ISSN 1982-2766
domínios da imagem Revista do LEDI
ano I • n. 2 • maio 2008
ISSN 1982-2766
Domínios da Imagem Revista do Laboratório de Estudos dos Domínios da Imagem na História (LEDI) do Departamento de História e vinculada ao Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Estadual de Londrina
DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO I, N. 2,
MAIO
2008
Universidade Estadual de Londrina REITOR: Wilmar Sachetin Marçal VICE-REITOR: Cesar Antonio Caggiano Santos DIRETOR DO CENTRO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS: Ludoviko Carnascialli dos Santos CHEFE DO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA: Zueleide Casagrande de Paula COORDENADOR DO MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL: Francisco César Alves Ferraz EDITOR RESPONSÁVEL: Alberto Gawryszewski CONSELHO EDITORIAL Alberto Gawryszewski - UEL • Ana Heloísa Molina - UEL • Angelita Marques Visalli - UEL • Hernán Ramiro Ramírez - UEL • Isabel Aparecida Bilhão - UEL • Jorge Luiz Romanello - UEL • Márcia Rorato - UEL • Paulo Alves - UEL • Zueleide Casagrande de Paula - UEL • Terezinha Oliveira - UEM CONSELHO CONSULTIVO Daniel Russo - Université de Borgnone • Eddy Stols - Katholieke Universiteit Leuven - Bélgica • Francisco Alambert - USP • Mauro Guilherme Pinheiro Koury - UFPB • Patrice Olsen - Illinois State University • Renato Lemos - UFRJ • Rodrigo Patto Sá Motta - UFMG • Ulpiano Bezerra Menezes - USP CONSELHO CIENTÍFICO Agbenyega Adedza - Illinois State University • Ana Cristina Teodoro da Silva - UEM • Ana Maria Mauad UFF • Annateresa Fabris - USP • Annie Duprat - Université de Versailles Saint-Quentin-en-Yvelines • Áureo Busetto - Unesp • Cláudia Musa Fay - PUC / RS • Darío Acevedo Carmona - Universidad Nacional de Colombia • Luciene Lemkhul - UFU • Luiz Guilherme Sodré Teixeira - Fundação Casa de Rui Barbosa / RJ • Miriam Nogueira Seraphim - Unicamp • Miriam Paula Manini - UnB • Renata Senna Garraffone - UFPR • Solange Lima Ferraz - Museu Paulista • Vânia Carneiro Carvalho - Museu Paulista PROJETO GRÁFICO E EDITORAÇÃO: Kely Moreira Cesário • Maria de Lourdes Monteiro IMAGEM DA CAPA: Arquivo particular família Quadros Gawryszewski (1921)
TIRAGEM: 500 exemplares
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) Domínios da imagem / Universidade Estadual de Londrina. Centro de Letras e Ciências Humanas. Departamento de História. Laboratório de Estudos dos Domínios da Imagem na História. Programa de Pós-Graduação em História Social. Londrina, PR. Ano I – n. 1 – nov. 2007 Semestral ISSN 1982-2766 1. Imagem – Estudos – Periódicos. 2. Imagem – História Periódicos. I. Universidade Estadual de Londrina. II. Centro de Letras e Ciências Humanas. III. Programa de Pós-Graduação em História Social. CDU 2 Todos os artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores, não cabendo qualquer responsabilidade legal sobre seu conteúdo à revista. Pede-se permuta • Pédese canje • On demande échange • We wask for exchange • Si richiedle lo scambio
Sumário
Conceito de caricatura: não tem graça nenhuma ........................................................................ 7 Alberto Gawryszewski
Embrulhado para presente? Fotografia, consumo e cultura visual no Brasil (1930-1960) .. 27 Ana Maria Mauad
As caçadoras-de-cabeças e os desafios da interpretação de imagens artísticas .................... 37 Artur Simões Rozestraten
A imagem do transporte aéreo visto através da arte e da publicidade .................................... 51 Claudia Musa Fay
Arte, Imagem, Guerra: Picasso, Guernica, Brasil ......................................................................... 57 Francisco Alambert
Arte e conceito em Marcel Duchamp: uma redefinição do espaço, do objeto e do sujeito artísticos .............................................................................................................................. 73 José D’Assunção Barros
Os Signa Loquendi do Mosteiro de Alcobaça ............................................................................. 89 José Rivair Macedo
Fotografia como objeto de memória: produto técnico e suporte ideológico na conformação do homem ocidental .................................................................................................................. 101 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
A fotografia como mídia visual da recuperação histórica de Londrina ................................. 107 Paulo César Boni
Cultura Visual: definições, escopo, debates ............................................................................. 129 Rosana Horio Monteiro
RESENHAS DUPRAT, Annie. Images et Histoire: outils et méthodes d’analyse des documents iconographiques. ......................................................................................................................... 137 por Angelita Marques Visalli
CAVALCANTI, Lailson de Holanda. Historia del humor gráfico en el Brasil .......................... 141 por Rodrigo Rodrigues Tavares
Apresentação
Em novembro de 2007 foi lançado o número 1 da Domínios da Imagem, revista do LEDI (Laboratório de Estudos dos Domínios da Imagem na História) com textos do I ENEIMAGEM (Encontro Nacional de Estudos da Imagem), realizado em maio daquele mesmo ano. O entusiasmo dos colegas na organização do evento e da revista se conjugou à grande receptividade de professores e pesquisadores das várias áreas do saber e regiões do país. Com grande satisfação apresentamos o segundo número da Domínios da Imagem. Como é a proposição do periódico, apresenta-se um elenco de artigos que aborda a imagem em várias perspectivas. Congregando pesquisadores de várias instituições, oferece um painel de várias possibilidades de abordagem no estudo da imagem. Assim, Alberto Gawryszewski circunscreve o conceito de caricatura, enquanto Rosana Monteiro define o campo de debates da cultura visual. A fotografia recebe indagações nos artigos de Ana Maria Mauad, Mauro Koury e Paulo Boni, propiciando interlocuções com pesquisadores de variadas formações da área acadêmica. Arthur Rozestraten e José D´Assunção Barros abordam a imagem artística em vieses enriquecedores, da mesma maneira que Cláudia Fay apresenta um outro olhar acerca dos cartazes publicitários de companhias aéreas. O ensaio de Francisco Alambert e o texto de José Rivair Macedo preservaram as características instigadoras das respectivas apresentações ocorridas no I ENEIMAGEM. Neste número, ainda, inauguramos a seção Resenhas. Aproveitamos o ensejo para convidar os leitores a enviar seus artigos, resenhas e ensaios para nossa editoria. Uma boa leitura a todos! Angelita Marques Visalli Alberto Gawryszewski Ana Heloísa Molina Editores da revista
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CONCEITO DE CARICATURA: NÃO TEM GRAÇA NENHUMA
Conceito de caricatura: não tem graça nenhuma*
Alberto Gawryszewski Doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor Associado do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e do Programa de Pós-graduação em História Social da UEL. Coordenador do LEDI. Autor de, entre outros livros, Panela vazia: o cotidiano carioca e o fornecimento de gêneros alimentícios 1945/50 (vencedor do Prêmio Carioca de Pesquisa, 2001).
RESUMO Como muitas vezes o conceito de caricatura se mistura com o de charge, buscou-se neste artigo compreender alguns aspectos da formação destes conceitos dando destaque à possibilidade de seu desdobramento quando se trata de imagem político-ideológica. PALAVRAS-CHAVE: caricatura; imagem; imprensa.
ABSTRACT As many times the concept of caricature is confused with the concept of cartoon, this article tries to understand some aspects of the formation of these concepts, emphasizing the possibility of its deployment when it refers to the political-ideological image. KEY WORDS: caricature; image; press.
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Este trabalho foi inicialmente escrito como parte do trabalho final de Pós-doutorado em História Social da UFRJ (A Caricatura e a charge na imprensa comunista - 1945/57). Esta discussão está atualmente inserida na pesquisa “A arte gráfica visual na imprensa anarquista (1901-1927)” que tem o apoio financeiro do CNPq (chamada 050/2006) e da Fundação Araucária (chamada 02/2006.) Gostaria de agradecer a Milton Lopes, da FARJ, pela cessão das imagens anarquistas.
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ALBERTO GAWRYSZEWSKI
Conceito de caricatura: não tem graça nenhuma
Introdução As expressões caricatura, charge, cartum soam, em geral, como semelhantes, com o mesmo significado. Hoje, a expressão charge passou a ser usada com mais freqüência devido aos jornais diários que as publicam e assim as intitulam. Dessa forma, para o cidadão comum, ao ver uma caricatura, pode chamá-la de charge, sem nenhum constrangimento. Mas, como se dá tal discussão na academia? Presente em nosso dia-a-dia, a caricatura e as demais formas de humor gráfico (charge, cartum etc.) ainda são carentes de estudos teóricos mais profundos. Embora na década de 90 e na seguinte tenhamos um aumento significativo de estudos nos diversos ramos do saber (História, Comunicação, Letras, Educação etc.) que utilizam tais materiais como fonte, eles ainda não foram o suficiente para podermos ter uma base segura para o conceito de caricatura e das demais formas de humor gráfico, em especial nas diferenças intrínsecas entre elas. Em realidade, a própria expressão humor gráfico não é tão usual, ou seja, não há consenso sobre seu uso. Muitos dos estudos que utilizam a caricatura e charge como fonte de suas pesquisa em geral não as diferenciam ou o fazem de forma incipiente. Pesquisadores das áreas da semiótica, comunicação e lingüística se preocupam muito com o uso da metáfora, hipérbole e antítese, entre outras, nas imagens. Tal abordagem muito nos ajuda,
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mas não dá conta das necessidades para a conceituação ou diferenciação entre as formas de humor gráfico, em especial da caricatura. Outros pesquisadores, em especial da História, que não têm a mesma preocupação dos pesquisadores pretéritos, se voltam para localizar as imagens no tempo de sua criação, limitando-se, muitas vezes, a descrever os fatos ilustrados nas imagens. Enfim, não aprofundam o debate teórico desse tipo de fonte e não as diferenciam com profundidade. Um tema que une quase todos os estudiosos é a questão do riso e do humor que, para eles, estaria na base da caricatura e da charge. Entretanto, poucos se preocuparam em aprofundar esta relação. O objetivo deste trabalho é contribuir com o debate teórico das possíveis definições de caricatura e charge, conhecendo suas variações e diferenças. Assim, este trabalho foi dividido em duas partes: na primeira, apresentamos e debatemos o conceito de caricatura e de charge, com base em dicionários gerais e específico e em estudiosos que utilizaram tais imagens em suas pesquisas práticas e teóricas; na segunda, refinamos as discussões para os conceitos de caricatura política e charge política, partindo, especialmente, de nossas pesquisas com as imprensas anarquistas e comunistas. Ao final propomos novos conceitos quando se pensa em imagens publicadas em uma imprensa engajada politicamente, ou seja, caricatura ideológica e charge ideológica.
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CONCEITO DE CARICATURA: NÃO TEM GRAÇA NENHUMA
Apresentando e debatendo conceitos Há autores que admitem a existência de caricatura no Egito Antigo, com o uso da zoomorfia nas suas representações, outros ainda nas pinturas rupestres. A maioria dos autores, entretanto, afirmam que ela teria surgido na Renascença, com os irmãos Caracci, na Itália, quando foi lançado pelo editor Guilain, em 1664, um livro retratando tipos populares de Bolonha. Preferimos a posição de que não se poderia falar em caricatura na História antes de sua reprodução massiva, ou seja, estaria sua existência como arte na contemplação por um grande número de pessoas, por amplos setores da sociedade. Portanto, sua importância popular e histórica estaria residindo, justamente, em sua dimensão social e política. Robert de la Sizeranne propõe três fases da evolução da caricatura: simbolista, no princípio, quando os egípcios recorriam aos animais para simbolizar o caráter de suas vítimas, tais como os leões e as gazelas que representavam os reis e as concubinas; deformante, até a Renascença, quando então a palavra italiana caricare (carregar) dava a medida exata de sua finalidade; característica, nos tempos atuais. Para esse autor, caracterizar seria sublinhar algum gesto, para notar algum jogo de fisionomia, para unir tão intimamente todos os aspectos inesperados, inéditos, da máquina humana, que o envoltório da carne e dos ossos revele todos os seus segredos (apud LIMA, 1963, p. 6). Mas como definir caricatura para podê-la diferenciar de charge e outros gêneros de desenho de humor e arte? Muitas foram as definições de caricatura que encontramos no decorrer de nossas leituras sobre o tema. Colocar todas? Por uma questão de espaço vamos limitar tal debate, procurando mostrar um tipo de “evolução” neste conceito. Grande parte dos autores que discutiram
tal conceito iniciou seus trabalhos de pesquisa partindo das definições dadas pelos dicionários. Por que não faríamos o mesmo? No dicionário Michaelis a expressão é definida como: “s. f. 1. Representação grotesca, com intenção satírica, dos traços característicos, físicos, de uma pessoa. 2. Reprodução deformada. 3. Pessoa ridícula pelo aspecto ou pelos modos.” No dicionário Aurélio: “1. Desenho que, pelo traço, pela escolha dos detalhes, acentua ou revela certos aspectos caricatos ( ridículos, burlescos, grotescos) de pessoa ou fato. 2. Representação burlesca em que se arremedam comicamente pessoas e fatos; arremeto, farsa, sátira. 3. reprodução deformada de algo.” Desde já podemos apontar uma diferença entre estes dois estudos: em Michaelis o conceito se restringe apenas à pessoa; em Aurélio o conceito já engloba fato ou alguma coisa (algo). Estariam se debruçando sobre o mesmo objeto? Na enciclopédia Barsa: “Gênero de desenho deformado de cunho basicamente satírico, mas não obrigatoriamente cômico”. Nessa última definição encontramos um dado novo: pode o desenho não ser obrigatoriamente cômico. Vejamos um dicionário específico sobre esta matéria, ou seja, um dicionário de comunicação: 1. é a representação da fisionomia humana com características grotescas, cômicas ou humorísticas. A forma caricatural não precisa estar ligada apenas ao ser humano ( pode-se fazer caricatura de qualquer coisa), mas a referência humana é sempre necessária. 2. Arte de caricaturar. Designação geral e abrangente da caricatura como forma de arte[...] Nesta acepção, são subdivisões da caricatura: a charge, o Cartum, o desenho de humor, a tira cômica, a história em quadrinhos
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ALBERTO GAWRYSZEWSKI de humor e a caricatura propriamente dita (a caricatura pessoal) (RABAÇA; BARBOSA, 1978, p.19).
