visibilidade à violência simbólica e propondo políticas públicas que desmontem as desigualdades de gênero (CRUZ, 2010).
Condescendência3: a publicação do corpoimagem Com a intenção de suscitar a discussão de alguns dos impactos sociais da fotografia na mídia impressa, este trabalho considera o consentimento e a autorização de uso de imagem, em seu significado amplo de permissão, como o elemento transformador da criatividade e da presença humana em mercadoria. Condescendente é aquele que condescende. O verbo condescender significa ceder de boa vontade, por complacência. Anuir à vontade alheia. Aceder. Nesse sentido, compreende-se que o corpo-imagem 4 feminino, ao ser publicado consensual e sensualmente nas capas dos jornais, dá à imagem da mulher um caráter mercadológico. As próprias revistas de celebridades são fruto das práticas hedonistas de consumo, adequadas ao modelo de gestão corporal vigente. Esses veículos são, portanto, objeto de consumo visual. Porém, antes de propor uma teoria do consumo do corpo-imagem é preciso compreender a qual conceito de reificação recorremos neste trabalho. Frederic Jameson (1994) apresenta uma interpretação da teoria marxista para abordar o resultado da produção cultural como mercadoria, porém o conceito é aqui deslocado para explicitar a idéia de corpo e subjetividade publicizados como mercadoria:
De acordo com Cruz, a violência simbólica de gênero diz respeito aos constrangimentos impostos pelas representações sociais de gênero – sobre o masculino e o feminino. 3 O adjetivo condescendente, de acordo com o dicionário Priberam de Língua Portuguesa, diz respeito àquele que condescende, que dede de boa vontade, por complacência. Que anui à vontade alheia, que acede. 4 Corpo-imagem é um conceito explorado em artigos anteriores que fortalece a pesquisa sobre a presença de imagens corporais na mídia. Para a autora deste trabalho, o valor imagético do corpo tem peso e função diferentes a partir de sua publicação em veículos de comunicação. 2
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Dulce Mazer A teoria da reificação [...] descreve o modo pelo qual, sob o capitalismo, as formas tradicionais mais antigas da atividade humana são instrumentalmente reorganizadas ou “taylorizadas”, analiticamente fragmentadas e reconstruídas, segundo vários modelos racionais de eficiência e essencialmente reestruturadas com base em uma diferenciação entre meios e fins (1994, p. 2).
E m u m a s o c i e d a d e q u e va l o r i z a a subjetividade exacerbada, as pessoas percebem que podem materializar suas mais íntimas experiências e conjecturas em espaços públicos. É nesse momento que elas se colocam como o vetor da imagemmercadoria. “Os tentáculos do mercado transformam a criativa ação em mercadoria” (Rolnik, apud Sibilia, p. 10, 2008). As pessoas selecionadas para as capas da Folha de Londrina publicadas no primeiro quadrimestre de 2010 apresentaram o corpo belo como chamariz para notas das colunas sociais, revelando na imagem-mercadoria a subjetividade exacerbada presente em nossa sociedade. Empregamos neste artigo um termo esculpido por Rolnik: a subjetividadeelite (idem). Para a autora, a criatividade tem se convertido no combustível de luxo do capitalismo contemporâneo. Ela discorre sobre os dois lados da subjetividade, o visível e o invisível, e se refere à conexão global instaurada pelo capitalismo como ferramenta para a exposição das subjetividades de maneira veloz e onipresente. É o consenso que permite a transformação da criação e da presença humana em mercadoria. Numa cultura hegemônica dominante, onde o corpo feminino é considerado ornamento, ao consentir que seu corpo seja exibido em massa, a
mulher está considerando, consciente ou inconscientemente, vantajosa a possibilidade de ser reconhecida por seus atributos físicos. Ela vai de encontro consensual ao modelo hegemônico de exploração de imagens corpóreas, ainda que não se dê conta. Nesse sentido, o corpo-imagem publicado nas capas dos jornais dá à imagem feminina um caráter mercadológico. De maneira a aproximar os cidadãos das vedetes midiáticas, a coluna social salta para as capas dos jornais, expondo o corpo feminino como mercadoria para apreciação. Em contrapartida, a pessoa fotografada tem a oportunidade de exibir sua subjetividade e promover suas habilidades profissionais para a comunidade na qual está inserida. Observamos também a existência de um caráter mágico projetivo das personalidades nas capas da Folha de Londrina, que buscam se assemelhar às estrelas de cinema. Em poses e legendas pomposas, o papel social do indivíduo fotografado é subjugado ao segundo papel informativo. O que importa, na imagem representada, é a pessoa bela, saudável e, por sorte, com algo do intelecto a oferecer. As pessoas selecionadas para as capas da Folha de Londrina, durante o primeiro quadrimestre de 2010, apresentaram o corpo-imagem belo como chamariz para notas das colunas sociais, revelando na imagem-mercadoria a subjetividade exacerbada presente em nossa sociedade. Em todas as legendas das imagens selecionadas a profissão e o destaque aos belos atributos físicos estão presentes. Em nossa civilização, a ordem visual antecipou-se a todos os demais sentidos. A sensibilidade proprioceptiva5 pode dar à imagem do nosso corpo outros aspectos,
A propriocepção é a capacidade neurológica de sentir o próprio corpo e a consciência corporal (The American Heritage Science Diccionary, 2002). Oliver Sacks afirma ter sido Sherrington o descobridor do fenômeno no final do século XIX (SACKS, 2006). Do latim proprius (próprio) e perception (significando reconhecimento, o sentido de orientação própria no espaço), proprioception, do inglês, é definido como a percepção inconsciente de movimento e orientação espacial que vem de estímulos internos corporais.
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que não a do testemunho dos nossos olhos. A percepção da auto-imagem e da imagem corporal de outros é influenciada pela concepção cultural do receptor, bem como pelos meios de comunicação com os quais o sujeito se relaciona (MONTAGU, 1988). A imagem como representação de si, ou do outro, surge como manifestação da presença do ser no mundo, na tentativa de recriar ou restaurá-lo contra seu esvaecimento, reafirmar sua subjetividade. As imagens, como conhecemos e desfrutamos na vida cotidiana, apenas existem para serem vistas por um espectador, assim afirmou Jacques Aumont (1995). O exercício do olhar cotidiano é uma atividade que oscila entre a alienação individual e a consciência coletiva de composição e interpretação visuais. Ao compreender os efeitos da estética na imagem observamos que o sistema de valoração é fonte para a apreciação estética e criação de cânones de beleza, atitude individual de contemplação diante da beleza. Na aplicação desse sistema, tanto para a criação da beleza, quanto para a sua apreciação, a estética terá efeito na imagem. Assim, quando apreciamos uma imagem corporal, nosso código cultural, que sofre a influência da norma métrica, nos leva a definir, se não adjetivos verbalizados, ao menos valores mentais para a representação do corpo que nos é apresentada. Como em um concurso de beleza, nos dispomos a julgar a imagem publicada como se, tacitamente, ela fizesse parte de uma exibição graduada, referenciando níveis a partir de adjetivos, geralmente de maneira dicotômica: do mais para o menos; do bom para o ruim, expressões de julgamento de natureza espontânea.
O fotojornalismo dá lugar a um belo retrato Determinante na Antropologia, na Arte e na Comunicação, o retrato se constrói sobre duas representações antagônicas: a da ausência e a da presença (MORIN, 1973) e está ligado à condição de representante da morte, da perpetuação da noção de ausência, do finito. Sendo a morte limitadora, o homem questiona sua própria natureza, indagando sobre o nascimento e o sentido da vida. A partir deste questionamento, surge um universo lúdico de recriação, magia e mito. “É a ordem humana que se desenvolve sob signo da desordem” (MORIN, 1973, p. 25), manifestando sua presença no mundo e estabelecendo a partir da imagem uma luta contra a ameaça da extinção e a afirmação do ser. A história do retrato é igualmente marcada pelo conceito de mimese, o processo impulsivo de imitar não a realidade, mas sua a representação. Medeiros (2000) considera o retrato pintado o primeiro recurso de referência especular e destaca que a fotografia, em 1839, “vem acentuar o espanto e o delírio provocados pela imitação” (idem, p. 45). Como mimese da perfeição, a imagem corporal é projetada como representação cotidiana do ser. A partir da necessidade de se equiparar ao modelo perfeito, ao corpo arquetípico6, ao rosto ideal para a representação de sua subjetividade, o indivíduo vê no retrato a possibilidade de se refazer, de melhorar sua representação e isso se dá de várias maneiras. Uma delas é a preparação, onde o sujeito a ser fotografado busca seu melhor ângulo, usa sua melhor roupa, faz uso da maquiagem para que o instante perpetuado possa revelar atributos
Arquetípico: referente a arquétipo. Na Filosofia, trata-se do modelo ideal, inteligível, do qual se copiou toda a coisa sensível. Para o platonismo, as ideias são os arquétipos das coisas; para o empirismo, certas ideias são os arquétipos de outras ideias (PRIBERAM, 2010).
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físicos ainda melhores que os reais. É o caso do sujeito que, ao posar para a foto, tira os óculos que usa durante todo o tempo: A comunhão entre pose e cenário, os trajes cuidadosamente escolhidos e engomados, o cabelo minuciosamente penteado, a maquiagem e o retoque caracterizam a fotografia de retrato – desde o seu surgimento – como uma construção da identidade do indivíduo, idealizado em um personagem que diz mais respeito à forma como cada um gostaria de ser visto do que sobre sua verdadeira identidade. (LOPES e ZAMBON, 2007).
Roland Barthes (1979) define que o ensaio fotográfico é montado sobre um décor, um cenário, sugerindo todas as possibilidades que determinada peça quer assumir. Assim, um ambiente montado de verão pode indicar a emergência do calor, das praias, de uma nova coleção e até da perfeição dos corpos, significados estabelecidos a partir de equivalências cinestésicas (cenário). Outra maneira de transformar o sujeito fotografado se dá por meio do editor fotográfico. Considerado por alguns teóricos como Paula Sibilia como um “bisturi digital”, o aplicativo pode determinar os novos atributos físicos do sujeito fotografado em questão de minutos. Hoje fotojornalistas e fotógrafos de estúdio alimentam as capas de jornais com belos retratos conquistados a partir de caprichadas produções, substituindo a fotonotícia por uma imagem posada. A fotografia é um veículo de observação, informação, análise e opinião e, como tal, serve a um fim comunicacional. É uma técnica associada à determinada linguagem e seu domínio permite a qualquer pessoa usá-la entre as diversas linguagens para a comunicação. É preciso refletir sobre como os produtos editoriais expõem a subjetividade em espaços massivos, colocando em foco
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discussões sobre os valores de criação e de exibição. As aparições corporais na capa do periódico pouco se relacionam com os tradicionais critérios jornalísticos de fazer notícia. Este formato explora a exibição corporal no exercício do olhar cotidiano não vinculando o corpo a uma notícia, mas deslocando-o para as notas sociais. Ao observarmos a evolução da ocupação do caráter simbólico corporal nas capas do jornal notamos que o critério de utilidade informativa é negligenciado. É importante ressaltar que a fotografia é uma ferramenta de código aberto e multisignificativa, capaz de transportar informações entre diferentes contextos. Cabe ao fotógrafo a difícil tarefa de encontrar meios de aplicar essas características. Sobre a quantidade de imagens publicadas diariamente, Sousa considera fotojornalismo as fotografias “que possuem valor jornalístico e que são usadas para transmitir informação útil em conjunto com o texto que lhes está associado” (2000, p. 11). Quanto à natureza da imagem, grosso modo, o que difere uma fotografia comum de uma jornalística é o fato da segunda apresentar alguns critérios que a caracterizam como notícia, além do fato de serem passíveis de publicação em veículo informativo. Os dez critérios definidos por Beltrão (apud GIACOMELLI, 2008, p.29) servem para identificar e julgar fatos noticiáveis. Denominados valores-notícia, os elementos proximidade, proeminência, conseqüências, raridade, conflito, idade e sexo, progresso, drama e comédia, política editorial e exclusividade são encontrados para justificar a enunciação de uma informação noticiosa, a exemplo da máxima jornalística: se o cachorro mordeu o dono, não há notícia. Sabemos que é impossível separar de uma fotografia o interesse por sua concepção. Ferranti
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interroga sobre a descontextualização de uma foto e seus efeitos no imaginário: “uma vez definido, o contexto modifica, se não influencia, nossa percepção da imagem e carrega a paisagem de sentido” (FERRANTI, 2003, p. 21). A superfície plana da fotografia permite ao observador decifrá-la superficialmente num relance, porém, um olhar mais atento, mais demorado, passa pela estrutura da imagem. Trata-se da síntese, um processo decifrador mental e íntimo, resultado da intenção do emissor ao receptor, que recebe uma série de símbolos conotativos. O consumo de imagens na vida cotidiana deveria obedecer a uma velocidade natural de apreciação estética, que seria compreendida como o tempo necessário para a cognição e a reação à imagem. O olhar do observador é circular e tende a contemplar preferencialmente alguns elementos da fotografia, estabelecendo relações significativas. Flusser considera que: “Imagens são mediações entre homem e mundo” (2002, p. 9). Ora, a inversão da função imagética é por Flusser considerada idolatria. O homem passa a aceitar a imagem como um espelho da vida, considerando o reflexo das imagens como realidade: “Imaginação torna-se alucinação” (idem). O olhar cotidiano para as imagens corporais nas capas dos jornais transforma o valor de culto e exposição em valor de escambo e consumo. Isso pode atenuar a dificuldade em se compreender a realidade. Em vez de explicar graficamente o mundo, a imagem vai deturpá-lo, instituir novos valores e conferir ao indivíduo um novo comportamento na relação entre imagem, homem e mídia. A imagem passa a ser um veículo que intervém no mundo e o corpo idolatrado dá ao indivíduo uma composição parcial de sua subjetividade.
Acima, o engenheiro agrônomo Eliéser Ambrosio, participante do BBB 10, fotografado por Joelma Escatambulo para a capa da edição 18.264 de 7.jan.2010. Abaixo, página 6 da Folha 2, coluna social da mesma edição.
Klein afirma que, na civilização do olhar, o critério para a existência social passa a ser a visibilidade. (2006). Compreende-se a cultura da imagem como o domínio do olhar sobre os demais sentidos. A partir de uma forma de organização social, hábitos, necessidades que sofrem a interferência do olhar externo sobre seus elementos, é construída a civilização do olhar. Além do prevalecimento de imagens femininas, percebemos no recorte observado a nomenclatura de suas atividades profissionais e a incidência da justificativa noticiosa no oferecimento de seus serviços à comunidade, como na figura abaixo. Relacionamos a oferta da ação laboral, relegada ao segundo
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assunto em todas as notas, com a troca do corpo-mercadoria pelo papel de destaque no jornal. A fim de justificar as notas, os jornais abrem espaço para a publicização de profissionais liberais. Por outro lado, as pessoas fotografadas parecem, e aqui vai uma conjectura, estar à procura de espaço para oferecer seus diversos atributos ao mercado. Marra (2008) defende o papel que a fotografia desempenhou no realce do corpo e do físico, um fenômeno precedido por complexos motivos sociais, mas que se tornou possível pela facilidade de conservação dos corpos no suporte fotográfico. Para o autor, a visibilidade cultural adquirida pelo corpo nos anos 1960 e 70 é favorecida pela complexa rede tecnológica que se estabelecia muitos anos depois do surgimento da fotografia. Coube à fotografia de moda “desenvolver um imaginário claramente mais orientado para uma transgressão dos comportamentos sexuais” (2008 p. 165). Um exemplo dessa alteração são as pin ups7, que surgiram nos anos 40, para compensar as frustrações em tempos de guerra, divas imaginárias que divertiam com sua aparência plástica perfeita. No século XX, o surgimento das divas estava aliado ao trabalho fotográfico. O trabalho de fotógrafos de moda muitas vezes extrapolou as editorias, constituindo conceitos. Artistas e profissionais da moda também forjaram suas leituras fotográficas. As pin ups migraram para as capas dos jornais, levando à inversão do papel social feminino no informativo diário. Na era digital, a obsessão pela visibilidade permite que tudo seja postado na internet, a fim de legitimar socialmente uma obra, no caso da arte, um fato ou imagem, no caso
da vida cotidiana, possibilitando, assim, que uma mesma imagem ou conjunto de imagens sobre determinado assunto ou personagem figurem exaustivamente entre as mídias digitais. Isso ocorre porque o avanço tecnológico permite que o processo de produção digital acelere ainda mais o modo de conceber e apreciar imagens.
Acima, a dentista Samatha Ribeiro, fotografada por Leia Lang, salta para a capa da edição 18.290 de 02.fev.2010. Abaixo, Folha 2, página 6 da mesma edição.
“Pin-up noun, 1- a picture of an attractive person, especially one who is not wearing many clothes, that is put on a wall for people to look at; 2- a person who appears in a pin-up.” termo “pin-up”, traduzido como “fotografia ou figura de pessoa atraente, especialmente uma que não usa muita roupa, que é colocada na parede pelas pessoas para ser olhada; pessoa que aparece na imagem de pin-up.” (HORNBY, 2005, apud CARVALHO e SOUZA, 2010 ).
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Para Flusser (2002), o meio vai além da materialidade, não configurando apenas o consumo, mas valorizando a relação entre cognição social e estética. É um ambiente que permite a transformação social, pois o meio é onde ocorrem inúmeros processos de condicionamento. Assim, observamos que a homogeneização social, a partir de elementos de condicionamento no vestir e no agir, sobretudo durante as aparições midiáticas, é consensual e necessária para o funcionamento do mercado e a valorização do indivíduo: [...]“objetos, mas também, subjetividades – modos de habitar, vestir, relacionar-se, pensar, imaginar...-, em suma, mapas de formas de existência que se produzem como verdadeiras “identidades prêt-à-porter”, facilmente assimiláveis, em relação às quais somos simultaneamente produtores-espectadoresconsumidores” (ROLNIK, 2006).
Apropriando-se do processo iconofágico proposto por Norval Baitello Junior, observase que o grupo leitor apreciador dessas imagens é, na verdade, consumido por elas à medida que se declara inclinado a aceitar seu teor cultural como modelo. A espetacularização individual Vivemos um período de promoção das subjetividades. Individualmente, servimo-nos dos meios de comunicação para divulgar as mais íntimas características, como se fossem de interesse público. A autopromoção pode ser avaliada como um simulacro, que constitui a hiper-realidade cotidiana coletiva. Em
Simulacros e Simulação, Baudrillard (1981) revela que o Simulacro é uma parte da hiperrealidade ou a visão midiatizada da realidade. É o real espetacularizado. Nunca antes tão em voga, a subjetividade é midiatizada, expressa nas músicas, em camisetas, na frase de efeito publicada numa rede social, na tatuagem que pode ser metamorfoseada a cada estação. Numa sociedade que prioriza a visibilidade e o reconhecimento no olhar alheio, o enaltecimento do corpo humano não é mais que uma conseqüência do excesso de visibilidade. Assim, na sociedade do espetáculo8, a imagem serve como cura para as mazelas particulares, transformando os indivíduos em consumidores hedonistas. Ao analisarmos o impacto que a imagem super-exposta, espetacularizada, causa na vida cotidiana, tomamos como exemplo o conjunto de imagens de personagens cujo teor de visibilidade já se tornou saturado, como artistas e políticos, figuras influentes na sociedade, os olimpianos, cuja imagem considerada projética 9 torna-se o ideal a ser alcançado (MORIN, 1981). O cidadão comum estende sua felicidade na imagem de seu herói, personagem ou ator e justifica sua admiração na identificação humana com o indivíduo olimpiano, que é fotografado em sua fragilidade, tão humano quanto seu admirador. Dessa maneira, o ícone publicado na capa do jornal tem peso idealizado e a alteração não é mais um processo degradante, mas um reposicionamento social, uma projeção ao Olimpo. A subjetividade obtém valor como identidade na capa de
A Sociedade do Espetáculo é uma obra de Guy Debord (1997) sobre a teoria crítica, também descrita por Edgar Morin. Na sociedade midiática espetacularizada, o espectador se retrai ao núcleo familiar e se entrega aos deuses olimpianos, vedetes midiáticas que propõem o modelo ideal de vida. Para Morin (1981), “não há dúvida de que mesmo com o jornal, o rádio, a televisão, o lar nunca foi tanto um outro lugar”, ou um lugar de exercício lúdico. Para Debord (1997, p. 14), “o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens”. 9 Sobre as relações do indivíduo com a imagem, Morin teorizou a projeção e identificação de ícones midiáticos. Segundo o francês, os olimpianos “propõem o modelo ideal de vida de lazer, sua suprema aspiração. Vivem segundo a ética da felicidade e do prazer, do jogo do espetáculo” (idem, p. 75). O corpo-imagem registrado na mídia atua como ícone de projeção e identificação. 8
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jornal, onde o indivíduo mundano ganha ares de VIP10. Na sociedade contemporânea, vemos e somos vistos, mas acima de tudo nos projetamos nas celebridades e queremos saber o que as fazem tão belas e relevantes. Ao observar o comportamento natural desses ídolos, o observador desenvolve uma relação de identificação com suas fraquezas, subjetividades e cotidianidades. Ainda que a identificação seja uma maneira de aproximar a feição do olimpiano ao perfil do cidadão comum, os padrões exigidos para o sucesso dessa relação são cada vez mais altos, tornando a mimese uma atividade difícil. Quando a participação estética ultrapassa o trato com o objeto, transcendendo os limites fotográficos, a relação passa a ser mágica e o objeto ou sua imagem passa a ser percebido como tão real que pode até ser considerado mais real do que o real. A crise do olhar está em não mais querer ver11. Anestesiados por esse bombardeio imagético, leitores ávidos por imagens nem se dão conta de estarem recebendo mensagens visuais quase em tempo integral. Isleide Fontenelle, considerando a sociedade como uma extensão do corpo simbólico e a tecnologia como uma extensão do corpo físico, observa a concepção marxista de expropriação corporal:
nova lógica de mercado, em substituição à era de repressão. O corpo, nesses termos, torna-se refém de uma lógica contraditória que assume o vazio estrutural do social apenas para oferecer imagens que possam tamponar esse vazio historicamente determinado pela aceleração do tempo (FONTENELLE, 2006).
Acima, à direita, a farmacêutica Andressa Z. Lago, fotografada por Kéia Tonin para a capa da edição 18.297 de 9.fev.2010.Abaixo, Folha 2 da mesma edição
o mundo é o corpo do ser humano e que, tendo projetado seu corpo no mundo construído, os homens e as mulheres são eles mesmos descorporificados, espiritualizadados” (SCARRY, 1987, apud FONTENELLE, 2006).
Na sociedade capitalista o corpo é instrumentalizado a partir do que é instituído pelo capitalismo. A “política do gozo” é uma Very Important Person (pessoa muito importante, celebridade ou, no termo de Morin, olimpiano). KLEIN, 2010. Durante aula de apresentação da disciplina 2NIC177 – Imagem e Cultura Midiática – do Programa de Pós-Graduação Stricto sensu (Mestrado) em Comunicação da Universidade Estadual de Londrina.
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O corpo, frágil e sensível, atua como último grande refúgio da imensa e instável subjetividade humana. É ontológico, à medida que se destina a armazenar o sujeito e obedecer a toda medida corretiva que se aplique ao corpo, ou que possa dispor o indivíduo à visibilidade pretendida, à mercê dos olhos. A representação orgânica da individualidade está presente em toda a sociedade ocidental. O corpo abriga o indivíduo e toda a sua necessidade de ser visto, loucamente admirado ou completamente ignorado. Da mesma maneira em que o corpo é enaltecido, é desdenhado de forma agressiva. Sibilia (2008) toma a sociedade da busca pela pureza orgânica como cenário original para a construção de um arquivo, portifólio de belezas corporais, editadas em programas como o Photoshop e outras ferramentas do gênero, criando um ideal de beleza digital. Tal paradigma extrapola as telas, envolvendo o corpo e a subjetividade à medida em que converte as imagens editadas em objetos de desejo e projeção. Essas melhorias são aplicadas sem o menor pudor, abandonando qualquer vínculo com a materialidade e redefinindo a sensualidade num “corpo ícone descarnado e bidimensional” (SIBILIA, 2008, p. 72), produzido para ser visto, consumido visualmente. As novas formas ascéticas resultam numa imagem pura, modelo preenchido pelo imaginário. O corpo ícone 12 é desenvolvido para consumo visual e por ele representado. As imagens corporais são transformadas, plastificadas. Ao atingirem a perfeição, adquirem também um estado de superioridade, tornando-se até mais belas que o corpo real, a hiper-realidade corporal.
Considerações finais Reconhecer a própria imagem e comparála à imagem de outros faz parte do processo de consumo de imagens corpóreas. Atribuir valores estéticos também é parte do processo iconofágico de apreciar imagens. Este trabalho tenta abrir espaços para a discussão sobre a presença da mulher e sua representação corporal na grande mídia sem qualquer intenção moralista. Percebe-se, porém, que atribuir às notícias o caráter mercadológico é parte do fazer jornalístico que inspira a troca entre corpo-imagem – a bela mulher na capa – pela exposição da subjetividade – o “eu” no jornal, como sou, o que posso oferecer. Esse escambo entre a beleza oferecida e a publicidade profissional é flagrado às primeiras páginas do jornal diariamente, certamente características produzidas pelos fotógrafos, redatores e editores das colunas sociais. Este artigo propõe uma reflexão sobre os usos da imagem feminina no contexto do jornal diário e observa a veiculação de imagens corpóreas na capa e no caderno Folha 2 do jornal Folha de Londrina, ressaltando que tal fenômeno ocorre diariamente em diversos veículos informativos, reforçando as construções simbólicas de gênero e sexualidade por meio de fotografias corpóreas. Nota-se também, nas capas do jornal observado e na vinculação de tal conteúdo às colunas sociais do veículo, a transposição do indivíduo comum, o agente social no atributo de suas funções, para um ser mitológico, adquirindo estado de entidade em virtude de seu belo corpo. Estima-se que o corpo retratado nos veículos em geral apresente atualmente uma carga erótica mais forte que em momentos anteriores.
Baudrillard anuncia o assassinato do real (1991) e não mais nos deparamos com as imagens corporais na mídia. Na Era em que o Photoshop recorta e sola os novos modelos corporais, o padrão estético pode ser denominado o simulacro do corpo-imagem. Não é difícil conhecer alguém que se coloca em situação vulnerável solicitando, ao ser fotografado, que sua imagem seja alterada em recurso de edição no computador, ferramenta como o Photoshop.
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A mulher condescendente é vetor da mercantilização entre o corpo-imagem feminino e o espaço publicitário nas capas e colunas sociais da Folha de Londrina, mesmo que de forma indesejada. Infelizmente, tal prática também faz parte do modo de fazer jornalístico de outros veículos. Jornais de relevância nacional trazem na capa cotidiana a pose feminina como engodo para seu conteúdo, muitas vezes sem apresentar junto às fotos o elemento mais importante de um jornal: a informação de interesse público. Esta constatação não põe fim à problemática estudada, mas revela a necessidade de estimular estudos que observem participação do corpo feminino na mídia, o consumo dessas informações e suas implicações na sociedade.
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O Cinema em Sala de Aula: representações da Idade Média em O Nome da Rosa de Jean-Jacques Annaud Edlene Oliveira Possui graduação e mestrado em História pela Universidade de Brasília. Obteve o título de doutor em História pela mesma instituição. Atualmente é professora adjunta da área de Teoria e Metodologia do Ensino de História do Departamento de História da UnB. É ainda coordenadora do Laboratório de Ensino de História da UnB (LABHIS). Publicou o livro Entre a Batina e a aliança: sexo, celibato e padres casados pela editora Annablume além de diversos capítulos e artigos em revistas científicas. Tem experiência na área de História, com ênfase em História Medieval e Ensino de História principalmente nos seguintes temas: relações de gênero, sexualidade, religiosidade, cinema e livro didático.
Resumo
Este artigo discute como a Idade Média representada no filme O Nome da Rosa (Der Name Der Rose, Jean-Jacques Annaud, 1986) constitui um importante meio para o ensino de História Medieval nas escolas. Ao mesmo tempo em que constrói e reforça estereótipos e preconceitos sobre a Idade Média, o cinema pode ser fonte privilegiada de desconstrução desses estigmas, de aprendizagem e conhecimento na área de História, considerando as especificidades da linguagem cinematográfica e as possibilidades interpretativas e poéticas próprias da liberdade inerente à sétima arte. Palavras-chave: Cinema; História; Ensino de História; O Nome da Rosa.
Abstract
This article discusses how the Middle Age depicted in the film The Name of the Rose (Der Name Der Rose, Jean-Jacques Annaud, 1986) is an important means to teach Medieval History at schools. At the same time that it builds and reinforces stereotypes and prejudices about the Middle Age, the movies can serve as privileged source to de-construct these stigmas, enabling the learning of and knowledge about History, considering the specificities of the movies’ language and the interpretative and poetic possibilities ensuing from the freedom inherent to the Seventh Art. Keywords: Movies; History; History Education; The Name of the Rose.
Recebido em: 29/03/2011
Aprovado em: 30/04/2011
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O Cinema em Sala de Aula: representações da Idade Média em O Nome da Rosa de Jean-Jacques Annaud
O estudo da imagem na escola Apesar das pesquisas atuais terem avançado muito na análise das imagens, percebendo-as não apenas como meras ilustrações de textos, o recurso imagético pode ser ainda mais explorado no Ensino de História e, conseqüentemente, na formação do professor, pois os docentes ora aparecem priorizando o documento escrito, ora trabalhando as imagens isoladamente de maneira superficial e inadequada. Ivan Gaskell reflete que embora os historiadores utilizem diversos tipos de material como fonte, seu treinamento em geral os leva a ficarem mais a vontade com os documentos escritos (1992, p.237).
A educadora Áurea Maria Guimarães destaca os benefícios e o aprimoramento do processo formativo dos docentes e dissentes que estudam as questões teóricas e metodológicas do trabalho com imagens. Para ela, a interpretação de uma imagem não é jamais uma descrição literal, pois instiga a a percepção do observador, ultrapassando as diretrizes traçadas pelo educador: “Ser educador hoje é buscar o visível [ou invisível] que se esconde nas imagens da linguagem” (2000, p.8) É interessante observar que, apesar da problematização da especificidade da
linguagem cinematográfica no caso dos filmes históricos1 exibidos em sala de aula, uma preocupação geral dos estudantes e do meio acadêmico diz respeito à fidelidade da reconstituição histórica de uma determinada época (MONGELLI, 2009, p.10). O historiador Louis Gottschaclk, explicita essa preocupação quando afirma que nenhuma película de natureza histórica deve oferecer-se ao público até que um reputado historiador a tenha criticado e corrigido (apud NÓVOA, 2008, p.27).