Portanto, se inicialmente a caricatura estava ligada intrinsecamente ao homem, se ela era pessoal, passou depois a abarcar algo mais. Percebe-se que a caricatura abarcaria subdivisões, ou seja, a charge seria uma delas. Carmona citou a definição do conceito no Diccionario de la Real Academia Española (RAE): “dibujo satírico em que se deforman las facciones y el aspecto de alguma persona”. Já a Enciclopédia Universal Ilustrada, que lhe pareceu mais completa, diz: caricatura es uma representación plástica de una persona o de uma Idea, interpretandola voluntarimente bajo su aspecto ridículo o grotesco. Artisticamente estriba su fuerza en la representación de los elementos carácterísticos de la persona o cosa representada” (CARMONA, 2003, p.19). Malagón analisou dicionários dos séculos XIX e XX produzidos na Espanha, mostrando as devidas diferenças durante os anos. Como síntese concluiu três pontos em comum entre os conceitos: 1) Se circunscrevem unicamente a pessoas (salvo alguns dicionários mais recentes); 2) a intencionalidade do grotesco e do ridículo como fim; 3) a deformação, exagero ou desproporção como meio para chegar a esse fim. Sobre o primeiro ponto nos chamou atenção para um aspecto lingüístico importante, ou seja, de que na língua espanhola não existe outro tipo de palavra para definir caricatura. “Por todo elle hemos de considerar la caricatura en el sentido má amplio, esto es, englobando en su nombre todos los posibles subgêneros [...]”(MALAGÓN, 2002, p. 6). O termo caricatura englobaria, assim, o conceito de caricatura política, de costumes, social etc., ou seja, em sua visão a caricatura incluiria as demais. Estariam
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incluídoe neste conceito a charge, o cartum e demais desenhos de humor. Quanto ao segundo e terceiro aspectos apontados, não acreditava que nem toda caricatura fosse intencionalmente ridícula e grotesca em seu fim, muito menos seria a deformação e o exagero um traço definitivo, visto que nem todo desenho que contém exagero ou deformação seria uma caricatura. Após destrinçar o conceito de caricatura em 21 características e qualidades possíveis, apontou uma definição do conceito: Una imagen generalmente unida al grabado o a cualquer outro tipo de reproducción masiva que consiste en una reducción o síntesis visual por médio de líneas de la persona u objeto que se representa; en donde la idea de agresividade, degradación, exageración, juego, fantasía o vertiente humorística están en mayor o menor medida patentes con el fin de crear un código por el que se pueda representar una opinión, una crítica, o en definitiva un contenido que si quiere dar a conocer en relación a una persona, una idea o un situación determinada (MALAGÓN, 2002, p.13).
Advertiu que tal conceito ainda poderia trazer em si várias tipologias que buscassem compreender o conceito de caricatura. Por fim, considerou que poderíamos dividir, de forma pragmática, a caricatura em diversos sub-gêneros, a saber: caricatura política; social; político-social; de costumes; simbólica; festiva; fantástica; pessoal. Em nossa opinião, tal proposta se torna pertinente e importante, pois facilitaria ao estudioso da imagem caricatural uma visão mais clara de seu objeto de análise e de sua fonte. Deve-se chamar a atenção para o fato de que a charge, por exemplo, estaria enquadrada nestas subdivisões, pois tal expressão inexiste na língua pátria do autor. O pesquisador Carlos Abreu conceituou a caricatura de imprensa como um gênero
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iconográfico de opinião, por meio do qual o autor do desenho buscava dar uma interpretação de algo, dar uma dimensão crítica ao seu trabalho, com auxílio de recursos psicológicos, retóricos e/ou plásticos, que poderiam ser potencializados por um texto breve (ABREU, 2001, p. 1). O vocábulo algo dá a dimensão que a caricatura pode alcançar em sua crítica e análise. Em outro texto, esse mesmo autor consideraria a caricatura como um gênero com diferentes ramificações, como por exemplo, a caricatura política, editorial, de costume, pessoal etc., nas quais o humor pode estar presente, da mesma forma como em outros ramos da imprensa, como a crônica (ABREU, 2001, p. 1). Um pesquisador brasileiro que buscou compreender e dar uma definição para o termo caricatura foi Camilo Riani. Inicialmente aceitou, como quase os estudiosos, que este conceito derivou do verbo italiano caricare, que significa carregar, sobrecarregar, carregar exageradamente. Mas sua preferência conceitual estava na expressão humor gráfico, que englobaria as categorias de caricatura, charge, cartum e história em quadrinhos, ou seja, acompanha muitos dos estudiosos do tema (RIANI, 2002, p. 25-26). Riani fez um trabalho se baseando nos Salões de Humor realizados pela prefeitura municipal de Piracicaba e de outros do país,onde o conceito de caricatura era uma categoria específica destes concursos, junto com charge, cartum e HQ. Não poderia usar este autor o termo caricatura englobando outros gêneros de arte do desenho, já que este conceito se limitava a uma categoria dos Salões. Existe, portanto, uma certa flexibilidade neste termo. Miani, citado por Riani, por exemplo, conceituou caricatura como “um termo genérico aplicado a todos os desenhos humorísticos, desde que
desencadeasse o riso, a crítica escarnecedora e a sátira contundente” (apud MIANI, 2002, p. 25). Aqui, mais uma vez, encontramos o riso e a sátira unidos, isto é, para este autor todo desenho de humor seria caricatura. Sem dúvida, uma redução expressiva do conceito. Como poderemos verificar, com grande parte dos estudiosos do tema, o conceito de caricatura está longe de um consenso. Com Riani não foi diferente, visto que observou que a expressão caricatura ora era um campo artístico, ora sinônimo de charge ou cartum (RIANI, 2002, p. 26). Percebeu este autor, analisando os conteúdos das obras de humor gráfico, o destaque dado às personalidades famosas e à classe dominante. Tais fatos levaram a que concluísse pela necessidade de o leitor ter um conhecimento prévio sobre o retratado. Esta é uma questão corrente nos estudos que utilizam a charge e a caricatura como objetos e fontes, ou seja, se o leitor não conhecer os símbolos, os personagens e os fatos nada entenderá do desenho ou poderá ter uma visão diferente da proposta pelo autor. Riani propôs, assim, diferenciar as diversas formas de desenhos de humor: Caricatura – desenho humorístico que prioriza a distorção anatômica, geralmente com ênfase no rosto e/ou em partes marcantes/diferenciadas do corpo do retratado, revelando também, implícita ou explicitamente, traços de sua personalidade; Charge – desenho humorístico sobre fato real ocorrido recentemente na política, economia, sociedade, esportes etc. Caracteriza-se pelo aspecto temporal (atual) e crítico; Cartum – desenho humorístico sem relação necessária com qualquer fato real ocorrido ou personalidade pública específica. Privilegia, geralmente, a critica de costumes, satirizando comportamentos, valores e o cotidiano; História em quadrinhos (HQ): história desenhada/desenvolvida em distintas etapas/quadros seqüenciais, com roteiro e trama (RIANI, 2002, p.34)
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Vemos, portanto, que a caricatura para Riani (e também para Miani) possui, em sua essência, o aspecto humorístico vinculado ao homem e visa destacar ou produzir suas deformidades anatômicas, podendo realçar aspectos de sua personalidade. É, assim, bem específica, não genérica. O conceito de charge também é cristalino, pois se trata de um desenho com humor que retratava fato recente em vários ramos da sociedade. Vemos também que a base da caricatura e da charge é o humor, com a diferença que a charge tem um aspecto crítico definido. Mas desde já perguntamos se tal visão se aplica quando pensamos em uma subdivisão, tal como a existência de uma caricatura e uma charge tipicamente políticas. Luiz Guilherme Sodré Teixeira é outro estudioso brasileiro da charge e da caricatura. Foi um dos poucos a diferenciar estas categorias. Segundo este autor, a charge, diferentemente da caricatura e do cartum, busca a apreensão do real. Seu traço é pela reflexão do real, uma crítica à razão onde o humor é a base de sua narrativa. Portanto, conceito próximo de Riani. Para ele: “a charge resume situações políticas que a sociedade vive como problemas, e os re-cria com os recursos gráficos que lhe são próprios” (TEIXEIRA, 2005, p. 73). Já a caricatura não visa essencialmente a reflexão, a crítica. Sua função seria reproduzir o personagem em si mesmo, ou seja, seu limite é a própria composição física do retratado, sua resposta está no excesso: o orelhudo, narigudo, barrigudo. Sua marca seria a extravagância, o exagero nos traços, na semelhança. Mas, para este autor, a caricatura não é agressiva, embora cause o riso. Embora próximo de Riani, não considera que a caricatura explicite traços de personalidade. Outro aspecto interessante citado por Luiz Guilherme, e
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ignorado por Riani, é a não agressividade da caricatura. Mas, retomando a pergunta feita anteriormente, como ficam as caricaturas tipicamente políticas? Elas não expressam traços de personalidade, ou pelo menos não denunciam ou elogiam ideais políticos dos agentes? Elas sempre trazem o riso, o humor é a base de sua composição? Antes de respondermos tais questões, seria interessante discutirmos um tipo de conceito que encontramos, ou seja, um desenho que visava somente o riso, nada tendo de político: desenho de humor. Jimenéz caracterizou esse tipo de desenho de ‘humor blanco’, ou seja, desenhos que somente objetivam fazer rir, sem qualquer fundo social ou político/ideológico. A questão do riso e do humor na caricatura é tema recorrente dentro do estudo sobre o conceito de caricatura, mas não é nosso objetivo aprofundar tal questão. Herman Lima, indo ao encontro do pensamento de Jimenéz, afirmou que: [...] a caricatura, dum modo geral, se pode provocar o riso ou o sorriso, traz também em sua própria substância motivo para reflexões nem sempre superficiais, ao passo que a finalidade do desenho humorístico, de par com a satisfação dum prazer estético, derivado de sua beleza, graça ou elegância de concepção e de execução, é precipuamente fazer rir (LIMA, 1963, p. 25-26).
O riso e o humor fazem parte da discussão do conceito de caricatura, como já vimos em diversas conceituações. A seguir, partiremos para a discussão dos conceitos propriamente ditos de caricatura e charge políticas. Seria possível pensar em uma caricatura ou charge política só com o caráter do riso? As especificidades desta arte deram um sentido novo aos estudos teóricos de até então.
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A caricatura e a charge políticas Vimos anteriormente toda a dificuldade de definição do conceito de caricatura. Nossas recentes pesquisas usam como fonte básica imagens, que no caso seriam as charges e as caricaturas. Entretanto, elas estão carregadas de significados políticos, pois foram publicadas na imprensa comunista (1945-57) 1 e na imprensa anarquista (1901-1927)2, ou seja, possuem todo um objetivo educacional e ideológico. Deixamos em aberto no item anterior algumas indagações: podemos pensar em uma subdivisão, tal como a existência de uma caricatura e uma charge tipicamente políticas? Sendo possível, são construídas visando o riso, o humor? É possível pensar em caricaturas políticas que expressem ou denunciem o caráter do retratado? É o que pretendemos responder agora. Vimos que muitos autores, em especial os da língua espanhola, em suas subdivisões do conceito de caricatura usam a expressão “caricatura política”. Para Carlos Abreu, a caricatura política era uma das ramificações da caricatura, em que o humor poderia estar presente ou não (ABREU, 2000, p. 4). Na primeira parte deste trabalho, vimos que esse autor usou o pronome indefinido algo dentro de sua natureza de substantivo, isto é, deu um significado maior à arte e às críticas possíveis nas caricaturas. Em outro trabalho, disse que era bom aclarar que a denominação de caricatura política não só abarcava personagens ou situações vinculadas diretamente a este mundo, bem como expressões da preocupação social dos caricaturistas (ABREU, 2001 A, p.2). Podemos, perceber, portanto, que vai além
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do simples conceito de caricatura como traços característicos e físicos do personagem; engloba preocupações sociais e políticas daquele que produz a arte, ou seja, um profissional engajado. Em uma perspectiva tradiconal, estaria ele falando de charge política e não da caricatura? Malagón, de forma semelhante ao pensamento de Abreu, buscou traçar uma definição para a caricatura política, onde esta extrapolava a simples imagem humana, ou seja, seria aquela em que o tema fosse nacional ou internacional, estivesse ligada intimamente a questões políticas, com seus personagens, palavras e fatos (MALAGÓN, 2002, p.15). Novamente não estamos diante de um narigudo ou barrigudo somente, mas de uma situação política ou social maior. Estaríamos, então, falando de caricatura política ou de charge política? O trabalho clássico de Herman Lima nos traz contribuições interessantes sobre a temática. Destacou a importância do estudo de caricaturas pessoais, usadas para fixar personalidades ilustres por um grande período. Citou o caso do caricaturista Thomas Nast, que contribuiu para a fixação da imagem do Tio Sam, com suas calças de listas, colete estrelado, casaca azul chapéu de chaminé, que seria baseada na figura de Lincoln. Tal figura adquiriu com o tempo o valor de representar uma nação (LIMA, 1963, p. 9). Outros exemplos existem para uma imagem representar algo maior. Carmona, por exemplo, em seu estudo sobre a caricatura na Colômbia, afirmou que a imagem de um velho com sombreiro largo, com uma manta puída negra, armado, com a inscrição “conservadorismo”, foi tão recorrente na imprensa liberal que se
Trata-se da pesquisa concluída “caricaturando e ilustrando na imprensa comunista (1945-57)” já citada. Trata-se da pesquisa em andamento, já citada.
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converteu em um estereótipo ( apud ABREU, 2000, p. 3). Em nosso estudo sobre a imprensa comunista, a imagem de Tio Sam foi constantemente usada pelo imaginário dos artistas do partido comunista como sinônimo do imperialismo norte-americano. Da mesma forma, a figura do gordo, de terno e cartola simbolizava o próprio sistema capitalista, sistema da opressão e da desigualdade social, seja na imprensa comunista, seja na anarquista. Na verdade, a caricatura (ou charge) pode expressar sua idéia indo além do desenho de um simples personagem. Ela pode desnudar, descobrir, denunciar, aos olhos do desenhista, toda uma estrutura de dominação. Em nossas pesquisas, além da cartola e do Tio Sam, como vimos, a zoomorfia (o polvo, o morcego etc) e símbolos como o cifrão, a suástica (na imprensa comunista), a cruz (na imprensa anticlerical anarquista), entre outros, foram utilizados no imaginário político para representar os seus inimigos. Mary de la Paz Mogollón e Cira Mosquera propõem uma idéia para o conceito de caricatura política (sinômino de desenho humorístico): “Un buen dibujo humorístico descubre políticamente a un personaje y pone de relieve esa parte oculta de su personaje, aunque también es de notar que la caricatura ha servido...para ensalzar y adular a poderoso” (apud ABREU, 2000, p. 3). Esta definição é importante, pois nos apresentou dois lados da caricatura política: pode atacar ou defender um personagem, um ideário político, o próprio poder. Vimos que grande parte dos estudos sobre caricatura a vê como cômica, objetivando o riso. Terminamos a parte anterior deste trabalho afirmando que a caricatura e a charge política possuíam especificidade e perguntando se caberia o riso. Bem, a caricatura política, dentro desta questão, 14
comporta uma discussão diferenciada, pois como veremos posteriormente, se a caricatura política tem seu lado cômico, do riso, muitas vezes não traz consigo tal conteúdo ou possibilidade, ou quem sabe mesmo nem um sorriso amarelo. Como afirmou Herman Lima: “[...] O certo é que a caricatura política ou social raramente pode levar ao riso despreocupado, como acontece com o desenho humorístico” (LIMA, 1963, p. 26). Muitos desenhistas, inclusive, aceitam o riso em seus trabalhos, mas não visam exatamente tal ato humano. Sua produção estaria engajada em uma luta política, que buscava esclarecer seu próprio posicionamento frente aos fatos cotidianos e políticos da vida local e internacional. O poder de formadora de opinião pública, de denunciar, de mostrar a realidade, de conscientizar etc. foram formas apresentadas pelos estudiosos da imagem para demonstrar a importância política da imagem. Ana Sanchez afirmou que a caricatura reforça valores populares, nacionais, assim preservando a herança cultural de um povo. Na realidade vai mais além, ou seja, o humor gráfico serve para revelar a verdade, desmistificar e desnudar as contradições e as ambigüidades dos poderosos. O artista busca no leitor um cúmplice para defender os interesses coletivos. Cita o exemplo do caricaturista costarriquenho Hugo Díaz Jiménez. Disse este que, com seus traços, ajudou a dar conta da dor, miséria, angústia, alegria e esperança do povo. Em síntese, ele seria um artista comprometido com sua arte a serviço do povo. dentro de la lucha contra la injusticia, la marginación, la corrupción, y en favor del apoyo a los trabajadores, es muy gratificante saber que uno ha puesto su mejor esfuerzo, que ha aportado algo a esa lucha, aún sin saber en concreto qué es lo que logra.
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CONCEITO DE CARICATURA: NÃO TEM GRAÇA NENHUMA Obviamente, no critico a quien hace dibujos solamente para hacer reír, disfruto mucho el ´humor blanco´, sin embargo yo no podría ser un caricaturista sin compromiso (apud SANCHEZ, 2002, p. 3).
Outro artista costarriquenho, Fernando Zeledón Guzmán (Zele) também se posicionou sobre o papel de sua obra dentro de um contexto político: La caricatura política es una contribución para elevar la conciencia de la gente. Yo no tengo otra forma de hacerlo, no soy político ni sé dar discursos políticos, soy médio zopetas. Estas es la trinchera que yo escogi, para disparar los balazos que puedo tirar. Yo hago la labor de un mosquito, que no puede detener la locomotora pero si al conductor. Esa es mi labor, joder al conductor (apud SANCHEZ, 2002, p. 8).
Na opinião do desenhista argentino Hermenegildo Sábat, para trabalhar bem a imaginação se faz necessário estar longe do poder, pois este seria sinônimo de seriedade e o humor está, pelo contrário, junto ao povo, junto à cultura popular (apud SANCHEZ, 2002, p. 4). Henfil, um dos nossos maiores chargistas, afirmou que seu compromisso não era com o humor, o seu objetivo não era provocar o riso e sim clarear os fatos como ele os via. O que não quer dizer que não podemos considerar sua arte como integralmente provida de humor. Também afirmou que se fazia necessário ao artista um engajamento na luta, ou seja, “[...] a chave para você fazer humor engajado é você estar engajado. Não há chance de você ficar em casa vendo os engajamentos lá fora, e conseguir fazer algo. Esse talvez seja o humor panfletário. É o humor que você faz lá fora” (apud SANTOS, 2003, p.148). Neste sentido, Carmona estaria certo ao afirmar que, mais que o riso, a caricatura política visava destruir simbolicamente a imagem do inimigo (CARMONA, 2003, p. 38).
Gómez, por sua vez, deixou claras as qualidades que deveria possuir um caricaturista: [...] no basta tener un espíritu crítico aguzado, ni un penetrante sentido del humor, ni una línea fácil, ni una aptitud para conseguir el parecido. Se necesita todo ello en dosis abundantes, y, además, no poca cultura literaria, muchísima versación sobre le política y un conocimiento profundo de las costumbres y de la idiosincrasia del pueblo (apud CARMONA, 203, p. 124).
As caricaturas e charges políticas de nossas pesquisas são fruto do trabalho de artistas engajados, simpatizantes de um projeto político (ou pertencente a um partido, como no caso do partido comunista). Em realidade, por estarem presentes em um periódico politicamente engajado, seus trabalhos artísticos só poderiam seguir a sua orientação. Mesmo em outros periódicos (jornais ou revistas) dito burgueses, as caricaturas e as charges expressavam o ponto de vista tomado por estes. A liberdade pode se tornar meramente simbólica. Muitos autores buscam desenvolver a idéia do poder que o desenho gráfico, a caricatura tem sobre a opinião pública, sobre as possibilidades de mudança política e social que ela poderia proporcionar. Carmona e Carlos Abreu afirmaram ser a caricatura política um instrumento de luta ideológica. Carmona, baseado em outros autores, considerou que desde o início as caricaturas têm sido usadas como veículos de idéias e instrumentos de divulgação de interesses de partidos e de dirigentes políticos (CARMONA, 2003, p. 21). Como são fundadas em personagens, fatos, situações específicas, não poderiam deixar dúvidas aos leitores, daí a preocupação de dar identidades aos retratados. Visa esta arte, como vimos, desnudar, clarear, dar uma visão de uma situação política ou de um personagem político.
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Mostrar sua verdadeira face, seu verdadeiro caráter, ou seja, mostrar aquilo que a mídia, o personagem buscava esconder, destruir uma imagem que estava sendo construída. Vamos retomar a relação de cumplicidade entre o desenho (ou seu autor) e o observador. Só existirá o riso, o prazer de ver/ler a imagem se houver uma certa cumplicidade, uma possibilidade de acordo entre o desenhista e o leitor. Faz-se necessária atenção para dois aspectos. O primeiro é quanto ao caráter negativo da imagem. Carmona e Lima nos chamaram a atenção para este fato, visto que nem toda caricatura visava destruir o retratado. Lima, inclusive, lembra-nos da caricatura de Rui Barbosa, onde a cabeça do jurista baiano fora feita no formato de uma biblioteca, denotando grande saber. Em segundo, está como a imagem era interpretada pelo leitor. Dependendo da posição pessoal deste, a imagem poderia ter uma conotação positiva ou não, como vimos. Luiz Guilherme Sodré Teixeira nos diz que a charge tem uma carga de agressividade em sua essência, e que ela é importante em sua relação com o leitor, já que acorda e potencializa sua própria agressividade, possibilitando o despertar de uma consciência crítica. Para ele: “a agressividade da charge é o aditivo, o subsídio, o complemento da opinião prévia do leitor, que se expressa para e por ele, num tom acima dos limites da palavra” (TEIXEIRA, 2005, p. 73). Assim, a charge é política, nunca neutra; toma partido e potencializa seu humor e sua crítica. Mas há exceções, segundo este autor: só há quebra da agressividade quanto há consenso social, quando se compartilham sentimentos de exaltação e euforia, como na vitória ou no luto, na catarse coletiva. Entretanto, em sua definição de caricatura, onde a base seria o humor, o prazer e não a busca de uma crítica ao sujeito
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(somente a este é possível se dirigir a caricatura), a agressividade não toma espaço, o seu traço linear, superficial e cômico dificulta tal qualidade. Para Motta, o riso é um recurso antigo usado na política para enfraquecer a posição dos adversários. Entretanto, afirma que o riso pode ser útil e, portanto, tolerado aos que detêm o poder, visto ter a qualidade de amenizar a crítica. Pode, inclusive, desanuviar crises que porventura ocorram no ambiente político (MOTTA, 2006, p. 24) . A charge e a caricatura políticas podem causar o riso, por possuírem uma carga de humor, podem divertir, mas não podemos nos esquecer de que podem causar também ao intérprete um estranhamento, pois podem despertar sua consciência, dar uma visão do político ou da situação que desconhecia, isto é, desvendar, desnudar uma realidade que talvez não quisesse ver ou conhecer. Portanto, a charge e a caricatura políticas possuem um grau de ambigüidade, uma carga emocional que a caricatura comum, a charge comum, a de costumes e de humor não contêm.
Tribuna Popular, 05/06/1945. p. 1
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Imprensa Popular, outubro de 1955
(MOTTA, 2002, p. 125)
No caso de nossas pesquisas, onde o receptor da mensagem provavelmente era um simpatizante da causa comunista ou anarquista, as imagens que degradavam o inimigo trariam satisfação. Como primeiro exemplo podemos mostrar a imagem publicada na página ao lado: possui título (“De véu novo”) e um diálogo entre os personagens (“Não adianta...Aquela pinta é manjada”). Lá está, com o corpo de mulher, o político integralista e, portanto, anticomunista declarado, Plínio Salgado. Uma mulher “sedutora” que deixa cair seu lenço na esperança de que um dos cavalheiros o pegue. Entretanto, eles conhecem “aquela pinta” e a ignoram, sabem que é de má fama. Na imagem, o símbolo do integralismo não nega a essência política da “senhora”. Simpatizantes de Plínio certamente se desgostaram da imagem, ao contrário dos inimigos do retratado (incluindo não comunistas), que se alegraram com a mesma. A imagem desenhada (a caricatura, a charge etc.) desde seu início, como nos falou Carmona, era utilizada nos embates políticos. Este aspecto é interessante quando podemos
encontrar o inimigo do PCB, por exemplo, também usando desta técnica para desmistificar o “cavaleiro da esperança”, para desnudar as relações PCB/PCUS, para ironizar as suas idéias, enfim, criando todo um imaginário anticomunista no Brasil. Um exemplo desse embate podemos verificar nas imagens acima. Nelas podemos identificar traços absurdamente idênticos, ou seja, alguém copiou alguém. Afinal, quem nasceu primeiro? A pergunta é de difícil resposta, mas a imagem do PCB tem a assinatura do artista Toledo, que assinou outras charges semelhantes nesse mesmo período. Enquanto que na obra de Toledo os políticos Café Filho e Juarez Távora estão a serviço do imperialismo norte-americano obedecendo às ordens vindas dos EUA, na outra imagem, o mico representa o líder do PCB Luiz Carlos Prestes, onde faz um papel subordinado, pois além de fornecer as ordens vindas da URSS, recolhia as doações. O tocador do realejo, aquele que dá o ritmo da música, era o Secretário Geral do PCUS e presidente da URSS, Malenkov. Assim, dependendo do receptor da imagem, ela
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poderá causar revolta ou alegria, dificilmente um riso gratuito ao simpatizante de Prestes ou Juarez. Nestas imagens estão embutidos valores, ideais e crenças que poderiam ser colocados tanto a serviço de quem acreditava nelas como de quem queria combatê-las. O inimigo deveria ser apresentado como mentiroso, falso, oportunista, mau, perverso, antidemocrático, autoritário, traidor, egoísta, enfim, por uma série de determinações negativas. No caso de nossa pesquisa com a imprensa comunista, a questão do discurso nacional é vital. Tanto a direita como a esquerda, conforme os desenhos mostrados, usavam a questão da subordinação do inimigo a um outro país, a um ideário político contrário aos interesses de nação brasileira. Já na imprensa anarquista tal temática estava vinculada à própria destruição do conceito de nação, ou seja, inexistia o discurso de nacionalidade. A charge produzida pelo PCB foi retirada do jornal diário Imprensa Popular de 1955. Juarez Távora, participante da Coluna Prestes, da Revolução de 30 etc., era neste momento Chefe do Gabinete Militar do Presidente Café Filho, que assumiu após o suicídio de Vargas. Os bilhetinhos simbolizam as “ordens do imperialismo norte-americano”, que eram tiradas pelo mico-presidente. Vemos no peito de Juarez uma placa com a inscrição “$ego”. O Cifrão acompanha boa parte das caricaturas, principalmente, e as charges publicadas pela imprensa comunista. Seu significado está ligado à traição, à entrega das riquezas nacionais, à venda do caráter do indivíduo, bem como buscava mostrar a subordinação do presidente ao seu chefe de gabinete (que também dá o ritmo da música). Esta imagem, publicada em preto-e-branco, demonstrava que para o autor os personagens nela contida eram conhecidos pelo público leitor, pois não estavam acompanhados de 18
qualquer referência sobre os mesmos. Só um aspecto está nesta charge e que não encontramos na outra: o olhar do “cego”. Juarez, por cima dos óculos, acompanha atentamente os fatos. De cego não tinha nada, ou seja, buscava Toledo abrir os olhos dos leitores do jornal para o “verdadeiro caráter” deste político. Na charge produzida pela “direita brasileira”, vemos Luiz Carlos Prestes e Malenkov. O autor desconhecido se preocupou em identificar cada figura, apesar de a imagem de Prestes ser bem popular. Na placa ao peito de Malenkov, a letra “C” da palavra “cego” foi substituída pela foice e o martelo. Este aspecto, somado às notas musicais que saem do realejo (PCB), ao que está escrito na caixinha de mensagens (“orientação russa”) e ao título da imagem (“O cego clandestino e o seu secretário”), bem como a cor usada (vermelha, utilizada nas roupas de Malenkov, no símbolo da foice e do martelo e nas calças do mico), deram à charge uma conotação de embate político, de denúncia, de subordinação, de destruição à imagem de herói, de nacionalista que o PCB construíra para Prestes e para si próprio. É interessante perceber o rosto de Prestes: barba por fazer e magro, dando um ar de velho e relapso na higiene. Pelas imagens também podemos reforçar as afirmações anteriores, de que os personagens e os fatos são descritos para uma fácil identificação e compreensão do leitor. Da mesma forma, elas possuíam uma síntese de uma leitura política. Estabelecido o diálogo entre o autor e o leitor, as conseqüências são imprevisíveis, ou não. Ficamos, por fim, com uma pergunta: teria sido comum tal postura de o
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(DAUMIER, 1995, p. 9)
inimigo copiar o inimigo? Um deboche do deboche? Uma resposta é certa, ela foi usada como forma de ataque e de defesa. Nesse discurso é importante lembrar o desenho de Philipon (acima), uma referência na história da caricatura mundial, que transformou a cabeça do Rei Luis Filipe de França em uma pêra (poire – que quer dizer tolo). Tal imagem ajudou a enriquecer ainda mais as possibilidades da caricatura política. Por sua causa Philipon foi processado e teve que pagar multa (que ironicamente foi paga com a venda das cópias do desenho). A analogia e metáfora, ou como disse
Gombrich, a descoberta do semelhante no dessemelhante, ou melhor, a descoberta teórica da diferença entre semelhança e equivalência, possibilitou a transformação da arte de desenhar. Os usos de vegetais, animais e outros bens inanimados estiveram presentes na arte comunista e na arte anarquista como arma de construção e desconstrução. Ela não pôde fugir de seu caminho. Um exemplo dessa exploração da equivalência está na caricatura política a seguir, onde vemos, ao contrário de Filipon, uma caricatura simpática de Truman se transformar em arma de guerra, um avião
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Voz Operária, 26/04/1952, p. 5
soltando bomba. O riso e a alegria da caricatura sem crítica se transveste em uma denúncia do caráter guerreiro de Truman. Aqui podemos perceber que a definição de caricatura (política) sem agressividade, sem reflexão, onde a base é o humor e o riso, perde sentido. Podemos apresentar mais quatro caricaturas políticas em que os traços dos personagens vão além do simples traço, do simples exagero físico. A alma, a essência dos retratados é colocada à mostra. Como se disse, a caricatura, em especial a política, pode desnudar o verdadeiro caráter do personagem, deve e pode denunciá-lo, deve e pode desmascarar o que a mídia quer esconder.