A veracidade histórica não é um dos critérios que levam o grande público a uma sala de projeção, nem se configura como uma imposição para a linguagem cinematográfica, todavia deveria ser um compromisso social dos grandes diretores que tencionam abordar temas históricos, como foi o caso do filme de Annaud. Uma fonte cinematográfica para se entender a Idade Média Dirigido por Jean Jacques Annaud e baseado no romance homônimo de Humberto Ecco, O Nome da Rosa (1986) é um filme cuja fidelidade histórica à época medieval é ressaltada por muitos estudiosos do cinema. A história se passa em 1327 quando o monge franciscano inglês e ex-inquisidor
Segundo a definição de Barros, estes seriam os filmes que buscam representar ou estetizar eventos ou processos históricos conhecidos, e que incluem entre outras as categorias dos “filmes épicos” e também dos filmes que apresentam uma versão romanceada de eventos ou vidas de personagens históricos ou filmes de ambientação histórica, considerando os filmes que se referem a enredos criados livremente mas sobre um contexto histórico. (2008, p.44)
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William de Baskerville (Sean Connery) e Adso von Melk (Christian Slater), um noviço que o acompanha, chegam a um mosteiro no norte da Itália no qual participariam de um conclave para discutir se a Igreja devia ou não doar parte de suas riquezas. No entanto, a atenção para o evento é desviada devido aos assassinatos que acontecem no mosteiro e que são explicados pelos monges como obra do Demônio, opinião não compartilhada por Baskerville, que começa a investigar os crimes e a solucioná-los lentamente. Jorge Nóvoa considera a versão fílmica de O Nome da Rosa um “retrato da realidade com a máxima fidelidade” (2008, p.30). Tal idéia é reforçada pelo fato da película ser realizada com a colaboração direta de importante equipe de medievalistas, dirigida pelo renomado historiador francês Jacques Le Goff (NÓVOA, 2008, p.30). Todavia, apesar do minucioso trabalho de pesquisa, o medievalista Rivair de Macedo criticou a transposição do romance de Eco para o cinema pois acredita que Annaud optou pela simplificação do enredo complexo da história, alterou o papel de certos personagens e minimizou ou enfatizou certos temas tratados no romance (2009, p.28).
Não pretendo esgotar as possibilidades de diferentes leituras do filme O Nome da Rosa e não é intenção deste artigo fazer comparações valorativas sobre a película de Annaud2 e o romance de Umberto Eco. Ao acompanhar os debates em relação à fidelidade narrativa e histórica do filme, o próprio Eco, no documentário alemão “Die Abtei des Verbrechens” (a Abadia do Crime)3, de 1986, sai em defesa do cineasta afirmando: “o filme que estão fazendo
não é obra minha, é obra de Jean-Jacques Annaud”. Nos créditos de abertura de O Nome da Rosa aparece na tela o aviso: “um palimpsesto da novela de Umberto Eco”. O termo grego palimpsesto refere-se a um manuscrito que foi apagado para que um segundo texto pudesse ser escrito sobre ele, mas com traços do texto original remanescente. Pouco conhecido, sobretudo pelo espectador comum, Annaud diz que o vocábulo foi escolhido em comum acordo com Eco para demonstrar que o filme seria uma interpretação e não cópia fiel do romance (documentário “A Abadia do Crime”). O leitor de uma obra escrita estabelece sua própria interpretação particular de um texto escrito individualmente. Já o espectador de cinema é mediado por uma série de variáveis, pois a produção cinematográfica é uma obra coletiva. Um filme baseado em um romance é a transcodificação deste, “propondo significar visualmente um conjunto de significações verbais” (FLORY; MOREIRA, 2006, p.45). A adaptação cinematográfica de um romance envolve a mediação de uma equipe de pessoas que estão encarregadas do trabalho interpretativo dos atores, da direção de arte (elaboração do cenário, do figurino e maquiagem), do movimento das câmeras em cena pelas variações de plano (foco grande, plano, plano de conjunto), da edição de imagem e som (cortes e montagem), da trilha sonora e da construção do roteiro. Como sublinham Suely Flory e Lúcia Moreira o filme é uma leitura partilhada [...] em oposição ao ato individual de re-inventar os sentidos do texto na qualidade de leitor/recriador da narrativa literária (2006, p.45-46).
Jean-Jacques Arnaud, diretor francês, já tinha experiência na direção de filme de temática histórica. Dirigiu em 1981 “A Guerra do Fogo”, que recebeu vários prêmios na França (dois César, um de melhor diretor e outro de melhor filme). 3 Este Documentário faz parte dos Extras do DVD “O Nome da Rosa”, distribuído pela Warner Home Vídeo - Brasil. 2
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Ainda para as autoras, o tempo é um importante fator de diferenciação entre a linguagem fílmica e literária pois é preciso o trabalho dos roteiristas e diretores para significar a complexidade vertical do tempo da narrativa na complexidade horizontal/espacial do filme (Idem).
Apesar das críticas à versão filmada de “O nome da Rosa”, o cineasta Annaud realizou um projeto ousado cujo objetivo era levar o espectador a conhecer a Idade Média e reconstruir com fidelidade esse momento histórico. “Se Eco, numa determinada cena, diz que um monge deixou cair a batina, eu tinha que mostrar como era a batina, a cor, o desenho, a textura” esclarece Annaud, (documentário “A Abadia do Crime”), ressaltando a responsabilidade e o desafio enfrentado para criar uma reconstituição de época minuciosa. Em busca desse realismo, o Diretor contratou o medievalista francês Jacques Le Goff, além de uma enorme equipe que passou quatro anos preparando cada detalhe do filme. Em uma pesquisa monumental, recolheu mais de 300 livros sobre o século XIV. Passou três anos visitando 300 mosteiros na Itália, Espanha e Reino Unido até encontrar na Alemanha Ocidental, uma abadia cisterniense do século XII (construída em 1145) de arquitetura românica, quase inalterada por 800 anos de existência. Segundo o produtor Bernd Eichinger, a autenticidade histórica era fundamental para um projeto em que “a Idade Média é o personagem principal” (documentário “a Abadia do Crime”). Cada hélice, cada peça de mobiliário e cada livro foi feito à mão na Itália. Carpinteiros esculpiram em carvalhos envelhecidos os bancos para a nave e as mesas do Scriptorium. Dois ilustradores trabalharam durante seis meses 34
na reprodução dos manuscritos ilustrados em latim, grego e árabe, decorado com folhas de ouro em pergaminhos antigos e os desenhos das peças foram submetidos aos historiadores da França para aprovação. Segundo Jacques Le Goff, a pesquisa minuciosa assegurou a veracidade do filme (“Abadia do Crime”). O medievo pela tela: entre o mundano e o divino A primeira cena analisada ocorre quando William, recém acomodado em sua cela, tenta esconder do abade alguns instrumentos que carregava na bolsa (um quadrante, um astrolábio e uma ampulheta). É como se tivesse ocultando algo que pudesse incriminá-lo. Nesta cena percebe-se que na Idade Média os conflitos entre a religião e a ciência eram muito tensos e podiam resultar em uma condenação por heresia e até mesmo a morte na fogueira. A cena pareceu criada especificamente para mostrar esse embate. É uma cena curta, mas extremamente emblemática. No livro de Eco, o personagem Adso fala desse perigo ao comentar sobre os instrumentos que o mestre carregava consigo: “Pensei tratar-se de bruxaria” (ECO, 1986, p.28). Em outra cena, Willian e Adso vão até o Scriptorium para recolher informações sobre os monges mortos e ao chegar lá, a câmera faz um passeio, dando uma visão panorâmica do ambiente. A partir daí o espectador pode ver mesas, cadeiras e instrumentos de trabalho usados pelos monges para “iluminar”, produzir, transcrever, copiar e traduzir os livros. O funcionamento do Scriptorium não é o foco da cena. A parte principal é o debate filosófico entre William e Jorge de Burgos sobre o papel políticoreligioso do riso naquela sociedade. Ou seja, enquanto o espectador tem em primeiro
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O Cinema em Sala de Aula: representações da Idade Média em O Nome da Rosa de Jean-Jacques Annaud
plano uma discussão profunda sobre o caráter revolucionário ou sacrílego da ironia, pode contemplar uma gama de informações sobre como era uma oficina de produção literária nos mosteiros medievais. Aparentemente despretenciosa, a cena mostra as dificuldades do trabalho desses monges, o quanto de esforço humano, habilidade e arte eram empregados para produzir livros. Os monges copistas eram, ao seu modo, verdadeiros artistas. A sequência curta, mas carregada de sentido, mostra ainda quanto a Idade Média é uma época de contrastes. A mesma Igreja que tenta controlar com “mão-de-ferro” a produção e a difusão do conhecimento, também reserva um espaço e seus melhores homens para a preservação e produção do conhecimento. A película ajuda problematizar o mito da Idade Média como “Idade das Trevas”, um retrocesso se comparada a Antiguidade Clássica e um atraso em relação à Idade Moderna e à contemporaneidade. É importante lembrar que a fronteira que separa o medievo da Idade Moderna é arbitrária e só se justifica por questões metodológicas, pois inúmeros conceitos, representações e instituições considerados modernos são originários da tradição medieval. Um exemplo notório é o conceito de universidade surgido e implementado no século XIII. Essas ponderações não significam defender uma interpretação ancorada na idéia de que não houve transformações da Idade Média para a Idade Moderna e que, portanto, deveríamos valorizar apenas as permanências. É claro que houve mudanças, mas também continuidades e atualizações. Muitas práticas medievais foram adaptadas, ressignificadas e reelaboradas a partir das necessidades modernas. Nesse sentido, a Idade Média deixa de ter um significado obscurantista, sinônimo de
coisa ultrapassada, irracionalidade e barbárie para ser um período de diversidades de idéias, inclusive de experimentação científica como demonstram os inúmeros manuscritos de medicina, matemática, astronomia, alquimia, geometria e arquitetura produzidos no medievo. A medievalista francesa Regine Pernoud argumenta que no século XIII já se conhecia a pólvora de canhão, o uso das lentes convexas e côncavas, o álcool, o ácido sulfúrico, o ácido clorífico e o ácido azótico (1996, p.157). Já Jacques Le Goff vai mais longe e afirma que o medievo é o momento de criação da sociedade moderna (1985, prefácio). No embate do Scriptorium podemos ainda notar na sociedade medieval as visões antagônicas sobre o riso que traduzem, em certa medida, os conflitos entre os âmbitos sagrado e profano que balizam todo o medievo. Uma das perspectivas do riso é representada por Jorge de Burgos, o ancião, espécie de guardião do conhecimento beneditino, que vê o riso ou a alegria como algo demoníaco, fonte de perversão, pecado e dúvida sobre a legitimidade da Igreja e da existência de Deus, como descrito na fala de Jorge, ao responder à Willian o que havia de tão alarmante no riso: “O riso mata o temor. E sem o temor, não pode haver fé. Porque se não se teme ao demônio não há mais necessidade de Deus”. Percebe-se nesse diálogo claramente a rigidez e a ortodoxia da Ordem Beneditina, representada por Jorge, em relação ao pensamento Franciscano, defendido por Willian. Ao destacar as diferenças de pensamento dentro da Igreja, o educador pode demonstrar a complexidade de uma instituição formada por diferentes tradições por meio de contrastes e conflitos internos. Para fundamentar seu argumento, Jorge de Burgos afirma que Jesus Cristo
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nunca riu e nem utilizou a comédia na sua pregação. Lembro que no medievo o riso era concebido uma característica que marcava a inferioridade do homem diante de Deus e a sua diferença e superioridade sobre outros animais (SUCHOMSKY apud ALBERTI, 1995, p.05) A interpretação de Jesus como mártir influenciou boa parte do discurso repressor e dogmático de várias correntes da Igreja. Se Cristo se deu em imolação para redimir os pecados da humanidade, o prazer e o riso deveriam ser evitados sob pena de ofender a experiência sacrificial do Messias. A certa altura Jorge argumenta que “o riso é uma brisa demoníaca que deforma os traços do rosto e faz os homens parecerem com os macacos”. Le Goff e Truong (2006, p.76) lembram que no imaginário medieval, a divisão espacial do corpo entre cabeça e tronco estabelecia uma hierarquia de valores na qual o ventre estaria relacionado aos apetites da carne. O riso vulgar, licencioso, é chamado “abaixo da cintura”, ou seja, próximo à pélvis e por isso associado ao prazer sexual, totalmente condenável para monges celibatários. Rompendo com essa perspectiva, Willian via o riso como parte essencial do homem podendo ser utilizado tanto para a transgressão como para a edificação cristã. Trata-se da libertação da carga negativa do riso, mas não da exigência do seu controle. O mais interessante e crucial é que Willian cita o pensamento de Aristóteles para justificar seus argumentos representando a imagem de um clérigo esclarecido que busca preservar e interpretar o conhecimento clássico à luz do cristianismo. Bruxaria e Heresia: a diabolização da mulher e das heterodoxias Em outro trecho do filme, um monge é flagrado pelo inquisidor preparando um ritual 36
de magia no interior do mosteiro no qual aparece um gato preto, uma galinha e uma mulher camponesa. A narrativa deixa claro que a saliva da mulher é um dos elementos rituais utilizados pela feitiçaria arquitetada pelo monge. Porém ela é vista como culpada, em uma indicação de como no medievo as mulheres eram frequentemente associadas aos pecados da carne e à bruxaria, um crime considerado tipicamente feminino. Acusada de desvirtuar o comportamento do monge, a mulher é julgada e condenada à fogueira. Esta é uma cena importante, pois evidencia a idéia hegemônica do sexo feminino como um ser maléfico e perigoso. O filme aponta claramente que os monges se fartavam de favores sexuais e do “auxílio mágico” de mulheres pobres em troca de comida. Todavia, em uma inversão de papéis, ela é vista como a aliciadora de membros do clero, induzindo-os à luxúria e à fetiçaria. Na Idade Média, a vítima do Diabo e sua principal agente era a mulher, cujo pendor para o mal é respaldado pela tradição cristã, desde que o mito do pecado original atribuiu à Eva a expulsão do Paraíso e a queda da humanidade. No Eclesiastes está prescrito que: “pouca maldade é comparada a da mulher, caia sobre ela a sorte dos pecadores (25: 19, p.1281) ; “foi pela mulher que começou o pecado, por sua culpa todos morremos” (25: 24, 1282). Tomás de Aquino lembra a tendência da mulher ao mal, sublinhando sua subalternidade ao homem, sua imperfeição, sua debilidade e a facilidade de ser corrompida, o que justifica o controle e a vigilância sobre o comportamento feminino: “A mulher é um macho deficiente. Não é então surpreendente que este débil ser, marcado pela imbelicitas de sua natureza, ceda as seduções do tentador, devendo ficar sob tutela”. (São Tomas de Aquino. Suma Teológica I, quesão 92, q.93 e q. 99p.79).
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O fato da camponesa não se pronunciar em nenhum momento do filme pode ilustrar bem o silenciamento e o papel subalterno do feminino na Idade Média Mas a grande ligação entre a mulher e o Demônio é a sua natureza sexual e mundana que a torna uma criatura extremamente sedutora, encantadora e lasciva, atributos que utiliza para levar o homem à luxúria. O compêndio medieval Malleus Maleficarum, escrito em 1484, é um verdadeiro tratado misógino que alerta os sacerdotes e os leigos sobre os ardis demoníacos da mulher: “Toda bruxaria tem origem na cobiça carnal, insaciável nas mulheres” (KREMER; SPRENGER, 1991, p. 121), portanto era “maior o contingente de mulheres que se entregam a essa prática, inclusive as predispondo à cópula com o demônio” (Idem, Ibidem, p.84). As perversões sexuais masculinas seriam exceções “porque sendo intelectualmente mais fortes que as mulheres são mais capazes de abominar tais atos” (idem, ibidem, p.332). Essa visão é confirmada no filme pelo personagem Urbertino de Casale, um franciscano que se exilou no mosteiro e a certa altura alerta Adso: “Havia algo feminino, algo diabólico no jovem que morreu. Ele tinha os olhos de uma moça buscando relações com o Diabo”. Como se observa na cena do julgamento da mulher e dos dois monges, os processos inquisitoriais contra feitiçaria seguiam um script que induziam os acusados a assumir a culpa publicamente sob a justificativa de serem influenciados pelos ardis demoníacos: os réus repetiam mais ou menos os estereótipos inquisitoriais então divulgados na Europa pela boca de pregadores, teólogos, juristas, etc (GINZBURG, 1991, p. 206).
Retratando muito bem a misoginia medieval, o filme ainda aborda uma visão
idealizada e santificada do feminino, não menos mediada pelo olhar patriarcal. Quando Adso, após manter relações sexuais com a camponesa, pergunta a Willian o que acha do amor por uma mulher, ele responde: “acho difícil convercer-me que Deus tivesse criado um ser tão vil sem dotá-lo de algumas virtudes”. O mestre franciscano admite, assim como muitos pensadores da época, que o feminino também poderia ser virtuoso. Aliás, no filme o personagem mais coerente com a filosofia fraternal do cristianismo é o neófito Adso, que se apaixona pela mulher e se compadece de sua situação miserável, sem ao menos saber seu nome. A virtude feminina geralmente estava relacionada à sua castidade e o maior arquétipo dessa pureza foi consagrado pela imagem da Virgem Maria. Em diálogo entre Adso e Urbetino de Casale, este aponta a Virgem Maria e diz: Ela é linda, não é? Quando uma fêmea, por natureza tão perversa, torna-se sublime por santidade, então ela pode ser o nobre veículo da graça.
Em outra cena Adso roga desesperado, aos pés de uma imagem da Virgem Maria, clamando por um milagre que salve a camponesa, condenada injustamente a ser queimada na fogueira. Maria na Idade Média é representada como modelo feminino de perfeição e santidade, considerada a redentora de Eva que veio a mundo com a missão de livrá-la da maldição do Pecado Original, como assinala o bispo Irineu de Lyon (130-200): foi precisamente por meio de uma virgem transgressora [Eva] que a humanidade foi ferida e tombou, mas foi por outra Virgem [Maria] que, por ter obedecido à palavra de Deus, a humanidade ressuscitada recebeu vida (apud PELIKAN, 2000, p.67).
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Como virgem que deu a luz e se manteve imaculada, Maria é o arquétipo a ser seguido pelo feminino medieval, ou seja, o da mãe que deve procriar sem se entregar ao prazer. Se a condenação à bruxaria tinha o objetivo de combater rituais pagãos, perseguindo assim outras formas de prática espiritual, a perseguição às heresias deveria evitar qualquer desobediência interna aos ditames da ortodoxia cristã definidos pela Cúria Romana. No filme vemos o embate entre o ideal de pobreza dos frades franciscanos que travam uma acalorada discussão com os ricos membros do papado. Ameaçada de ser considerada herética em vários momentos, a Ordem franciscana continuou submetida à autoridade da Igreja, mas influenciou inúmeros movimentos mendicantes combatidos como seitas heréticas por discordar de dogmas fundamentais da fé católica. Um desses movimentos mencionados no filme é do Dolcinianos do qual faziam parte o corcunda Salvatore e o despenseiro Remígio. Inspirados nos ideais franciscanos, os também conhecidos como Dolcinitas pregavam uma vida de renúncia e pobreza e seu líder foi queimado como herege por ordem do Papa Clemente V, em 1307. Assim como diversos clérigos medievais, Salvatore e Remígio ingressaram em ordem reconhecida pelo papado (beneditinos) e viviam tentando esconder seu passado, temerosos de serem condenados a morte pela Santa Inquisição. Esse aspecto abordado pelo filme possibilita ao educador trabalhar o surgimento da Inquisição na Idade Média. Criada, em meados do século XIII, justamente para reprimir as heresias (termo em grego que significa opinião, escolha, preferência), a Inquisição assegurou o poderio institucional da Santa Sé pela brutal coerção de todos aqueles que, aos olhos os inquisidores, não se enquadravam nos limites estabelecidos pela religião oficial. 38
Como “fábrica de sonhos”, o modelo de cinema para o grande público consagrado pela indústria norte-americana tem certas regras “infalíveis” de sucesso e a romantização dos personagens é uma delas. Entretanto, esse detalhe não invalida a qualidade do filme enquanto valioso documento para se compreender o medievo. Cabe ao professor apontar inclusive esses paradoxos para reforçar a idéia do cinema como fonte histórica, sujeita como qualquer outra, as condições de produção impostas pelo contexto em que foi criada. Referências Bibliográficas ALBERTI, Verena. O riso, as paixões e as faculdades da alma. Revista de Pós-Graduação em História da UnB, volume 3, número 1, 1995, p.5-25. BAKHTIN, M. M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec; Brasília: Ed. da UnB, 1993. BARROS, José D’Assunção. Cinema e História: entre expressões e representações. In: CinemaHistória: Teoria e representações sociais no Cinema. Rio de Janeiro: Ed. Apicuri, 2008. DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. ECO, Umberto. O Nome da Rosa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983. FEIJÓ, Mario. Quadrinhos em ação: um século de história. São Paulo: Moderna, 1997. FERRO, Marc. História: novos objetos. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1995. FLORY, Suely Fadul Villibor; MOREIRA, Lúcia C. M. de Miranda. Uma leitura do trágico na minissérie os Maias: a funcionalidade dos objetos na trama ficcional. São Paulo: Arte e Ciência editora, 2006. GASKELL, Ivan. História das imagens. In: BURKE, Peter. A escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: Unesp, 1992. GUÉNON, René. Símbolos Fundamentais da Ciência Sagrada. São Paulo: Ed. IRGET, 2008.
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Estudos Visuais: principais autores e questionamentos de um campo emergente Éverly Pegoraro Jornalista e professora do Departamento de Comunicação da Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro) em Guarapuava, Paraná. Mestre em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e doutoranda em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com a pesquisa intitulada “No Compasso do Tempo Extraordinário: os Steampunks e as visualidades de uma nostalgia retrofuturista”. Autora do livro Dizeres em Confronto: a Revolta dos Posseiros de 1957 na imprensa paranaense (2007).
Resumo
Este artigo apresenta a proposta dos Estudos Visuais e alguns de seus principais pesquisadores. O campo emergente e polêmico de pesquisa centra suas análises na construção cultural do visual em artes, mídia e até mesmo na experiência da vida cotidiana. Mesmo com toda a polêmica entre os adeptos dos Estudos Visuais, o que interessa salientar são as suas propostas. Não se trata apenas de pesquisa no campo da história das imagens, mas de refletir sobre as formas pelas quais a Cultura Visual – nos seus mais variados processos e produtos – é elaborada, consumida e circula para reforçar ou resistir a articulações dos mais variados objetivos: políticos, econômicos, culturais etc. Pode-se dizer que é uma abordagem influenciada pelos Estudos Culturais, a partir da relação entre visibilidade e discurso. Palavras-chave: Estudos Visuais; cultura visual; estudos culturais.
Abstract
This paper presents the proposal of Visual Studies and some of their main researchers. The controversial and emergent field of research centers its studies on the cultural construction of visual in Arts, Media and even in the daily experiences. Even with all the controversy among the adepts of Visual Studies, what it’s important to emphasize are their proposals. They’re not just researches on the field of History of Images, but studies about the ways which the Visual Culture – on its various processes and products – are created, consumed and circulate to reinforce or resist to linkages of the most various objectives: political, economical, cultural etc. We can say it’s an approach influenced by Cultural Studies, since the relation between visibility and discourse. Keywords: Visual Studies; visual culture; cultural studies.
Recebido em: 19/03/2011
Aprovado em: 01/05/2011
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Estudos Visuais: principais autores e questionamentos de um campo emergente
Como as relações entre visualidade, visibilidade e poder transformam nosso universo de compreensão simbólica? Quais as implicações das nossas experiências visuais, em um mundo cada vez mais centralizado no olhar? Essas são algumas das inquietações que motivaram a sedimentação da proposta dos Estudos Visuais. Este texto objetiva apresentar alguns dos seus principais pesquisadores, das suas conceituações e problemáticas. Como todo campo de estudo em estágio embrionário, ou seja, em construção, as divergências, as críticas e os questionamentos são tão ou mais fortes que as certezas que ele lança em seu caminho. A primeira delas refere-se à própria denominação. Estudos Visuais, Cultura Visual ou Estudos da Cultura Visual são os nomes que o emergente campo já recebeu de seus principais interlocutores. Uma das denominações mais comuns é fornecida pelo professor americano W.J.T. Mitchell (2003). Para ele, os Estudos Visuais referem-se ao campo de estudo, enquanto que Cultura Visual é o objeto. Assim, Estudos Visuais são o estudo da Cultura Visual. O campo emergente e polêmico centra suas análises na crítica à construção cultural do visual em artes, mídia e até mesmo da experiência na vida cotidiana, enfocando a formação social do campo visual ou a sociabilidade visual. Já o professor Nicholas Mirzoeff prefere a denominação Cultura Visual, sobretudo devido ao “peso” que a palavra cultura tem para a área de estudo. Para ele, críticos e
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demais interessados no assunto devem ter a cultura como primeiro plano, sem esquecer da questão política inerente a tudo o que fazemos. Ele chama a Cultura Visual como a interface entre todas as disciplinas que lidam com a visualidade no contemporâneo. Para o autor, a Cultura Visual precisa se posicionar como um estudo crítico da genealogia e da condição da cultura da visualidade global. E a própria ideia de globalização já é um indício da expansão que Mirzoeff faz dos objetos da tradicional História da Arte para o novo campo. Programas e canais de TV globais, infraestruturas visuais globais, como o cabo e o satélite, e a internet são exemplos que se enquadram nas novas possibilidades (e necessidades) de estudo (DIKOVITSKAYA, 2006). Em trabalho mais recente, Marquard Smith (2008) prefere a caracterização de Estudos da Cultura Visual, por acreditar que esta expressão define melhor a “empreitada híbrida, inter ou multidisciplinar” formada como consequência da convergência, ou empréstimo, de uma variedade de disciplinas e metodologias. Divergências à parte, ficamos com a denominação de Mitchell por referir-se, de forma mais abrangente, à proposta de um novo campo de estudo. Marcas de um surgimento Para Mirzoeff (2002), a emergência de uma área transdisciplinar de estudo se fez
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Estudos Visuais: principais autores e questionamentos de um campo emergente
possível devido à convergência possibilitada principalmente pela tecnologia digital e as muitas possibilidades abertas pelo multimídia. Aliás, o autor aposta justamente na adoção de múltiplos pontos de vista para entender causas e efeitos da cultura visual na contemporaneidade. Ele diz que a intenção dos pesquisadores da visualidade moderna de delimitar efeitos imprevisíveis dos eventos visuais em parâmetros “geométricos e claros” deriva do formalismo histórico da arte, da vigilância panóptica ou da teoria de Lacan. Mirzoeff sugere aos Estudos Visuais manter suas conexões com os Estudos Culturais, objetivando encontrar maneiras de interagir com práticas visuais e políticas culturais nas suas vastas áreas de interesse. Cultura Visual implica a mediação na cegueira, o invisível, o despercebido, e o que não é possível de ser visto. (MIRZOEFF apud DIKOVITSKAYA, 2006, p. 60) Aliás, o caráter inter(ou trans)disciplinar marca o próprio surgimento dos Estudos Visuais. O campo consolidou-se a partir da década de 1990, nos Estados Unidos e na Inglaterra. A título de exemplo, dois programas pioneiros surgiram a partir da colaboração entre docentes oriundos de diferentes áreas do conhecimento, como História da Arte, Literatura e estudos de Cinema: o programa de Estudos Culturais e Visuais da Universidade de Rochester e o programa de Estudos Visuais da Universidade da Califórnia, Irvine (UCI). Os Estudos Visuais também são marcados por problemáticas teóricas e metodológicas, principalmente com os historiadores da arte. Anna María Guasch (2003) os conceitua como interdisciplinar, relativista e alternativo 1
ao caráter “disciplinar” de boa parte das disciplinas acadêmicas, entre elas, a História da Arte. Mas a historiadora ainda vê uma estreita relação da Semiótica com os Estudos Visuais. O que interessa não é buscar o valor estético da “alta cultura”, mas examinar o papel da imagem na vida da cultura ou, em outras palavras, considerar que o valor de uma obra (e a autora faz questão de incluir tanto uma imagem de televisão como uma obra de arte, no sentido tradicional de compreensão) não procede (somente) de suas características intrínsecas e imanentes, mas também de apreciação de seu significado, tanto no horizonte cultural de sua produção como da recepção. Para Margaret Dikovitskaya (2006), os Estudos Visuais são orientados pelas tendências do pós-estruturalismo e dos Estudos Culturais. Segunda a autora, o campo leva em consideração questões que a História da Arte desconsidera e que podem caracterizar uma nova historiografia de cunho interdisciplinar. Ela aponta três grupos de pesquisadores com perspectivas conceituais diferentes. O primeiro vê os Estudos Visuais como uma apropriada expansão da História da Arte. Já o segundo vê o novo foco independente dessa disciplina e mais próxima às análises das tecnologias da visão relacionadas a era digital e virtual. Finalmente, o terceiro considera os Estudos Visuais como um campo que ameaça e conscientemente desafia a tradicional disciplina da história da arte. As problemáticas ganharam consistência e relevância acentuada em 1996, quando a revista October publicou o Questionnaire on Visual Culture 1 , uma enquete com
Questionnaire on Visual Culture. October, 1996, v. 77, p. 25-70. Responderam ao questionário os seguintes teóricos: Svetlana Alpers; Emily Apter; Carol Armstrong; Susan Buck-Morss; Tom Conley; Jonathan Crary; Thomas Crow; Tom Gunning; Michael Ann Holly; Martin Jay; Thomas Dacosta Kaufmann; Silvia Kolbowski; Sylvia Lavin; Stephen Melville; Helen Molesworth; Keith Moxey; D. N. Rodowick; Geoff Waite; Christopher Wood.
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quatro perguntas feitas a historiadores de arte e de arquitetura, teóricos do cinema, críticos literários e artistas. A preocupação do jornal, à época, era com o propósito da produção cultural na esfera pública e nas relações das práticas culturais com estruturas institucionais. De acordo com Dikovskaya (2006, p. 17-8), de uma forma claramente antipática aos Estudos Visuais, o autor (anônimo) sugeriu que a cultura visual estava organizada no modelo da Antropologia e posicionada como antagonista à História da Arte. O questionário avisava que o campo estava ajudando a produzir assuntos para o próximo estágio do capital globalizado, a partir da concepção do visual como “imagem desencarnada”. Mesmo com a conotação negativa, a autora acredita que este “batismo de fogo” foi necessário. Ele não eliminou o interesse pela nova área de pesquisa, pelo contrário, ajudou os seus proponentes a articular posições e, assim, contribuiu para o crescimento teórico. Diferentes opiniões e rotas acadêmicas exerceram pressão crescente para que o novo campo definisse a si mesmo como distinto de outros. Tais debates acabam por produzir interessantes reflexões epistemológicas sobre os determinantes do nosso olhar e ver, das práticas de visão e observação, e de como é possível articular isso em termos de questões de (trans)disciplinaridade, de pedagogia e, principalmente, da constituição dos objetos da Cultura Visual. No artigo Mostrando el Ver: una crítica de la cultura visual2, Mitchell (2003) faz um balanço e responde a algumas das críticas feitas ao que chama de “campo emergente
de investigação e pedagogia”, principalmente questionando sua independência ou dependência à História da Arte e à Estética. Para início, o autor diz ser necessário fazer três perguntas “aborrecidas e abstratas que toda disciplina realiza para se estabelecer como tal”: qual o objeto de investigação dos estudos visuais; quais são os limites e as definições encarregadas de definir tal campo; e, neste sentido, um campo ou simplesmente um momento de turbulência interdisciplinar em meio a tantas transformações dentro da História da Arte, da Estética e dos estudos midiáticos. ... los estudios visuales no son meramente una “indisciplina” o un suplemento peligroso para las disciplinas que abordan el asunto de la visión desde una óptica tradicional, sino que, más bien, exigen ser contemplados como una “interdisciplina” que se vale de sus fuentes y de aquellas otras disciplinas para construir un nuevo objeto de investigación específico. (MITCHELL, 2003, p. 39-40).