No primeiro caso temos a figura de Churchill, devidamente apresentado na legenda abaixo do desenho. É uma caricatura carregada de sentidos políticos. Sem o canhão na boca seria uma caricatura nos padrões comuns do conceito: riso, cômica, personagem, de seu tempo, sem crítica e sem agressividade. Mas, ao transformar o seu conhecido charuto em uma arma de guerra, o autor, certamente engajado politicamente,´quis denunciar o caráter guerreiro do retratado. No segundo caso, temos Assis Chateaubriand, político brasileiro, dono de uma vasta rede de comunicação, notoriamente conhecido por suas posições
Imprensa Popular, 1955
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direitistas. O artista da imprensa comunista, engajado e empregado desta, Jorge Brandão, retratou-o com traços grotescos, valendo-se de seus traços físicos (baixinho, barrigudo, narigudo, dentuço e peludo) para realçá-los e acrescentar outros não muito humanos: unhas crescidas e rabo. Em síntese, era um monstro! Entretanto, o caricaturista quis acrescentar outras características mais “políticas”, que dão o ar de seu caráter político e ético, tais como vendido, traidor da pátria e capacho.
“rasgando a Constituição”. O caricaturista Lúcio se preocupou em desenhar o presidente olhando para o leitor, e já foi dito por um estudioso que é pelo olhar que se conhece a alma do retratado.
Imprensa Popular, 1955 (autoria Jorge Brandão)
Tribuna Popular, 13/05/1947, p. 1
A imagem acima, embora à primeira vista, dentro dos conceitos-padrão de charge, possa ser considerada como tal, prefiro vê-la como uma caricatura política. Por quê? Parece-me que a proposta da imagem é denunciar o caráter autoritário do presidente Dutra, desmistificar a idéia construída pela mídia de que respeitava a Constituição brasileira, que sempre carregava uma, demonstrando sua adesão à mesma. Pela imagem podemos identificar a figura de Dutra, escondido atrás de uma cortina, sem a vista de ninguém,
Por fim, um terceiro personagem bem conhecido, retratado como um animal agourento (aqui temos mais um caso de animalização de pessoas, o uso da zoomorfia), uma figura traidora: o jornalista e político Carlos Lacerda. Sua primeira caricatura como corvo deu-se no jornal Última Hora, feita por Lan, em maio de 1954 (DULLES, 1992, p. 33). Segundo Gombrich, a boa caricatura é aquele que marca o caricaturado por toda a vida (GOMBRICH, 1995, p. 366) . Foi este o caso. A figura de Lacerda, a partir daí, sempre estará associada à figura do corvo. Toda imprensa contrária a Carlos Lacerda utilizará uma caricatura onde o corvo é seu corpo. Interessante perceber o papel exercido por seus óculos como fator importante para a confecção da figura. Buscava-se retratar o caráter de Lacerda, sempre crítico, demolidor,
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agourento mesmo, afinal sua figura esteve presente em momentos difíceis de nossa história (suicídio de Getúlio Vargas, golpe contra a posse de Juscelino, golpe contra a posse e, posteriormente, ao governo Jango entre outros). A partir da figura de Lacerda podemos identificar aspectos que colocam a caricatura e a charge política como possuidoras de uma longa existência, muito diferente da opinião da maioria dos estudiosos que as colocam com uma vida efêmera, em especial a caricatura. Charges e caricaturas vinculadas aos discursos ideológicos transitavam por eles durante sua existência. Assim, por exemplo, durante o período da guerra fria símbolos e imagens foram repetidos à exaustão tanto pela imprensa comunista como pela anticomunista. Pelo seu caráter universal, podemos dizer que se assemelha ao cartum (político?). Da mesma forma, ainda hoje, o cifrão, a suástica entre outros símbolos podem ser encontrados nas caricaturas e charges para denunciar situações políticas ou o caráter ideológico do retratado. Assim, uma caricatura de um personagem pode ser repetida diversas vezes, ou uma similar, como no caso do corvo Lacerda, enquanto o retratado estiver na vida política ou não mudar de posição ideológica. Um exemplo interessante da permanência de uma charge política durante longo tempo pode ser dado com a imagem seguinte. Com o título “A guerra”, foi publicada no jornal anarquista A Plebe, de 23 de junho de 1917, em sua primeira página, desacompanhada de qualquer texto sobre o mesmo assunto, embora fosse o período da I Guerra. Ela apresenta um tema caro ao anarquismo – antimilitarismo –, uma vez que os interesses dos patrões, do imperialismo, da existência da nação e do nacionalismo, é que levariam os operários à guerra, os maiores 22
sacrificados com sua existência. Sua legenda deixa claro que quem vencerá a guerra será a morte (“A que vencerá”), ou seja, a sócia dos interesses capitalistas. Posteriormente foi impressa no mesmo jornal, em 01 de maio de 1947, em página que discutia o primeiro de maio, em especial a historia dos mártires de Chicago. Foi retirado o título e,sob a imagem, foi colocada uma nova legenda: “Guerra à guerra – deve ser o brado de todos os homens de consciência reta”. Vemos, portanto, que passados exatos 30 anos de sua primeira impressão, a mesma charge ainda era útil aos ideais anarquistas, demonstrando a permanência da charge política no tempo.
A Plebe, 23/06/1917, p. 1
Por fim, um dos temas discutidos pelos estudiosos da charge e da caricatura é sobre sua relação com o texto, seja na sua composição, seja enquanto ilustrando um texto. Para Abdelmalack, a caricatura (que ela não diferencia de charge) é composta por três elementos: o desenho, a legenda e o título (ABDELMALACK, 1991, p. 20). É claro que não é tão simples assim, pois podemos encontrar tanto a charge como a caricatura ora desacompanhada de título, legenda e ilustrando algum texto, ora acompanhada de legenda ou título sem ilustrar qualquer texto e assim por diante, tudo depende das intenções do autor ou do editor. Exemplos foram mostrados nas imagens supra.
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A caricatura política de Dutra, por exemplo, ilustrava a notícia cuja manchete era: “Em plena ditadura”. Esta reportagem acusava o presidente Dutra de conspirar contra a Constituição – que ele havia jurado respeitar - e promover uma campanha contra o Congresso com o objetivo de fechá-lo, como em 1937, na implantação da ditadura do Estado Novo.3 Vemos, portanto, que neste caso a imagem sintetizava a notícia, procurando, como já afirmamos, desmascarar a farsa produzida pela mídia. O uso de títulos, diálogos, legendas, comentários nas caricaturas e charges políticas, embora possamos encontrar sua não ocorrência, faz da relação imagem/texto uma realidade quando se estuda tal temática. Mas, qual a relação entre eles? Claro está nos desenhos apresentados neste texto que o que se procurava era deixar cristalino para o receptor da mensagem a idéia do autor ou do editor. A legenda, como vimos, pode reforçar e/ou complementar a imagem, dando-lhe sentido, atingindo mais diretamente o caricaturado ou uma situação cotidiana da população. Ou seja, os componentes ajudam o receptor a entender de forma clara o objeto proposto com o desenho elaborado. No desenho político a participação da legenda e, mesmo, do texto, pode exercer importante função, ou seja, podemos encontrar uma forte interação. Nas fontes utilizadas por nós, o desenho político muitas vezes sintetizava a mensagem do texto, como vimos no caso de Dutra. Abdelmalack, que como já vimos não diferenciou caricatura de charge e apresentou a caricatura como composta de três elementos, fez uma longa relação entre a imagem e o texto:
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O contato da caricatura com o texto se dá quando o texto nomeia e situa: enquanto a imagem faz o julgamento moral; quando o texto oferece ao narrador a possibilidade de (des) qualificar o que mostra pela imagem; quando o texto é um prolongamento da sua expressão, que acentua característica de seu caráter, com seus pensamentos impossíveis de serem explicitados pela forma visual. As legendas também ampliam os recursos de disfunções entre o retratado e ele mesmo; entre o que ele mostra e o que fala. Também amplia as relações entre personagens pelos diálogos. Aliando a caricatura aos recursos do gracejo verbal em múltiplas combinações com a imagem (ABDELMALACK, 1991, p. 21).
Marcos Silva também enfatizou a relação entre imagem e texto: A dependência da imagem em relação à palavra (observe-se à importância da fala) para alcançar o efeito humorístico tanto se reporta à desvalorização de capacidade autônoma da visualidade quanto sugere um receio de perder um controle sobre os deslizamentos de significações em que se baseia a produção de humor visual (SILVA, 1990, p. 53-54).
No entanto, afirmou esse autor que isso não era motivo para se admitir a ineficácia dos recursos visuais na identificação dos elementos que formavam o personagem, nem como suporte principal para a transmissão da mensagem pretendida. Concordamos com Carmona quando afirma que não se pode encarar a caricatura como subsidiária, auxiliar ao texto ou qualquer outra coisa, pois ela tem conteúdos próprios, gerados por um artista. Em nossas pesquisas encontramos muitas caricaturas e charges políticas acompanhadas do texto, podendo sintetizá-lo ou apenas reforçar suas idéias. Uma boa parte das imagens que encontramos foi feita por artistas estrangeiros,
“Em plena ditadura”, In: Tribuna Popular, 13/05/47. p. 1.
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o que significava dizer que não teve o menor contato com a reportagem que a acompanhava. Logicamente representava o pensamento, o ideário comunista ou anarquista e, por isto, foi utilizada. Até que ponto podemos dizer que foi o texto que foi elaborado para se adequar à imagem? É uma pergunta que ninguém formulou e por tal razão sem resposta. Não ousamos respondêla, mas fica a questão. A riqueza da caricatura ou da charge política está em que elas podem ter vidas próprias, não precisam ser subsidiárias ou dependentes de qualquer texto. Ao receptor caberia estabelecer os pontos de ligação. A imagem dentro daquele quadrado ou retângulo seria interpretada às vezes de forma diversa do proposto no texto contíguo ou mesmo do seu criador. Mas muitas vezes, especialmente em se tratando de publicações políticas, estas relações podem alcançar uma aproximação tal que, ao ver a imagem e ler o texto, o leitor se levaria pelo texto. Muitas das caricaturas e charges políticas publicadas nos jornais do PCB foram acompanhadas por “explicações” da redação, pois afinal, não se deveriam criar conflitos na cabeça do leitor, mas luz. Considerações finais Sintetizando toda esta história podemos perceber a dificuldade de se encontrar um conceito definitivo para caricatura e para charge, em especial para caricatura política e para charge política. Consideramos que uma boa possibilidade para ajudar neste imbróglio seria a busca de uma nova alternativa, ou seja, a criação de novos conceitos, tais como caricatura ideológica e charge ideológica.
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Imagens estas mais voltadas ao embate ideológico, de defesa de um ideal político, de transformações políticas, econômicas e sociais, se encaixariam melhor em novos conceitos mais específicos, mais voltados para sua origem, sua criação. São imagens, como vimos, mais duradouras, mas permanentes no tempo, com símbolos que extrapolam limites territoriais e nacionais. São imagens que possuem uma intensa cumplicidade com o seu leitor – que só assim poderiam causar o riso –, com uma carga agressiva e de crítica como característica básica, denunciando uma situação político-social (ou defendendo) ou desnudando o caráter do personagem retratado. Assim, poderíamos definir a caricatura ideológica como: imagem de personagem política, podendo abranger também fato político envolvido na questão proposta na ilustração, com a agressividade como essência. O humor não é seu objetivo final, mas pode existir de forma irônica visando denunciar o caráter do retratado. O uso do grotesco, da zoomorfia, da busca da equivalência com uso de símbolos políticos é uma de suas possibilidades. Quanto à definição de charge ideológica, podemos manter as mesmas características da caricatura, apenas se dirigindo ao fato político em especial, destacando-se o uso de símbolos. Por fim, não podemos nos esquecer da relação imagem-texto, ou seja, como dissemos anteriormente, muitas vezes o título, a legenda e a identificação dos personagens têm uma função política bem específica, pois não pode o leitor ter dúvidas dos fatos e dos personagens que estão sendo retratados, pois a função da imagem política é o esclarecimento conforme os interesses do editor do jornal.
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CONCEITO DE CARICATURA: NÃO TEM GRAÇA NENHUMA
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EMBRULHADO PARA PRESENTE? FOTOGRAFIA, CONSUMO E CULTURA VISUAL NO BRASIL (1930-1960)
Embrulhado para presente? Fotografia, consumo e cultura visual no Brasil (1930-1960)
Ana Maria Mauad Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e Pós-doutorado no Museu Paulista da Universidade de São Paulo (USP). Professora Associada do Departamento de História da UFF, pesquisadora do LABHOI/UFF e do CNPq. Trabalho desenvolvido no âmbito do projeto: “Memórias do Contemporâneo: narrativas e imagens do fotojornalismo brasileiro”, CNPq 2005-2008. É autora de, entre outras publicações, Sob o signo da imagem: A produção da fotografia e o controle dos códigos de representação social, da classe dominante, na cidade do Rio de Janeiro. 1. ed. Niterói: LABHOI/UFF, 2002.
RESUMO O texto analisa a crescente influência cultural norte-americana nos padrões de consumo de massa, enfatizando o estudo da relação entre fotografia e publicidade nas revistas ilustradas, no período de 1930 a 1960. Abordam-se os aspectos políticos da elaboração da política da Boa Vizinhança e suas relações com a cultura do consumo; destaca-se na análise das imagens a dimensão intertextual da expressão visual na produção do imaginário consumista. PALAVRAS-CHAVE: fotografia; publicidade; cultura do consumo.
ABSTRACT The work analyses the increasing US cultural influence on the patterns of mass consuming, stressing the study of the relationship between photographs and publicity at the illustrated magazines, during the years 1930-1960. It is considered the political aspects of the Good Neighbor Policy and its relations with the consumption culture; concerned to the analyses of the images it is emphasized the intertextual dimensions of visual expression on the building of consumption imaginary. KEY WORDS: photography; publicity; consumption culture.
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Primeiro fomos mais ou menos lisboetas, com o mundanismo. Depois londrinos e parisienses, agora somos new-yorquinos e hollywoodenses. O que chamava antigamente de ‘sarau’ passou a ser ‘soirée’ e hoje em dia é ‘party’[...]. No tempo do binóculo floresceu nossa primeira linhagem de elegantes republicanos. O asfalto, depois o automóvel fizeram o resto[...]. Hoje poderíamos dizer: o Rio ‘grows well’ ou se acharem o adjetivo ‘smart’ também já foi vocábulo elegante usado antes de 1914, poderão fazer uma tradução mais moderna – ‘Rio grows swell’. (Revista Rio Ilustrado, n°170/171, agosto/setembro, 1953.)
A capital brasileira em 1953, ano em que foi publicado este comentário já poderia ser considerada uma cidade cuja paisagem já havia sofrido a mímesis do “american-wayof life”. A nova paisagem tinha como ícone a Cinelândia, cujos letreiros grandiosos dos cinemas anunciando o último lançamento de Hollywood, não deixava o cidadão comum esquecer quem ditava as modas e os comportamentos up-to-date; ou ainda a av. Presidente Vargas, a mais nova artéria dos negócios, cuja arquitetura calcada no cimento armado das marquises e nas várias pistas de rolamento para automóveis, não deixava o pedestre esquecer, o ritmo acelerado dos novos tempos. Já se tornou quase um senso comum, hoje em dia, falar da influência norte-americana nos nossos hábitos e comportamentos cotidianos. No entanto, o que hoje passa a incomodar aos mais preocupados com a homogeneização cultural, possui uma história
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que não tem nada de espontânea e que contou com um massivo investimento de negócios e publicidade para que pudesse resultar nesta quase unanimidade nacional. O Tio Sam teve data e estratégia planejada de entrada no Brasil, impondo aos brasileiros, desde sua chegada à adequação dos seus padrões de consumo e sociabilidade à nova lógica da internacionalização cultural. Com base na doutrina do destino manifesto a cultura norte-americana cunhou sua auto-imagem, fundamental para a elaboração do mito americano. Um mito que tinha como missão espalhar os verdadeiros sentimentos da América, através dos seus sonhos de perfectibilidade. Tal estratégia pautava a política externa norte-americana numa moral, que concebe a América do Norte como o local da perfeição e que compreende a sua intervenção, em outras regiões do mundo, como a tentativa de estender tal perfeição. Os pilares deste sonho de perfectibilidade seriam a Democracia e a Liberdade introduzidas pela homogeneização cultural (DONOGHUE, D. et al., 1993), como mais um produto a ser consumido. A influência que já vinha se delineando dentro da perspectiva da doutrina Monroe, com o avanço do nazi-facismo, ganhou um perfil institucional. Em 16 de agosto de 1940 foi criado o Office of Commercial and Cultural Relations between the American Republics, passando a se chamar a partir de 1941, Office of the Coordinator of Inter-american Affairs, chefiado por Nelson Rockfeller.
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Este órgão tinha como função implementar a política de boa vizinhança norte-americana na América Latina. Em linhas gerais a solidariedade hemisférica visava garantir a posição estratégica dos aliados no Cone Sul, a partir do avanço das forças do eixo no Pacífico. No Brasil o Office of InterAmerican Affairs contava com o apoio da embaixada norte-americana e com a participação de grandes firmas dos EUA, dentre as quais: General Eletric, a General Motors, a Light and Power Co, The National City Bank of NY, entre outros. Todos empenhados em ampliar os canais de intercâmbio entre o Brasil e os EUA. A política da boa vizinhança surtiu os efeitos desejados, pois ao fomentar um padrão de comportamento, no Brasil, em compasso aos critérios norte-americanos de modernidade, possibilitou o surgimento de um poder de compra, no país, que a indústria norte-americana do pós-guerra poderia satisfazer. A estratégia de criar um mercado latino-americano para os produtos dos EUA era perfeitamente explicitada entre os diretores e figuras de relevo do Office e estimulada pela várias agências de publicidade aqui instaladas a partir dos anos 1940. Agências tais como: a S.A. Interamericana de Propaganda, Mc CannErickson, Lincoln, Standard, Grant, Continental, para ficar entre as de maior destaque, foram as reponsáveis pelas campanhas publicitárias de empresas norteamericanas que invadiam o mercado brasileiro, dentre as quais: a Standard Oil, a Coca-cola, RCA Victor. A propaganda é a alma do negócio No entanto, vale a pena, nos determos, brevemente, sobre a forma como a política da boa vizinhança e o pan-americanismo
redefinem o padrão publicitário da época atuando como um eficiente canal de penetração cultural norte-americana, no mais elementar da vida cotidiana: os hábitos de consumo e padrão de sociabilidade. Vale, ainda sim, uma ressalva em relação à forma que a transmissão e recepção de valores culturais de um país para o outro assume. O debate sobre culturas subalternas, resistência cultural ou alienação foi amplamente renovado nos anos oitenta, desde um conjunto de reflexões latinoamericanas sobre a condição pós-colonial e a capacidade das culturas dominadas politicamente enfrentarem a dominação através de estratégias cotidianas de recepção e apropriação de valores culturais. O pano de fundo destas discussões seria o já decantado debate, mas nem por isso superado, sobre a construção das identidades nacionais. O fundamental a se reter do debate, nos limites deste trabalho, é a necessidade de se mapear as estratégias e mecanismos através dos quais a transmissão dos novos índices culturais é feita e como são aqui apropriados pelos diferentes agentes culturais. No marco específico da publicidade dentre os anos 1930 e 1960, no Brasil, os principais itens a considerar seriam: a formação dos publicitários, o controle acionário das agências que se instalaram no Brasil no período em questão e a forma que o discurso do pan-americanismo é traduzido pela propaganda através de diferentes grades de interpretação cultural. A revista Publicidade, editada a partir de 1940, no Rio de Janeiro, utiliza-se das suas capas para homenagear “os grandes da publicidade”. Nas capas figuravam nomes como Armando Sarmento, diretor da MacCannErickson no Brasil e na Argentina nos anos 40; Waldemar Augusto da Silva, jornalista profissional e colaborador em periódicos
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internacionais, formado em Economia e finanças na Columbia University e em vendas pela Salesman Training Asscociation de Chicago; T J O’Shea, um norte-americano radicado no Brasil desde 1914, quando tornou-se subgerente da Scott and Browne Inc., firma produtora dos famosos produtos: Emulsão Scott e o sal de frutas Eno; F.C Scouville, outro norteamericano radicado no Brasil e responsável pelo setor de publicidade da Light; só para citarmos alguns. Todos eles ou são norte-americanos radicados no Brasil, ou tiveram sua formação profissional feita fora do Brasil, mas todos eles também fixaram residência no Brasil e procuraram, em seu trabalho, realizar a tarefa de traduzir em dialeto local, os valores que se querem universais. Ao mesmo tempo, todos se conheciam e atuavam num mesmo espaço social, como editores e colaboradores de revistas de publicidade ou integrantes de associações profissionais, criando uma rede de sociabilidade necessária a elaboração de um campo autônomo para a publicidade, capaz de conformar sua próprias regras de ação. As estratégias adotadas expressavam a necessidade de orientar a publicidade para um público receptor que nada tem de passivo, ao contrário, determina a adequação dos formatos de publicidade aos gostos e hábitos já consolidados. Por outro lado, essa mesma publicidade, por utilizar a noção de novidade como base da estruturação da sua mensagem, imprime ao cotidiano um novo conjunto de comportamentos considerados emergentes e adequados a um novo tempo que está por vir. Nos anos 1940 o mercado editorial de publicações periódicas voltadas para um público específico amplia-se. Anuários de publicidade, de imprensa, revistas como Publicidade e Propaganda passam a ser editados com a missão de fazer com que a
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“mídia” se tornasse o veículo propagador de novos hábitos de consumo. O pan-americanismo na publicidade também sofreu uma “tradução” necessária para se chegar aos corações e mentes dos consumidores não como algo imposto, mas necessário para a integração do Brasil na modernidade ocidental. Mesmo antes dos EUA entrarem na guerra já havia no meio publicitário uma noção clara de que o papel do Brasil, no jogo das relações internacionais, iria modificar-se sensivelmente. Em matéria publicada em 1940, Manoel de Vasconcellos, um dos colaboradores da revista Publicidade, reflete sobre a relação entre propaganda e pan-americanismo: A guerra impossibilitou completamente as excursões turísticas ao Velho Mundo. Ficaram assim as companhias americanas deste ramo de negócios com um único campo a explorar, se não quisesse sofrer um verdadeiro colapso. E lembraram-se então da América Latina[...] são grandes os motivos de grande atração desde que a propaganda os revele[...] A despeito de grande projeção, dos Estados Unidos como força econômica, sobre a América latina, ela também tem atraído e influenciado os Estados Unidos, mesmo antes da guerra os forçar a volver os olhos para nós, com mais aguda capacidade de ver. Bidú Sayão, Guiomar Novais (a quem a imprensa norte-americana chamou de maior pianista do mundo), Carmem Miranda, com o “Bando da Lua”, são aquelas duas , afirmação de que o Brasil pode mandar para a terra dos dólares artistas incontestáveis – e esta última, a nossa “pequena notável” (ou miss Mai-randa, como dizem os americanos) uma prova de que temos ritmos exóticos e originais, de uma cadência dolente ou cheio dessas belezas de nossas paisagens. É tudo isso o que tem feito com que os norteamericanos passem agora a chamar ao Rio de Janeiro: “the world gayest city” (Publicidade, Ano 1, março 1940, p.28-29)
O articulista continuava sua avaliação comentando sobre carnaval, das excelentes
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estações de águas, comparáveis aos seus congêneres franceses, entre outras belezas naturais. Conclui destacando o papel fundamental da propaganda no entrelaçamento do pan-americanismo aos interesses econômicos. Portanto, estabeleciase um padrão cultural claro para a divisão internacional da cultura, no qual, Brasil ratificava sua posição de país exótico e sensual, atualizando sua auto-imagem à luz dos padrões de como os outros esperam nos ver. Fabrica-se um Brasil, neste momento, para americano ver. A idéia de assimilar a publicidade comercial ao ideário pan-americano foi elaborada através de uma ativa participação de jornalistas/ publicitários nos fóruns internacionais. No conjunto o que unia as opiniões era o benefício que o estreitamento dos laços políticos e comerciais iria trazer para ambos os lados, mas o que as separava, era justamente o peso de cada lado neste novo equilíbrio de forças. A entrada dos Estados Unidos na América Latina, como um todo, sempre foi polêmica e nada consensual, ora saudada como o nosso passaporte para a modernidade, ora rejeitada pela perda da nossa identidade diante do imperialismo yankee. Portanto se internamente, a busca pela identidade nacional confundia-se com a valorização da cultura popular, expressa na equação: musicalidade + belezas naturais+ espírito criativo, externamente deveríamos aproveitar a oportunidade dada pela guerra para aprendermos, com os yankees, a desenvolvermos nosso espírito prático, a sermos modernos e industrializados, aumentando nosso standard de vida através de um novo padrão de consumo O consumo, associado a uma atitude moderna e atualizada e identificado como direito de todo o povo livre e democrático, é a bandeira da versão reeditada do pan-
americanismo durante a Segunda Guerra Mundial como expôs o jornalista Genival Rebelo, redator do diário Carioca em 1942: A idéia do pan-americanismo não é atual[...] hoje a “good neighbor policy” é simplesmente uma modernização da Doutrina Monroe [...] o que há de novo, hoje, neste gigantesco movimento de maior aproximação e cooperação entre os países americanos, não é a idéia, que já tem mais de um século de existência; é a propaganda que se tem feito em torno dela (Publicidade, Ano 3, fev/mar. 1942, p. 9).
Mudança de hábitos.... O período que vai de 1930 a 1960 circunscreve uma fase que pode ser caracterizada por uma gradual mudança no eixo de influência cultural no Brasil, de lisboetas passamos a americanizados, assumindo neste entretempo, nossa fase afrancesada dos bulevares e soirées. É justamente nos anos acima delimitados que a influência francesa é substituída pela norteamericana, que vem calçada num padrão de consumo de massa. Esse novo modelo de cultura urbana, repleto de referências internacionais, teve no entrelaçamento cinema/publicidade/ fotografia, seus principais veículos, para como disse o cronista “subverterem a ordem espiritual do mundo” (Careta, 6/6/1938). A cultura dos grandes centros urbanos e, especialmente da Capital Federal, dos anos trinta em diante, inspirava-se nos modelos sonoros de Hollywood, nas imagens da publicidade de sabonete, cigarro, eletrodomésticos, refrigerantes e bebidas, e na sua projeção nas reportagens sociais, numa simbiose quase imperceptível entre os elementos de significação. “Aloof”, “glamour”, “sophisticated”, “it”, “sex-appeal”, “yampf”, “temperamental”
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eram imagens associadas à mulher, alvo predileto das propagandas que era vista como ultra-moderna, esportiva, cinematográfica, tostada de sol, que esconde os olhos nuns óculos escuros enormes, faz ginástica pelo rádio em Copacabana, toma drinks no OK, dança no Carlton, freqüenta o sol e o mar com intimidade, como se vê, o tipo “modern girl”. A mulher brasileira se equipara culturalmente com a norte-americana, pois como nove entre dez estrelas de cinema, usa sabonete Lever, possui uma Bendix automática, preserva a saúde da sua família num refrigerador GE, desfruta de horas de lazer com as amigas acompanhadas de uma coca-cola gelada, compra calças far-west para seu marido descansar nas férias juntamente com as alpargatas Roda, garante uma cota de saúde e alegria de seu filho dando-lhe Toddy que : “gelado no verão e quente no inverno, proporciona ao organismo os elementos que dão vigor e bem-estar...o único com extrato de malte” (Vida Doméstica, dezembro de 1949). Portanto, a imagem da mulher construída pela publicidade da época é um misto de atriz de Hollywood com dona de casa prática e responsável por prover o lar do conforto e das facilidades de uma vida doméstica moderna e feliz. Em várias matérias publicadas na revista Publicidade e depois na Propaganda e Negócios o público alvo das publicidades foi tema de análises cuidadosas. Dentre os vários pontos destacados sobressai à mulher como o elemento diferenciador no consumo de produtos para casa, beleza, indumentária, alimentação e para os filhos, seguida pela família que constitui a célula básica para a qual a grande maioria da publicidade é direcionada, principalmente a de eletrodomésticos e automóveis. Ao gênero masculino ficava reservada a propaganda de
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remédios, indumentária, bebidas, cigarros e automóveis esportivos. De um modo geral valorizam-se a juventude responsável, os valores do trabalho e do lazer regrado. Buscou-se caracterizar a relação entre as imagens publicitárias (desenhos e/ou fotografias) e as imagens fotográficas veiculadas pelas revistas ilustradas Careta e O Cruzeiro, associadas à representação social dos comportamentos urbanos, na elaboração da cultura do consumo. A escolha das imagens tem por objetivo demonstrar as homologias na forma da expressão e do conteúdo entre o sistema visual da publicidade e o sistema visual da fotografia de reportagens sociais (coberturas de eventos associados as vivências das frações da classe dominante). Vale esclarecer que tais escolhas foram feitas com base em estudos anteriores (MAUAD, 1990, 2002), onde a análise quantitativa subsidia o uso exemplar das imagens, neste trabalho. Observa-se que ao longo do período estudado ocorreu uma gradual substituição dos desenhos na publicidade, por imagens fotografadas, consolidando-se a forma de expressão visual de maior efeito de realidade para fins comerciais. Em entrevista com fotógrafos profissionais que atuaram no período constatou-se que muitos deles atuavam tanto no estúdio de retratos e cobertura de eventos das camadas dominantes da sociedade, como eram contratados pelas agências de publicidade para fotograr certos produtos. A valorização da fotografia para fins publicitários está associada a consolidação do campo fotográfico no século XX, cujas relações de força definiam-se em relação ao acesso ao equipamentos modernos, aos contatos profissionais, a proximidade dos movimentos artísticos e a inserção na imprensa.