O autor questiona se os Estudos Visuais seriam a parte visual do movimento dos Estudos Culturais. Para ele, a grande virtude do novo campo é nominar uma problemática em vez de um objeto teórico bem definido. Diferente do feminismo, estudos de gênero, raça e etnicidade, não se trata de um movimento político, nem mesmo um movimento acadêmico como os Estudos Culturais 3 . Mitchell não nega o débito para com os estudos em gênero e étnicos, e para com os próprios Estudos Culturais. Os Estudos Visuais não existiriam sem tais influências; mas também não existiriam sem a Psicanálise, a Semiótica, a Linguística, a Teoria Literária, a Estética, a Antropologia, a História
O artigo foi originalmente publicado em inglês: MITCHELL,W.J.T. Showing seeing: a critique of visual culture. Journal of Visual Studies (London), v.1, n.2, p. 165-82, 2002. 3 Nicholas Mirzoeff caracteriza os Estudos Visuais como tática e Mieke Bal como movimento. Cf. Smith (2008, p. 13, nota 10). 2
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da Arte, os estudos de Cinema, argumenta (MITCHELL, 1995). Mesmo com toda a polêmica entre os seus adeptos, o que interessa salientar são as suas propostas. Não se trata de mais um estilo de pesquisa no campo da história das imagens, e sim de pensar nas formas pelas quais as imagens, através de interesses específicos, são produzidas, circulam e são consumidas, com o objetivo de reforçar ou resistir a articulações com os mais variados objetivos políticos, econômicos, culturais etc. Pode-se dizer que é uma abordagem influenciada pelos Estudos Culturais, a partir da relação entre visibilidade e discurso. Os Estudos Visuais questionam como e por que as práticas de ver (visualidade e visibilidade) têm transformado nosso universo de compreensão simbólica, nossas práticas de olhar, nossas maneiras de ver e fazer. Da virada cultural à virada pictórica A “virada cultural” proposta pelos Estudos Culturais enfatiza as práticas sociais e suas relações como práticas de significado. Jessica Evans e Stuart Hall (1999, p.2), contudo, reconhecem que um certo privilégio do modelo lingüístico no estudo da representação tem conduzido ao pressuposto de que os artefatos visuais são fundamentalmente os mesmos. Os autores salientam, então, que no campo dos estudos da imagem, não se pode voltar a pressupostos “pré-semióticos”, não se pode pensar na experiência social como existindo em um domínio pré-linguístico, abstraído dos sistemas de significado os quais de fato a estruturam. Os Estudos Visuais, por sua vez, foram impulsionados pelo que Mitchell (2009) 4
denominou “virada pictórica” em sua obra Teoría de la Imagen4. Para ele, a imagem tem adquirido um caráter que a situa a metade do caminho entre o que Thomas Kuhn chamou de um ‘paradigma’ e uma ‘anomalia’, aparecendo como um debate fundamental nas ciências humanas, do mesmo modo que já o fez a linguagem. Para Mitchell, mesmo situando a imagem no que se costuma chamar de a era do espetáculo (Guy Debord), ou de vigilância (Michel Foucault), ainda não se sabe que são as imagens, qual é a sua relação com a linguagem e como operam sobre os observadores e sobre o mundo, como se deve entender sua história e o que se deve falar com, ou acerca, delas. A aproximação dos Estudos Visuais para com os Estudos Culturais deve-se, entre outros fatores, à compreensão da cultura como um campo de diferenças sociais e lutas, como um espaço de contestação e conflito de práticas de representação erguidas com os processos de formação e re-formação de grupos sociais. A proposta empenha-se, então, em compreender o que as práticas discursivas visuais propiciam em diferentes grupos sociais e como elas constroem e participam da vida das pessoas. Mitchell (2009) mostra como o estudo do campo visual é transformado pelas diversas possibilidades de ação do espectador (o olhar, o fixar o olhar, as práticas de observação, de vigilância, de prazer visual), as quais podem ser tão problemáticas quanto várias formas de leitura (decifração, decodificação, interpretação etc.). Dessa forma, a experiência visual ou alfabetização visual pode não ser completamente explicável pelo modelo de textualidade. Ele sugere, então, pensar a Cultura Visual em termos
Versão em espanhol da obra originalmente escrita em inglês. Cf. MITCHELL, W.J.T. Picture Theory. Chicago and London: University of Chicago Press, 1994.
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de combinações historicamente específicas de significados e temas – as quais seriam resultantes de “regimes escópicos”. Na sequência à proposta de “virada pictórica” de Mitchell na década de 1990, ganha destaque a expressão “virada visual”, do historiador de arte Martin Jay. Em seu artigo “Relativismo cultural e a virada visual”5, ele centraliza-se no questionamento sobre o papel do visual, seja na confirmação ou na transcendência do que veio a ser chamado “relativismo cultural”. Para Jay, a mediação técnica e cultural da imagem é um fator decisivo para caracterizar a construção discursiva, textual ou institucional de imagens, derrubando o que ainda possa existir de argumentos a favor de um estatuto natural, universal ou transcendental da imagem. Entretanto, ao mesmo tempo em que a imagem desvincula-se das noções ingênuas de analogismo direto ao seu objeto, suas práticas de decodificação ainda apóiamse em pesquisas lingüísticas. A cultura visual, em outras palavras, chegou perigosamente perto de ser transformada em uma filial do conglomerado dos estudos culturais, nos quais o ocularcentrismo é atropelado pelo logocentrismo, e a autonomia da experiência visual é denunciada como uma ideologia ultrapassada da arte do alto modernismo. (JAY, 2002, p. 18)
O autor vê com prudência a redução da experiência visual natural a suas mediações culturais. Ele insiste no reconhecimento de que a visão está enredada na psique como uma forma de limitar uma abordagem exclusivamente culturalista. Cita o cinema
mudo como exemplo da capacidade do visual de se libertar de restrições lingüísticas e culturais. Isso não quer dizer, apresso-me a acrescentar, que as imagens podem voltar a ser vistas como signos naturais não mediados, que podem ser despidas de toda a sua codificação cultural. Penso antes que, por mais que elas sejam filtradas conotativamente pelo campo magnético da cultura, permanecem excessivas com relação a ele. [...] Na verdade, muito do poder das imagens, podemos conjecturar, vem precisamente de sua capacidade de resistir à subsunção completa sob os protocolos de culturas específicas. (JAY, 2002, p. 23-4)
Anna María Guasch, em seu célebre artigo Los Estudios Visuales – Un Estado de la Cuestión, considera o conceito formulado por Mitchell fundamental para o desenvolvimento dos Estudos Visuais. Depois do “giro lingüístico”6 inspirado nas reflexões do filósofo Richard Rorty, e do “giro semiótico”, proposto por Norman Bryson e Mieke Bal, ela acredita que a proposta Mitchell deslocou a ênfase para o lado social do visual, assim como para os processos cotidianos de olhar os outros e ser olhado por eles. En ningún caso este giro de la imagen significaría, a juicio de Mitchell, un retorno a las cuestiones naives de parecido o mímesis ni a las teorías de la representación: se trata más bien de un descubrimiento postlinguístico y postsemiótico de la imagen (picture), una compleja interacción entre la visualidad, las instituciones, el discurso, el cuerpo y la figuralidad, y sobre todo es el convencimiento de que la mirada, las prácticas de observación y el placer visual unidas a la figura del
Publicado originalmente em inglês: JAY, Martin. Cultural relativism and the visual turn. Journal of visual culture (London), v. 1, n. 3, 2002, p. 267-79. Traduzido para a revista Aletria por Myriam Ávila, conforme referências. 6 O termo linguistic turn, do filósofo Richard Rorty, ganhou força a partir do final da década de 1950, e pode ser entendido como o momento em que modelos de textualidade e discursos passaram a ganhar destaque na crítica das artes e das formas culturais. Cf. KNAUSS, Paulo. O desafio de fazer História com imagens: arte e cultura visual. Artcultura – Revista do Instituto de História da UFU, v. 8, nº 12, Uberlândia, p.97-115, (2006). 5
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Neste sentido, diz Guasch, as teorias de Mitchell se complementam com as de Jonathan Crary, que analisa a transformação histórica do conceito de visão (CRARY, 1990). As novas relações entre um “sujeito que observa” (o espectador) e um “objeto observado” (a imagem visual) levam Mitchell a conceber uma teoria da visualidade que aborda o feito da percepção não apenas do ponto de vista fisiológico mas também em sua dimensão cultural. Uma das afirmações polêmicas da obra Teoría de la Imagen, considera Mitchell (2009, p. 12), é que todos os meios são mistos e todas as representações são heterogêneas; não existiriam as artes ‘puramente’ visuais ou verbais. Lo que quiera que sea el giro pictorial, debe quedar claro que no se trata de una vuelta a la mímesis ingenua, a teorías de la representación como copia o correspondencia, ni de una renovación de la metafísica de la ‘presencia’ pictórica: se trata más bien de un redescubrimiento poslingüístico de la imagen como un complejo juego entre la visualidad, los aparatos, las instituciones, los discursos, los cuerpos y la actividad del espectador (la visión, la mirada, el vistazo, las prácticas de observación, vigilancia y placer visual) puede constituir un problema tan profundo como las varias formas de lectura (deciframiento, decodificación, interpretación, etc.) y que puede que no sea posible explicar la experiencia visual, o el ‘alfabetismo visual’, basándose sólo en un modelo textual.” (MITCHELL, 2009, p. 23)
Cada um dos fatores apontados por Mitchell (visualidade, aparatos, instituições, corpos e figuralidades) indica um complexo jogo de práticas que torna possível a imagem e a sua capacidade de exprimir significado,
e cada um dos quais requer sua própria conceitualização. Na obra Visual Culture: the reader, Stuart Hall e Jessica Evans (1999, p. 4) minuciam cada um desses elementos, partindo da reflexão entre “a capacidade da imagem de significar e as capacidades subjetivas do sujeito para ‘captar’ e produzir significados”. Dessa forma, a visualidade refere-se ao registro visual no qual a imagem e o significado visual operam. Os aparatos são as mídias ou os meios crescentemente sofisticados e complexos pelos quais as imagens são produzidas e circulam. As instituições referem-se às relações sociais organizadas da produção e circulação de imagens. Corpos lembram não apenas os sujeitos privilegiados nas imagens, mas a presença do observador como o “outro” necessário no circuito visual de significado e cujas condutas as imagens regulam. A figuralidade indica a posição privilegiada da imagem em relação a representar ou “figurar” o mundo para nós em forma pictórica (EVANS & HALL, 1999, p. 4-5). A leitura dos Estudos Visuais de Guasch é mais conservadora e estreitamente relacionada à História da Arte pela própria formação da pesquisadora. Ela é Catedrática de História da Arte da Universidade de Barcelona e crítica de arte. Talvez, por isso, seus comentários sobre as obras de Mirzoeff e Evans & Hall não sejam tão positivos. Para ela, em ambas as análises, a Cultura Visual é entendida como uma espécie de “caixa de miscelâneas” na qual questões diversas como de gênero, raça, identidade, sexualidade e até mesmo pornografia e ideologia convivem com questionamentos mais específicos de visualidade. Além disso, critica a postura “trans ou pós-disciplinar” de Mirzoeff, alegando que a visualidade compreendida pelo autor deve ser considerada mais como
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uma estratégia derivada de uma ampla liberdade epistêmica do que uma ferramenta metodológica. En este sentido mientras Evans y Hall ponen el acento en las metáforas visuales y las terminologías del ‘mirar’ y del ‘ver’, las que derivan de la sociedad del espectáculo y el simulacro, de las políticas de la representación, de la mirada masculina, del fetichismo y del voyerismo, con un especial hincapié en las reflexiones sobre la visualidad de Barthes, Benjamin, Lacan o Foucault, la propuesta de Mirzoeff se sitúa más cerca de los Estudios Culturales que de los Visuales. (GUASCH, 2003, p. 14)
Ao mesmo tempo, porém, Guasch (2003) acredita que esse “passo” de uma história da arte para uma história das imagens, seguindo desenvolvimentos teóricos e metodológicos compartilhados de outras disciplinas, como a literatura, mostra-se como um conhecimento comprometido com as atitudes e os valores implicados na produção imagética. Experiências visuais como evidências de práticas sociais Os debates sobre as determinações culturais da experiência visual, em sentido mais amplo, despontam em fins da década de 1980, por mais que previsões já existissem com alguns historiadores de arte, críticos culturais e até mesmo críticos literários. A centralidade epistemológica da cultura implica dizer que ela é condição constitutiva de práticas sociais, as quais dependem e têm relação com diversos significados. Estes são entendidos como construção cultural, não como algo pronto ou isolado. Nesse processo, subentende-se que há disputas nas quais operam discursos de qualquer natureza: verbal, escrita ou visual, para a organização da complexidade social.
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Uma das preocupações centrais do novo campo é justamente pensar nas experiências visuais como evidência de práticas sociais e não como mera ilustração das mesmas. Da mesma forma, os objetos dos Estudos Visuais não são apenas objetos em si, mas também abrangem maneiras de ser, ver e experienciar dentro de diferentes formas de subjetividade. Implica compreender as variadas posições do sujeito que emergem através de relações visuais. A cultura visual é a construção visual do social (apreende-o como um lugar para experimentar os mecanismos sociais da diferenciação), não unicamente a construção social do visual (através de imagens, experiências), é o que acreditam Mitchell (2003) e Dikovitskaya (2006). A visão é uma construção cultural, que é aprendida e cultivada, não simplesmente dada pela natureza e que, por conseguinte, tem um percurso histórico que precisa ser avaliado. Para Mirzoeff, vivemos um período de intervisualidade, no qual há a exibição e interação simultâneas de uma variedade de modos de visualidade. Assim, os pontos de intersecção entre visibilidade e poder social se transformam no objeto dos Estudos Visuais. O agente e, ao mesmo tempo, receptor dessas interações é o sujeito social, conceituado como um agente de visão (independente de sua capacidade biológica de ver) e como efeito de uma série de categorias de subjetividade visual. Nas sociedades capitalistas avançadas por todo o planeta, diz Mirzoeff (2002, p. 10), esses sujeitos visuais são agora ensinados a ser eles mesmos mídias, atendendo ao novo mantra da subjetividade: “eu sou visto e eu vejo que eu sou visto”. As partes constituintes da Cultura Visual não estão, portanto, definidas pelo meio,
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mas pela interação entre o espectador e o que ele observa, que Mirzoeff define como acontecimento visual. Isso seria o efeito de uma rede em que sujeitos operam e que condiciona sua liberdade de ação. Nas palavras desse autor, é uma interação entre o signo visual, a tecnologia que possibilita e sustenta tal signo e o espectador (2003, p.34). Quando entramos em contato com aparatos visuais, meios de comunicação e tecnologia, experimentamos um acontecimento visual. A ênfase passa a ser do visualizador (viewer) e do discurso autorizado, mais que do objeto. Para Irit Rogoff, o que é emergente no campo é justamente ir além do estudo das imagens. Em certo nível, analisa-se a centralidade da visão na produção de significados, refletindo sobre a forma como se atribui valores estéticos, estereótipos e relações de poder dentro da cultura. Por outro lado, se reconhece que, estendendo o campo da visão como uma arena na qual diferentes significados são constituídos, simultaneamente abre-se a possibilidade de análises e interpretações de áudio, do espacial e até mesmo das dinâmicas psíquicas do espectador. Assim, a Cultura Visual possibilita a intertextualidade entre imagens, sons e delineações espaciais, que são continuamente lidas para e através uma das outras (ROGOFF, 2002, p. 24). Mitchell aponta um exemplo interessante que ajuda a comprovar que algo tão amplo como a “imagem” não esgota todas as possibilidades da visualidade e que o estudo do visual é apenas um dos componentes de um campo muito mais amplo: Las sociedades que prohíben imágenes (como la Talibán) poseen, todavía, una cultura visual extremamente vigilada en la que las prácticas cotidianas de representación humana (especialmente la de los cuerpos de las mujeres) se encuentran sujetas a una estricta regulación.
Podríamos, incluso, ir un poco más allá y decir que la cultura visual emerge en su forma más marcada cuando el segundo mandamiento – es decir, la condena de toda práctica de producción y representación de ídolos – es interpretada literalmente, de manera que la mirada es prohibida y la invisibilidad obligada. (MITCHELL, 2003, p. 39)
Para Rogoff (2002, p. 28), a arena da cultura visual é composta por, pelo menos, três elementos: primeiro, as imagens; segundo, o aparato visual que é guiado por modelos culturais, como narrativas ou tecnologias; e terceiro, as subjetividades de identificação, desejo, negação ao que vemos. A Cultura Visual As polêmicas em torno da demarcação dos limites conceituais de um campo tão expansivo têm como consequência divergências na definição de seus objetos de pesquisa. Vários autores apontaram novos métodos para entender e explicar a Cultura Visual. Norman Bryson, Michael Ann Holly e Keith Moxey editaram dois livros – Visual Theory: Painting and Interpretation (1991) e Visual Culture: Images and Interpretations (1994) – com o objetivo de confrontar a História da Arte com as novas estratégias interpretativas desenvolvidas na Semiótica, na Linguística, na Psicanálise, no Feminismo e nas teorias culturais. Na última obra, os editores explicam que seu trabalho pode ser entendido como uma contribuição a história das imagens, em vez de história da arte e, justamente por isso, oferece o prospecto de um diálogo interdisciplinar. O enfoque recai sobre o significado cultural das obras, e não em seu sentido estético. Tal posicionamento tem várias implicações para os editores. Por exemplo, que objetos tradicionalmente
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excluídos do rol dos grandes trabalhos, como imagens de filmes e televisão, podem receber agora a mesma consideração cuidadosa. (BRYSON, HOLLY, MOXEY, 1994, p. xvi-ii). Em 1995, Chris Jenks lançou o livro Visual Culture, em defesa de uma sociologia da cultura visual. Sua reflexão parte da ideia da visão como uma prática social, como algo construído socialmente ou localizado culturalmente, liberando as práticas do ver de todo ato mimético. O autor acredita ser crucial que a visão se associe mais com a interpretação que com a mera percepção. Contudo, Mirzoeff não compartilha dos conceitos de Bryson, Holly, Moxey e Jenks. Para ele, a Cultura Visual é uma tática para estudar a genealogia, a definição e as funções da vida cotidiana pós-moderna da perspectiva do consumidor, mais que da do produtor. Assim como o século 19 foi representado através da imprensa e da novela, a cultura fragmentada que denominamos pós-moderna se entende e se imagina melhor através do visual. Tratase de uma estrutura interpretativa fluida, centrada na compreensão da resposta dos indivíduos e dos grupos aos meios visuais de comunicação. Para ele, a cultura visual não depende das imagens em si mesmas, mas da tendência moderna a refletir em imagens ou visualizar a existência. Algunos críticos piensan que la cultura visual es simplemente ‘la historia de las imágenes’ manejada con un concepto semiótico de la representación (BRYSON y otros, 1994, p. xvi). Esta definición crea una materia de estudio tan extensa que ninguna persona o incluso ningún grupo podría cubrirla por completo. Otros consideran que es una forma de crear una sociología de la cultura visual que establecería una ‘teoría social de lo visual’ (Jenks, 1995, pág. 1). Este enfoque parece fomentar la idea de que lo visual ofrece una independencia artificial de los demás sentidos, que apenas tiene relación con la experiencia real. [...] Según
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el sentido que Roland Barthes da al término, es un tema decididamente interdisciplinario: ‘Para realizar un trabajo interdisciplinario, no basta con escoger un tema y enfocarlo bajo dos o tres perspectivas o ciencias diferentes. El estudio interdisciplinario consiste en crear un nuevo objecto que no pertenece a nadie’. (MIRZOEFF, 2003, p. 21)
Contrariamente a Mirzoeff, David Rodowick argumenta que a noção de Cultura Visual precisa ser aplicada historicamente, não é apenas uma função da cultura do século 20. Ele prefere trabalhar com os diferentes regimes visuais e articuláveis, baseando seu conceito de Cultura Visual no entendimento da teoria de Michel Foucault sob a ótica de Gilles Deleuze. Foucault revelou não apenas noções de mudança de subjetividade, mas também como tais noções de subjetividades elas mesmas sobrepuseram diferentes estratégias de visualização e expressão, as quais Deleuze chamou o visível e o enunciável. Deleuze desenvolveu uma periodização da história do poder – de um soberano, para um disciplinar, que ele chamou de sociedade do controle. Enquanto cada um destes períodos é marcado por diferentes estratégias de conhecimento e poder, eles também são articulados por distintas mobilizações do visível e do enunciável. Para Rodowick, estes conceitos podem ser usados para explicar mudanças culturais e epistemológicas que tomam lugar em longos períodos de tempo. Assim, a Cultura Visual fala sobre como diferentes noções de poder e conhecimento mudam através de diferentes estratégias de visualização e expressão, e como elas estão imbricadas umas com as outras em maneiras complexas e diversificadas, em diferentes e distintas eras históricas (DIKOVTSKAYA, 2006, p. 64). Rodowick, cujas pesquisas privilegiam o cinema, acredita que, dos pontos de vista mais conservadores, o cinema nunca poderá
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Estudos Visuais: principais autores e questionamentos de um campo emergente
ser considerado arte precisamente porque é um meio híbrido que não se encaixa confortavelmente dentro da história filosófica da estética. Estes problemas são exacerbados pela emergência e proliferação da mídia digital (RODOWICK, 1990; 1996). Os Estudos Visuais, na concepção do autor, baseiam-se no reconhecimento de que as novas mídias demandam a desconstrução dos conceitos de visualidade e discursividade, bem com da tradição filosófica da qual eles derivam. Ele argumenta que a presumida noção de visualidade é o produto de uma longa tradição filosófica de divisão do discursivo das artes visuais. A sua escolha pelos Estudos Visuais reside justamente por acreditar que é a melhor opção teóricometodológica, ao romper rígidas barreiras impostas pelas disciplinas tradicionais. Cinema e artes eletrônicas, diz o autor, são os produtos de conceitos que não podem e nem devem ser reorganizados pelo viés da Estética (RODOWICK, 1996). Considerações finais A partir das posições teóricas e conceituais aqui expostas brevemente, é possível considerar duas perspectivas gerais sobre os Estudos Visuais. Uma restringe seus objetos ao contemporâneo, principalmente através da imagem virtual e digital. Posição esta defendida por Nicholas Mirzoeff, por exemplo. Um segundo ponto de vista, de autores como David Rodowick, W.J.T. Mitchell e Martin Jay, sugere analisar as experiências visuais em situações, contextos e períodos históricos diversificados. Marquard Smith (2008) reuniu treze entrevistas com pesquisadores norteamericanos e europeus, objetivando apresentar uma espécie de balanço do
campo, após estas décadas iniciais de pesquisas. Para ele, seja discutindo objetos ou assuntos, mídia ou ambientes, formas de ver e práticas de olhar, o visual ou a visualidade, os Estudos Visuais, como um campo de investigação interdisciplinar, têm o potencial de criar novos objetos de estudo. A proposta não significa simplesmente ‘teoria’ ou mesmo ‘teoria visual’ em qualquer sentido convencional, também não ‘aplica’ simplesmente teoria ou teoria visual a objetos de estudo. Os Estudos Visuais não são o estudo de imagens baseados na premissa casual de que a cultura contemporânea é uma cultura imagética. Por causa disso, não é uma questão de quais ‘objetos’ são ‘apropriados’ ou ‘inapropriados’ ao campo, mas de como levar em consideração as particularidades da nossa Cultura Visual, nossas preocupações e encontros com ela, e os atos que tomam lugar em e através dela (SMITH, 2008, p. 12). Polêmico, controverso, indisciplinar, como definiu Mitchell em meados da década de 1990. Mesmo com tantas divergências, os Estudos Visuais já conquistaram um peculiar, significativo, alternativo e, ao mesmo tempo, autônomo campo de estudo das experiências visuais, comprovando a importância de se analisar as relações entre visualidade, visibilidade e poder na contemporaneidade. Referências ALPERS, Svetlana. The art of Describing: Dutch Art in the Seventeenth Century. Chicago: University of Chicago Press, 1983. BRYSON, Norman; HOLLY, Michael Ann and MOXEY, Keith (eds.). Visual Theory: Painting and Interpretation. Cambridge: Polity Press and Blackwell, 1991. ______. Visual Culture: Images and Interpretations. Hannover and London: Wesleyan University Press, 1994.
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Fiestas y Bicentenario en Bogotá. 2010 La Mirada de los Otros
Marcos González Pérez Doctor y Magister en Historia, Universidad de París; Magister en Cine Antropólogico Documental, Universidad de París; Magister en Educación con Especialización en Investigación Socio-Educativa, Universidad Pedagógica Nacional, Bogotá, Colombia. Coordinador de la Red Internacional de Investigadores en Estudios de Fiesta, Nación y Cultura – RIEF – y Director de la Corporación de Estudios Interculturales Interdisciplinarios – INTERCULTURA.
Resumen
En el año 2010 se celebro en Colombia el Bicentenario de la Independencia Nacional, el cual sirvió para realizar toda una serie de eventos conmemorativos auspiciados por entidades gubernamentales, lo que le imprimió el sello de una de fiesta oficial. Esta ponencia aborda otros elementos que hemos denominado como “usos” del Bicentenario, siguiendo un estudio del investigador Eric Hobsbawm respecto del Bicentenario de la Revolución Francesa, definido con la expresión: “todo el mundo tuvo su Revolución Francesa”. De igual manera en este Bicentenario colombiano varias instituciones han tomado el acontecimiento para tener, parodiando a Hobsbawm, “su propio bicentenario”. La exposición aborda un análisis de las diversas imágenes que fueron producidas por otras voces diferentes de las oficiales para referirse al Bicentenario donde se destaca el uso o abuso de la conmemoración. Las imágenes fueron acopiadas en la ciudad de Bogotá en una especie de trabajo etnográfico. Palabras claves: Iconografía; bicentenario; usos de imágenes.
Abstract
In year 2010, I am celebrated in Colombia the Bicentennial of the national Independence, which served to make all a series of commemorative events supported by governmental organizations, which him to stamp the seal of one of official celebration. This communication approaches other elements that we have denominated like “uses” of the Bicentennial, following a study of the investigator Eric Hobsbawm respect to the Bicentennial of the French Revolution, defined with the expression: “everybody had its French Revolution”. From equal way in this Colombian Bicentennial several institutions have taken the event to have, “parodiando” to Hobsbawm, “its own bicentennial”. The exhibition approaches an analysis of the diverse images that were produced by other voices different from the officials to talk about to the Bicentennial where the use or abuse of the commemoration stands out. The images were gathered together in the city of Bogotá in a species of ethnographic work. Keywords: Icon; bicentennial; uses of images. Recebido em: 15/03/2011
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Fiestas y Bicentenario en Bogotá. 2010 La Mirada de los Otros
La Presidencia de la República de Colombia creo mediante el Decreto 446 de febrero de 2008 la Alta Consejería Presidencial para organizar la conmemoración del Bicentenario de la Independencia de Colombia, tomando entre sus funciones la de Coordinar la preparación y realización de los certámenes y actos conmemorativos del Bicentenario de la Independencia; de acuerdo con las instrucciones del Presidente de la República (Decreto 446 de 2008, www. bicentenarioindependencia.gov.co).
Llama la atención que cuando se determino en 1873, la instauración de una fecha fundacional de la Nación Colombiana, que recayó en el 20 de julio, en memoria de 1810, se planteo como una Fiesta- Aniversario de la proclamación de la independencia nacional (GONZÁLEZ PÉREZ, 2009), mientras que en el marco del Bicentenario, no se trata de una Fiesta sino una serie de “certámenes y actos conmemorativos”, tal como es enunciado en el Decreto. Si nos atenemos a las definiciones universales sobre estos tópicos la diferencia es evidente: Festejar, es entendido como: “Hacer fiestas para celebrar algo”1, mientras que Conmemorar es: “Recordar públicamente un personaje o acontecimiento2”, lo cual traza unas rutas de acción para los organizadores de este evento oficial.
En este ensayo se ha tomado como perfil de interpretación un seguimiento a las actividades que se han originado en el marco del Bicentenario de la Independencia, vistas esencialmente a través de una especie de observación etnográfica y utilizando, también, las fuentes que los medios de comunicación nos brindan. Si bien el objeto central de este ensayo es Bogotá y su relación con el tema del Bicentenario, dada su transcendencia es necesario comentar algunas de las actividades nacionales que se entrecruzan con las actividades de la capital y esencialmente reseñar las “miradas de los otros” sobre este acontecimiento. Los Avatares de la Conmemoración Los Bicentenarios de la Independencia en varios países han estado precedidos de la organización de comisiones de expertos, que se han instalado con varios años de antelación a la fecha del fasto, con el objeto de llevar a cabo una serie de actividades que propicien, por lo menos, una reflexión acerca del estado actual de cada nación. ¿Qué sucedió en Colombia para que a sólo dos años del acontecimiento decidieran crear una Alta Consejería Presidencial y la designación de una comisión para preparar estos actos conmemorativos? Lo hasta ahora indagado es que por decisión del presidente
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de la República, se había determinado que los actos de conmemoración se llevarían a cabo en el año 2019, en conmemoración de los 200 años del triunfo militar de los ejércitos patriotas contra los españoles en la Batalla de Boyacá, en una especie de anacronismo histórico. Este elemento permite hacer una necesaria aclaración sobre la fecha de la conmemoración: El 20 de julio como día festivo fundacional de la nación colombiana fue determinado por el Congreso de los Estados Unidos de Colombia, mediante la ley 60 del 8 de mayo de 1873. En ese año y después de varios debates, “se aprueba la ley que oficializa el 20 de julio como día festivo-aniversario de la proclamación de la independencia, fundamentado, según el discurso del presidente Manuel Murillo Toro, en el hecho de considerar el levantamiento de ese día de 1810 en Santa Fe, como el inicio de una campaña que abrieron “nuestros padres” contra la dominación española y que se cierra con las victorias militares de los patriotas en Boyacá, Carabobo, Pichincha y Ayacucho. Se unen dos hechos, el levantamiento del 20 de julio y las batallas militares y se unifican a través de considerarlos parte de un mismo conjunto y toman partido por conmemorar el “inicio de las acciones” (GONZÁLEZ PÉREZ, 2009). ¿Qué razones se pueden exponer para que se hubiese tomado esta decisión tan transcendental? Se pueden considerar varias, si nos circunscribimos a los hechos históricos: 1. La constitución de la Junta Suprema de Gobierno: En las primeras décadas del siglo XIX el centro administrativo del Nuevo Reino de Granada estaba asentado en Santa Fe, de tal manera que aparecía como el lugar referencial de dominio político de la Monarquía Española, aunque existían
también fuertes poderes de las élites en otras provincias, algunas, como la de Cartagena, muy contrarias a las santafereñas. En 1808 se sucede la invasión napoleónica a la Península y el Rey es tomado prisionero, hecho que auspicia la creación en España de una Junta Suprema que abogaba por la legitimidad de Fernando VII, originando una serie de contradicciones mayores entre los que vislumbraban la posibilidad de una independencia absoluta y los que pensaban sólo en tener autonomía, como partes integrantes de la nación española. Las fuerzas dirigentes, concentradas en Santa Fe, buscando mayor representación política como americanos, aprovechan estas circunstancias para organizar el levantamiento del 20 de Julio de 1810 y designan una Junta Suprema de Gobierno, iniciando una era de confrontación pública acerca de la construcción de la Nueva Granada como un territorio independiente del Estado Español, en una especie de acto fundador de una nueva Era, que se complementa más tarde con el reemplazo del virrey, en una acción de toma de poder y como tal fue asumido por los miembros del Congreso en 1873. Justamente, después de varios debates, se aprueba la ley que oficializa el 20 de julio como día festivo-aniversario de la proclamación de la independencia, fundamentado, según el discurso del presidente Manuel Murillo Toro, en el hecho de considerar el levantamiento de ese día de 1810 en Santa Fe, como el inicio de una campaña que abrieron “nuestros padres” contra la dominación española y que se cierra con las victorias militares de los patriotas en Boyacá, Carabobo, Pichincha y Ayacucho. Se unen dos hechos, el levantamiento del 20 de julio y las batallas militares y se unifican a través de considerarlos parte de un mismo conjunto y toman partido por conmemorar el “inicio de las acciones”.