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EMBRULHADO PARA PRESENTE? FOTOGRAFIA, CONSUMO E CULTURA VISUAL NO BRASIL (1930-1960)
(Nosso Século, Publicidade, capa interna e contra-capa interna. São Paulo, Abril Cultural, 1980)
Observa-se que nas primeiras décadas do século XX a relação entre imagens
publicitárias e as fotografias dos eventos era construída de forma direta associando o produto ao evento planejado:
(Careta, 6 de junho de 1908)
Entretanto, na medida em que o conjunto de experiências “fotografáveis” e o universo de produtos oferecidos ao consumo se ampliavam, tal estratégia não poderia ser mais aplicada. A opção, portanto foi operar por sistemas de semelhanças tanto em termos de forma da expressão – associada a
(Careta, 30 de Dezembro de 1922)
estética da imagem e a sua retórica, incluindo-se homologias entre planos, eixos e enquadramento; quanto pela valorização de certas vivências urbanas – como é o caso carioca da valorização da praia e da região a beira mar; da juventude e de sua informalidade.
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(Careta, 24 de Janeiro de 1942)
(Cruzeiro, 7 de Janeiro de 1950)
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(Nosso Século, Publicidade, São Paulo, Abril Cultural, 1980)
(Nosso Século, Publicidade, São Paulo, Abril Cultural, 1980)
(Nosso Século, Publicidade, São Paulo, Abril Cultural, 1980)
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EMBRULHADO PARA PRESENTE? FOTOGRAFIA, CONSUMO E CULTURA VISUAL NO BRASIL (1930-1960)
Por fim, o que se observou para o final do período, de meados dos anos 1950 em diante, foi a valorização da fotografia na imagem publicitária. Esse movimento pode ser explicado do ponto de vista tecnológico devido ao barateamento do custo das técnicas de
impressão, principalmente em cores. No entanto, a explicação estritamente técnica não é suficiente. Há de se reconhecer a capacidade da fotografia em apresentar e representar ao mesmo tempo, traduzindo fielmente, as formas imaginadas de um mundo moderno.
(Nosso Século, Publicidade, São Paulo, Abril Cultural, 1980)
(Nosso Século, Publicidade, São Paulo, Abril Cultural, 1980)
Nesse novo imaginário, o produto e a sua fruição valem mais do que a figuração, evidenciando-se a proeminência do objeto em detrimento dos sujeitos sociais no espaço da representação do consumo. A imagem
publicitária passa a catalogar objetos como suporte de experiências sociais programadas pela cultura do consumo, associada aos padrões da sociedade burguesa ocidental, notadamente, nos desejos embrulhados para presente pela mundialização.
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AS CAÇADORAS-DE-CABEÇAS E OS DESAFIOS DA INTERPRETAÇÃO DE IMAGENS ARTÍSTICAS
As caçadoras-de-cabeças e os desafios da interpretação de imagens artísticas
Artur Simões Rozestraten Doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP). Professor do curso de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário Moura Lacerda e das Faculdades COC, ambas em Ribeirão Preto.
RESUMO Este texto pretende comparar os procedimentos interpretativos de Erwin Panofsky (18921968) e Aby Warburg (1866-1929), tomando como base o motivo artístico das caçadorasde-cabeças, que tanto interessou a ambos. A primeira parte desse estudo é uma reaproximação à análise iconográfica de Panofsky sobre uma imagem dúbia de Salomé ou Judite. A segunda parte trata do fascínio de Warburg pela forma plástica da postura de corpo e do gesto dramático das mulheres “headhunter”. E a terceira, e última parte, explora raízes e desdobramentos do motivo artístico da caçadora-de-cabeças na história da arte, com o intuito de revisar criticamente os procedimentos de interpretação de imagens desses dois pesquisadores ligados ao Instituto Warburg. PALAVRAS-CHAVE: interpretação de imagens artísticas; iconografia das caçadoras-de-cabeças; Panofsky e Warburg.
ABSTRACT This article intends to compare the interpretative procedures of Erwin Panofsky (1892-1968) and Aby Warburg (1866-1929), based on the artistic motif of women headhunter, that has caught both interest. The first part of this study is a revision of Panofsky’s iconographic analisys of a dubious image of Salome or Judith. The second part deals with Warburg’s fascination for the plastic form of body’s posture and the dramatic gesture of women headhunter. The third and last part, explores roots and developments of the artistic motif of women headhunter in the history of art, aiming a critical review of interpretation procedures related to the Warburg Institut. KEY WORDS: artistic images interpretation; iconography of women headhunter; Panofsky and Warburg.
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ARTUR SIMÕES ROZESTRATEN
As caçadoras-de-cabeças E os desafios da interpretação de imagens artísticas “There are no hard distinctions between what is real and what is unreal, nor between what is true and what is false. A thing is not necessarily either true or false; it can be both true and false.” Harold Pinter, 1958 “In place of a hermeneutics we need an erotics of art.” Susan Sontag, 1966
Primeira Parte A certa altura de seu texto “Iconografia e Iconologia: uma introdução ao estudo da arte da renascença”, de 1955, Panofsky (2002) investiga a identificação de um retrato pintado por Francesco Maffei (1605-1660) (Figura 1)1. Essa imagem parece interessar ao autor como oportunidade de exemplificar seus procedimentos de análise iconográfica ao definir se a mulher retratada é Salomé ou Judite. A figura, identificada como Salomé na publicação de 1929 de G. Fiocco “Venetian Painting of the Seiscento and the Settecento” é uma mulher que porta, com a mão direita, uma bandeja ou prato circular com a cabeça cortada de um homem barbado, e tem na mão esquerda uma espada. O primeiro ponto de apoio de Panofsky é a relação texto e imagem. E nesse sentido o texto bíblico2 seria a fonte literária original de
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todas as representações de Salomé e/ou Judite. Segundo essa fonte, a jovem Salomé, depois de encantar Herodes – seu tio e amante de sua mãe – com sua dança, pede e consegue que lhe entreguem, numa bandeja, a cabeça do profeta João Batista que depois entregou à sua mãe, Herodias. O livro deuterocanônico ou apócrifo de Judite, narra que essa bela viúva judia se apresentou no acampamento do exército assírio que ameaçava seu povo, oferecendo um segredo que garantiria a vitória ao marechal Holofernes. Seduzido pela beleza dessa mulher, o chefe militar a convida a se entregar a ele e, entusiasmado, durante o banquete bebe em demasia. Judite então, aproveitando-se da embriaguez e do sono de Holofernes, toma-lhe a espada, corta-lhe a cabeça fora, e volta a sua cidade levando-a em um saco como troféu.
Atualmente há uma revisão da atribuição de autoria dessa tela a Maffei (Melville, 1999), e envolve outros dois possíveis autores: Romanino e Strozzi que serão citados adiante. Embora o nome de Salomé não seja citado diretamente na Bíblia, os evangelhos de Marcos 6: 15-29 e Mateus 14: 1-12, mencionam o episódio e se referem à “filha de Herodias”. Quanto a Judite, seu livro não é considerado canônico, ou revelado, mas sim uma narrativa histórica. Embora faça referência direta ao povo judeu, este livro não está incluso no Antigo Testamento e também não comparece na Bíblia protestante.
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AS CAÇADORAS-DE-CABEÇAS E OS DESAFIOS DA INTERPRETAÇÃO DE IMAGENS ARTÍSTICAS
Figura 1. Judite ou Salomé? Tela de Francesco Maffei, séc. XVII. Múltipla, polivalente esfinge caçadora-de-cabeças, ardilosa e enigmática. Corta e serve, com sua travessa-escudo, disco de metal cortante, arma camuflada, complementar e tão letal quanto a espada de larga lâmina, firme e afiadíssima. Seus dedos afilados são garras, patas de aranha ou serpentes? Referência iconográfica: disponível em <www.wga.hu> acesso em 02/2008.
Para Panofsky a espada no retrato de Maffei é “correta” para Judite, porque é referenciada no texto. Já a bandeja ou travessa “não concorda com sua estória, pois o texto diz, explicitamente, que a cabeça de Holofernes foi posta num saco”. Nesse trecho, os conceitos de correção e concordância são centrais na argumentação do autor. Seu método parece ecoar o ideal lógico renascentista e, portanto, se oporia, a princípio, à concepção artística da obra barroca em foco. Na definição da imagem, parece haver apenas duas opções: Salomé ou Judite, logo é preciso excluir uma delas e validar a outra. Se a interpretarmos como o retrato de Salomé, o texto explicaria a travessa, mas 3
não a espada; se a interpretarmos como figuração de Judite, o texto explicaria a espada, mas não a travessa. Estaríamos inteiramente perdidos se dependêssemos apenas das fontes literárias. (PANOFSKY, 2002, p.59)
O segundo ponto de apoio do autor são as fontes visuais. E para avançar é preciso recorrer às relações entre imagens ao longo do tempo, ou ao “... modo pelo qual, sob diferentes condições históricas, temas específicos ou conceitos eram expressos por objetos e fatos, ou seja, a história dos tipos.” A noção de tipo 3 é central na análise panofskiana, e se posiciona na intersecção entre motivo artístico, padrão de representação e modelo figurativo. Uma
Týpos: termo grego que significa impressão em relevo; marca; figura; forma; contorno; esboço; protótipo; molde (BAILLY, 1950).
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noção que pressupõe a predominância histórica de uma certa forma plástica (nítida, distinta e inequívoca, para o autor) que seria apreendida no tempo histórico como uma tradição figurativa, exatamente por sua persistência. Se a perpetuação do tipo 4 constrói a tradição, as variações sobre o tema – ou os contra-tipos ou anti-tipos – fissuram e podem romper essa tradição. E ao romperem, abrem, ao menos, duas novas possibilidades: a relação com imagens anteriores que podem renovar enfoques e, eventualmente, revisar o entendimento da história da imagem; e a relação com imagens posteriores que podem permitir rastrear a genealogia de novos tipos e seus desdobramentos futuros. Panofsky se pergunta se antes do retrato pintado por Maffei haveria retratos “indiscutíveis”5 de Judite com a travessa ou Salomé com a espada. E conclui que sim, havia um “tipo” de Judite com a travessa6, mas não um “tipo” de Salomé com a espada. Conforme nota de rodapé, o tipo de Judite com a espada estaria referenciado em três exemplos: uma pintura de Romanino do Museu de Berlim; outra de Caravaggio
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(Figura 2); e, por fim, uma imagem de Bernardo Strozzi, contemporâneo de Maffei. Daí podemos, seguramente, concluir que também a obra de Maffei representa Judite e não, como se chegou a pensar, Salomé. (PANOFSKY, 2002, p.61)
Em defesa da máxima objetividade e racionalidade da análise iconográfica proposta pelo autor, termos como “indiscutível” e “seguramente” expressam a urgência de encerrar a discussão definindo o retrato como isto ou aquilo, evitando explorar justamente a ambigüidade da imagem. Para finalizar, Panofsky faz considerações sobre a independência dos “motivos” ou “atributos”7. A espada, em separado, seria um atributo muito mais amplo, em termos simbólicos, do que o motivo de Judite, mais restrito e específico. Já a bandeja, ou travessa, com a cabeça de João Batista 8 , isolada, teria ultrapassado a função de atributo e se constituído em motivo artístico independente como imagem de devoção religiosa popular, entre os séculos XIV e XV, no norte da Itália e nos países nórdicos.
A historiografia da arte desenvolvida a partir da segunda metade do séc. XIX costuma associar a noção de tipo com mais freqüência à tradição clássica: à Arte Clássica Grega, ao Helenismo, à Renascença e ao Neoclassicismo. O retrato pintado por Maffei interessa ao autor justamente por ser “discutível”, no entanto, paradoxalmente, Panofsky se atém de forma tão estrita a noção de um tipo ideal indiscutível que nega a riqueza das variações em torno da representação de um motivo que permitem definir o tipo e, ao mesmo tempo, suas variações menores e extremas. Esse tipo de Judite com a travessa, no entanto, não é exemplificado pelo autor. O autor ora usa o termo atributo, ora motivo para essas imagens. Interessa a esse estudo considerar como motivo a figura da cabeça decepada de um homem barbado, mais do que a cabeça de Holofernes ou de S.João Batista.
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Figura 2. Judite9 degolando Holofernes, Caravaggio, c.1598. Ainda (ou já) vestida, concentrada e casta a jovem viúva conduz a dança das cabeças como se fosse uma das ninfas da Primavera de Botticelli. Braços estendidos para o início da dança mórbida, segura os cabelos de seu parceiro e firme puxa a cabeça para um lado e a espada para o outro. Seu corpo é o prumo, seus braços, motores em rotação que fazem girar os tecidos, e deslizar a lâmina da degola. Referência iconográfica: disponível em <www.wga.hu> acesso em 02/2008.