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2. El referente conceptual: Desde 1811, el veinte de julio aparece reseñado en los calendarios, como el año de la “revolución e instalación de la Suprema Junta”; en 1812, como el tercero de “Nuestra Libertad”, acompañado de Santa Librada, mártir y patrona de la Patria; en 1813, como “Día de la Independencia”; en 1814, como “Día memorable de nuestra transformación política”; en 1815, como “Día de la Libertad” y en los años siguientes como fiesta cívica celebrando al Héroe, como “memoria del 20 de julio”, como “Día de la independencia nacional”, hasta llegar a identificarse como la Gran Fiesta de la Patria o Aniversario de la Independencia, referentes con los cuales se identifican los congresistas de 1873 y les permite determinar que es esta efemérides la que concuerda con sus propios imaginarios. No en vano los discursos de conmemoración del momento hacen referencia a estos lenguajes de “libertad”, “próceres”, “patriotas”, “día brillante”, “santos mártires”, conceptos que también se representaron en los desfiles de esos años, en una conjunción de elementos que mira hacia el pasado para rendir homenaje a los que iniciaron “nuestra transformación política”, a los que combatieron, como creadores de “nuestra libertad”. 3. El momento político: En 1873 se encontraba en el poder presidencial la fracción política denominados Radicales, quienes buscaban crear formas alegóricas en la representación del Estado-Nación en formación. En ese sentido habían emprendido una campaña para laicizar varios de los espacios que permanecían referenciados por la simbolización religiosa, tarea en la que fue importante la erección de estatuas a los jefes militares de la lucha independentista, el rebautizo de calles y plazas con los nombres de las batallas que le dieron gloria a los 56
ejércitos libertadores, la colocación de la primera piedra para construir un monumento en memoria de los Mártires en la Plaza de los Mártires, nominada así desde 1850 o bautizar Parque Santander el espacio que se conocía como plaza de San Francisco. Sin embargo, el acto contundente es la puesta en escena, en los desfiles del 20 de julio, de la idea de Unidad de los nueve Estados Federados, escenificada a través de representaciones de las particularidades simbólicas de cada uno, pero ungida como un solo cuerpo. Bajo esta concepción se considera que toda la simbólica, que se manifestaba en la diversidad de cada Estado, dejaba ver también la unidad en la concepción de una nación y debía oficializarse a través de un solo festejo: el 20 de julio, día del nacimiento de “un pueblo libre, soberano, y digno de asistir al banquete de la civilización”, como bien lo formulaban. Es con base en estas acciones y situaciones, más políticas que sociales, que nos aprestamos a conmemorar el 20 de julio del 2010, como el Bicentenario de nuestras independencias (Ibíd)”. La constitución de una nación, en tanto que comunidad política, pasa por la creación de una serie de emblemas y de símbolos que permiten una especie de cohesión referencial de esa comunidad, siendo la fiesta fundacional uno de los elementos importantes de esa unidad simbólica. Con base en esta precisión histórica, es evidente que las demoras en el inicio de una organización para la conmemoración del Bicentenario de la Independencia de Colombia se pueden ubicar en el terreno de los desatinados controles políticos y a un desconocimiento de nuestra propia memoria histórica. Aunado a ello se designo como Alta Consejera Presidencial para organizar la
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conmemoración del Bicentenario de la Independencia de Colombia a una exreina del carnaval de Barranquilla, experta en mercadeo, aunque sin mucho conocimiento de las realidades históricas, quién oriento la formulación de una serie de actividadesespectáculo, para unos pocos, en detrimento de la creación de espacios pedagógicos de gran cobertura para propiciar la participación de amplios sectores de la población. Bajo estas consideraciones uno de los primeros eventos de la conmemoración se realizo en la Quinta de San Pedro Alejandrino en Santa Marta, lugar donde se reunieron unos cuantos invitados especiales, encabezados por el presidente de la República, para degustar de un banquete con gastronomía de la independencia, compuesto por: “mosaico de fritos, gallina en leche de coco, salmón en salsa asturiana y flores de mango con salsa de zapote”. (El Tiempo.com). El resultado del banquete no fue el inicio de las reflexiones acerca del proceso de construcción de la nación colombiana sino sobre si el mango, servido en esta ocasión, ya existía en la época de la independencia.3 Este programa gastronómico continuo en varias ciudades bajo el lema “Saboreando nuestra Historia”, con “espectaculares montajes” financiados por empresas bancarias y bajo la dirección de reconocidos chefs.” (El Tiempo, martes 2 de marzo de 2010). Justamente en el banquete del Bicentenario realizado en el Museo del Chicó en Bogotá, para invitados especiales y bajo la dirección de Harry Sasson, el menú, inspirado, según los organizadores, “en el mestizaje que forjó la cocina colombiana” consistió en: El primer plato, palmitos, después la sopa caucana de tortilla, un chupe de conejo [...]
venía con un cayeye de plátano o puré, pollo en coco y un cordero asado con vino dulce, de postre un almíbar de papayuela (El Tiempo, viernes 5 de marzo de 2010).
No hay datos de las bebidas que c o n s u m i e ro n . E s t e y o t ro s eve n t o s denotan la concepción adoptada para la conmemoración: es decir la puesta en escena de una fiesta oficial con pocos actores y muchos espectadores. Los “Usos” del Bicentenario De acuerdo con el artículo de Eric Hobsbawm (1993, p.101-130) respecto del Bicentenario de la Revolución Francesa “todo el mundo tuvo su Revolución Francesa” (Ibíd, p. 103). De igual manera en este Bicentenario colombiano varias instituciones referenciaron el acontecimiento para tener, parodiando a Hobsbawm, “su propio bicentenario”. En ese sentido se ha producido una especie de “uso” del acontecimiento, como bien se puede evidenciar con algunos ejemplos: • Se realizaron eventos como la “Regata Bicentenario” o Regata Sail Cartagena 2010, un festival de marinos y veleros provenientes de varias partes del mundo encabezados por el navío “Juan Sebastián Elcano” de España, (El Tiempo, jueves 20 de mayo de 2010) cuya inauguración s i r v i ó p a ra “ l a n z a r l a ´ c o l e c c i ó n Bicentenario´, una creación de marca de ropa juvenil Reversika” (El Tiempo, p. 1-2, sábado 22 de mayo de 2010); las pasarelas denominadas “ Mujeres que hacen Historia” en una de las cuales el diseñador “Hernán Zajar, patrocinado por la empresa YANBAL, especializada
Ver notas el periódico EL TIEMPO de junio de 2009
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en productos de belleza, en el marco de su convención anual, presentó su última
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colección, inspirada en las heroínas de la independencia”. (El Tiempo, sábado 15 de mayo de 2010).
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• El ejército Nacional de Colombia organizo para julio de 2010, el “Rally Bicentenario Héroes de Orinoco”, una competencia de camperos 4x4 y de motocicletas que recorrió cinco departamentos, como una forma de “ofrecer un homenaje
a los soldados colombianos, celebrar los 200 años de la independencia y reiterar las buenas condiciones que ofrece la seguridad democrática (Revista ACELERAR, p. 8-10)”;
• Una empresa de construcción lanzo la venta de apartamentos de 2 y 3 alcobas utilizando pendones en los cuales se referenciaba el proyecto de vivienda
con los 200 años de independencia, es decir, metafóricamente, una manera de encontrar “independencia inmobiliaria”;
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• La empresa que produce la gaseosa PREMIO, lanzo el concurso de diseño de la etiqueta “Edición Bicentenario”, tomando como requisitos de participación la entrega del diseño junto con dos tapas
de la botella bajo el slogan “para que muestres por qué ser colombiano es un Premio” (El Tiempo, domingo 11 de abril de 2010);
• Aparecieron grafittis entre los cuales el encontrado en la calle 100 con carrera 15 de Bogotá en el cual se leía “2010 bicentenario de Corrupción”; los canales públicos y privados de televisión “como parte de la conmemoración de los 200 años del grito de independencia” proyectaron programas tales como: “Caracol 24 documentales denominados
Viajes a la Memoria, huellas de una nación, el canal RCN, a través de notas reconstruye la historia de Colombia y lanza la telenovela La Pola; History Channel grabó la versión televisiva del himno del Bicentenario y Señal Colombia y el Canal Institucional mantuvo una programación diaria sobre el tema” (El Tiempo, viernes 16 de abril de 2010);
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• E l I n s t i t u t o d e P e n s a m i e n t o Iberoamericano o Universidad Pontificia de Salamanca (España) oferto el Master Executive Gadex a distancia con estadía de diez días en España, otorgando, de una parte, doble titulación y de otra, un “precio especial con motivo del Bicentenario: 2.500 euros.” (El Tiempo, domingo 20 de junio de 2010); • El Ministerio de Defensa y el Ejército organizaron la “Ruta Libertadora”, un recorrido de 17 días a lomo de mula o a pie rememorando la ruta que hace 190 años realizó Bolívar con sus ejércitos. (El Tiempo, lunes 13 de julio de 2009). No obstante que estaban acompañados por dos brigadas del ejército, con el apoyo de la fuerza aérea y de 22 estaciones
de policía, la caravana fue atacada, supuestamente por un grupo guerrillero, dejando como saldo un muerto y varios heridos. • La tienda del Museo Nacional de Colombia organizo un concurso en el que algunos diseñadores y estudiantes utilizaron su imaginación para crear elementos “basados en utensilios usados por próceres, en cuadros de personajes y en piezas precolombinas”, dando como resultado la producción de varios objetos, entre los cuales “Un Huevo con patas” o Porta huevo, consistente en una figura zoomorfa de la cultura Nariño, “ideal para el huevo tibio del desayuno” al que se denomina ´´huevolución´. (El Tiempo, lunes 6 de julio de 2009)
• El Centro Comercial Hacienda Santa Bárbara, conjuntamente con la emisora La W, organizo un evento de promoción de empresas bajo el lema Vive el Bicentenario con la W, Hacienda Santa Bárbara.
Decimos nuevas formas de hispanismo en comparación con el Centenario de 1910, dado que en esa época lo Español fue tomado como objeto de reverencia, escenificado a través de la colocación de placas de reconocimientos a sus hombres y legados, en los discursos oficiales, en los carros alegóricos que participaban en los desfiles, en suma, se
En esta gama de actividades las nuevas formas de hispanismo no fueron la excepción.
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debía orientar una aproximación con España y sus valores, mientras que hoy su presencia es de otro tipo. En el Museo Nacional de Colombia, en el mes de julio, se programo un ciclo de películas en homenaje al Bicentenario denominado “Ciclo Bicentenario” auspiciado por el Festival de Cine de Bogotá, la Embajada de España, el Ministerio de Cultura Español y el Museo Nacional de Colombia, presentando 8 cintas españolas. El ciclo, paradójicamente, se iniciaba con la cinta: ¿Qué he hecho yo para merecer esto? (El Tiempo, sábado 19 de junio de 2010). – Obras de teatro de todo tipo proliferan en varis ciudades donde Bolívar como personaje es objeto de múltiples interpretaciones. – La Universidad Santo Tomás aprovecho para promocionarse como un centro educativo en que se formaron líderes de la Independencia como Atanasio Girardot, Andrés Rosillo y unos 8 más. (El Tiempo, domingo 23 de mayo de 2010). – Por doquier aparecieron: exposiciones de pintores de la independencia, (Colsubsidio); de la Fuerza Aérea Colombiana sobre el Bicentenario (Museo Aeroespacial); “libros al viento”, con breves historias de próceres; concursos de caricatura sobre el Bicentenario, (Universidad Central); muestra de “documentos originales, proclamas y textos de la emancipación colombiana” ( B i b l i o t e c a N a c i o n a l ) ; ex p o s i c i o n e s temporales (Biblioteca Luis Ángel Arango); radionovelas (Radio Nacional); concurso por internet “para cambiar el logo de Google, el 20 de julio” (El Tiempo, jueves 17 de junio de 2010); obras de teatro (Varasanta: Fragmentos de libertad – 200 años, libertad en proceso; La Carrera: Aquel 20 de julio,
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Ensamblaje Teatro: El último viaje de Bolívar; El Archivo de Bogotá; de actores reviviendo a Bolívar “en su último viaje,”, “bajando de su pedestal”, actores representando a Bolívar, Nariño y Santander quienes recorriendo la calles de Bogotá promocionan las redes “Sociales como Facebook y Twitter, donde se encuentran sus perfiles (El Tiempo, viernes 7 de mayo de 2010); conciertos en Nueva York y Montreal “con motivo de las celebraciones del Bicentenario” (El Tiempo, viernes 25 de junio de 2010), Concursos de Arte Popular como el III Salón Bat, apoyado por la compañía de cigarrillos Phillips Morris, los desfiles de comparsas del programa Amor por Bogotá de la Secretaria de Cultura, Recreación y Deporte de Bogotá bajo el tema del Bicentenario, y por supuesto el ciclo organizado por la Fundación Gilberto Alzate Avendaño sobre Independencia, Centenario y Bicentenario (2009-2010). Bicentenario en Bogotá En Bogotá el inicio de las actividades del Bicentenario comenzaron el 20 de julio del 2009, con el programa denominado “El Vuelo de la Libertad” un evento que permitía vislumbrar, como bien lo decían las crónicas, un Bicentenario celebrado por lo alto, en que se elevaron un buen número de globos aerostáticos con imágenes de los próceres y de las empresas patrocinadoras. Por razones de clima la mayoría de globos no pudieron despegar, así como tampoco se pudo cumplir con el propósito del alcalde de “desencadenar una reflexión y movilización en torno de la independencia, la democracia y la reconciliación” (El Tiempo, domingo 28 de junio de 2010).
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Fiestas y Bicentenario en Bogotá. 2010. La Mirada de los Otros
En todo caso este evento le sirvió a un articulista para comentar que eso de celebrar a estas alturas de un siglo científico, corrompido, confuso, tan cerca de las estrellas, el bicentenario de una independencia hipotética con vuelos de globos de helio pintados y pantomimas de virreyes vestidos de muselinas de la utilería de la escuela distrital de teatro es pueril por lo menos. Cándido. [...] En resumen, dice el articulista, Colombia comenzó a joderse el día de julio del grito de independencia (ESCOBAR, 2009).
De igual manera un caso coincidente es el de la llamada Casa Museo del 20 de Julio, la cual en vísperas del Sesquicentenario, es decir de la conmemoración de los 150 años de independencia era objeto de un proyecto, dice la crónica de 1960, “para fundar un museo de la independencia, con banderas de la época, retratos y objetos de próceres, está siendo objeto de restauración, para convertirla en un museo nacional”, tal como sucede hoy, cincuenta años después. (El Tiempo, Hace 50 años, jueves 27 de mayo de 2010).
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El alcalde de la ciudad y el presidente de la comisión del Bicentenario en la ciudad lanzaron un programa (Revista Semana, 2009) con tres ejes de celebración que pretendían construir reflexiones sobre el pasado, presente y el futuro de la ciudad. Desafortunadamente la falta de presencia de la comisión, así como la ausencia de información genero muy poca participación en posibles actividades acordadas, tal como lo revelan los resultados de una encuesta que realizamos buscando fuentes para elaborar este ensayo. Tomando como preguntas las actividades formuladas en el programa oficial, resumidas en: 1. Respecto del Bicentenario: Alguna actividad reciente le ha “ayudado a descubrir que pasó hace dos siglos”. ¿Cuál? 2. Como ciudadana/o: ¿Ha participado en algún evento de “Ciudad de la Memoria”? ¿Cuál?
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3. ¿Ha asistido a algún foro de Bicentenario en Bogotá? ¿Cuál?, los encuestados manifestaron, en general, su total desconocimiento de estas actividades. Es posible que se hayan realizado. Lo que si se encontraba en la página web del Bicentenario era el programa de actividades oficiales para ese día: 07:30 – 08:30 AM. Tedeum en la Catedral Primada y Acto ecuménico 9:00 – 12:00 PM. Desfile fuerza pública. (Avenida 68) 12:00 – 12:05 PM. Himno Nacional de Colombia, Himno del Bicentenario 12:05 – 03:00 PM. Gran Concierto Nacional. (Parque Simón Bolívar) 07:00 PM. Juegos pirotécnicos Un encuentro de espectadores que válida la contundente afirmación de Mijail Bajtin para quién toda fiesta oficial es una fiesta de la desigualdad (BAJTIN, 1989).
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El Bicentenario y la Educación Uno de los aspectos positivos de las efemérides consistió en las labores que desde algunas entidades educativas se realizaron para involucrar la población docente y estudiantil en las actividades del Bicentenario. Sobresale entre estas el programa del Ministerio de Educación denominado Historia Hoy: Aprendiendo con el Bicentenario, el cual busco involucrar a los estudiantes a través de tres grandes momentos: en el año 2008 bajo el lema: Los Estudiantes Preguntan, buscaba seleccionar 200 preguntas sobre el tema, las cuales una vez definidas fueron objeto de trabajo por los mismos estudiantes para investigar sobre sus respuestas, etapa que se denominó Construyendo Respuestas y que se realizo en el año 2009. La tercera fase permitió que esta población escolar, en el año 2010, pudiera trabajar sobre Historias locales y sobre Memoria Plural en sus respectivas comunidades de origen. En Bogotá la Secretaria de Educación lanzo el concurso Leer y Escribir el Bicentenario el cual buscaba que los estudiantes de todos los niveles y de todos los colegios de la ciudad desarrollarán trabajos sobre este tema en concursos de lectura y escritura. Finalmente vale la pena mencionar la serie de conferencias que sobre este tema organizo para maestros del Distrito Capital el Instituto de Investigación Educativa y Desarrollo Pedagógico IDEP, entidad que lanza en el año 2011, tanto una Revista Temática sobre Reflexiones del Bicentenario, así como uno de los materiales más interesantes sobre estos tópicos: Los Documentos Originales que dan cuenta de las celebraciones del 20 de julio, año por año, desde 1810 hasta el 2010 en la ciudad capital. (www.idep.edu.co).
Epílogo Es evidente que uno de los momentos históricos más importantes para una nación: la celebración o conmemoración de su día fundacional ha pasado sin una real trascendencia en Colombia. Varias serían las causas de este resultado pero desde el campo de la educación la fundamental es la ausencia de unos espacios de apropiación de conocimientos sobre la historia de Colombia lo que incide además en el desconocimiento de su propia memoria. Bajo estos criterios es muy complicado construir territorios de formación ciudadana, mucho más si se tiene en cuenta que se ha privilegiado el espectáculo por sobre el paciente trabajo de la labor pedagógica y surge entonces de nuevo la necesidad de replantear las responsabilidades que deben asumir las instituciones de educación en estas tareas. En estos campos se pueden redimensionar dos caminos: uno, el de la reflexión sobre los currículos escolares que deben rescatar mayores espacios para los estudios sociales sobre el proceso de construcción de la nación colombiana y otro, el de la relación entre Memoria e Historia que puede ser considerado uno de los retos mayores de la instituciones que tiene que ver con docentes y estudiantes. Rescatar la Memoria de la comunidad colombiana y llevarla a los terrenos de la construcción histórica es la apuesta mayor para poder pensar en construcción de ciudadanías. El que hoy haya desaparecido la página web de la Comisión del Bicentenario y se haya extinguido cualquier forma organizativa para desarrollar los actos complementarios de estas conmemoraciones bicentenarias es parte de la desidia estatal frente a estos temas de tanta importancia.
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En suma, se trata de aplicar la función social de la memoria bajo una especie de estrategia que podríamos parodiar como “guerra de memoria”, asumiendo el reto de rescatar parte de la memoria histórica de la nación colombiana a través de la aplicación pedagógica de los catálogos digitales de las celebraciones de los 20 de julio en Bogotá.
Bibliografía BAJTIN, Mijail. La Cultura Popular en la Edad Media y en el Renacimiento. Madrid, Alianza Editorial, 1989. EL TIEMPO, junio de 2009. ESCOBAR, Ricardo. “El Sainete del Bicentenario” en El Tiempo, martes 30 de junio de 2009. GONZÁLEZ PÉREZ, Marcos. ¿Por qué se celebra el 20 de julio? Revista Semana, Julio de 2009. HOBSBAWM, Eric. “De un Centenario a Otro” en Los Ecos de la Marsellesa. Editorial Crítica, Barcelona, 1993, p. 101 a 130. Revista ACELERAR, publicación especial de El Tiempo, abril de 2010, p. 8 a 10.
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Interfaces entre Arte e Política: construção, apagamento e desconstrução de memórias imagéticas Milton Genésio de Brito Possui graduação (licenciatura e bacharelado), especialização e mestrado em História pela Universidade Estadual de Londrina, atualmente cursando o doutorado na mesma área pela Universidade Estadual Paulista, campus de Assis. É funcionário da Secretaria de Estado da Justiça e da Cidadania do Paraná desde 1997 e membro da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos desde 2007. Pesquisou inicialmente temas referentes ao Sistema Penitenciário e à Administração Pública, migrando depois para os estudos sobre Roma Imperial e Literatura Latina, participando de livro com capítulo sobre Horácio e a Arte Poética, e se especializando na análise de fontes textuais e imagéticas.
Resumo
O nosso escopo neste trabalho é debater alguns pontos de conexão na complexa relação entre produção artística e contexto politico, como dentre outros a ingerência da politica na constituição de estratégias direcionadas para a construção, o apagamento e a desconstrução de memórias imagéticas. Neste sentido, delineamos o itinerário de análise através de quadros que têm como personagem principal Napoleão Bonaparte, elaborados durante a primeira metade do século XIX, e que enfocam o período em que o corso esteve à frente do governo da França pós-revolucionária. Palavras-chave: Produção artística; contexto político; Napoleão Bonaparte.
Abstract
To discuss some points of connection in the complex relationship between artistic and political context, among others as the interference of politics in the establishment of strategies aimed at the construction, deconstruction and the erasure of memory imagery, is our scope in this paper. In this sense, the analysis itinerary was defined through of pictures that have the main character Napoleon Bonaparte, established during the first half of the nineteenth century, focusing on the period in which the Corsica’s man was the head of the government of post-revolutionary France. Keywords: Artistic production; political context; Napoleon Bonaparte.
Recebido em: 08/04/2011
Aprovado em: 03/05/2011
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Milton Genésio de Brito
Interfaces entre Arte e Política: construção, apagamento e desconstrução de memórias imagéticas
Introdução O nosso itinerário de analise parte de determinados pontos de reflexão: qual o significado de uma imagem? Ou que possibilidades de interpretação uma produção imagética pode ter suscitado em espectadores de determinado contexto? Neste mesmo sentido, cogitamos sobre quais relações podem ser delineadas entre imagens que em tese representariam um mesmo acontecimento, situação ou personagem, no caso em análise para uma leitura da figura política de Napoleão Bonaparte? Por mais inequívoco que nos possa parecer, como argumentou Jacques (1993, p.77), “[...] imagens são feitas para serem vistas[...]”. Porém, esta simples constatação implica por sua vez considerar que uma produção artística pode ser considerada como ocasional, posto que na elaboração condições do momento vivenciado também estariam presentes, ou até contingente, devido ao desconhecimento do observador de todos os fatores que nela interagem, mas de modo algum aleatória ou fortuita, pois usos e fins estão implícitos em sua constituição. Neste sentido, a partir de uma abordagem similar a da semiótica perceiana Aumont Jacques procurou descrever modos de relação, ou “funções”, entre o espectador e a imagem, que podemos considerar também como níveis de percepção na apreensão do fenômeno imagético, modalidades que atuam de maneiras distintas, mas que tendem 68
a se interpenetrar ou até mesmo ocorrerem simultaneamente: o estético; o simbólico; e o cognitivo (p.78-81). Devido à complexidade e a amplitude das discussões referentes ao caráter estético, acrescidas à problemática de inferir uma “dinâmica das sensibilidades” no público espectador francês da primeira metade do século XIX, não focaremos este aspecto no decorrer da análise, delimitando-nos a abordar os fatores simbólico e cognitivo das imagens selecionadas. Sobre nossas fontes e a problemática desta pesquisa Este trabalho é resultado de um recorte efetuado em uma das pesquisas realizadas nas disciplinas cursadas durante o Mestrado, nas quais procuramos estabelecer conexões, mesmo que mínimas, entre as discussões formuladas e a nossa temática de estudo, a Antiguidade. Deste movimento de readequação resultaram discussões não pertinentes ao escopo da dissertação, mas de modo algum irrelevantes para o debate acadêmico. Em uma dessas, no estudo de modernas re p re s e n t a ç õ e s i m a g é t i c a s s o b re a Antiguidade, um nome mereceu destaque em nossas indagações: o do francês JacquesLouis David (1748-1825), considerado como o expoente maior da tendência neoclássica na pintura.
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Influenciado pelo ambiente do movimento Sturm und Drang – “Tempestade e Impeto”, uma das bases do Romantismo –, durante sua estadia em Roma, o pintor fomentou toda uma geração de discípulos, entre os anos de 1785 e 1815, e também de críticos, à grandiloquência de sua “pintura histórica”. Suas obras são consideradas como resultantes da interação entre sua habilidade artística e os seus constantes envolvimentos no ambiente da politica. Os diferentes e conturbados momentos no seu itinerário de vida podem ser descritos como demonstrativos de um exacerbado engajamento politico: ora deixou-se conduzir pelas repercussões de suas obras, como, por exemplo, “O Juramento dos Horácios” considerado como um chamamento cívico nos anos que antecederam a Revolução na França; ora colaborou com sua produção imagética que, interpretada ideologicamente a partir do epicentro do movimento jacobino liderado por Robespierre, como na representação de “A morte de Marat”, contribuiu sobremaneira para idealizar “mártires” revolucionários. David sintetizaria a ideia de engajamento social do artista, na perspectiva de autores como Monteverdi (1967, p. 72-73), Benoist (1970, p.75) e Argan (1984, p.29), tanto através dos objetivos a que se propôs como das repercussões inesperadas de suas pinturas. Pequenas partes de sua vasta produção pictográfica foram objeto de discussão trabalhos anteriormente apresentados em eventos1. Interessa-nos agora colocar em análise quadros elaborados a partir da ascensão do corso Napoleão Bonaparte ao cenário politico.
Selecionamos três momentos em que Napoleão foi representado pelo pintor, indicativos da trajetória politica deste, para descrever as nuances de leitura. 1º momento: a frágil consistência do herói, um itinerário de desconstrução A percepção de David sobre a função da arte gradualmente teria se transformado a partir de seu encontro com o general ocorrido em 1797, o qual foi retratado pela primeira vez em 1798 num esboço inacabado (Museu do Louvre): do uso anterior do passado como instrumento de conscientização, através da rememoração de personagens e ações consideradas cívicas; o artista passou para a exaltação da figura de Napoleão que considerava ser capaz de transformar o atribulado presente. Não nos aprofundaremos na discussão das relações entre ambos. Entretanto, através de detalhes nas diversas pinturas em que foi retratado, Napoleão materializaria “os ideais populares da revolução e as virtudes heroicas da Roma antiga” para David. Este seria considerado a principio por muitos jacobinos como um novo “César” que, após um período tumultuado e sangrento do Terror, instituiria as bases de um novo governo, como um defensor da ordem republicana emergente contra o perigo das hordas monárquicas circundantes. N o q u a d ro “ O P r i m e i ro C ô n s u l atravessando o passo de São Bernardo”, iniciado em 1800 e concluído em 1803 (Museu Nacional do Château de Malmaison), David procura legitimar pelo simbolismo a posição de Napoleão como condutor da França pós-revolucionária. A ação iminente,
Alguns dos quadros da produção pictórica, elaborados entre os últimos anos da monarquia na França e os que sucederam a queda do governo jacobino, foram analisados no trabalho “Pinturas de Jacques-Louis David: A construção de imagens sobre a Antiguidade e suas leituras”, apresentado na IX Jornada de Estudos Antigos e Medievais, realizada entre 9 e 11 de novembro de 2010, na Universidade Estadual de Londrina.
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insinuada pela imagem, ocorreu em 20 de maio de 1800. O exército francês, guiado pelo corso, ao cruzar o passo pelo norte surpreendeu os austríacos, que lideravam uma coalisão composta por soldados da Grã-Bretanha, do reino de Nápoles e de alguns pequenos Estados alemães, superiores numericamente, mas que haviam distribuído parte de seu
efetivo na linha costeira entre Nice e Genova (HOLLINS, 2000). Batalhas anteriores e menores, mas fundamentais taticamente, como as de Romano-Chiusella (26 de maio) e de Casteggio-Montebello (9 de junho) estão implícitas na referência a transposição e a Batalha de Marengo, na qual se obteve a vitória final em 14 de junho.
O Primeiro Cônsul atravessando o passo de São Bernardo. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/File:Napoleon4.jpg>. Acesso em 30 de março de 2011. Original: óleo sobre de tela de 271 por 232 cm.