Panofsky idealiza uma iconografia científica. As referências a um procedimento estatístico, e a comparação com a etnografia, evidenciam essa intenção de caracterizar a análise iconográfica como procedimento científico, o que conferiria maior objetividade, logo, maior validade e confiabilidade ao trabalho do historiador da arte. Essa análise constituiria portanto uma etapa anterior, preliminar à formulação de hipóteses interpretativas, e teria, por isso mesmo, um caráter documental preciso, pois se concentra em compilar, classificar e descrever imagens como “evidências”10. Entretanto, o exemplo da tela de Maffei, paradoxalmente, não é uma imagem evidente, ao contrário. É uma imagem
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enigmática, e sua escolha – aparentemente contraditória – parece justamente proporcionar ao autor a oportunidade de extrair do enigma a evidência desejada. Francesco Maffei é um pintor veneziano imerso na cultura setecentista, barroca e maneirista. Sua arte explora composições alegóricas, e tem características plásticoformais distintas, contrastantes, quando não opostas àquelas do Renascimento. Sua tela, justamente por não ser uma pintura tipicamente renascentista, legitimaria como “universal” o método proposto por Panofsky. Esta escolha e o excesso de precisão objetiva revelará, às avessas, a subjetividade do autor.
Ao lado de Judite sua criada, também citada no livro apócrifo, traz, conforme as fontes textuais, um saco nas mãos para levar a cabeça. O termo evidência parece se colocar aqui como uma qualidade visual de caráter tautológico, isto é, uma obviedade que não dá margem à dúvida.
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A iconologia seria a etapa subseqüente, essa sim interpretativa. Seu objetivo maior seria – na proposta do autor – “resolver o enigma da esfinge” (p.54). E por mais que o autor reconheça que essa etapa envolve subjetividade, e não se aplique a todas as expressões artísticas 11 , seu esforço interpretativo não se contenta em elucidar, deseja ir além, pois crê numa solução definitiva, e exata, para a questão do significado ou conteúdo da obra de arte. O caso da tela de Maffei, ao ser escolhido como exemplo dos procedimentos da análise iconográfica, expõe uma questão epistemológica central nos procedimentos metodológicos de Panofsky: o cientificismo da etapa iconográfica se confunde com os fundamentos da interpretação iconológica. E a objetividade e precisão, almejadas como qualidades de uma classificação documental anterior à interpretação iconológica, definem a leitura interpretativa: trata-se de Judite e não de Salomé, o que mais se pode dizer? A etapa preliminar de análise iconográfica já não resolveu o enigma da esfinge? O procedimento analítico desfaz a trama e fragmenta a obra a tal ponto que o fragmento pinçado do todo – espada ou bandeja – se sobrepõe à própria imagem original e a nega. Assunto encerrado.
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A tela de Maffei é para Panofsky, desde o início, incômoda, como uma imagem inadequada, incorreta. Assim sendo, sua análise – pautada em idealizações da arte renascentista – é concebida como um ajuste, uma correção, uma adequação ao tipo. Como sua interpretação se fundamenta a priori, o autor desmonta a ambigüidade da imagem, apaga a bandeja, e a retira da tela, convenientemente. Para validar a interpretação foi preciso excluir certos elementos inconvenientes e, por isso, destruir a imagem. A mulher retratada por Maffei não poderia ser uma síntese da ninfa caçadorade-cabeças na tradição judaico-cristã, uma super “headhunter” barroca Judite-Salomé? E o que diria Panofsky das duas Judites (Figuras 3 e 4) de Gustav Klimt (1862-1918), modernas caçadoras-de-cabeças, desprovidas de espada ou bandeja, e que fazem da cabeça decapitada seu mórbido atributo? Ele está pintando uma mênade, e portanto vinculando-se à tradição ou ao historicismo beaux-arts, ou está inventando uma Salomé moderna sem bandeja? Ou será que essas imagens não se enquadrariam no recorte de aplicação da iconologia pois nelas haveria uma “transição direta dos motivos para o conteúdo e uma “não-objetividade””?
Segundo Panofsky a iconologia não se aplicaria às “obras de arte nas quais o campo do tema secundário ou convencional tenha sido eliminado e haja uma transição direta dos motivos para o conteúdo, como é o caso da pintura paisagística européia, da natureza morta e da pintura de gênero, sem falarmos da arte “não-objetiva”” (p.54) Parece claro que Panofsky exclui além de algumas vertentes da arte figurativa, toda a arte abstrata não-figurativa.
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Figura 3. Judith, Gustav Klimt, 1901.
Figura 4. Judith, Gustav Klimt, 1909.
Levitando em êxtase entre superfícies douradas brilhantes e azuladas transparentes, essa Judite – mais propriamente uma bacante Salomé – respira profundamente viva. Sua pele branca viçosa contrasta com a negra cabeça morta na qual enraízam-se seus dedos. Caçadora, parece ainda em transe de luxúria, sem espada nem bandeja, ao ritmo da ondulação dos tecidos e dos dedos que acariciam lentamente os cabelos do troféu que porta. Tecidos, cabelos e corpos aproximamse do repouso depois do golpe mortal. Não há armas à vista, o véu é o fio da lâmina mais perigosa: sua carne. Referência iconográfica: disponível em <www.wga.hu> acesso em 02/2008.
Nua e paramentada (seu cabelo é um capacete), essa Judite maquiada e selvagem, imersa em transe dionisíaco, tem mãos e garras-lâminas feitas para o prazer, mas, se necessário, também para cortar cabeças. Aquilina, aérea, recolhe suas armas-unhas para dentro de seu próprio corpo depois do ataque letal: femme fatale.A cabeça sonhadora à deriva no caudaloso tecido fluvial seria a de Orfeu, Holofernes ou S.João Batista? Referência iconográfica: disponível em <www.wga.hu> acesso em 02/2008.
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Segunda Parte No painel numerado como 77 do inacabado Atlas Mnemosyne de Aby Warburg há uma fotografia da golfista Erica Sellshop. Entre cartões postais e relevos numismáticos a golfista aprumada, vestida na moda dos anos 20, sustenta o taco elevado no ar depois de uma tacada. Michaud (2007) denomina esse painel “The headhunter as Woman Playing Golf”: a golfista como caçadora-de-cabeças. Que enigma é esse que aproxima uma golfista às caçadoras-de-cabeças? Um enigma que se relaciona a duas noções: Pathosformeln12 e Nachleben. O gesto da golfista com o taco teria uma forma plástica semelhante – o mesmo Pathosformeln – do gesto imaginário de Judite ao manejar a espada de Holofernes para lhe decapitar. A bola de golfe seria como a cabeça do general assírio. A paixão que
move o corpo da golfista é distinta, e pode mesmo ser opostas àquela que move Judite, mas a ação transformadora, a força muscular do gesto e a concentração mental para executar o movimento as aproximam. Essa mesma forma plástica estaria presente também na representação da morte de Orfeu em uma gravura de Dürer (14711528) e outra gravura de um provável discípulo de Mantegna (1431-1506). Conforme Michaud (2007), Warburg interpretava as gravuras como apropriações dos movimentos de atores que em cena, nos palcos italianos do último quartel do Quatroccento, reviviam o episódio da mitologia grega a partir do texto de Poliziano (1954-1994): Orfeu 13. A representação teatral, e as festividades, teriam trazido então o tema da Antiguidade à Renascença. E as artes plásticas – como as gravuras em foco – teriam fixado no papel a dramaticidade e o vigor do gesto das atrizes.
Figura 5. Nathalie Gulbis, golfista norte-americana. Assim como Erica Sellshop, Nathalie gira seu corpo para bater com o taco na bola. A torção, a força e a potência do gesto com o taco teriam a mesma pathosformeln com uma espada. O balanço do corpo para o golpe, entre o vigor e a graça, entre o desequilíbrio e a precisão, é uma performance passional, uma dança, seja com um taco, uma espada ou um pedaço de pau. Referência iconográfica: disponível em <www.notwriting.com/images/Gulbis_teeing_off.jpg> acesso em 02/2008.
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Pathos formula, fórmula de pathos, fórmulas plásticas de paixões da alma. Este conceito foi desenvolvido por Warburg como uma hipótese que elucidaria a semelhança entre as formas do corpo e das vestes das figuras femininas de Botticelli e as formas de ninfas da arte antiga. A retomada de formas plásticas anteriores, no entanto, não necessariamente preserva a mesma paixão que as originou, podendo ocorrer aqui uma polarização antagônica: as formas da ninfa apolínea que dança na Primavera são as mesmas das mênades dionisíacas caçadoras-de-cabeças, as formas que se relacionam a uma sensualidade vital também podem se relacionar à sedução letal. 13 Por ter se recusado a olhar para outra mulher depois da morte definitiva de Eurídice, Orfeu provocou o ódio mortal das mênades – as possuídas por Dionísio – que o atacaram, o despedaçaram e lançaram sua cabeça no rio Hebro.
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Figura 6. Morte de Orfeu, gravura de A. Dürer, 1494. Mênades trácias, caçadoras-de-cabeças ou golfistas arcaicas? Referência iconográfica: disponível em <www.aiwaz.net> acesso em 02/2008.
Para Warburg as imagens estáticas que compõem o acervo da história da arte são indissociáveis da vida humana, por isso compartilham uma dinâmica de gestos e movimentos de corpo acionados pela emoção e impregnados de cultura. Ao fixar a imagem, o artista amplificaria sua carga dramática e lhe conferiria uma permanência histórica que o gesto deixa de ter dissolvido no seu breve instante de duração no tempo. O aspecto cênico da vida em seus momentos de maior intensidade emocional interessa a Warburg, tanto nas festividades da Renascença
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italiana, quanto nos ritos dos índios norteamericanos, justamente por que correspondem às expressões humanas mais profundas – em nível individual e coletivo – ultrapassando periodizações e fronteiras geográficas. Essa sobrevivência ou sobrevida das imagens fundamenta a noção de Nachleben, que pode ser entendida como pós-vida, sobrevivência ou sobrevida das imagens. Em seus estudos sobre Botticelli e Ghirlandaio14, Warburg percebeu, no desenho das figuras femininas15 a retomada de formas da arte romana – especialmente o movimento dos corpos e a expressividade emocional dos gestos –, mas deslocados a outro contexto e, com outros significados. Parecia evidente para Warburg que o uso dessas imagens antigas pelos artistas da Renascença era muito mais plástico-figurativo do que simbólicosignificativo, já que havia grande liberdade de apropriação e distanciamento de seus sentidos originais. K.W. Forster comenta, na introdução ao texto de Warburg (1999), que este associava dois temas ao estudo das ninfas e mênades: as posturas e gestos do repertório antigo – cabelos ao vento e veste esvoaçante –, que séculos mais tarde seriam retomados pra representar outras ações e outros estados emocionais; e a irrupção na arte da Renascença de “estranhas figuras” deslocadas, oriundas da Antigüidade remota que deixam evidente como imagens com formas semelhantes podem ter significados diferentes em tempos e contextos distintos. Permanências formais, e alterações contextuais e simbólicas, entre a arte antiga
Sandro Botticelli’s Birth of Venus and Spring (1893); e The Art of Portraiture and the Florentine Bourgeoisie (1902). Forster cita, em especial, as semelhanças entre a ninfa portando a fruteira no afresco do nascimento de João Batista (c.14861490) na Capela Tornabuoni em Santa Maria Novella, Florença e os detalhes de mênades em relevo em um sarcófago romano de meados do séc. II.
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e a Renascença constituíam então um dos principais focos de interesse de Warburg, e revelam, indiretamente sua compreensão da história da arte. No tempo, as imagens submergem e emergem, enterram-se e afloram, e essas imersões e afloramentos são tanto imitações quantas criações, sendo a linha que as distingue, quase sempre, tênue demais. Em uma conferência no início dos anos 20, Fritz Saxl (1890-1948) apresentou a biblioteca de Aby Warburg como “Problembibliothek” (1923), caracterizandoo como um acervo que conduz à formulação de problemas16, mais do que uma fonte de resolução de questões. Essa denominação de Saxl elucida o caráter das pesquisas de Aby – o problema como projeto – e o caracterizam como um questionador, um pesquisador interessado em formular enigmas e não exatamente em resolvê-los. Para Warburg, o procedimento metodológico de pesquisa em história da arte envolve formular questões a partir da interação entre imagens, ou entre imagens e textos. Entre uma obra e outra – e não exatamente em uma obra ou outra – é que se formariam os campos de tensão indutores de questões, que motivariam o pesquisador a rever suas fontes bibliográficas e iconográficas e buscar novas relações. Esses campos de tensão, são interstícios, lacunas, vazios que intrigam o pesquisador a completá-los trazendo à tona novas obras. No entanto, cada nova obra que se apresenta
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abre outros meandros e outras indagações, novas intersecções e entremeios, e assim infinitamente. Como o projeto é o problema, no labirinto visual proposto por Warburg, não interessa achar a saída – até porque ela pode ser construída a qualquer momento – mas sim esclarecer o caminho, clareá-lo para melhor percorrê-lo com os olhos bem abertos, reconstruindo os vínculos sensoriais com a imagem, intuindo os enigmas, procurando compreender as proposições interrogativas, aproximando e distanciando imagens, indagando-as diretamente. Terceira Parte Em um interior com arcos ogivais rendilhados no teto e piso de mármore com desenhos geométricos, uma mulher vestida como nobre, está de joelhos e tem o olhar fixo, impassível. Sua mão esquerda segura uma barra, e sua mão direita, leva sobre seu manto, a cabeça de um homem de olhos fechados e boca entreaberta. Quem será essa caçadora-de-cabeças? Uma variação de Judite ou Salomé? Aparentemente nenhuma das duas. Não há espadas, nem bandejas em cena, e o homem decapitado está barbeado. Homens a circundam, à sua frente, sentado em um trono um rei coroado a mira. No chão, em primeiro plano uma caixa retangular com brasas, ao fundo, fora desse ambiente, torres de uma cidade e uma outra mulher arde numa fogueira.
A etimologia de problema, conforme Houaiss (2001) relaciona-se a probálló ‘lançar, dar o sinal; precipitar, impedir, arrastar; colocar diante; arremeter, começar uma luta; lançar em rosto, repreender; propor uma pergunta, questão etc.’
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Figura 7. Justiça do Imperador Oto: Prova de Fogo, Dieric Bouts, 1470-1475. Referência iconográfica: disponível em <www.wga.hu> acesso em 02/2008.