O líder é mostrado em primeiro plano conduzindo um impetuoso corcel malhado, o qual controla de maneira firme com a mão esquerda. O cavalo, um símbolo da aristocracia, representaria a capacidade de controlar possíveis insurgências por parte deste segmento social. A mão direita, sem luva, indica o caminho a ser seguido por todos: para o alto e adiante. A passagem é íngreme e sinuosa, mostrando a dificuldade no avanço da tropa. 70
A silhueta do general foi sobremaneira alongada e ampliada em relação a sua montaria, indicando imponência e altivez. As cores de seu uniforme imprimem ainda maior destaque a sua figura contra o cenário ao fundo. Sua espada, ornada de esmerados detalhes dourados, é um símbolo evidente de seu poder sobre as forças militares dos franceses. O céu está quase que completamente nublado, ampliando a gravidade do ambiente.
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Em relação ao exército, que está em segundo plano, o artista produziu uma inversão na disposição tática de um campo de batalha ou da que ocorre durante a progressão de uma tropa: a Artilharia está disposta à frente. Esta, porém, devido a sua importância pelo poder de fogo de que dispõe se posiciona atrás das tropas regulares como as peças de maior valor em um jogo de xadrez. O sentido pretendido com essa incoerência fica em suspenso. Mais ao fundo um aglomerado de forcados e lanças, semelhante ao apresentado em outro dos quadros de David, “A intercessão das Sabinas”, simbolizaria a Infantaria, e, por conseguinte o povo francês em armas para a defesa da República. Em sua retaguarda é possível divisar um ícone revolucionário, a bandeira tricolor a tremular. Entretanto, outra leitura deste evento, nos foi apresentada para discutir a interferência do artista na construção de uma representação ou sugestão de uma realidade.
O também francês Hippolyte Delaroche (1797-1856) pintou, entre 1848 e 1850, uma versão divergente da altiva imagem elaborada por David para o general corso: no quadro “Napoleão cruzando os Alpes”, o líder militar enverga um casaco sem as cores do jaquetão da pintura anterior. Sua espada não mais está à mostra. Nem se destaca a magnificência de sua montaria, posto que agora seja um muar. Sua aparência é de abatimento, a mão esquerda ainda mantemse no controle das rédeas, mas a direita se oculta então na vestimenta. A frente de seu exército, representado por poucos homens que o seguem logo atrás e que demonstram, pelas fisionomias encobertas, sentir o efeito do extremado clima, o líder é conduzido pela estreita passagem durante uma tempestade de neve por um homem, o qual não enverga um uniforme ou quaisquer indicativos de condição militar e está a pé.
Napoleão cruzando os Alpes. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/File:Delaroche_-_ Bonaparte_franchissant_les_Alpes.jpg>. Acesso em 30 de março de 2011. Original: óleo sobre de tela de 289 por 222 cm.
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A representação imagética de um acontecimento anteriormente ocorrido na primavera, mas ambientado durante uma intempérie no inverno, aumentou a gravidade. No período de produção dessa obra a França, assim como muitos outros países da Europa, foi convulsionada pelos emergentes movimentos de trabalhadores, que reagiam a um processo de industrialização crescente, o qual beneficiava a poucos e demonstrava que o ideal de igualdade pregado pelos revolucionários estava cada vez mais distante da realidade. Antigos adversários dos franceses estão em ascensão no contexto como a Inglaterra e os estados que viriam a se unificar sob a denominação de Alemanha. Uma nova escala de valores para uma sociedade em acelerado processo de mudança como analisou Hobsbawn (2002). Os ideais libertários da Revolução Francesa foram suplantados pelos liberais da Revolução Industrial. Neste sentido, os ícones revolucionários, Como Napoleão, estavam sendo desentronizados e o possível horizonte
de expectativas discutido por Koselleck (2006) era incerto. 2º momento: antes que a morte nos separe, ou o apagamento de memórias. De volta ao contexto original, pelas relações que estabeleceu com Napoleão, e pelas sugestões que propôs a este para o embelezamento de Paris, David foi designado como o Primeiro Pintor (primatius pictor) com poderes para determinar os cânones estéticos quando o general corso tornou-se imperador dos franceses. Outra obra do pintor neste período que suscitou nosso questionamento é o quadro “A distribuição das Águias” (1810, Museu Nacional do Castelo de Versalhes). A pintura remete ao acontecido no Campo de Marte, em Paris, no dia 5 de dezembro de 1804, alguns dias após a coroação, quando então, como imperador da República da França, Napoleão “consagrou” os estandartes e as bandeiras dos regimentos do exército e da Guarda Nacional.
Esboço do quadro A distribuição das Águias. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/ File:Study_For_The_Distribution_Of_The_Eagle_Standards.jpg>. Acesso em 30 de março de 2011.
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Para produzi-la David elaborou diferentes estudos a fim de definir a melhor estratégia. Todavia, a ingerência da política foi o que determinou a sua formatação final. Pois, até 1808, Josefina constava dos mesmos esboços, sentada atrás do Imperador: o divórcio de ambos se constituiu em um enorme problema para o pintor, significando a reconfiguração de quase toda a metade esquerda do quadro para que a “memória”, a presença da Imperatriz, e de pessoas a ela
relacionadas, fosse totalmente apagada na representação pictográfica. A l é m d e s s a s a d e q u a ç õ e s, f o ra m eliminadas na imagem algumas influências ainda perceptíveis no esboço, resquícios da estética rococó, para normatiza-la aos novos tempos do “racionalismo”, como o anjo pairando sobre as bandeiras e estandartes. E estas também não estão mais todas em riste, mas algumas, as mais próximas a Napoleão, já se apresentam depostas em um indício dissimulado de submissão ao monarca.
A distribuição das Águias. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/ File:David_-_Le_Serment_de_l%27armee_fait_a_l%27Empereur.png>. Acesso em 30 de março de 2011. Original: óleo sobre de tela de 610 por 930 cm.
O repasse das despesas dessa e de outras obras “reconfiguradas” foi considerado uma despesa demasiado alta pelos encomendantes do Imperador. E este teria sido o motivo principal de o pintor ser gradativamente preterido em favor de Antoine-Jean Gros (1771-1835), seu discípulo, que quase monopolizou as comissões oficiais a partir deste momento. Assim, seu poder no campo da administração artística foi conservado, mas deixou gradativamente de ser o intérprete dos feitos napoleônicos.
3º momento: de simples cidadão a governante, ou a construção do líder. Nesta última etapa abordaremos a construção da imagem de Napoleão como condutor da nação francesa através do contraste entre duas representações de características análogas: o quadro “Bonaparte como Primeiro Consul” (1804, Museu de Belas Artes de Liege) pintado por JeanAuguste Dominique Ingres (1780-1867), discípulo de David; e a imagem feita por este, “Napoleão em seu escritório” (1812, Galeria Nacional de Arte de Washington).
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No trabalho de Ingres, Bonaparte, que ainda não se particularizou como Napoleão, nas funções de Primeiro Consul republicano, apesar de ostentar destacada vestimenta, não enverga nesta nenhum signo indicativo de sua condição. Talvez sob inspirações pósrevolucionárias. A mobília demonstra uma acurada composição, sem ser ostentosa. Mas, não são estes os caracteres essenciais da imagem.
a esquerda oculta, mas distante da espada, em um sugerido gesto de arrefecimento dos ânimos. Assim como a janela ao fundo com as cortinas entreabertas indicando o início de seu trabalho já nas primeiras horas do dia. Seu olhar demonstra segurança sem ser impositivo. Forja-se então a imagem de um laborioso legalista. No quadro elaborado posteriormente por David, o ambiente é mais reservado e suntuoso, sendo, portanto, mais condizente com a posição do então Imperador que ostenta um uniforme militar com insígnias do posto ocupado e algumas condecorações que se tornaram característicos em outras representações suas. Os objetos na pintura também são dispostos de modo a reforçar a imagem anteriormente descrita na formulação de Ingres.
Bonaparte como Primeiro Consul. Disponível em: <http://www.intofineart.com/upload1/file- admin/ images/Jean%20Auguste%20Dominique%20Ingres1. jpg>. Acesso em 30 de março de 2011. Original: óleo sobre de tela de 247 por 212 cm.
Consideramos de maior relevância alguns outros indícios no quadro como o posicionamento das mãos: inicialmente a da direita apoiando-se sobre um manuscrito que representaria a elaboração de leis tão necessárias ao retorno da normalidade politica, e o consequente respeito a estas; e 74
Napoleão em seu escritório. Disponível em: <http:// rpmedia.ask.com/ts?u=/wikipedia/commons/ thumb/4/40/Napoleon_in_His_Study.jpg/300pxNapoleon_in_His_Study.jpg>. Acesso em 30 de março de 2011. Original: óleo sobre de tela de 204 por 125 cm.
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A figura de um líder infatigável desde as primeiras horas da madrugada é sugerida pela hora demarcada no grande relógio postado na parede ao fundo, insinuando que o monarca dedicaria cada vez mais horas do seu dia a tarefa de administrar a nação e solucionar seus problemas. Sua espada está distante do corpo, deposta sob alguns papéis que induziriam a considerá-la submetida às leis. Assim, a imagem aludiria ao fato de que mesmo o próprio Imperador não estaria acima destas normatizações. Considerações finais No início do século XXI, com a percepção s a t u ra d a c o n s t a n t e m e n t e p o r u m a infinidade de imagens de ampla variedade tipológica – sobretudo das em movimento, disponibilizadas pelas produções em vídeo e mídias eletrônicas –, sem uma adequada estratégia de abordagem, tendemos a considerar mais o aspecto da fruição estética nas elaborações pictográficas de períodos anteriores, minimizando o papel de suas funções simbólica e cognitiva sobre o possível público espectador. Para além da simples plasmação estética, geradora por si de possíveis sentimentos referentes ao que se procura representar, o ordenamento de indícios simbólicos na imagem produz também sensações que na ambientação adequada podem induzir o espectador a reflexão sobre suas significações, quando não a absorvê-los como ilustrações para o vivido. Neste sentido, através da exposição e análise de algumas produções imagéticas da primeira metade do século XIX, procuramos demonstrar a estreita, porém dissimulada, relação entre produção artística e contexto politico. Conexão esta cada vez mais presente a partir do momento ponderado. Todavia,
devido à própria amplitude das fontes que abordamos, outros questionamentos de caráter análogo estão em aberto para prospecção. Assim, consideramos no itinerário empreendido que aproximar-se da imagem pelos seus diferentes aspectos constitui-se em tarefa mais do que necessária para avaliar mais acuradamente seus possíveis sentidos. Referências Bibliográficas ABRIL CULTURAL. David. São Paulo: Abril S.A. Cultural e Industrial, 1968. Gênios da Pintura, 52. ARGAN, G.C. El Arte Moderno: 1770-1970. Traducido por Joaquín Espinosa Carbonell. Valencia-España: Fernando Torres-Editor, 1984. BENOIST, L. História da Pintura. Tradução de Hermano Neves. Lisboa-Portugal: Publicações Europa-América Limitada, 1970. (Coleção Saber; 71) HOBSBAWN, E. J. A era do capital, 1848-1875. Tradução de Luciano Costa Neto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. HOLLINS, D. The Battle of Marengo 1800. OxfordUnited Kingdom: Osprey, 2000. (Campaign, 70). JACQUES, A. A imagem. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Campinas: Papirus, 1993. (Ofício da arte e forma). KOSELLECK, R. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006. MONTEVERDI, M (org.). “A arte francesa de 1350 a 1850”, in: As Belas-Artes: Enciclopédia Ilustrada de Pintura, Desenho e Escultura. Lisboa: Grolier Incorporated; Imprimarte Lisboa-Portugal, 1967. Volume 5.
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Imagem, Memória e Informação: um tripé para o documento fotográfico Miriam Paula Manini Possui Bacharelado e Licenciatura em Ciências Sociais pela UNESP/Araraquara, 1987; Mestrado em Multimeios pela UNICAMP, 1993; Especialização em Conservação e Preservação Fotográfica pelo Centro de Conservação e Preservação Fotográfica da FUNARTE, 1994; Especialização em Organização de Arquivos pelo Instituto de Estudos Brasileiros da USP, 1998; e Doutorado em Ciências da Comunicação (Área: Ciência da Informação) pela ECA/USP, 2002. Desde 2002, é professora do Curso de Arquivologia e do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade de Brasília, atuando principalmente com os seguintes temas: Memória e Informação, Cinema e Arquivo, Leitura e Indexação de Imagens, Análise Documentária de Fotografias, Conservação de Documentos em geral. É líder do Grupo de Pesquisa Imagem, Memória e Informação; membro do Grupo de Pesquisa e Extensão da Câmara dos Deputados Vídeo Digital na Câmara dos Deputados: a relação entre preservação digital versus memória institucional e membro do Grupo de Pesquisa em Preservação de Bens Culturais.
Resumo
Este texto é resultado de reflexões em torno de três eixos conceituais que orbitam em torno da fotografia: imagem, memória e informação, aqui chamados de tripé fotográfico. Dividido – não de maneira absoluta – também em três partes, quais sejam Fotografia como Imagem, Fotografia como Memória e Fotografia como Informação, o trabalho reúne esta tríade que conforma o documento fotográfico presente não só em arquivos, mas em outras instituições reconhecidas como lugares de cultura e memória. Em Fotografia como Imagem, a abordagem gira em torno dos signos constituintes e observáveis na imagem fotográfica a partir de análises orquestradas por Charles Sanders Peirce, apresentadas por Philippe Dubois, e passando também pelo crivo semiológico de Roland Barthes. Em Fotografia como Memória, trabalha-se o aspecto do registro perpetuador do referente, resultante da abordagem acima, que torna a fotografia um objeto do passado e, portanto, um objeto de memória, fazedor de lembranças, provocador de rememorações e ponto inicial de narrativas memorialistas. Em Fotografia como Informação, voltamos ao tema da representação e da análise documentária de fotografias, ferramenta da Ciência da Informação e da Documentação no acesso e compartilhamento de memórias. Palavras-chave: Fotografia; imagem; memória; informação.
Abstract
This paper is the result of reflections around three main concepts that revolve around photography, image, memory and information, here called photographic tripod. Divided – absolutely not – also in three parts, which are Photography as Image, Photography as Memory and Photography as Information, the work session this triad that makes up the photographic document not only present in archives, but in other institutions recognized as places of culture and memory. In Photography as Image the approach revolves around the constituent signs and observable in the photographic image from analysis orchestrated by Charles Sanders Peirce, presented by Philippe Dubois, and also passing through the semiological sieve of Roland Barthes. In Photography as Memory, working on the aspect of the record concerning the perpetrator, resulting from the above approach, which makes the photograph an object from the past and, therefore, an object of memory, maker of memories, recollections and provocative starting point for narratives. In Photography as Information we return to the issue of the representation and analysis of documentary photographs, tools of Information Science and Documentation in accessing and sharing memories. Keywords: Photography; image; memory; information. Recebido em: 12/03/2011
Aprovado em: 03/05/2011
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Miriam Paula Manini
Imagem, Memória e Informação: um tripé para o documento fotográfico
Introdução Assim como Barthes (1984) postula o “isto foi”1, Benjamin (1987) refere-se à fotografia como “imagem do passado”, e a ela imputa o caráter aurático 2, pela capacidade – entre outras – de suspender num objeto um recorte de espaço/tempo. Essa possibilidade da fotografia – que é, na verdade, essência de sua existência – é que a torna um objeto de memória. A memória é algo a que chegamos após um processo de abandono da presença e/ou da existência de alguém, de alguma coisa ou de algum fato. Ela nos mostra quem somos, pela “aquisição, formação, conservação e evocação de informações” (IZQUIERDO, 2002, p. 9). Parece fúnebre pensar que a fotografia é uma imagem viva e, ao mesmo tempo, morta: oferece o referente tal e qual, fustigado, porém – e morto – pelo instante do clique. Metáfora semelhante foi proposta por Cartier-Bresson3, que comparava o disparador da máquina a uma arma de fogo, com a qual se fere mortalmente o objeto fotografado, caça e caçador num embate silencioso, só quebrado pelo tiro. A mortalha fotossensível eterniza, contudo, o referente, relegando-o a um lugar de memória.
Estando a fotografia em tal locus de memória, é necessário alinhar esta imagem técnica aos seus ancestrais e também aos seus descendentes, num processo de meta-memória. Imagem, pintura rupestre, caverna, ídolos, símbolos, adoração do sagrado; gravura; pintura barroca, realista, expressionista, impressionista, cubista, dadaísta; litografia, fotografia, cinema, história-em-quadrinhos, fotonovela, televisão, vídeo, ícones, holograma, imagem digital: o olhar também precisou evoluir para conseguir abranger, varrer, decupar, interpretar e produzir sentido ao longo da história das imagens, especialmente com relação àquelas que se tornaram documentos. Fotografia como imagem
Manini. Florianópolis, 2008.
Servindo-se da teoria peirceana dos signos, Dubois (1986) propõe uma análise semiótica da fotografia que caminha por estas três concepções: a fotografia como espelho do real (Ícone), a fotografia como prova do real (Índice) e a fotografia como transformação do real (Símbolo).
Barthes (1984, p. 115) afirma que, se algo foi fotografado é porque “isto foi”, ainda que se tenha representado a cena (a fotografia e seu análogo). Coberto ou continente de aura (trata-se, a princípio, de um neologismo que já vem sendo usado há algum tempo nesta acepção). 3 Henry Cartier-Bresson (1908-2004), fotógrafo francês de grande expressão e importância no século XX. Cunhou – e, mais que isso, realizou – o conceito de momento decisivo, segundo o qual a fotografia é resultado de espera para o melhor disparo, no instante ideal, para registro mais desejável pelo fotógrafo. 1
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Imagem, Memória e Informação: um tripé para o documento fotográfico
Dubois coloca que, com a fotografia, já não se pode pensar a imagem fora do ato que a torna possível. Então, é impossível dissociar o conteúdo da imagem de sua contextualização histórica (em se tratando, especialmente, de um documento fotográfico), assim como é importante associar a forma (técnica) da fotografia à sua expressão. O ato fotográfico não é só o momento da tomada, o clique do fotógrafo, mas a produção da imagem, a recepção e/ou a contemplação da mesma. Assim sendo, esta abordagem da recepção de que fala Dubois é fundamental para analisar o documento fotográfico não só sob a perspectiva da Semiótica, mas também pelo da Ciência da Informação. Dubois se propõe a fazer um apanhado histórico das ideias que foram construídas a respeito da relação da imagem fotográfica com o referente nela representado. Para tanto, articula três abordagens possíveis da imagem fotográfica, baseadas na teoria peirceana dos signos. Em primeiro lugar Dubois coloca a fotografia como ícone, ou seja, a fotografia como espelho do real, recorte espaçotemporal, analogia referencial. Esta categoria se utiliza do discurso da mímesis e coloca a fotografia numa relação de semelhança com o referente; é uma representação na medida em que se cobre de verdade e de autenticidade. A fotografia icônica é vista como um análogo do real, como observou Barthes (1984, p. 15, p. 114 e segs., p. 127-129).
V. I. Lênin em fotografia impressa, em seu gabinete no Kremlin. Moscou, outubro de 1918. http:// www.stel.ru/museum/soviet_state. htm, acesso em 02/4/2011.
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Neste exemplo para o ícone, o registro de Lênin em seu escritório espelha a realidade deste personagem no momento da tomada: é um recorte de espaço-tempo e a imagem é análoga ao real fotografado. Já a segunda categoria proposta por Dubois é a fotografia indicial. Trata-se da fotografia como marca do real, marca no sentido de traço, de prova, de sinal da realidade. Esta categoria dá à fotografia a qualidade de ser vestígio, marca, registro de uma realidade. Inseparável de sua existência referencial, ela testemunha: trata-se de uma representação por conexão física com o referente4. A fotografia como índice utiliza o discurso da referência para fazer ver a realidade inegável de uma imagem, apesar da consciência dos inúmeros códigos envolvidos em sua construção.
Nome: Fernanda D’Umbra. Postada em 15/9/2005. <http://semgelo.zip.net/ arch2005-09-01_2005-09-30.html>, acesso em 02/4/2011.
Na acepção utilizada ao longo deste trabalho, qualquer fotografia é um índice. Este retrato 3 X 4 cm indica que esta é Fernanda: é a marca, um traço, uma prova da realidade da estudante naquele momento; há uma conexão física entre a fotografada e a sua imagem. A fotografia como símbolo é uma outra categoria: trata-se da fotografia como transformação do real. A fotografia como símbolo é aquela sobre a qual recaíram elementos tais como ideologia, cultura, sociedade, estética e até mesmo técnica (um conjunto de códigos); é uma representação por convenção. O discurso de que se utiliza
Ela é mais fatual que as outras categorias, mas não menos válida no sentido histórico.
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Miriam Paula Manini
é o do código e o da desconstrução, já que está ligada à ideia de transposição, de análise, de interpretação e de transformação do real, uma codificação cultural da imagem. Primavera. Duane Michals. < h t t p : / / l a u ra k i n g i m a g e s. b l o g s p o t . c o m / 2 0 0 9 / 11 / duane-michals-one-my-favorite. html>, acesso em 02/4/2011.
O exemplo para o símbolo é uma fotomontagem, na qual um homem solta flores pela boca, numa evidente transformação da realidade através da fabricação de um referente ou da criação de um efeito que se faz de referente. Sobre esta imagem recaiu o elemento técnica: uma reconstrução da composição da fotografia. O índice refere-se à realidade, à dimensão ontológica da fotografia, à sua essência, absolutamente pertencente à indicialidade. O ícone e o símbolo remetem a dimensões diferentes – e distintas entre si –, mais da ordem do representacional e, por isso, ilimitado: é indício5 e não índice. Barthes (1984) tornou absoluta a questão da mímesis fotográfica com a sua ideia do análogo: a imagem não é o real, mas seu análogo perfeito, uma mensagem sem código. Entretanto, a grande contribuição de Barthes é justamente a de ter trazido a concepção da gênese automática da mensagem sem código que é, para ele, a fotografia. Fotografia como memória Eu não dei por esta mudança, tão simples, tão certa, tão fácil: em que espelho ficou perdida a minha face? Poema Retrato, de Cecília Meireles.
A memória é, por si só, uma espécie de imagem; certamente não uma fotografia, mas 5
um desenho, que esboçamos na mente, de maneira tímida e que pode, sim, completarse na visualização de uma fotografia; e esta viria como um fio de meada cinematográfica, impondo um verdadeiro filme às nossas lembranças. Como indaga Ricoeur (2007, p. 61), seria a lembrança uma imagem que fazemos do passado? A fotografia, no caso, sendo exatamente uma imagem que se faz do passado, é um objeto que pressupõe rememoração. A consciência íntima que temos da passagem de tempo acaba sendo abalada e certificada pelo testemunho do objeto fotográfico. O efeito da imagem fotográfica sobre a memória é devastador. No exercício historiográfico, quando confrontamos dados históricos textuais com fotografias podemos corrigir a memória escrita e reformular aquilo que já se conhecia. A definição mais antiga de fotografia – após o significado etimológico escrita com a luz – diz ser ela um recorte de espaço da realidade num determinado momento (tempo). Este objeto que carrega um fato, coisa ou pessoa do passado – e cada clique tem seu passado imediatamente criado – insere-se instantaneamente na categoria de objeto de memória. Pessoas, grupos, sociedades, povos inteiros poderão reconhecer numa fotografia um referente aurático de sua própria história. Na fotografia doméstica, é a memória familiar; na fotografia do mundo do trabalho, é a memória institucional; no fotojornalismo, é a memória social e política; na fotografia documental, é a memória histórica. Nada marca melhor a aura-memória da fotografia do que o “isto foi”. Na esteira dos teóricos da modernidade, Barthes (1984 e
Índice: prova cabal; Indício: sinal, prova circunstancial.
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1990) sempre apontou que o sentido da imagem é o fotografado, o objeto fotográfico, estando o fotógrafo (como operador) em segundo plano, e o meio fotográfico também: esta é a fotografia documental. O objeto é o referente real; o “isto foi”, ou seja, algo da ordem da memória. A fotografia, no momento em que nasce, já é um objeto do passado. A relação que a imagem fotográfica indicial mantém com o referente é marcada pelos princípios da conexão física (principalmente espacial, mas, por vezes, também temporal6), da singularidade, da designação, do testemunho e da memória. As noções de sentido e existência colocadas por Dubois para a fotografia em geral são também importantes para o caso do documento fotográfico. A fotografia enquanto índice afirma a existência de seu referente, mas não diz coisa alguma sobre ele, a não ser aquilo que é dado aos olhos ver; seu significado não é priorizado. A p r i m e i ra e a m a i s i m p o r t a n t e consequência teórica da categoria indicial é que a fotografia, tomada em seu princípio de marca, é sempre necessariamente singular. Também por sua gênese, a fotografia testemunha ontologicamente aquilo que dá a ver: a fotografia certifica, ratifica e autentica (e isto não tem a ver com o seu significado ou sua autenticidade probatória). Já a imagem fotográfica icônica mantém com o referente uma relação de mímesis, de representação e analogia, marcada pelo fator semelhança. A fotografia como ícone relaciona seu referente com realidades semelhantes e exige do profissional da informação ou do receptor um repertório mais largo. 6 7
A imagem fotográfica simbólica, por sua vez, amplia ainda mais a atuação – e a liberdade – de quem a analisa ou observa, pois mantém com o referente uma relação de convenção, estabelecida através de conexões filosóficas, culturais, ideológicas, sociais, etc. Finalizando a questão da produção ou gênese do ato fotográfico, é bom lembrar que antes e depois dele, do momento da tomada em si, existiu uma realidade que conduziu à tomada e, depois dela, outros acontecimentos – especialmente culturais – terão ou continuarão tendo lugar. Estas são questões levantadas por Philippe Dubois e reforçam o aspecto temporal da fotografia. Schaeffer (1996), por sua vez, trata da imagem fotográfica mais como signo de recepção que de emissão, lançando a ideia do ícone indicial. Ele inicia, de fato, sua defesa do ícone indicial definindo os limites da imagem fotográfica: aquém estaria o fotograma e além estaria a radiografia. Enquanto o fotograma é impressão direta, contato com o suporte, contorno do referente, a radiografia é projeção, trespasse, reflexo. É entre estes dois pólos que se movimenta o índice fotográfico “na função analógica de sua realização icônica” (SCHAEFFER, 1996, p. 55). Ao analisar mais de perto o documento fotográfico sob o prisma da Semiótica, nesta perspectiva de Schaeffer, chegamos a algumas observações. Schaeffer (1996) trata do signo fotográfico, mas fala da fotografia enquanto registro, enquanto conceito, enquanto procedimento; portanto, não limita sua análise a um tipo ou outro de fotografia. No nosso caso, há um recorte: pensamos sempre na fotografia enquanto documento7, pertencente a um acervo de imagens, detentora de uma informação – espera-se –
Ver exemplo da fotografia da garrafa, mais adiante. Lembrando que o Índice é uma categoria que dá à fotografia a qualidade de ser vestígio, marca, registro de uma realidade. Inseparável de sua existência referencial, ela testemunha: trata-se de uma representação por conexão física com o referente.
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devidamente contextualizada. A qualidade de ser um documento, entretanto, não tira dessa fotografia o caráter de procedimento, o caráter de ser, enfim, uma fotografia simplesmente. Quando buscamos ou observamos uma fotografia, é primeiramente a imagem em si que nos interessa e, secundariamente, seu modo de emissão, sua autoria, etc. Entretanto, não só interessa seu conteúdo, mas a forma como este conteúdo é expresso: de alguma maneira é a este conjunto que observamos quando olhamos para uma fotografia. Para buscar com mais exatidão os vestígios icônicos e indiciais da fotografia, Schaeffer escolhe a melhor definição do que esta venha a ser: imagem do tempo. Verifica-se a verdade desta afirmação ao analisar o registro que a fotografia faz do tempo: ela só o faz através de uma extensão espacial. Usamos como exemplo a fotografia de uma garrafa com seu conteúdo pela metade; deduzimos que em momento anterior à tomada fotográfica, aquela quantidade ausente foi consumida, derrubada ou despejada: o espaço vazio da garrafa indica o tempo passado e o consumo da bebida. Neste caso, o ícone fotográfico (garrafa pela metade da fotografia a seguir) induz uma conclusão: torna-se o índice perfeito do tempo (a conclusão, a marca, o sinal da passagem de tempo).
PLISSART, Marie-Françoise. Droit de regards. Paris: Minuit, 1985, p. 77. (Roman-photo).
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Nesta fotografia, retirada de uma narrativa fotográfica sequencial, a garrafa na mão da menina aparece sem parte de seu conteúdo: dentro da história, esta relação de tempo passado e tempo presente é muito importante; esta fotografia narra quem esteve ali (alguém que tem por hábito beber) antes (tempo passado). O ponto alto, entretanto, da contribuição de Schaeffer é o quadro que resumimos a seguir, sem, porém, esgotar as análises possíveis em torno dele. O quadro mostra as oito estratégias comunicacionais da imagem, ou seja, protocolo de experiência, traço, testemunho, descrição, rememoração, recordação, mostração e apresentação. Schaeffer modalizou as combinatórias entre Tempo e Espaço, Indicialidade e Iconicidade e Entidades e Estados de Fato. Enquanto a Indicialidade e a Iconicidade têm a ver com a natureza do Representamen (o significante), e Tempo e Espaço se referem ao Interpretante (o significado), Entidades e Estados de Fato são distinções sugeridas pelo Objeto (o referente)8. Se tomarmos a fotografia de Lênin (algumas páginas acima) para introduzir nesta grade de análise, sendo esta fotografia um exemplo de ícone, então a imagem de Lênin seria da ordem da recordação e da rememoração (em termos de tempo) e da apresentação e da mostração (em termos de espaço). A recordação e a rememoração são estados reflexivos em que se coloca o receptor: há uma garantia de reconhecimento temporal, de memória. A apresentação e a mostração dão ênfase à coisa que é mostrada: o recorte espacial é apresentado.
Lembrando que um signo é um significante ou representamen tomando o lugar de um referente ou objeto através de uma relação que estabelece um significado ou interpretante (Peirce, 1999).
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Interpretante Entidades R e p r e s e n t a m e n
Estados de fato
Temporalidade (+)
Espacialidade (+)
Espacialidade (-)
Temporalidade (-)
Índice (+)
Ícone (-)
Traço
Protocolo de Experiência
Ícone (+)
Índice (-)
Recordação
Rememoração
Descrição
Testemunho Apresentação
Mostração
Fonte: Schaeffer, 1996, p. 66.
A moça da fotografia 3 X 4 cm (algumas páginas acima), no papel de índice, estaria na categoria de traço e de protocolo de experiência (em termos temporais) e de descrição e testemunho (em termos espaciais). O traço e o protocolo de experiência servem como uma prova, através da fixação do tempo, enquanto descrição e testemunho são da ordem de um análogo espacial. O índice fotográfico está mais relacionado ao que Schaeffer chama de protocolo de experiência, traço, testemunho e descrição (onde se localiza a informação fotográfica), enquanto o ícone fotográfico se refere mais à rememoração, à recordação, à mostração e à apresentação (lugares da mensagem fotográfica). Há mais a presença de temporalidade no traço, no protocolo de experiência, na recordação e na rememoração, ao passo que à espacialidade estão mais ligados a descrição, o testemunho, a apresentação e a mostração.
O documento fotográfico pode pretender imitar a realidade (ícone) e pode até ambicionar transformá-la (símbolo); entretanto, ele é muito mais testemunha da realidade (índice), registro de seu referente, com o qual mantém uma contiguidade física. Esta noção de contiguidade, ainda que suplantada pela questão do tempo que respira entre o ato fotográfico e a transformação do resultado – a imagem – em documento, investe, contudo, à fotografia o caráter de registro histórico, ou seja, de objeto de memória. Fotografia como informação Qué es la historia sin registro? Qué es la historia sin memoria? Quién la cuenta, quién la inventa? Quién la olvida, quién la borra? Memória, Grupo Erreway
Na tentativa de buscar uma melhor forma de tratar as informações contidas
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em documentos fotográficos sempre nos deparamos com outros estudos que declaram a dificuldade notória em tratar deste assunto com acurácia. Uma recuperação eficaz depende de uma indexação inteligente, permeada de estratégias e esmerada em amplificar não a quantidade, mas a qualidade do atendimento às necessidade informacionais do usuário de imagens fotográficas. A intensidade da fome de fotografias de um pesquisador frente a um “prato” de imagens é proporcional à dificuldade que encontra em se alimentar: munido dos talheres de sua necessidade informacional, seleciona do cardápio aquilo que lhe parece apetitoso e nutritivo; muitas vezes, entretanto, fica sem saber se há maiores e melhores delícias naquele bistrô. Quando nos debruçamos em navegação nas janelas da Internet, mesmo que encontremos uma imagem procurada, ficamos sem saber se há outras, melhores (no sentido técnico e também informacional), impossíveis, entretanto, de serem recuperadas através dos dados por nós fornecidos. Quando a imagem migra para o domínio do código e perde sua presença, seu aqui e agora, submetida às operações de cálculo e modelização, o que está em jogo não é apenas uma mudança de suporte ou de regime semiótico, mas a substituição do par Olho-Natureza pelo Cérebro-Informação. [...] a imagem não traz mais consigo a duração do olhar: a operação do olho bloqueia a operação da memória que acumula imagens (velha e persistente concepção). (GUIMARÃES, 2002, p. 153 e 158).
Não se trata apenas do não-objeto fotográfico, mas da capacidade de transformar a coisa dada em informação e, daí, em conhecimento. Buckland (1991) explora os níveis informação como coisa, informação como processo e informação como conhecimento. A partir de suas observações, 84
podemos aplicar ao documento fotográfico uma abordagem semelhante, baseada na leitura que se faz da fotografia. Para a Ciência da Informação interessa o significado e o contexto da imagem fotográfica. Portanto, o documento fotográfico precisa passar pelo crivo leitor de produção de sentidos – através do uso de métodos e técnicas existentes – que abarque, também, a localização da imagem fotografada no tempo, no espaço e no organismo pulsante que é o acervo fotográfico enquanto repositório institucional de documentos e memória. [...] os testemunhos sobre o passado oferecidos pelas imagens são de valor real, suplementando, bem como apoiando, as evidências dos documentos escritos. É verdade que, especialmente no caso da história dos acontecimentos elas freqüentemente dizem aos historiadores que conhecem os documentos algo que essencialmente eles já sabiam. Entretanto, mesmo nestes casos, as imagens têm algo a acrescentar. Elas oferecem acesso a aspectos do passado que outras fontes não alcançam. (BURKE, 2004, p. 233).
Pela tríplice concepção de Buckland: • Fotografia como Informação como Coisa → Objetos fotográficos (negativos de vidro e flexíveis, positivos em papel, diapositivos); • Fotografia como Informação como Processo → a pesquisa histórica contextualizadora da imagem e sua correlação com outros documentos – fotográficos ou textuais ou outros quaisquer – na construção e/ou amplificação de sentido da imagem; • Fotografia como Informação como C o n h e c i m e n t o → re s u l t a d o s d e investigações e pesquisas de caráter comparativo entre fotografias e textos históricos.
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Annateresa Fabris, comentando as análises pré-fotográficas de Willian Ivins Jr.9, aponta: A fotografia passa a desempenhar de imediato duas funções utilitárias dos processos gráficos: é uma fonte de notícias e um registro de documentos. Enquanto a primeira função não é prerrogativa exclusiva da fotografia, a segunda torna-se seu domínio privilegiado, pois só ela é capaz de fornecer um registro visual que possa ser usado como meio de estudo, de análise. (FABRIS, 2006, p. 158)
Saber observar – e saber ler – imagens fotográficas é resultado de muito exercício. Quem foi educado na primeira infância pela Caminho Suave (LIMA, 2010), uma cartilha de alfabetização pela imagem, sai ganhando nesta trilha não muito fácil – embora lúdica e prazerosa – que se espera nos leve à produção de sentidos através da leitura imagética.
Fonte: LIMA, Branca A. Caminho suave (renovada e ampliada). São Paulo: Edipro, 2010.
Sabe-se que a leitura de fotografias demanda muitas lentes, a saber: • É necessário conhecer alguns detalhes básicos de técnica fotográfica para se entender o mínimo do processo de produção de uma fotografia;
9
• É preciso ter algumas noções de processos fotográficos históricos – e isso já inclui a fotografia digital – para poder avaliar a data ou período em que a fotografia foi produzida (e, até, avaliar se uma imagem fotográfica sofreu adulteração física ou digital); • É bom que se esteja imbuído de uma predisposição epistemológica que conduza a reflexões em torno do objeto fotográfico para, através dele e com ele, estabelecer relações com outras fontes de conhecimento e, assim, gerar, informação; • É fundamental estabelecer minimante uma geografia da imagem e saber escolher a melhor direção para uma varredura que permita uma decupagem ampla e rica em detalhes para a promoção de mais dados informacionais sobre a fotografia; • É desejável que se saiba reconhecer estilos, períodos, escolas e até fotógrafos numa mirada inicial da fotografia, o que certamente fornecerá um outro tanto de informações úteis. Saber observar cuidadosa e lentamente uma imagem hoje em dia é muito difícil; isto soma um grau a mais de dificuldade às tarefas acima. Entretanto, é fundamental que se saiba ler uma fotografia antes de proceder à sua análise documentária. Conclusão A Ciência da Informação trabalha com representações; através de suas operações, conceitos representam documentos, termos representam textos escritos ou imagéticos (entre outros). A fotografia, por sua vez, pode ser tida, também, como uma representação. Ela, enquanto recorte de espaço-tempo pode
IVINS Jr., W. M. Imagen impresa y conocimiento: análisis de la imagen prefotográfica. Barcelona: Gustavo Gili, 1975.
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ser tomada como parte da realidade, como representação do real. Entretanto, para isto concorrem as três categorias de Peirce e não apenas o índice. Ele mesmo já dizia que nenhuma de suas três categorias existe em estado puro e que cada uma se apóia nas outras, de uma ou de outra maneira. A fotografia não é a mãe das imagens no que se refere à sua idade, mas com certeza é a matriarca das imagens técnicas. A possibilidade de copiar o real em pedaços de papel através da guilhotinada no tempo e no espaço, e o fato de conformar um dispositivo fotográfico físico (ótico) e, posteriormente, químico, relega à fotografia um papel revolucionário nas ciências, nas artes e na sociedade. O funcionamento de tal dispositivo fotográfico é constituído pela impressão, pelo registro visível de traços, tons, cores e outros detalhes que caracterizam a fotografia. Segundo Schaeffer, no campo da materialidade do funcionamento do dispositivo fotográfico, [...] a fotografia é uma impressão e, no âmbito semiótico, ela é um índice. Toda fotografia em igualmente impressão e índice [...]” (SCHAEFFER, 1996, p. 44-5).
Sua reprodutibilidade infinita trouxe possibilidades inumeráveis e as primeiras consequências disto já foram computadas por Benjamin (1987). Para além de ser embrião do cinema, a fotografia é o germe de várias outras transformações, perpassando a informática, a eletrônica, a computação e suas subáreas. A promessa e o vaticínio de Baudelaire10
de que a fotografia serviria às ciências e às artes, e as infundadas opiniões de que ela substituiria a pintura são dois grandes marcos reativos – ou reacionários – à invenção da fotografia. Longe de ser substituta do pincel, do olho e da mão humana, a fotografia é, ao contrário, ponto de origem do desenvolvimento de outras técnicas, de vários setores artísticos e de inumeráveis aplicações científicas. Após ser vista como uma quase-mágica da representação fiel do referente, provocando sentimentos inequívocos de admiração e se tornando objeto de desejo de todos que a ela podiam ter acesso, a fotografia vem mostrar seu caráter de registro e de documento (não ainda no sentido arquivístico), evidenciado no testemunho de um tempo-espaço, passível de ser utilizada como prova e já marcando indelevelmente seu espaço de/na memória. Por tudo isso que caracteriza a fotografia como imagem, o tratamento informacional do documento fotográfico em acervos (seja em Arquivos, Bibliotecas, Centros de Documentação e Memória ou Museus) aponta para a necessidade de se conhecer processos fotográficos históricos (inclusive a fotografia digital), linguagem fotográfica e narrativa fotográfica, para melhor elaborar estruturas que conectem com mais acurácia a fotografia ao usuário de imagens. Referências BARTHES, Roland. A câmara clara; nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso; ensaios críticos III. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
“Nesses dias deploráveis, uma nova indústria surgiu, que muito contribuiu para confirmar a tolice em sua fé... de que a arte é e não pode deixar de ser a reprodução exata da natureza... [...] Se for permitido à fotografia substituir a arte em algumas de suas funções, em breve ela a suplantará e corromperá completamente, graças à aliança natural que encontrará na tolice da multidão. É preciso, pois, que ela cumpra o seu verdadeiro dever, que é o de servir às ciências e às artes. Charles Baudelaire apud Benjamin, 1987, p. 107.
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Imagem, Memória e Informação: um tripé para o documento fotográfico BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, in Obras escolhidas; magia e técnica, arte e política. 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 165-196. BUCKLAND, Michael K. Information as thing. In: Journal of the American Society of Information Science, v. 42, n. 5, p. 351-360, 1991. BURKE, Peter. Testemunha ocular; História e imagem. Bauru: EDUSC, 2004. (Coleção História). DUBOIS, Philippe. El acto fotografico: de la representación a la recepción. Barcelona: Paidós, 1986. (Paidós Comunicación, 20). FABRIS, Annateresa. A imagem técnica: do fotográfico ao virtual, in FABRIS, A.; KERN, Maria Lúcia B. (org.s). Imagem e conhecimento. São Paulo: EDUSP, 2006, p. 157-178. GUIMARÃES, César. O novo regime do visível e as imagens digitais. In: VAZ, Paulo B., NOVA, Vera C. (org.s). Estação imagem; desafios. Belo Horizonte: UFMG, 2002, p. 147-161. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2004.
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Imagens da Contrarreforma Espanhola no Brasil: a vida de São João da Cruz na Igreja da Ordem Terceira do Carmo de Cachoeira, Bahia Roberta Bacellar Orazem
Graduada em Artes Visuais licenciatura pela Universidade Federal de Sergipe e graduada em Design Gráfico pela Universidade Tiradentes. Especialista em Artes Visuais pela Universidade Federal de Sergipe. Mestre em Artes Visuais pela Universidade Federal da Bahia. Atualmente, cursa Doutorado em Arquitetura e Urbanismo, com linha de pesquisa em História da Cidade e do Urbanismo, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Publicou e apresentou os resultados de suas pesquisas em anais de congressos e eventos nacionais e internacionais, principalmente aqueles relacionados à história da arte e à história das religiões e religiosidades.
Maria de Fátima Hanaque Campos
Possui graduação em Belas Artes pela Universidade Federal da Bahia, mestre em Artes pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Doutorou-se em Historia da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto – Portugal. Professora titular da Universidade Estadual de Feira de Santana(UEFS) e leciona no curso de licenciatura de História. Publicou artigo HQ uma manifestação artística em Historia em Quadrinhos: leitura crítica organizado por Sonia Bibe(1984); vem publicando estudos sobre Nair de Teffé e o pioneirismo na caricatura no Brasil e mestres e aprendizes na pintura baiana (1790-1850).
Resumo
No teto da nave central da igreja da Ordem Terceira do Carmo de Cachoeira (estado da Bahia), há um conjunto de onze pinturas em caixotões produzidas no século XVIII. As imagens mostram cenas sobre a história da Ordem do Carmo, enfatizando a doutrina divulgada pelos princípios da contrarreforma e pela reforma religiosa dentro da Ordem do Carmo, ambas realizadas no século XVI. No conjunto pictórico, predominam as representações de dois santos carmelitas espanhóis, que são ícones da Idade Moderna, Santa Teresa D’Ávila (1515-1582) e São João da Cruz (15421591). Sendo assim, o presente estudo enfatiza a análise iconográfica-iconológica de quatro pinturas desse acervo colonial, as quais retratam cenas da vida de São João da Cruz. As temáticas privilegiam diferentes fases da vida do santo, além de representá-lo como místico e exorcista, e adorador do Cristo em martírio e próximo à Nossa Senhora. Essa representação da vida de São João da Cruz é rara em conjuntos pictóricos nas igrejas laicas carmelitas do Brasil, tendo em vista que há uma predominância de imagens de Nossa Senhora e Santa Teresa D’Ávila. As principais fontes de pesquisa para a análise são as séries de gravuras sobre a vida do Santo Carmelita, produzidas, em sua maioria, no século XVII na Europa, e suas biografias escritas após sua morte. Palavras-chave: Pintura colonial; São João da Cruz, iconografia.
Abstract
On the roof of the nave of the church of the Third Carmelite Order in Cachoeira city (Bahia state), there is a set of eleven paintings produced on wood in the eighteenth century. The pictures show scenes about the history of the Carmelite Order, emphasizing the doctrine announced by the principles of Contrarreforma and religious reform within this Order, both held in Sixteenth century. Overall pictorial representations of two predominant Spanish Carmelite saints, who are icons of the Modern Age, Santa Teresa Avila (1515-1582) and St. John of the Cross (1542-1591). This study emphasizes the iconographiciconological analysis of four colonial collection of paintings, which depict scenes from the life of St. John of the Cross. The thematic focus different stages of life of the saint,also represent him as a mystic and exorcist, and adoring the Christ and martyred near Our Lady. This representation of the life of St. John Cross is rare in pictorial sets in the churches of the secular Carmelites in Brazil, with a predominance of images of Our Lady and St. Teresa of Avila. The main sources of research for analysis are the series of engravings about the life of the Holy Carmelite produced, mostly in the seventeenth century in Europe, and their biographies written after his death. Keywords: Colonial painting; St. John of the Cross; iconography. Recebido em: 10/03/2011
Aprovado em: 28/04/2011
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Roberta Bacellar Orazem; Maria de Fátima Hanaque Campos
Imagens da Contrarreforma Espanhola no Brasil: a vida de São João da Cruz na Igreja da Ordem Terceira do Carmo de Cachoeira, Bahia
Introdução O presente artigo tem o objetivo de realizar uma análise iconográfica e iconológica, com base na técnica de Panofsky (2007), de quatro pinturas de teto em caixotões que fazem parte do conjunto pictórico da nave central da igreja da Ordem Terceira do Carmo de Cachoeira, Bahia. A pesquisa se desenvolveu a partir fontes bibliográficas diversas, mas, sobretudo, de gravuras antigas, datadas do século XVIII, a fim de realizar uma identificação das narrativas da vida de São João da Cruz. Em um primeiro momento, uma breve contextualização histórica, identificando temporal e espacialmente as imagens, ou seja, a sua produção e presença na igreja da Ordem Terceira do Carmo de Cachoeira no século XVIII. Posteriormente, procedeu-se a análise iconográfica e iconológica, na tentativa de confirmar que todas as quatro cenas pertenciam à vida de São João da Cruz, e que se enquadravam como imagens contrarreformistas espanholas representadas em uma igreja carmelita no nordeste do Brasil.
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O repertório artístico/arquitetônico da igreja da Ordem Terceira do Carmo em Cachoeira/ Bahia O conjunto arquitetônico do Carmo em Cachoeira, estado da Bahia, é composto pela igreja e convento da Ordem Primeira, interligados ao conjunto da igreja da Ordem Terceira (claustro, consistório, igreja e capelacemitério). Apesar de não achar documentos da época que comprovem as obras da igreja, existem indícios sinalizando que o templo tenha sido construído na primeira metade do século XVIII e decorado na segunda metade do século XVIII. Essa prática foi recorrente nas igrejas de associações de leigos do período colonial, sendo o momento de apogeu econômico das instituições religiosas no Brasil.1 Um dos exemplos identificou-se na fachada da igreja, em cima da porta principal, sob o símbolo dos carmelitas, uma datação que pode ser lida como 1724 ou 1742. Esse detalhe foi questionado por alguns pesquisadores como Bazin (1983), Ott (1998) e Calderón (1976), que não chegaram a um consenso, mas a data mais provável é 1742.
O Arquivo da Ordem Terceira do Carmo de Cachoeira possui alguns documentos do século XVIII, XIX e XX. Todavia, nos estudos que fizemos recentemente no ano de 2008 e 2009, não localizamos nenhum documento que sinalizasse a encomenda, por parte da irmandade, das pinturas aqui mencionadas. Por outro lado, sabemos que a Ordem Terceira do Carmo encomendou a algum pintor a realização dessas pinturas e que provavelmente foi na segunda metade do século XVIII. No período colonial, a Ordem Terceira do Carmo foi uma irmandade laica de pessoas brancas e abastadas, em Cachoeira, essa regra foi seguida à risca.
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Imagens da Contrarreforma Espanhola no Brasil: a vida de sâo joâo da cruz na igreja da ordem terceira...
São diversos os elementos arquitetônicos e artísticos da Ordem Terceira do Carmo de Cachoeira que, em sua maioria, representam distintos momentos estilísticos do Barroco e do Rococó, além de típicos elementos da arquitetura produzida no período colonial do Brasil. O interior da igreja é considerado ainda hoje pelos estudiosos da área como sendo uma das construções baianas do período colonial, fora da cidade de Salvador, de maior destaque artístico em seus elementos decorativos, de inestimável patrimônio cultural. Estudiosos da história da arte, como Bazin (1983), Calderón (1976) e Ott (1998) compararam-na com a igreja da Ordem Terceira do Carmo de São Francisco de Salvador, Bahia. Nesse sentido, considerou-se que a igreja da Ordem Terceira do Carmo de Cachoeira tem um vasto repertório pictórico, onde a pintura integra-se à arquitetura através da decoração da talha Barroca e Rococó. Existem, no total, trinta e oito pinturas: onze pinturas de teto em caixotões, emolduradas com talha dourada; três pinturas sob o coro,
emolduradas com talha dourada e decorada; dezesseis pinturas nas paredes da nave central, oito de cada lado, e mais seis com a mesma distribuição, três de cada lado, com as mesmas características, na capelamor. Além destas, existe uma pintura central de medalhão dourado na sacristia e uma pintura de teto central no consistório. Todas as pinturas foram realizadas com a técnica da tinta a óleo, inserindo-as entre o século XVIII e XIX. Durante a pesquisa, não foram localizadas assinaturas ou marcas nos painéis que identificassem a data de execução das pinturas e a sua autoria, pelo menos não superficialmente, porque não houve a oportunidade de realizar intervenções que comprovassem esses dados. Além disso, não se localizou os documentos que notificassem essas informações, estas provavelmente estariam em algum Livro de Receita e Despesas da irmandade. Certamente, o conjunto pictórico foi, no período colonial, trabalho de mais de um oficial mecânico, ou seja, de pintores, de entalhadores e de marceneiros.
Figura 1. Pintura de teto em caixotões da nave central. Fonte: Roberta Bacellar Orazem, 2008
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Pinturas de Teto em Caixotões da Nave Central Na nave central da igreja da Ordem Terceira do Carmo de Cachoeira, encontramse, ao longo do forro, onze pinturas de teto em caixotões, estes, emoldurados e decorados com talha dourada e elementos fitomórficos, provavelmente produzidos na segunda metade do século XVIII. Os elementos decorativos comprovam a datação, tendo em vista que as pinturas possuem traços mais classicizantes e a talha é dourada, com poucos motivos decorativos fitomórficos e os espaços pintados em cor branca, sugerindo um estilo Rococó (ver figura 1). São cinco pinturas ao centro, ordenadas do coro até o arco-cruzeiro, e seis pinturas laterais, três de cada lado. Os temas principais são as vidas dos santos contrarreformistas espanhóis da Ordem do Carmo. Nesse universo, quatro imagens contam sobre a vida de João da Cruz2 e quatro sobre a vida de Teresa D’Ávila3 (ver figuras 2 e 3). O conjunto de pinturas representa os santos reformadores do Carmo e Nossa Senhora do Carmo, os quais a irmandade também teve predileção, representando a identidade da Ordem Terceira no período colonial. No forro do coro da Igreja, encontram-se as mesmas representações de Nossa Senhora do Carmo, sendo destacada
ao centro e os dois santos reformadores carmelitas. Nas pinturas, também aparecem outros personagens importantes para a Ordem do Carmo, Jesus Cristo, figura de devoção de ambos os santos espanhóis, além disso, historicamente, aparecem o santo fundador da Ordem, o Profeta Elias, e o santo que organizou as regras da Ordem no século XIII, São Simão Stock. A imagem de São João da Cruz Dentre o conjunto pictórico do teto em caixotões da nave central da igreja da Ordem Terceira do Carmo de Cachoeira, existem quatro pinturas que representam a vida do santo espanhol carmelita São João da Cruz. Existem, ainda, mais três pinturas onde o monge carmelita está ao lado de Santa Teresa D’Ávila, como se tivesse igual importância de devoção dentro da hierarquia da Igreja. Geralmente, nas igrejas da Ordem Terceira do Carmo localizadas no Brasil, encontra-se uma devoção principal à Nossa Senhora do Carmo e secundária à Santa Teresa D’Ávila. No Brasil, pinturas sobre a vida de São João da Cruz são raras, em sua maioria, o santo é representado ao lado de Santa Teresa D’Ávila, como sendo um dos personagens coadjuvantes da vida daquela monja. Nas igrejas da Ordem Terceira do Carmo de Recife/PE, João Pessoa/PB, São Cristóvão/
João de Yepes nasceu na região de Fontiveros, região da província de Ávila, Espanha, em 24 de junho de 1542; e morreu na cidade de Úbeda, região da província de Jaén, Espanha, em 14 de dezembro de 1591. Canonizado no século XVIII. Carmelita seguidor e defensor da Contrarreforma da Igreja no século XVII. Companheiro de Teresa D’Ávila junto a reforma ocorrida no mesmo período dentro da Ordem do Carmo, que impulsionou a divisão entre os carmelitas da Antiga Observância e a criação da nova vertente da ordem – os carmelitas descalços. O Frade João da Cruz foi responsável pela fundação dos conventos dos carmelitas descalços masculinos no reino católico ibérico. 3 Teresa de Cepeda e Ahumada nasceu na cidade de Gotarrendura, região da província de Ávila, Espanha, em 28 de março de 1515; e morreu na cidade de Alba de Tormes, região da província de Salamanca, Espanha, em 4 de outubro de 1582. Teresa D’Ávila ou de Jesus, santa espanhola muito famosa no período da contrarreforma, canonizada e beatificada pela igreja no século XVII. Em vida, foi uma das religiosas mais influentes em sua época, tendo contato com nobres, religiosos e reis de diversas partes do reino católico no século XVI. Teresa divulgou os preceitos da contrarreforma da Igreja, além disso, reformou a ordem religiosa dos carmelitas, formando uma nova vertente para a Ordem, os carmelitas descalços, fundando conventos femininos no reino católico ibérico. Após sua morte, sua fama se espalhou entre os devotos católicos de diversas ordens religiosas e diversas classes sociais, principalmente, entre os devotos da Ordem do Carmo Calçado e Descalço e entre leigos da Ordem Terceira do Carmo, inclusive no Brasil. 2
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Figuras 2 e 3. Localização e montagem, respectivamente, das pinturas no teto da nave central. Fonte: Roberta Bacellar Orazem, 2009.
SE, Salvador/BA, Rio de Janeiro/RJ, entre outras igrejas, existem séries de pinturas sobre a vida de Santa Teresa D’Ávila, em sua maioria, pinturas de teto em caixotões, onde pouco aparece a figura de São João da Cruz. Comumente, a imagem do santo carmelita consta somente na imaginária inserida nos retábulos laterais. Sendo assim, a representação da vida de São João da Cruz é uma exceção na igreja da Ordem Terceira do Carmo de Cachoeira. O estudo a seguir pretendeu descrever iconográfica e iconologicamente as quatro imagens do santo carmelita. Utilizou-se o método de
análise sugerido por Panofsky (2007), são três níveis: a) descrição pré-iconográfica, com a identificação das formas e identificações das relações como acontecimentos ou como qualidades expressionais, chamado como mundo dos motivos artísticos; b) iconográfica, com a ligação dos motivos artísticos e as combinações, composições com assuntos e conceitos, manifestos em imagens, estórias e alegorias; c) iconológica, com a apreensão de métodos de composição ou significação iconográfica. A descoberta e interpretação desses valores “simbólicos” é o objeto da iconologia.
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Confrontou-se as pinturas com algumas referências imagéticas, a principal é a série de gravuras intitulada “Vita mystici doctoris Sancti Joannis a Cruce [...]” do gravador italiano Zucchi, produzidas a partir da biografia do santo e escrita por Alberto de San Cayetano em 1748. Também apresentou-se outras gravuras avulsas europeias produzidas no século XVIII que retratam São João da Cruz. Além disso, algumas referências bibliográficas que citaram sobre o santo carmelita ou sobre a Ordem do Carmo foram elucidadas, a fim de se comprovar as narrativas presentes nas imagens em estudo. A primeira imagem a ser descrita é aquela onde está uma senhora com vestes vermelha e branca, envolvida por um manto azul, em cima de uma nuvem branca, que
possui raios de luz a emergir de sua cabeça. Ela segura e envolve com o manto azul um menino que possui uma vestimenta antiga, provavelmente utilizada na Idade Moderna, típica da Europa. Abaixo do menino está um buraco e um balde de madeira encostado na borda, algo parecido com um poço. A cena ao fundo sugere que estejam em um ambiente campestre, ao ar livre. Na parte superior da cena, em volta da senhora e do menino, existem três cabeças de anjo, uma à esquerda e duas à direita. À esquerda também existe um anjinho com um manto vermelho segurando uma faixa branca com os seguintes dizeres: “transierunt ambo per siccum”. No fundo da cena, existem muitas nuvens em tom amarelado se destacando no céu (ver figura 4).
Figura 4. Primeira cena da vida de São João da Cruz. Fonte: Eduardo Vasconcelos, 2008.
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Em um segundo momento, entende-se que a senhora está carregando o menino para fora do poço. Essa senhora não é uma pessoa comum, é uma santa, pelos raios que saem de sua cabeça, e pelas suas vestes vermelha e azul, compreende-se que seja Maria, mãe de Jesus Cristo. Nesse momento, não se consegue identificar quem seja o menino. A mensagem que o anjinho à esquerda está mostrando na faixa diz respeito a uma passagem bíblica, do livro primeiro dos Reis, momento em que Elias, junto a Eliseu, passa por sobre o Rio Jordão, antes de o Profeta ser arrebatado aos céus, por um carro de fogo e cavalos de fogo. A passagem é a seguinte: Tulitque Helias pallium suum et involvit illud et percussit aquas quae divisae sunt in utramque partem et transierunt ambo per siccum
traduzindo: E tomou Elias a sua capa, e dobrou-a, e feriu as águas, as quais se dividiram para as duas bandas, e passaram ambos a pés enxutos (1 Reis, 2-8) (BÍBLIA SAGRADA, 1979).
O Profeta Elias é uma figura importante para a ordem do Carmo, pois é considerado o seu fundador. A passagem no livro dos Reis
demonstra uma atitude santa de um profeta da Igreja, porque Elias teve capacidade de passar pelo Rio Jordão com Eliseu e ambos não molharam os pés. Portanto, o anjo da cena da pintura da igreja da Ordem Terceira do Carmo de Cachoeira anuncia que: ambos transitaram, mas não molharam os pés. A cena de Nossa Senhora arrebatando o menino encontra-se em uma das primeiras representações da vida de São João da Cruz. A sua biografia conta que, quando ainda era menino – com a idade de sete anos, ele teve a visão de Nossa Senhora que salva um menino que se afogava em um poço. Encontrou-se uma cena semelhante representada iconograficamente na gravura nº 4 da série de gravuras do italiano Zucchi, produzidas no século XVIII. Na cena, identificamos Maria salvando o menino de dentro do poço com um pedaço de madeira. Na gravura, é lida a seguinte frase em latim: “S. Iohannes a Cruce quinquennis in puteum vi Demonis prolapsus, Deiparae manu integer evadit.” Grosso modo, a tentativa de tradução desta frase é a seguinte: “São João da Cruz aos cinco anos em um poço viu demônios e teve uma queda, a mão da Mãe de Deus o salva, e ele fica inteiro.” (ver figura 5).
Figura 5. Gravura nº4 da série de gravuras da Vita mystici doctoris Sancti Joannis a Cruce... de Zucchi para a biografia escrita por Alberto de San Cayetano (1748). Fonte: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, disponível em: <http:// www.cervantesvirtual.com>, acesso em: 3 set. 2009.
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Identificou-se, portanto, a cena da vida do Santo, quando tinha cinco anos e, ao cair em um poço, foi salvo por intervenção de Nossa Senhora, comprovando sua relação santa, como filho de Deus, ao ser amparado pela Virgem desde pequeno. A cena da gravura de Zucchi é muito semelhante à cena da pintura da igreja da Ordem Terceira do Carmo de Cachoeira. Na primeira, notaram-se muitos elementos quase idênticos com a segunda imagem, como a roupa da Virgem, sua posição em cima de uma nuvem, os raios que saem de sua cabeça, uma paisagem campestre ao fundo, o buraco do poço, e, principalmente, as roupas do menino, onde se encontrou uma semelhança na gola da sua camisa e nas mangas. Na pintura da igreja, percebeu-se que o pintor reinterpretou a cena, inserindo alguns elementos, como o balde ao lado do poço, talvez para enfatizar que aquele elemento é um poço de água, as cabeças de anjos e o anjinho que segura faixa com
a frase: “transierunt ambo per siccum”. Esta é pertinente ao contexto, uma vez que, na cena, Maria salva o menino João da Cruz de cair na água e, certamente, ambos saíram enxutos do episódio. A relação da cena da vida de São João da Cruz em imagem com a frase da cena da vida do Profeta Elias enfatiza a devoção da Ordem Terceira às origens da ordem do Carmo. A segunda imagem a ser analisada é a cena onde se identificou um religioso, com vestimenta de monge, reverenciando Jesus Cristo. Este, por sua vez, segura uma cruz, tem raios e uma coroa de espinhos em volta de sua cabeça e está sob uma nuvem. Na parte superior da cena, existem cabeças de anjinhos, assim como na pintura anterior. Ao fundo, identificaram-se elementos arquitetônicos, como se os personagens estivessem dentro de um edifício e, pela janela, vê-se um ambiente campestre com ruínas arquitetônicas (ver figura 6).
Figura 6. Segunda cena da vida de São João da Cruz.Fonte: Eduardo Vasconcelos, 2008.
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Na cena, chama atenção dois anjinhos, ambos seguram um medalhão com frases em latim. Identificou-se seguinte frase no medalhão da esquerda: “Quid vis pro laborius”; e no medalhão da direita: “et contemini pro te”. Ambas as frases são traduzidas: “que queres pelo trabalho”; “ antes sofrer a ser rejeitado por ti”. As palavras significam um diálogo íntimo de São João da Cruz com o Cristo – Jesus diz: “Ioanes quid vis pro laborius”; João responde: “Domini pati, et contemini pro te.” (“João que queres pelo trabalho. Deus pai, antes sofrer a ser rejeitado por ti”).
Essa cena é típica na hagiografia de São João da Cruz, é a representação ícone de sua santidade, a cruz e o misticismo (a atividade de ter a visão e se comunicar diretamente com Deus) são os seus maiores atributos. As cenas da vida do Santo produzidas a partir do século XVIII, tanto em gravura quanto em pintura, trazem imagens semelhantes. Em algumas delas, a representação de Jesus Cristo não é personificada, mas simbólica, com a presença do Cristo Crucificado, existem também cenas mistas com a presença de Santa Teresa de Jesus e seus atributos místicos (ver figura 7).
Figura 7. São João da Cruz contemplando o Cristo crucificado, gravura produzida em Segóvia no século XVIII. Fonte: Biblioteca Nacional de Espanha, disponível em <http://www.bne.es>, acesso em: 14 ago. 2009.
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Na série de gravuras de Zucchi, também se identificou uma cena semelhante, trata-se da gravura nº44 (ver figura 8), onde se localizou uma legenda com a seguinte frase em latim: “S. Io + anie Christi Crucem gestantis imaginem effusus in preces, ab eo interogatur his verbis: Ioannes quid vis pro laboribus, cui
hec alia ipse reponit: Domine pati, et contemini pro te”. Grosso modo, pode-se entender a frase da seguinte forma: “João da Cruz em prece viu o Cristo Crucificado, que explanou as seguintes palavras: João que queres pelo trabalho, com humildade ele responde: Deus pai, antes sofrer a ser rejeitado por ti”.
Figura 8. Gravura nº44 da série de gravuras da Vita mystici doctoris Sancti Joannis a Cruce... de Zucchi para a biografia escrita por Alberto de San Cayetano (1748).Fonte: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, disponível em: <http:// www.cervantesvirtual.com>, acesso em: 3 set. 2009.
A cena da gravura de nº 44 também tem alguma semelhança com a pintura da igreja da igreja da Ordem Terceira do Carmo de Cachoeira. Na primeira, há a cena de São João reverenciando o Cristo que segura a Cruz em suas costas, um ambiente arquitetônico interno e outro ambiente externo com outro elemento arquitetônico e uma árvore. Novamente, percebeu-se que o pintor da igreja acrescentou à cena os anjinhos, as cabeças de anjinho, os medalhões e a frase. Por fim, conseguiu-se identificar São João da Cruz na pintura da igreja, porque sua vestimenta é típica dos carmelitas descalços, 98
com manto e escapulário branco, túnica marrom e o uso de sandálias, ao invés de sapatos. Além disso, uma característica do Santo carmelita, em idade adulta já atuando como frei, é a tonsura em sua cabeça, típico corte de cabelo utilizado por religiosos da época. A terceira pintura a ser analisada tratase da imagem de um grupo de religiosos. Na cena, identificou-se um religioso em pé ao centro, com raios saindo de sua cabeça, segurando com a mão esquerda um pequeno livro e com a mão direita faz sinal de pregação; encontraram-se mais três religiosas de joelho
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olhando uma quarta religiosa à esquerda, deitada, com os olhos fechados, com o tom da pele do rosto amarelado, segurando em
seu peito um crucifico e um colar. No fundo da cena, identificou-se ainda um segundo religioso com a mão no peito (ver figura 9).
Figura 9. Terceira cena da vida de São João da Cruz. Fonte: Eduardo Vasconcelos, 2008.
Também foram identificados outros elementos na cena, como duas velas acesas, um crucifixo e um livro, uma mesa com uma toalha azul e dourado e um baldo no chão, ao lado da religiosa que está deitada. Foram vistas duas cabeças de anjo e algumas nuvens, na parte superior da cena. A imagem parece ser em um ambiente interno, talvez dentro de um cômodo conventual, onde tem uma janela que por ela se visualiza uma paisagem campestre. Todos os religiosos estão com as vestimentas da Ordem do Carmo Descalço, as monjas usam a mesma vestimenta dos frades, porém, usam véu de cor preta, típico das religiosas da vertente reformada descalça. Considerou-se a cena como sendo uma
passagem da vida de São João da Cruz quando faz a prática do exorcismo em uma religiosa na presença de outros religiosos tanto do sexo feminino quanto masculino. A imagem do santo como exorcista e ressuscitador é recorrente nos relatos de sua biografia, disseram que ele era famoso por expulsar os demônios dos corpos de algumas religiosas, até mesmo ressuscitando-as quando mortas. As mulheres, para a época, eram mais propensas a serem enganadas e possuídas pelos demônios. A simbologia do demônio também é recorrente nas imagens da contrarreforma. Identificou-se uma cena semelhante na gravura nº38 da série produzida por Zucchi, na cena, estão São João da Cruz que levanta
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uma mão em direção a uma religiosa e tem raios em sua cabeça. Essa religiosa está em cima de uma cama, olhando em direção ao Santo, com as mãos em oração. Atrás de São João da Cruz, encontra-se um religioso contemplando a cena. À direita, estão mais
duas religiosas de joelhos e com as mãos em oração. Na cena ainda identificou-se elementos parecidos com os da pintura da igreja, como o balde, que está pendurado na parede, a mesa, as duas velas, a toalha da mesa e o crucifixo (ver figura 10).
Figura 10. Gravura nº38 da série de gravuras da Vita mystici doctoris Sancti Joannis a Cruce... de Zucchi para a biografia escrita por Alberto de San Cayetano (1748).Fonte: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, disponível em: <http://www.cervantesvirtual.com>, acesso em: 3 set. 2009.
A cena da gravura confirma a cena da pintura da igreja, uma vez que representa de forma quase idêntica uma cena da vida do Santo onde é visível a capacidade do religioso em salvar as almas de religiosas. Tanto com a prática do exorcismo quanto com a prática da ressuscitação, utilizou-se de métodos tradicionais da Igreja, como o uso de elementos litúrgicos. A quarta pintura a ser analisada trata-se de uma cena onde foram identificados dois religiosos em um ambiente campestre, ao lado de um rio e de uma gruta. O religioso à esquerda tem sua cabeça envolvida por raios, tonsura na cabeça e alguns cabelos brancos, 100
ele está sentado em uma pedra e com uma vareta apoiada sobre a perna, como se fosse uma bengala. Um segundo religioso, à direita, está voltado para o primeiro religioso com o dedo indicador da mão esquerda levantado para cima e entregando um objeto (que, à primeira vista, não conseguimos identificar) com a mão direita (ver figura 11). De forma recorrente na análise, essa cena é muito semelhante a uma imagem da série de gravuras de Zucchi, trata-se da gravura nº 49. Nesta, há um ambiente campestre, com um rio e uma ponte, onde São João da Cruz está sentado e recebe de outro religioso carmelita descalço um maço de aspargos (ver figura 12).
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Figura 11. Quarta cena da vida de São João da Cruz. Fonte: Eduardo Vasconcelos, 2008.
Figura 12. Gravura nº49 da série de gravuras da Vita mystici doctoris Sancti Joannis a Cruce... de Zucchi para a biografia escrita por Alberto de San Cayetano (1748).Fonte: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, disponível em: <http://www.cervantesvirtual.com>, acesso em: 3 set. 2009.
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Essa cena diz respeito aos dias antes da morte do Santo carmelita, quando, em caminho a cidade de Úbeda, na Espanha, com a perna machucada (o ferimento em sua perna foi o motivo de sua morte), o religioso descansa próximo a uma ponte, chamada Puente de Ariza. Segundo a história de sua biografia, São João pediu aspargos para o seu companheiro de viagem chamado frei Ângelo. A região é até hoje famosa pelos cultivos de aspargos, todavia, naquela época em que o santo fez o pedido, não era período de se colher aspargos. Portanto, por um milagre de São João da Cruz, frei Ângelo encontra e entrega alguns aspargos. Na gravura de Zucchi, a frase em latim confirma a temática da imagem, existem alguns elementos semelhantes aos da cena quatro da pintura da igreja, como a presença de São João, o local campestre, e o religioso entregando os aspargos. Entretanto, na pintura da igreja do Carmo, o pintor reinterpretou retirando a ponte, certamente ele não sabia da importância dessa arquitetura de passagem para o contexto urbano da Espanha naquela época, pois a ponte é uma construção renascentista encomendada por um rei, conhecida até hoje como patrimônio arquitetônico espanhol. Além disso, ao saber que essa era a cena próxima à morte de São João da Cruz em idade mais avançada, retratou o religioso utilizando um graveto com função de uma bengala e alguns cabelos brancos. Considerações finais Após as análises, conclui-se que as pinturas da igreja da Ordem Terceira do Carmo foram produzidas com base nas cenas da vida de São João da Cruz. Certamente, o pintor
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se baseou na série de gravuras de Zucchi, que foi uma das oficiais e mais famosas produzidas para servir como hagiografia do Santo carmelita no século XVIII. Todavia, outras séries de gravuras semelhantes foram produzidas na mesma época, porque foi o momento após a sua morte em que ele foi canonizado e beatificado, justamente quando produziram hagiografias e biografias para representar e detalhar o seu modelo de santidade. Essa prática é uma característica da contrarreforma da Igreja que perdurou até meados do século XIX. A aquisição de gravuras oficiais do santo carmelita espanhol como também a escolha em representá-lo na nave central de sua igreja, atesta que a irmandade de leigos carmelitas de Cachoeira tinha bastante conhecimento para a época. Por serem pessoas brancas e abastadas, certamente tinham condições de adquirir livros e gravuras europeias através de encomendas. Essas informações eram transmitidas aos pintores que tinham como referência as séries de gravuras e o conhecimento da vida do santo. Nesse último caso, em algumas cenas, parece que o pintor da igreja da ordem terceira do Carmo de Cachoeira não tinha um conhecimento muito aprofundado nos detalhes da vida do Santo e do contexto espanhol. Finalmente, as quatro pinturas formam um conjunto consistente sobre a vida do santo carmelita espanhol, porque o representa em várias fases da vida (fase da infância, adulta, velhice), atestando que ele é místico, exorcista, ressuscitador, entre outros atributos, com imagens típicas da contrarreforma espanhola. Como dito no início, essa representação da vida do santo em igrejas da Ordem Terceira do Carmo é rara, sendo única no Brasil.
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Referências bibliográficas BAZIN, Germain. A arquitetura religiosa Barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1983. 2.v. BÍBLIA SAGRADA. Tradução: Padre Antônio Pereira de Figueiredo. São Paulo: Livraria Editora Iracema, 1979.
CALDERÓN, Valentin. O Convento e a Ordem Terceira do Carmo de Cachoeira. Salvador: Bradesco, 1976. OTT, Carlos. Atividade artística da Ordem 3ª do Carmo da Cidade do Salvador e de Cachoeira. Salvador: Secretaria de Cultura e Turismo, 1998. PANOFSKY, Erwin. Significado das artes visuais. Tradução: Maria Clara F. Kneese; J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2007.
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Soleni Biscouto Fressato Licenciada e bacharel em História, mestre em História pela UFPR e doutora em Sociologia pela UFBA. Pesquisadora do grupo de pesquisa Oficina Cinema-História, Núcleo de Produção e Pesquisas da Relação Imagem-História e Editora da Revista O Olho da História (www.oolhodahistoria.org). É organizadora, juntamente com Jorge Nóvoa e Kristian Feigelson, do livro Cinematógrafo. Um olhar sobre a história (EDUFBA, Ed. da UNESP, 2009) e autora de Caipira sim, trouxa não. Representações da cultura popular no cinema de Mazzaropi (EDUFBA,2011), fruto de sua tese de doutorado. Em parceria com Eliana Borges escreveu dois volumes do livro A arte em seu estado. História da arte paranaense (ED. Medusa, 2008) e com Fernando Cunha a coleção Criar e aprender: História (FTD, 2008), para as séries iniciais do ensino fundamental.
Resumo
Bonnie Parker e Clyde Barrow foram dois conhecidos ladrões de bancos e postos de gasolina que viveram os conturbados anos da depressão econômica nos Estados Unidos. A Bloody Barrow Gang fazia tremer o comércio e era vista como um sinal de revolta contra a miséria em tempos de crise. A partir de 1932, quando ocorreu o primeiro assassinato, eles começaram a ser perseguidos ferozmente pela polícia norte-americana. Em 1934, num tiroteio com a polícia de Louisiana, eles foram assassinados. Em 1967, período em que os jovens contestavam e desafiavam o poder, a história do casal vem novamente à tona com o filme Bonnie e Clyde – uma rajada de balas. Warren Beatty (Clyde) e Faye Dunaway (Bonnie) se transformaram nos símbolos de uma mudança de atitute da juventude frente às imposições sociais e morais. Diante do exposto, a proposta do presente artigo é analisar em que medida o filme Bonnie e Clyde é uma biografia do famoso casal de assaltantes norte-americano e, ao mesmo tempo, uma representação da juventude nos revolucionários anos 1960. Palavras-chave: Biografias cinematográficas; cinema-história; revolução e contestação.
Abstract
Bonnie Parker and Clyde Barrow were two known bank robbers and gas stations who lived through the turbulent years of economic depression in the United States. The Barrow Gang Bloody shook trade and was seen as a sign of rebellion against misery in times of crisis. From 1932, when the first murder, they began to be fiercely persecuted by the U.S. police. In 1934, in a shootout with police in Louisiana, they were murdered. In 1967, during which young people challenged and defied the power, the story of the couple comes to the fore again with the film Bonnie and Clyde. Warren Beatty (Clyde) and Faye Dunaway (Bonnie) became the symbols of a changing youth attitute against the impositions and social morality. Given the above, the purpose of this paper is to analyze to what extent the film Bonnie and Clyde is a biography of the famous couple of robbers U.S. and at the same time, a representation of youth in the revolutionary year 1960. Keywords: Biographies film; cinema- history; revolution and protest. Recebido em: 19/03/2011
Aprovado em: 30/04/2011
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Soleni Biscouto Fressato
As Duas Faces de Jano em Bonnie e Clyde – uma rajada de balas
Durante os créditos do filme, vemos fotos reais do casal de assaltante mais procurado de Dallas, durante os anos 1930. São fotos que nos revelam a verdadeira fisionomia de Bonnie Parker e Clyde Barrow, como eram seus familiares, como se vestiam e se comportavam. Em meio às fotos “verdadeiras” começam a se mesclar votos de Faye Dunaway e Warren Beatty já preparando o espectador para a mudança fisionômica que ocorrerá. Assim inicia Bonnie e Clyde – uma rajada de balas (Bonnie and Clyde, 1967), um projeto pessoal de Warren Beatty. O primeiro diretor cogitado foi François Truffaut, que chegou a ter contato com o roteiro, mas acabou se afastando para realizar um antigo projeto. Arthur Penn assumiu a direção, revelando influências da Nouvelle Vague, não alterando a proposta original da produção. O filme tem um projeto arrojado, tanto na forma como no conteúdo a idéia era chocar. Imagens violentas, nunca antes exibidas, povoam a narrativa. No início, o filme é bem calmo e parece que se trata de mais uma história romântica, com leves toques de humor. Porém, logo as cenas violentas surgem. Pela primeira vez na história do cinema, um tiro e uma pessoa sendo alvejada foram mostrados numa única imagem, impactando o expectador. Recuperar a história de Bonnie e Clyde também pode ser interpretado como um grito de contestação. A conservadora moral burguesa reclamou: por que trazer à cena um casal de assassinos e assaltantes? A juventude aprovou.
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Não é objetivo desse ensaio confrontar a biografia de Bonnie e Clyde com a representação do casal feita no filme, ainda que por vezes seja necessário recorrer à realidade biográfica, para melhor compreender a re p re s e n t a ç ã o c i n e m a t o g r á f i c a . A s representações fílmicas não conseguem ser fidedignas, os cineastas e atores possuem sua subjetividade e compreensão dos fatos, que acabam por influenciar na forma como produzem suas obras. Uma comparação entre a biografia e o filme, provavelmente levaria a um desprezo pelo filme, por ter omitido ou adaptado os fatos. Proponho-me a analisar o filme Bonnie e Clyde – uma rajada de balas, em seu duplo aspecto, enquanto reflexão sobre o passado, referenciando os conturbados anos 1930, e como testemunho do presente, uma vez que o casal de contraventores também pode ser compreendido como uma representação da revolucionária geração dos anos 1960. Os anos 1930 no filme: um passado sombrio Primeiramente nos Estados Unidos e por conseqüência em diversos outros países do mundo, os anos 1930 iniciaram sob a conjuntura de crise. Durante os anos 1920 a tão propalada prosperidade econômica norte-americana atingia apenas uma pequena camada da população, sendo que, 50% vivia abaixo da linha de pobreza. Em 1929, a situação se complicou com a queda da Bolsa de Valores de Nova York e em 1932 a crise
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atingiu o seu auge. Ricos empobreceram. Pobres ficaram miseráveis. O clima era de pânico. As filas por comida eram gigantescas, mulheres e crianças passaram a vasculhar no lixo algo para comer. Desempregados recorriam à mendicância ou benevolência das poucas instituições de caridade. Outros, desiludidos e sem expectativa, roubavam ou cometiam o suicídio. Situação representada na aquarela de 1932, intitulada sarcasticamente de “O capitalismo chegou ao apogeu”, de Bruno Voigt. A realidade de desespero se impunha em todos os lugares. Exemplo disso é o depoimento do escritor francês André Maurois, que ao desembarcar no porto de Nova York, em 1933, mesmo sabendo da situação de crise nos Estados Unidos, ficou assustado diante da realidade: eram 14 milhões de desempregados e aproximadamente 30 milhões vivendo da mendicância. Esse foi o ambiente de infância e juventude de Bonnie Parker e Clyde Barrow. Ele nasceu em 1909, ela um ano depois. Clyde teve menos sorte que Bonnie. Ele era o quinto filho de Cumie e Henry Barrow, um casal pobre que vivia das colheitas de algodão na cidade de Telico, Texas, ao sul de Dallas. A propriedade que cultivavam e o local onde moravam (muito distante de ser uma casa) não pertenciam a eles, e sim a um senhorio, que a qualquer momento poderia mandálos embora. Ainda não eram os anos da Grande Depressão e a vida já estava bem difícil. O preço da terra subia cada vez mais e do algodão só baixava. Os Barrow estavam muito distantes de ter sua própria fazenda. Era uma família carente: de casa, de alimento, de roupas e de carinho. O destemido Clyde sofreu alguns acidentes na infância e não foi à escola, sabia ler muito pouco. Jovem se envolveu em pequenos delitos e contravenções, muitas
vezes com seu irmão mais velho Buck Barrow. Buck, desde criança trabalhando nos campos de algodão para ajudar a família, gostava das rinhas de galo, proibidas no Texas. O perigo, a excitação, o sangue e um pouco de álcool de milho, fazia-o sentir-se mais homem e esquecer as plantações de algodão. Em busca de uma vida melhor, os pais de Clyde resolveram migrar para West Dallas. Numa carroça rústica levaram as poucas coisas que tinham. Não encontrando lugar para viver, se instalaram debaixo do viaduto Oak Cliff, conhecido como Acampamento de Desabrigados de West Dallas, convivendo com mais de 275 pessoas. Nessa época, Clyde era um adolescente bem pequeno e aparentava menos idade do que realmente tinha. Bonnie poderia ter um destino diferente se seu pai, Charles Parker, não tivesse falecido, de repente, no fim de 1914 e deixado sua mãe, Emma, com três crianças menores de sete anos. Nesse momento, a cidade de Rowena, Texas, estava prosperando, muitas construções (bancos, escolas, salões de boliche, etc) estavam sendo feitas, o que garantia trabalho para um habilidoso artesão como Charles. Mas, a morte chegou cedo demais e a viúva Emma migrou para Cement City, Dallas, para morar com os pais. Em Cement City, Bonnie cresceu em meio à pluralidade étnica (eram vários os grupos na cidade – hispânicos, italianos, alemães, morávios, chineses) e às procissões da Ku Klux Klan. Inteligente e meiga, escrevia poemas, participava de encenações teatrais na escola e era capaz de ouvir uma música apenas uma vez e depois tocá-la no piano. Mas, também era corajosa e destemida, envolvendo-se em brigas no pátio da escola contra os intimidadores e meninas malvadas. Foi uma mulher pequena, com menos de 1,40m e em torno de 45 quilos, de estilo
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rebelde e ousado, dona de um sorriso malicioso. Aos 15 anos se casou com Roy Thornton. O nome dele tatuado em sua coxa e o anel que simbolizava o casamento, a acompanhariam pelo resto de sua curta vida. Foi um casamento infeliz, Bonnie passava a maior parte do tempo na casa de sua mãe, enquanto Roy saia para cometer pequenos delitos. No final de 1927, dois anos depois, eles já estavam separados. Bonnie seguiu sua vida entediada, trabalhando como garçonete em diversos lugares, já que a crise começou a fechar os estabelecimentos. Aos 23 anos de idade, já integrando a gang de Clyde, ela não podia andar, devido às queimaduras de 3º grau que sofreu durante um acidente e às fortes dores reumáticas. No final de 1929, já assolados pela Grande Depressão, o já procurado pela polícia Clyde e a deprimida Bonnie se conheceram na casa de uma amiga em comum. Começava uma história de coragem, de amor, de fuga e de contravenção. No filme, ela está em seu quarto preparando-se para ir trabalhar numa lanchonete. É uma mulher jovem e bonita apesar do tédio que sente frente à vida monótona. Ele entra em sua vida como sinônimo de aventura e de superação da mediocridade. Ele é a velocidade do carro e o perigo das armas e dos assaltos. Conhecemse quando ele está pensando em roubar um carro e ela o vê da janela de seu quarto. Em poucas cenas, o que em tempo real corresponderia a apenas algumas horas, eles assaltam uma mercearia, roubam um carro e se descobrem perdidamente apaixonados, para só depois saberem que são Bonnie Parker e Clyde Barrow. Ela é garçonete que sai com homens que apenas se aproveitam de sua sensualidade. Já Clyde tinha acabado de sair da prisão, porque cortou dois dedos do pé. Algumas cenas depois, quando Buck 108
(Gene Hackman) e Clyde se encontram, o irmão mais velho afirma que Clyde só tinha essa alternativa frente aquela situação de quebrar pedras com marretas a noite toda. Na verdade, na prisão Fazenda Eastham, onde Clyde ficou preso de maio de 1930 a janeiro de 1932, a situação era bem pior. Torturas, espancamentos, humilhações e serviço forçado, o verdadeiro “inferno em chamas” ou a “Eastham sangrenta”, como era conhecida. E de fato muitos detentos praticavam a auto-mutilação para conseguir a condicional, como efetivamente fez Clyde Barrow. São várias as cenas que nos revelam a situação de completa miséria que assolou os Estados Unidos durante os anos 1930. Depois da fuga do assalto à mercearia, Bonnie e Clyde passam a noite numa casa vazia. Pela manhã, quando Clyde está ensinando Bonnie a atirar, revelando que tem boa pontaria e nenhum medo, eles encontram o antigo dono da casa. Ele e a família só passaram ali para se despedir. Primeiro a casa foi hipotecada, como a dívida não foi paga, o banco tomou o imóvel. Na frente da casa se vê uma placa com o nome do banco. Bonnie afirma que a situação é uma vergonha e Clyde atira na placa, depois passa a arma para o antigo proprietário, que também atira. Um quarto personagem compõe a cena, um negro, amigo do proprietário, juntos eles trabalharam na fazenda. O negro também dá um tiro na placa. Esses tiros são símbolos da vingança, como se decretasse a morte do banco e de toda a situação de pobreza, imposta pelo capitalismo. Clyde se apresenta como um assaltante de bancos, Bonnie sorri e o fazendeiro aprova. Em outra cena, o primeiro banco que a dupla Bonnie e Clyde tenta assaltar está falido, situação bem comum na época. A gang dos Barrow tinha que observar durante
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algum tempo o movimento dos bancos, para ter certeza de que tinham dinheiro para ser roubado. Já no final do filme, outra cena nos revela a situação de pobreza. Após uma fatídica emboscada policial, Buck está morto, Blanche (Estelle Parsons), esposa de Buck, cega numa prisão, Bonnie e Clyde seriamente feridos. C.W. Moss (Michael J. Pollard) tenta desesperadamente salvá-los. Eles param num acampamento, são várias as famílias que estão ali, homens, mulheres e crianças vivem em barracas, com pouca comida e pouca água. A depressão os tirou de seus lares, os colocou na completa miséria. Moss pede água e quando os moradores reconhecem que os feridos são Bonnie e Clyde também lhes dão comida. Nesse momento Bonnie e Clyde já são conhecidos pelo grande público, os jornais não param de explorar suas imagens, atribuindo-lhes crimes que não cometeram, os colocando em locais que nunca estiveram e os chamam de “o grupo veloz dos Barrow”. Buck faz de tudo para ser reconhecido como integrante do bando. Ao sair dos assaltos, fala para os donos dos bancos: sou Buck Barrow. Eles ficam orgulhosos de verem seus nomes nos jornais, mesmo quando não gostam das mentiras que contam. O casal se transforma no símbolo da resistência à repressão econômica, é como se todos quisessem assaltar os bancos, que hipotecavam e tomavam suas casas, mas apenas Bonnie e Clyde tinham coragem. Buscando a sobrevivência, eles se transformaram em ídolos de toda uma geração. Outras cenas nos revelam o caráter do casal. Durante outro assalto – quando C.W.Moss, Buck e Blanche, já integram o bando – a um banco, eles se recusam a roubar o dinheiro de um homem humilde, também vítima da depressão, que estava
ali penhorando sua fazenda. Após o assalto, numa entrevista aos jornais, esse homem afirma: “agiram certo comigo, pretendo levar flores no funeral deles.” Essas palavras assumem um tom profético e são concretizadas no final do filme, quando Bonnie e Clyde são brutalmente assassinados. Interessante também é a relação de Clyde com a violência, apesar de praticar assaltos a mão armada, ele não quer ferir ninguém. Ele fica desolado quando fere um homem que tentou mata-lo no assalto à mercearia. E sente-se culpado ao matar pela primeira vez. Essa primeira morte foi um acidente. O inexperiente C.W. Moss, apesar de já ter passado pelo reformatório, estaciona o carro, enquanto Bonnie e Clyde entram para assaltar o banco. A dificuldade em tirar o carro da vaga, dá tempo para que um dos funcionários do banco tente impedir a fuga, pendurando-se no estribo do carro. Não vendo alternativa, Clyde atira nele, ferindo-o mortalmente na cabeça. Para fugir da polícia, eles se refugiam numa sala de cinema. Clyde está desesperado e culpa C.W. Moss, que está em prantos, afirmando: “você também matou aquele homem”. Bonnie se diverte vendo o filme Cavadoras de ouro (Gold diggers of 1933), de 1933. Na tela, belas moças cantam que a depressão acabou e todos estão ricos. Aliás, ir ao cinema era um hábito de Clyde e Bonnie. Ainda menino, Clyde fugiu da fazenda onde morava e foi para a cidade, apenas para assistir uma sessão de cinema. Bonnie freqüentava as salas quase diariamente, era onde ela afogava as mágoas de sua vida idiotizada de garçonete. O apego que Bonnie tinha com a mãe também é representado no filme. Ela está deprimida e insiste com Clyde que quer ver a mãe. Apesar do perigo, ele acaba consentindo e organizam um piquenique. A cena foi filmada em Oak, no Texas, e parece um sonho, distante da realidade da gangue.
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A paixão da juventude dos anos 1930 pelas tatuagens também é presente em Bonnie e Clyde – uma rajada de balas. C.W. Moss faz uma grande tatuagem no peito, escolhida por Bonnie. Na verdade, tanto Bonnie como Clyde haviam feito tatuagens antes de se conhecerem. Ela tatuou na coxa o nome de seu primeiro marido e ele no braço, os nomes das ex-namoradas. No filme, a emboscada que põe fim à vida do casal parece ser por vingança. O Patrulheiro do Texas, Frank Hamer (Denver Pyle), identifica a gang em fuga, no Missouri, e resolve prendê-los, mesmo estando fora de sua jurisdição. Com o ato, ele busca prestígio e poder. Porém, seu intento fracassa e Bonnie, para puni-lo e desmoralizá-lo, tem um plano. Fazer várias fotos de Frank com o bando, distribuir aos jornais, para que seus amigos de profissão pensem que o patrulheiro tem boas relações com os assaltantes. Clyde e Buck concordam. Algumas fotos são feitas. Num rompante, a audaciosa Bonnie dá um beijo na boca de Frank, que retribui com uma cuspida em seu rosto. Clyde enlouquece, o espanca e o coloca, com as mãos amarradas e sem remo, num barco à deriva no rio. A partir desse episódio, Frank considera um ponto de honra pessoal e profissional prender Bonnie e Clyde. Obcecado, ele passa a perseguir o casal, até que, com a ajuda do pai de C.W. Moss consegue armar uma emboscada e mata-los. Interessante observar que, a emboscada só foi bem sucedida, porque Clyde, em sua generosidade, reconhece o pai de C.W., que os havia hospedado quando estavam feridos, na estrada precisando de ajuda para consertar seu carro. O erro de Bonnie e Clyde foi parar para ajudar o homem traidor. Frank sabia que Clyde não deixaria alguém que o tinha ajudado para trás. Na verdade o Texas Ranger Frank Hamer, que não conhecia pessoalmente Bonnie e 110
Clyde, usou métodos de detetive para armar a cilada para Bonnie e Clyde. Primeiro, identificou as rotas pelos estados do Texas, Oklahoma, Kansas, Missouri, Arkansas e Louisiana. Depois, como sabia que um dos membros da gangue, Henry Methwin, tinha parentes em Louisiana, convenceu o seu pai a entregar a dupla. Eles foram assassinados, dentro do carro, no dia 23 de maio de 1934, com 187 tiros. Clyde estava dirigindo de meias e Bonnie comia um sanduíche. Apesar de estarem completamente apaixonados, a relação de Bonnie e Clyde do ponto de vista sexual não era satisfatória. Pelo menos não para ela, que gostaria de ter um companheiro mais presente e atuante. Quando Bonnie e Clyde se encontram pela primeira vez e ele diz que é assaltante, o faz mostrando uma arma. Ela passa os dedos pelo cano numa clara insinuação sexual. Porém, logo depois de praticarem o primeiro assalto, durante a fuga no carro em alta velocidade, Bonnie está feliz e busca sexo. Clyde não a corresponde, chega a empurrá-la, e diz que não é do tipo garanhão. Em outra cena, novamente Clyde não se sente excitado a ponto de transar e então temos a confirmação de que é impotente. Bonnie diz que isso não é um problema, que o amor dos dois é mais forte, mas várias vezes ela cobrará dele um posicionamento mais ofensivo. A primeira vez acontece, numa cena mágica, logo depois que Bonnie lê o poema que escreveu sobre a história de Clyde, publicado num jornal: A história de Bonnie e Clyde Conhecem a história de Jesse James Sabem como viveu e morreu Se ainda querem algo pra ler Eis a história de Bonnie e Clyde. Bonnie e Clyde formam a gangue Barrow Sei que todos já leram Sobre como eles assaltam e roubam E aqueles que delatam
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As Duas Faces de Jano em Bonnie e Clyde – uma rajada de balas São achados à morte ou já mortos São chamados de assassinos impiedosos Dizem que são cruéis e mesquinhos Mas posso dizer com orgulho Que eu conheci Clyde Quando era honesto, integro e decente Mas a polícia se meteu com ele E vivia humilhando-o E sempre o trancava numa cela Um dia, me disse: “Jamais serei livre Então, levarei alguns para o inferno.” Se um policial é morto em Dallas E não tem pistas a investigar Se não acham um culpado Eles se livram da responsabilidade Acusando Bonnie e Clyde. Se tentam agir como cidadãos E alugam um apartamento qualquer Na terceira noite são convidados a brigar Por metralhadoras, rá-tá-tá-tá Um dia, serão mortos juntos E enterrados lado a lado Para poucos, tristeza Para a lei, alívio Mas será a morte para Bonnie e Clyde.
Ele fica comovido e diz que jamais alguém o compreendeu tão bem. Ele havia prometido fazer algo por ela e naquele momento quem fazia algo por ele, era ela. Ela o tornou conhecido, ninguém se esqueceria de Clyde Barrow e de sua história. Mesmo sem sexo, a cumplicidade é latente entre eles. Cumplicidade que se manifesta no olhar, segundos antes de morrerem e de terem certeza de seu destino. Realmente foi a morte para Bonnie e Clyde. Um ano após o lançamento do filme, em 1968, Serge Gainsbourg e Brigitte Bardot, com base no poema do filme, gravaram a música Bonnie and Clyde. O filme e a música fazem, deliberadamente, uma ligação entre Jesse James e Bonnie e Clyde. James foi um contraventor do oeste norte-americano, que viveu no século XIX e sofreu com a Guerra de Secessão. Sua vida tem alguns pontos em comum com a de Clyde Barrow.
Contestação e contravenção: a juventude dos anos 1960 Roupas coloridas, cabelos longos, amor e sexo livre, consumo de drogas. Essa é a imagem perpetuada da juventude anos 1960. Juventude que é muito bem caracterizada pela palavra rebeldia. Rebeldia contra os padrões morais, contra os ultrapassados valores, mas fundamentalmente, uma rebeldia política, contra as guerras e conflitos armados. Em meados dos anos 1940, com o final da Segunda Guerra Mundial, ocorreu uma acentuada elevação no nível de escolaridade em diversos países do mundo. As universidades perderam seu caráter elitista e um número cada vez maior de jovens teve acesso a outras realidades não somente por meio do estudo, mas de viagens de intercâmbio, de palestras de professores estrangeiros e pelos meios de comunicação de massa (rádio, cinema e televisão). Nesse contexto, a juventude passou por um processo de conscientização social e política, denunciando as injustiças sociais. A reação aos problemas sociais deu-se de várias formas, com pichações, passeatas, comícios, greves, ocupação de faculdades e o tão conhecido movimento hippie, que pregava a paz e o amor universais. E m 1 9 61 , e s t u d a n t e s j a p o n e s e s protestaram contra as bases americanas no país e em 1965, fizeram passeatas e comícios contra a guerra do Vietnã. Em 1963, na França, realizou-se o primeiro happening (expressão artística teatral em que a platéia e palco se confundem, todos são, ao mesmo tempo, atores e espectadores) hábito que se espalharia por toda a Europa. Nos Estados Unidos, em 1964, os estudantes da Universidade de Berckeley fizeram uma
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manifestação pela liberdade de expressão, o que resultou em oitocentas prisões. No ano seguinte, os jovens se recusaram a prestar o serviço militar e se colocaram contra o apartheid na África do Sul. Em São Francisco, em 1966, a juventude norte-americana realizou o primeiro love-in (reunião hippie em que o sexo e o consumo de drogas aconteciam livremente) reunindo 28.000 pessoas. No ano seguinte, os estudantes, ainda nos EUA, organizaram a Marcha sobre Washington, contra a guerra do Vietnã. Mas, com certeza, o auge dessa rebeldia aconteceu em maio de 1968, na França, quando a juventude na cidade de Nanterre criticou o modelo educacional e a política do governo. O movimento atingiu Paris, onde os estudantes enfrentaram os policiais e ergueram barricadas, muitos foram presos e feridos. Em apoio, 10 milhões de operários entraram em greve. O governo declarou estado de sítio e solicitou o apoio do Exército. Em 1969, nova manifestação, agora nos Estados Unidos: o festival de música de Woodstock reuniu mais de 400 mil jovens, que durante três dias, celebraram o amor, a paz e a liberdade. Esse foi um período decisivo também para as mulheres, jovens ou não. Desde o término da Segunda Guerra Mundial, em 1945, as mulheres passaram a exercer outros papéis, além de esposas e mães. Um grande número buscou formação superior e entrou no mercado de trabalho, o que estimulou a criação de novos produtos e serviços. Porém, mesmo exercendo esse novo papel, as mulheres continuavam subordinadas às antigas imposições morais, obedecendo à autoridade do pai ou do marido. A partir dos anos 1960, essa realidade passou por sérias alterações com a denominada “revolução sexual”. Difundiu-se a pílula anticoncepcional, dando à mulher o controle voluntário da 112
natalidade, discussões sobre virgindade e relações sexuais antes do casamento tornaram-se comuns, a nudez feminina foi explorada nas propagandas, no cinema e no teatro. Até mesmo a moda passou por alterações, revelando mais o corpo da mulher, como o estilo Saint-Tropez (mostrando a barriga e o umbigo), a minissaia (os joelhos e as coxas) e o topless (os seios). A liberação sexual não veio só, tinha a companhia da conscientização política da mulher, que passou a exigir a igualdade entre os sexos no trabalho, a legalização do aborto e a aprovação da lei do divórcio. Pa ra e s s a j u ve n t u d e re b e l d e, o s contraventores Bonnie e Clyde, vividos nas telas de cinema por Faye Dunaway e Warren Beatty, eram exemplos a serem seguidos. Eles são jovens que representam os anos 1930, mas também sintetizam a juventude dos anos 1960, notadamente os movimentos de emancipação feminina e liberação sexual. Bonnie é jovem, bonita e sensual. Nas cenas iniciais ela aparece seminua e antes de sair correndo escadas abaixo para se encontrar com um desconhecido (Clyde), coloca um vestido transparente, sem sutiã. Essa peça íntima, considerada o símbolo da opressão feminina, foi tirado e queimado em praça pública por muitas jovens nos anos 1960. Bonnie é ousada e quer conhecer aquele homem, mesmo sabendo que se trata de um assaltante. Na época, Faye chegou a receber cartas de uma fã, antes apaixonada pelos filmes românticos e açucarados de Doris Day, explicando como Bonnie-Faye havia mudado sua vida, conscientizando-a da importância do papel da mulher naquela sociedade em transformação. A fã explica que se tornou mais corajosa e atuante, depois de ter assistido o filme. A beleza e sensualidade de Bonnie se
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tornam ainda mais acentuadas quando Blanche (Estelle Parsons), esposa de Buck, irmão de Clyde, entra em cena. Blanche, filha de um pastor batista, está longe de ser uma mulher bonita como Bonnie, é medrosa e recatada. Não sabe atirar, nem dirigir. Não concorda com os assaltos e não participa deles, permanece no carro, com C.W. Moss e durante as fugas tem surtos de histeria. Ela é a antítese de Bonnie. Blanche representa a típica mulher submissa, pré-revolução sexual. Ela fica envergonhada e fecha os olhos, quando C.W. Moss aparece com um macacão branco (a roupa íntima masculina da época) e quer apertar sua mão quando são apresentados. Enquanto Bonnie dormiu no mesmo quarto com ele e Clyde. Em outra cena, ela fica muito feliz por terem alugado uma casa e estarem morando “em família”, principalmente com os vários eletrodomésticos existentes na cozinha, que lhe dariam a oportunidade de elaborar pratos saudáveis e requintados para seu marido. Buck chega a carregá-la no colo para dentro da casa, o primeiro lar. Ela o chama de “papi” e está sempre preparando deliciosas refeições para ele. Já Bonnie, só pensa na velocidade dos carros e nas fugas dos assaltos. Entediada ela escreve um romance sobre o suicídio de uma garota, The story of suicide Sal. Bonnie efetivamente escreveu esse romance em 1932. Quando Buck e Blanche chegam para conhecer Bonnie, Clyde e C.W. também percebemos o distanciamento entre as duas. Blanche se recusa a posar para fotos, esconde o rosto e não se sente à vontade frente aos familiares do marido. Bonnie coloca um charuto na boca, pega uma arma e se posiciona frente ao carro, de forma ousada e sensual. Mas, a cena decisiva em que percebemos a enorme distância entre Bonnie e Blanche é
aquela em que os policiais cercam a casa onde estão refugiados em Joplin. Bonnie mostra-se corajosa e valente, atira e é atuante na fuga. Já Blanche sai gritando histericamente com uma espátula na mão, a eterna dona de casa estava novamente cozinhando. Quando o filme foi lançado, Blanche Barrow ainda estava viva e ficou profundamente magoada pela maneira como foi representada no filme. Ela contou que durante a fuga de Joplin, ajudou Clyde a tirar uma das viaturas da polícia do caminho. Ela também não era filha de um pastor e na verdade foi bem amiga de Bonnie, morando juntas com a mãe de Clyde e Buck, quando eles estavam presos. Percebemos, assim, que Arthur Penn, de forma pensada e consciente, utilizou-se da liberdade poética para criar outra Blanche, que se opusesse radicalmente à Bonnie. O caráter ousado, corajoso e sensual de Bonnie, por esta estratégia, ficava ainda mais destacado, agradando o público jovem, notadamente as mulheres, dos anos 1960. Bonnie e Clyde: passado e presente fundemse no filme Marc Ferro, muito referenciado em estudos históricos, é reconhecido como um dos pioneiros a refletir sobre a problemática da relação entre cinema e sociedade. Num texto dos anos de 1970, no seio do movimento da Nova História, ele, inicialmente perguntava e depois afirmava, que o filme é uma contraanálise da sociedade: “o filme, imagem ou não da realidade, documento ou ficção, intriga autêntica ou pura invenção, é história.” (FERRO, 1995, p. 203). Analisando não somente o filme (a narrativa, o cenário, o texto), mas também o que não é filme (o autor, a produção, o público e a crítica) pode-se compreender a obra, mas fundamentalmente,
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a realidade que referencia. Porém, adverte Ferro, essa realidade não se apresenta diretamente. Deve-se buscar o não-visível no visível, o conteúdo latente no que é aparente, ou ainda, como diria Karl Marx (1974), e antes dele, Friedrich Hegel (1997, 2002), buscar a essência partindo da aparência. Para Ferro, os enredos dos filmes, notadamente os ficcionais, possuem um conteúdo aparente, uma imagem da realidade, matéria-prima para os investigadores das ciências humanas, por meio de diversos métodos, buscarem o conteúdo latente, a realidade social não visível: “um filme, qualquer que seja, sempre excede seu conteúdo. [...] [atingindo] uma zona da história que permanecia oculta, inapreensível, não visível.” (Idem, p. 213) Com essas afirmações, Ferro abriu um promissor flanco de investigação para os pesquisadores interessados em analisar como as sociedades se representam por meio do cinema, ou ainda, como compreender a realidade social utilizando as películas. Para Ferro, os filmes podem ser uma representação do passado ou um testemunho do presente. É uma representação do passado quando, apesar de ser uma produção do presente, a narrativa transcorre num período passado. Os filmes produzidos atualmente sobre a ditadura militar, a chegada dos portugueses no Brasil, ou ainda, sobre a Segunda Guerra e o nazismo, correspondem a essa classificação. Porém, mesmo referenciando e, em alguma medida, refletindo sobre o passado, possuem forte carga dos valores e concepções do presente, porque seus realizadores e produtores, enquanto pessoas que vivem na sociedade atual, não são capazes de desvincularem-se dela, para produzir outra realidade.
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Um grande número de produções fílmicas é um testemunho do presente, pois a narrativa transcorre sem referenciar elementos do passado. Nesse caso, os filmes se transformam em excelentes laboratórios para os pesquisadores refletirem sobre a sociedade em que o filme foi gestado. Beleza americana (American beauty, Sam Mendes, 1999), Dogville (Lars Von Trier, 2003) e Los Angeles, cidade proibida (L.A. Confidential, Curtis Hanson, 1997), por exemplo, são filmes testemunhos do presente, pois proporcionam uma reflexão sobre a crise da sociedade americana, colocando em xeque seus valores e moralidade burguesa. (NÓVOA, FRESSATO, 2009). O caso de Bonnie e Clyde – uma rajada de balas funde essas duas perspectivas, como se fosse as duas faces de Jano. Como analisado anteriormente, o filme é uma reflexão dos conturbados anos 1930 nos Estados Unidos (a face voltada para o passado), mas também foi produzido na tentativa, diga-se de passagem, bem sucedida, de sintetizar os anseios da juventude nos anos 1960 (a face voltada para o presente), com seus desejos de liberdade política e sexual, mas, também com suas angústias e medos. Referências bibliográficas FERRO, Marc. O filme: uma contra-análise da sociedade? In. LE GOFF, Jacques. NORA, Pierre. História. Novos objetos. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1995, p. 199-215. HEGEL, G. W. Friedrich. Curso de estética. O sistema das artes. São Paulo: Martins Fontes: 1997. ______. Fenomenologia do espírito. 7. ed. rev. Petrópolis, Vozes, Bragança Paulista, USF, 2002. LAGNY, Michélè. O cinema como fonte de história. In: NÓVOA, Jorge. FRESSATO, Soleni Biscouto. FEIGELSON, Kristian. Cinematógrafo. Um olhar sobre a história. São Paulo, Salvador, Editora da UNESP, EDUFBA, 2009.
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As Duas Faces de Jano em Bonnie e Clyde – uma rajada de balas NÓVOA, Jorge. FRESSATO, Soleni Biscouto. A “cegueira branca” poderá ser a última. Olhares sobre um mundo mais que em crise. In: NÓVOA, Jorge. FRESSATO, Soleni Biscouto. FEIGELSON, Kristian. Cinematógrafo. Um olhar sobre a história. São Paulo, Salvador, Editora da UNESP, EDUFBA, 2009.
MARX, Karl. A mercadoria. In: O capital. (livro 1, volume 1). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2004. SCHNEIDER, Paul. Bonnie & Clyde: a vida por trás da lenda. São Paulo, Larousse do Brasil, 2009.
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resenhas
SILVA, Ana Cristina Teodoro da. Temporalidades em Imagens da Imprensa: capas de revistas como signos de olhares contemporâneos. Maringá: EDUEM, 2011, 273p.
Jorge Luiz Romanello Graduado, mestre e doutor em história pela UNESP de Assis. Estuda imagens e possui experiência em fotografia – foi fotógrafo do CEDAP (Centro de Documentação e Recursos Audiovisuais), UNESP/Assis até 1995. Trabalha como professor e pesquisador na UNICENTRO/Universidade Estadual do Centro Oeste – Campus de Irati.
Recebido em: 25/03/2011
Aprovado em: 15/05/2011
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Jorge Luiz Romanello
SILVA, Ana Cristina Teodoro da. Temporalidades em Imagens da Imprensa: capas de revistas como signos de olhares contemporâneos. Maringá: EDUEM, 2011, 273p.
O livro Temporalidades em Imagens da Imprensa: capas de revistas como signos de olhares contemporâneos, de Ana Cristina Teodoro da Silva, é um produtivo esforço de ampliação das potencialidades das pesquisas no campo da história. Dividido em 4 capítulos, é uma obra construída a partir do necessário diálogo inter e multidisciplinar com áreas como o jornalismo, a propaganda e os estudos da linguagem, elaborada por meio de uma análise interativa, uma leitura semiótica nada canônica (e talvez por isto mesmo criativa) das fontes: 276 capas circuladas das revistas Manchete e Veja dos anos de 1968 e 1969 Veja e Isto é Senhor do ano de 1989. A partir deste bem pensado corte cronológico, a autora convida o leitor a uma viagem ao mundo cotidiano das revistas. Foi uma interessante opção pela análise de momentos emblemáticos da vida cultural e política do mundo e do Brasil, 1968/69, marcam o endurecimento da censura e da repressão política no país, o apelo à ordem e às tradições conservadoras, mas também de profundas mudanças culturais, mostrando que nas capas das revistas, conviviam em um mesmo contexto, alusões às restrições políticas e institucionais que o país vivia ao lado de promessas de novas conquistas tecnológicas e culturais, representadas tout court pelo pouso do homem na lua e pela difusão da pílula anticoncepcional. No contraponto, no decorrer do ano de 1989 também de forma emblemática, as
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capas marcavam as críticas ao governo de José Sarney e a primeira campanha para eleições diretas para presidente da república em que se confrontaram as proposta do “jovem e audacioso” Fernando Collor de Mello e as do “pouco midiático” sindicalista, Luís Inácio Lula da Silva – símbolos explícitos por si só do retorno da democracia ao país – , a queda do muro de Berlim com a conseqüente re-configuração política e econômica do mundo, momento também das crises que atingiam o capitalismo mundial e particularmente no Brasil, que sofria com a recessão e a hiper-inflação no decorrer da década. Um interessante recorte na história recente do país que muito tem a dizer, por meio das análises realizadas, a respeito das mudanças e permanências dos modelos editoriais e dos códigos de comunicação, dos temas privilegiados pelas capas. Os resultados entre outras coisas permitiram a autora entrever a percepções dos leitores, do “público médio” das revistas, quanto á democracia e os estilos de vida almejados. Entre as datas limites, um lapso de tempo sugestivo, vinte anos dos mais decisivos na história do século XX em que o mundo, a vida e o cotidiano, tudo (ou quase tudo) mudou. O recorte fica desta forma, coroado pela opção metodológica pelo estudo comparado dos títulos de revistas escolhidos, em cada capítulo do livro. Esta escolha permite ainda, avaliar as tensões de interesses nas opções das grandes empresas de comunicação
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proprietárias dos títulos analisados, nos dois momentos, ao passo que a desconstrução das práticas utilizadas pela imprensa, usada sob medida, sem nunca perder de vista, o objeto da pesquisa, em nenhum momento permite que o trabalho se torne pretensioso, ou que se afaste em demasia do campo da história, para tornar-se um estudo estrito das técnicas de comunicação. As temporalidades, para Ana Cristina, relacionam-se ao tempo de leitura constituído na relação entre o emissor e o receptor. Para ela as capas são produtos dirigidos aos olhares fugazes dos leitores, que por sua vez “reafirmam e reinventam o rítmo do tempo de comunicação dos veículos”, mas também tempo da síntese da semana que ao ordenar os variados acontecimentos do período que a revista pretendeu tratar, exigem uma economia de tempo. Nesta concepção, as capas tornamse Imagens Sintéticas, “... imagens de aparência, de como muito se comunica rapidamente, aproveitando uma tradição de entendimento através de códigos altamente intelegíveis.” (p.14). O uso desse conceito inédito, formulado pela autora, demonstrouse fundamental no decorrer do livro para o entendimento de sua tese a respeito das temporalidades em imagens da imprensa, uma vez que a mesma trata da disposição de tempo utilizada e reiterada por imagens sintéticas, que demarcam o tempo de sínteses, tempo em fragmentos, fragmentos sedutores em olhares fugazes (pg 15), que por sua vez contém em si, um outro tempo, o da memória que cada exemplar de cada veículo diferente pretendeu legar ao futuro, por meio de cada corte do presente. Considera-se também muito importante, a opção por uma narrativa moderna e dinâmica, que ao final produz um texto que se comunica com o leitor, discute o tema e
é ao mesmo tempo decisiva para superar as limitações causadas pela ausência na obra de reproduções das capas analisadas. Em termos teóricos a concepção do livro desafia as definições compartimentas, melhor seria considerar que se trata de uma obra mais dialoga com diversas vertentes do que se situa claramente em uma delas. Fruto de uma longa experiência da autora no ensino e na pesquisa da área de Comunicação e Mutimeios e Metodologia da Pesquisa. No decorrer da leitura percebe-se, por exemplo, uma série de alusões à problemáticas e mesmo diálogos mais explícitos com a história cultural, linha com a qual a autora trava um diálogo a respeito da polissemia das fontes imagéticas com seus discursos escorregadios sugerem. Em relação á área de estudos de história e gênero, percebe-se que o trabalho sugere novas possibilidades, pois entre outros aspectos relevantes, revela as singulares apropriações das imagens do corpo e os papéis da família e suas implicações dentro do próprio sistema de comunicação. Com a nova história política, o debate supera as implicações dos “contextos” propiciados pelo recorte temporal, uma vez que o recurso a história comparada, oferece subsídios para a reflexão das relações entre mídia e política e mesmo a respeito do perfil de comportamento do público leitor. Em resumo, parafraseando as palavras de José D´Assunção Barros em seu livro “O Campo da História – especialidades e abordagens” (Petrópolis: Vozes, 2004), para quem os bons trabalhos são difíceis de enquadrar. Nesse sentido, o mais elegante seria “sinteticamente” dizer que trata-se de uma obra de história em seu sentido amplo, que dialoga livremente com aspectos de diversas vertentes dos estudos históricos,
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de maneira flexível e dinâmica, sem perder de vista em nenhum momento o objeto da pesquisa. Já na introdução do trabalho, o leitor é surpreendido, tocado por algumas definições. Os títulos dos periódicos são identificados com marcas cuidadosamente trabalhadas, quase logotipos de propagandas e as capas, de produtos aparentemente simples direcionados a informar os leitores a respeito dos acontecimentos da semana, tornam-se o resultado de um intrincado jogo de rearranjo do tempo em seus múltiplos significados. No primeiro capítulo “As Propostas das Revistas de “Sucesso”, a autora recupera importantes aspectos da história da imprensa brasileira e de seus modelos de funcionamento, no período compreendido entre a década de 1960 e a de 1990, focando com particular ênfase nos aspectos constitutivos das revistas estudadas. Ao mesmo tempo, chama á cena alguns lances decisivos da trama política e cultural do Brasil no período de 1968/69, destacando por meio desta abordagem, a conformação das relações entre a mídia, a censura e a ditadura militar, e com o mercado, circulação, o público alvo e implicações destas com os próprios modelos e padrões da mídia. Dialogando com diversas teorias de estudo da mídia, tratará particularmente da constituição das capas, operação funda os alicerces da construção do seu objeto de pesquisa. O Capítulo II, As Formas dos Temas, enfoca os temas escolhidos para serem as capas das revistas. A idéia central do capítulo é rearticular as capas a partir da elaboração de séries, pois considera que por meio deste procedimento pode-se “... deslocar o rítmo das capas de revistas, revisitá-las, colocandoas em outras tramas, buscando assim mostrar que são imagens densas de significados, porém produzidas na prisão do rítmo veloz”, 122
diferente da finalidade para as quais as capas forma concebidas. Inicialmente dá-se atenção ás “Repetições Ordenadoras”, movimento que permite perceber por intermédio da sistematização de dados, o quanto a novidade possui pouco espaço nas publicações, e que por meio da repetição de temas como: “O modelo de vida de pessoas famosas e líderes governamentais” criam eixos possíveis de compreensão do mundo. Em “Diferenças e Aproximações nas Edições” a autora muda o procedimento metológico e ao invés de trabalhar com os grandes agrupamentos que caracterizaram o sub-capítulo anterior, passa a análise comparativa das capas semana a semana. O texto passa em seguida a análise de “O uso Codificado das Cores” elemento entendido enquanto fundamental para o processo de comunicação rápida das capas. Por meio da desconstrução e da comparação, sistematização e análise do uso de cores suas associações culturais e integrada á outras linguagens a autora procura mostrar como este elemento é parte estruturante de um discurso de apelo aos olhos, mostrando entre outras coisas, que as cores fortes tendem enfatizar o incomum e a criar desassossego, sendo empregada para enfatizar certos temas, ao passo que cores suaves tendam a gerar o assossego e a enfatizar o cotidiano. Um movimento, que sob este ponto de vista é parte do esforço da construção da verossímil e do fidedigno em um espaço ao mesmo tempo fluido, e permeado pelo uso simultâneo de várias linguagens em suas próprias palavras. Intercalando a análise de casos com o debate teórico relativo à questão, emergem discursos sobre os temas, que em minha opinião, devido a sua sutileza certamente
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passariam desapercebidos à um grande número de pesquisadores, uma vez que como historiadores, apesar da mudanças vividas nas últimas décadas, ainda somos freqüentemente melhor aparelhados a analise de textos do que imagens, de conteúdos do que formas. Ficam estabelecidas desta forma algumas das bases sobre as quais “... desenvolvem-se os temas que povoam o mundo contemporâneo, “ ... signos de um rítimo contemporâneo” p.152 e 153. O trabalho adentra assim ao capítulo III, “Olhares Fugazes a Corpos Enquadrados” que se inicia por uma discussão teórica a respeito da imagem e sua análise, passando ao estudo das relações das mesmas com as sociedades e as culturas no decorrer da história – relação que mais uma vez acaba por retornar a análise do objeto. O texto passa então a rastrear as maneiras como os corpos entendidos enquanto complexas construções culturais, são representados nas capas das revistas, e de quem maneira “sintetizam” os padrões e modelos aceitos e valorizados. E como, uma vez publicados especificamente naqueles espaços fluidos, de forma repetida e massificada reforçam e recriam os valores da “civilização”, ao mesmo tempo em que permitem perceber os processos de enquadramento e domesticação a que foram historicamente submetidos. Freqüentemente estereotipados – e os números apontados impressionam, pois as representações de corpos aparecem em mais de 90% das capas analisadas – aparecem, tendencialmente reduzidos a umas poucas poses, tradicionalmente experimentadas e consagradas na elaboração dos processos de comunicação das revistas. A perspectiva proposta, permite a seu tempo uma análise dos significados de
posturas corporais e gestos e ao mesmo tempo revelam as repetições dos temas nos blocos, o que permite às revistas “... vender entendimento, informação e tranqüilidade, com economia de espaço e tempo ...” (p.186), mas geram também a necessidade de excluir o que não se adéqua aos padrões de tempo e espaço desta comunicação rápida e fluida, que a própria capa ajuda a criar. A autora não deixa, porém, de analisar a importância que tem neste quadro, as exceções que conforme suas palavras, “desacomodam e levam a reflexão e por isso mesmo são a excesão, considerando-se que algumas vezes causam reações negativas, indignadas e mesmo o debate entre leitores, que manifestam suas opiniões por meio das seções do tipo “Carta do Leitor”, que desta maneira torna-se também uma espécie de termômetro por meio do qual o veículo pode perceber as opiniões de seus leitores. Em um contexto de conclusão desta discussão a obra adentra a seu último capítulo “Tempo e Memória nas Sínteses”, cujo o objetivo é discutir a elaboração das sínteses do tempo, geradas em diversos ciclos nas publicações. Assim os ciclos menores, formados pelos temas que geram apelo nas revistas são identificados enquanto “pequenas novelas” que não necessariamente tem de ter um fim. Já ciclos anuais podem ser sintetizados nas edições de início e final de ano, ciclos maiores ficam a cargo das comemorações decanais e de comemorações dos jubileus de circulação das revistas ou ainda das edições comemorativas “de número 1.000 ou 2.000”. O importante é notar que para a autora estes ciclos significam e resignificam disposições do tempo, baseadas na organização de sínteses, que precisam ser “desorganizadas para um exercício salutar da crítica”. O sub-capítulo “As Premissas da Síntese”
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é um esforço de identificação das maneiras escolhidas para a elaboração dessas sínteses. Dispersos muitas vezes no cotidiano das edições, caracterizam-se como “Edições Especiais” ou “Extras”, podem refletir estratégias propícias para pontuar um momento ou um ciclo maior na vida do país. Para Ana Cristina, no final da década de 1960, por exemplo, estas sínteses procuravam elaborar discursos sobre a ”realidade” do país por meio de títulos objetivos, tais como “O Retrato do Brasil” , ou “O Progresso do Brasil”, que discursam apoiados em fotografias icônicas de Brasília ou do Cristo redentor, com freqüência complementados por editoriais que colaboravam para a organização dos sentidos daquelas sínteses. No mesmo sentido no início da década de 1970 ou ao final dela publicavam-se compilações de fotos “significativas” que procuravam demarcar ciclos de décadas enfocando alguns temas consagrados e criando outros. Os subseqüentes “A Memória de 1968 e 1969” e a “Memória de 1989”, tratam como indicam os o títulos, da memória escolhida (ou pretendida), pelos veículos. O passado desta maneira foi sistematicamente rearranjado para reelaborar períodos que podia variar da síntese do ano anterior ou de um acontecimento “Histórico”, ou de um período de 10, 20, 30 ou 200 anos de história. Ou seja, era o presente elaborando a memória do passado. Uma “Edição Histórica” da Revista manchete do ano de 1969 elegeu o pouso do homem na lua, como o maior feito humano até então e o tema ganharia o título de “O Homem Conquista do Espaço”. De outra forma a edição de número 1.000 da
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revista, de Junho de 1971 elegia enquanto “síntese das sínteses”, a capa da edição comemorativa, intitulada “1.000” com poucas fotos de momentos que marcaram o período anterior: “Uma do Congresso em Brasília; uma de comemoração de gol da seleção brasileira, referência a conquista do tricampeonato mundial e um astronauta na lua.” Já uma das sínteses do período da década de 1980, realizada na edição de número 2.000 de Manchete, publicada em 1990, elege a Perestróika e o sucesso do consumismo recentemente inaugurado na Rússia, a queda do muro de Berlin, ocorrida em 1989, por sua vez marcará a comemoração de 30 anos da Veja, circulada em 1998. Nas considerações finais Ana Cristina retraça o caminho percorrido, fazendo de uma síntese que permite ao leitor recuperar as principais conclusões relativas à temporalidade das capas, mas também das relações entre a imprensa, o público e o mercado no lapso dos vinte anos que a obra a sua própria maneira discute. Mantendo a linha argumentativa, a autora baseada nas análises desenvolvidas, afirma que o objetivo das mídias muito mais do que vender produtos é vender sentidos. E que estes devem ser articulados com fragmentos de tempo, contemplando uma complexa rede de interesses governamentais e empresariais, em larga medida responsáveis pela sobrevivência das mesmas Para finalizar, considero que é importante informar ao leitor, que para ser fiel ao estilo do livro, esta resenha coloca-se enquanto uma possibilidade de leitura da obra.
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