Que cena é essa pintada por Bouts em plena Renascença flamenga? Segundo Végh (1981) – a partir do título do quadro – a mulher que segura a cabeça cortada é uma condessa da corte do imperador Oto. A cabeça é a de seu marido. Na mão esquerda ela tem uma barra de ferro em brasa, e esta é justamente a prova de fogo. Seu marido fora decapitado, acusado injustamente pela imperatriz de tê-la seduzido. Para provar sua inocência, a condessa “pôs a mão no fogo” em defesa do marido e segurou
a barra em brasa sem nada sofrer. Convencido do erro, com a mão no coração, o justo imperador condenou sua própria esposa à fogueira, por falso testemunho. Fogo, tons de vermelho, linhas verticais e cabeças-cortadas, a do conde e, metaforicamente, a da imperatriz. Duas cortadoras-de-cabeças em cena: a imperatriz-Salomé, e a condessa justiceiraJudite. Ao que parece, Bouts revisou a antiga tradição cristã das “headhunter” mas não
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Figura 8. Mênades e Penteu esquartejado, vaso ático de figuras vermelhas, c. 500 a.C. Referência iconográfica: disponível em < http://www.latein-pagina.de/ovid/pic_ovid_3/pentheus_500ante.jpg> acesso em 02/2008.
se restringiu a copiá-la, pois criou novas personagens, com novas posturas de corpo e novos atributos. Para o historiador da arte, a invenção artística sempre amplia e resignifica o acervo de imagens pré-existentes, pois as novas composições plásticas ao afastaremse, ou aproximarem-se, das tradições e dos tipos abrem novas relações e novas possibilidades interpretativas. Enquanto as expressões inventivas do séc. XV abriram caminho em direção a possibilidades futuras, a arqueologia trouxe à luz as raízes ocidentais mais profundas do tema das caçadoras-de-cabeças com as figuras vermelhas gregas pintadas sobre vasos datadas no séc. VI a.C. Mas em que medida a tradição artística das “headhunter” – além da precedência histórica inegável – remonta, de fato, às figuras gregas? Na pintura em questão, três mênades ou bacantes se movimentam, dentro de uma moldura, tendo nas mãos partes de um corpo – pernas e braços – e a cabeça de um homem barbado (pequena com relação às cabeças das mulheres, e mesmo às partes do corpo).
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Duas mulheres se movem para um lado e uma para outro. As três se entreolham. O que exige a todas uma torção do pescoço para trás. Braços e pernas para um lado, cabeças para o outro. O movimento em sentido oposto parece enfatizar o desmembramento do corpo. Em movimento, os membros das mênades, descolados dos corpos, se confundem com os de Penteu numa dança confusa de braços, pernas e cabeças. O movimento dos corpos ainda desloca as vestes, e partes do tecido caem de forma angulosa, como retângulos pontiagudos: lâminas? Haveria necessidade de lâminas? A força centrípeta do movimento dos corpos já não seria suficiente pra despedaçar o homem? Nesta imagem grega não há outros atributos que não as partes do corpo. E dentre essas, a cabeça de um homem barbado é a principal, pois dá identidade à cena: Penteu e as mênades. Em termos plásticos, e de maneira sintética, a presença de uma mulher tendo consigo a cabeça decapitada de homem barbado já seria suficiente para ligar uma imagem de datação posterior – como às da tradição pictórica de Judite e Salomé –
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às figuras vermelhas da Ática. Ou seja, em termos artísticos e históricos é bastante provável que a iconografia de Judite e Salomé tenha origens nas representações gregas do episódio das mênades e do rei Penteu. E mesmo que essa suposição exija estudos mais aprofundados, o que interessa aqui é salientar que sua formulação se dá em um universo puramente visual, no qual a necessidade de amparos textuais é mínima. Mas para além dos atributos – espada, bandeja e cabeça – o que vincularia todas as caçadoras-de-cabeças a uma tradição é o movimento do corpo como dança: dança catártica das mênades; dança sedutora de Salomé; o golpe mortal de Judite como passo
da dança; e o swinging atlético da golfista com o taco visando a bola, substituta simbólica análoga à cabeça. Toda a história do motivo artístico das caçadoras-de-cabeças concentra-se então na ação performática da mulher e, em segundo plano, na cabeça do homem como prêmio. O estudo do motivo artístico das caçadorasde-cabeças permite então rever os procedimentos metodológicos dos pesquisadores ligados ao Instituto Warburg, e assim comparar o modus operandi de Erwin Panofsky e Aby Warburg. E essa comparação revela mais diferenças nos procedimentos de trabalho do que exatamente afinidades, e que podem ser expressas no seguinte esquema didático:
Panofsky:
Warburg:
Analítico, desagregador.
Sintético, agregador.
O isolamento e a desmontagem da imagem como processo.
A interação e a re-composição da imagem como processo.
Da superfície da imagem para dentro: o mergulho.
A superfície da ima gem como plataforma: o vôo.
A forma plástica como contêiner.
A forma plástica como conteúdo.
Hermenêutica: a interpretação como solução.
Problematização da image m: a interpretação como questionamento.
Predominância do conteúdo sobre a forma.
Predominância da forma sobre o conteúdo.
A história como cronologia.
A história como fundamento de abordagens diacrônicas e sincrônicas.
O acervo de imagens como prova.
O acervo de imagens como labirinto visual.
A relação entre as imagens e a cultura como história.
A relação entre as imagens e a vida (os corpos em movimento apaixonado).
A intenção de uma história e crítica de arte como texto.
A intenção de uma história e crítica de arte como campo visual.
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O ponto de partida de Panofsky é o legado de Warburg – seus estudos, sua biblioteca, seu instituto – mas seu caminho é distinto. Se, por um lado, as diferenças são evidentes, por outro há que se reconhecer a convergência de ambos quanto ao esforço para aperfeiçoar os procedimentos de aproximação às imagens artísticas e os recursos interpretativos. E é justamente quanto à questão interpretativa que valeria a pena retomar aqui, como encerramento desse texto, alguns aspectos da revisão crítica feita por Susan Sontag (1933-2004) no seu texto Against Interpretation (1966) que continuam a provocar os pesquisadores de imagens. • O desafio de compor procedimentos que não sejam interpretativos, em um senso restritivo, mas sim modos de interação com a obra de arte, constantemente abertos a aprimoramentos e reformulações. • O desafio de reconstruir permanentemente a relação sensorial com a obra de arte, e enfatizar essa relação como inaugural e indispensável. • O desafio de preservar a integridade da obra de arte resistindo ao impulso da análise fragmentadora que pode negá-la e destruí-la. • O desafio de aperfeiçoar os recursos da palavra e do texto, mas também, e principalmente, os recursos visuais para uma aproximação descritiva do fenômeno plástico da obra de arte.
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Referências Bibliográficas BAILLY, M.A. Abregé du Dictionnaire GrecFrançais. Paris: Librairie Hachette, 1967. FOCILLON, H. La vie des formes. Henri Focillon et les arts. Paris et Gand, INHA, Snoeck, Decaju & Zoon, 2004. HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. MELVILLE, S. Attachements of Art History. Invisible culture, an electronic journal for visual studies. Issue n.1, Winter 1998. University of Rochester, NY. Disponível em <http://www.rochester.edu/in_visible_culture/ issue1/melville/melville.html#image-1> acesso em 02/2008. MICHAUD, P.-A. Aby Warburg and the image in motion. New York: Zone Books, 2007. PANOFSKY, E. Iconografia e Iconologia: uma introdução ao estudo da arte da renascença. In: Significado nas Artes Visuais. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2002. SAXL, F. Die Bibliothek Warburg und ihr Ziel. In: Vorträge der Bibliothek Warburg 1921-1922. Leipzig-Berlin: Teubner, 1923. SONTAG, S. Contra a interpretação. Porto Alegre: L & PM, 1987. VÉGH, J. A pintura holandesa. Rio de Janeiro: Corvina Kiadó e Ao Livro Técnico S/A, 1981.
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A IMAGEM DO TRANSPORTE AÉREO VISTO ATRAVÉS DA ARTE E DA PUBLICIDADE
A imagem do transporte aéreo visto através da arte e da publicidade
Claudia Musa Fay Doutora em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora Adjunto da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Autora de, entre outros artigos, “Getúlio Vargas e o desenvolvimento da aviação brasileira”. In: AXT, Gunter et al. (Org.). Reflexões sobre a Era Vargas. Porto Alegre: Procuradoria Geral de Justiça Memorial do Ministério Público, 2005.
RESUMO Este texto aborda a representação da viagem aérea nas décadas de 1920 e 1930 através de imagens, especialmente cartazes publicitários, produzidos pelas companhias aéreas promovendo a organização de um imaginário acerca de voar, do avião e da viagem em si. PALAVRAS-CHAVE: imagem; transporte aéreo; arte; publicidade.
ABSTRACT This text is about the representation of the air trip during de 1920´s and 1930´s decades through images, specially advertising posters, produced by the air plane companies, promoving the organization of a imaginary about flying, air planes and the trip itself. KEY WORDS: image; air transport; art; publicity.
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A imagem do transporte aéreo visto através da arte e da publicidade
A década de 1920 marca o início do transporte aéreo comercial. As empresas aéreas, empenhadas em prospectar adeptos para a recente atividade, passam a utilizar o cartaz publicitário como forma de divulgação desta nova maneira de viajar. Na Europa, na América, na África, na Ásia e na Oceania, dezenas de companhias aéreas foram criadas; na maior parte das vezes com a sobra de aviões da Primeira Guerra Mundial e por pilotos desmobilizados. Eram pequenas empresas, quase sempre financiadas por industriais construtores de aviões, cujo objetivo era a venda de seus produtos. O nascimento da aviação comercial é concomitante com a necessidade do tráfego de mercadorias e da indústria em vender equipamentos. O cenário foi a competição imperialista dos Estados na incessante busca pelo domínio territorial, aéreo e naval.
Os ingleses se voltaram para seu império colonial, principalmente traçando rotas dirigidas para o Oriente Médio e a Índia. Os italianos se mobilizaram para as grandes
Cartaz da empresa italiana Ala Littoria (1938)
travessias, em que o fascismo estabelecido desde 1922 era glorificado através da aviação. A seguir, seus interesses recaíram sobre a África do Norte. Os franceses, além de voar para o norte da África, onde possuíam colônias, a partir de 1924 estabeleceram suas rotas para a América do Sul e organizaram o transporte de malas postais para o Brasil e a Argentina. A partida era Toulouse e as escalas eram realizadas na Espanha e na África.
Cartaz da empresa britânica Imperial Airways (1937)
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A IMAGEM DO TRANSPORTE AÉREO VISTO ATRAVÉS DA ARTE E DA PUBLICIDADE
Cartaz da empresa francesa Latécoère – Anônimo (1921)
No início, utilizavam o transporte marítimo para atravessar o Atlântico, porém, mais tarde, passaram a voar diretamente. A contribuição da indústria aérea francesa foi significativa para a aviação brasileira, sobretudo no que se refere à criação de campos de pouso no nosso litoral. Os artistas contratados pelas empresas para divulgar as viagens aéreas deveriam produzir algo que provocasse impacto na opinião publica. A viagem devia ser descrita, decodificada. Portanto, fazer do cartaz publicitário de uma viagem, a precisa representação desta, não era uma tarefa fácil. Como um produto intangível poderia ser representado através de uma imagem? Foi um grande desafio e um convite à viagem imaginária.
A Air France ao longo de sua história requisitou artistas de sucesso para a criação de seus cartazes, calendários e cardápios como Cassandre, Mathieu, Colin, Boucher. Dotados de extrema sensibilidade conseguiram, através dos seus desenhos, transmitir a mensagem de liberdade, de velocidade, assim como, os riscos e a necessidade de superação. São signos cujas representações se mostram de vários modos, tais como, artigos em jornais, ilustração em capas de revistas, fotografias, cartões postais, poemas, histórias em quadrinhos, cartazes, desenhos e pinturas. Dessa forma a publicidade, a imprensa e o cinema passaram a se apropriar da idéia de modernidade transmitida pelo avião. O cinema o adotou com natural afinidade ao utilizar de forma realista o movimento, que exibido através das imagens aéreas tinha o poder de deleitar e paralisar as platéias, especialmente em cenas revestidas de algum perigo. A publicidade criou anúncios que se serviram das máquinas voadoras para vender os mais variados produtos. No pós-guerra a hegemonia americana no transporte aéreo ficou clara. Aos Estados Unidos pertencia a maior parte dos aviões, das companhias aéreas e dos passageiros. Em contrapartida, nenhum país europeu estava preparado para a livre concorrência. Os europeus haviam protegido suas empresas no período entreguerras, através do incremento de pesados subsídios e de forma alguma desejavam que todo o esforço empreendido terminasse em razão da competição estabelecida.
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CLAUDIA MUSA FAY
Planisfério Air France- Lucien Boucher (1935)
O cartaz acima mostrando o planisfério foi utilizado como propaganda da Air France nas agências de viagem. A distância entre a África e América do Sul é preenchida por um avião e uma rota; observa-se que no Atlântico norte o artista coloca um outro avião , porém ainda não há rota, o que insinua a possibilidade de que no futuro também poderia existir uma linha
ligando a Europa à América do Norte. São recursos desta natureza que procuravam demonstrar aos viajantes o poder das redes formadas pelas empresas, pois quanto maior o número de escalas, tanto maior a supremacia dos Estados. Ao mesmo tempo que permitia ao passageiro uma análise das rotas, oferecia os elementos para melhor planejar uma viagem.
Planisfério Air France - Lucien Boucher (1937)
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A IMAGEM DO TRANSPORTE AÉREO VISTO ATRAVÉS DA ARTE E DA PUBLICIDADE
Os planisférios elaborados pelo artista mostram a rede de linhas de uma empresa aérea, espelham sua evolução, assim como seu reflexo no mundo. Evidenciam as ligações perigosas e as linhas regulares. Para a empresa é uma demonstração de força, testemunho de seu crescimento e de sua expansão. Lucien Boucher abriu ao público uma via de possibilidades ao criar seus primeiros desenhos para Air France em 1935. Foi o artista que durante mais tempo trabalhou para empresa, e que realizou o maior numero de cartazes, sendo que seus últimos datam de 1962. A aviação comercial colocou à disposição dos turistas as mais variadas e excitantes aventuras globais ao possibilitar deslocamentos para paraísos exóticos, distantes milhares de quilômetros de casa, num curto espaço de tempo. Durante os anos 1930, se difundia a idéia de que o avião, pela sua velocidade e alcance, servia para aproximar os homens e era portador da esperança de um mundo mais livre e mais justo. Para Emmanuel Chadeau a literatura teve um papel preponderante na questão. A promessa humanista de comunicação plena para muitos, apesar das tensões internacionais na Ásia e na Europa, fazia do avião, antes um instrumento de paz do que de guerra, levando a civilização e não a barbárie. A máquina que foi capaz de renovar a geografia terrestre e também a que pode reconciliar os homens (CHADEAU, 1996, p. 174). Para Sylvain o que desaparece, na verdade, foi o afastamento espacial: não existem mais espaços desconhecidos, nem viagens desconhecidas. A natureza perigosa e hostil não assusta. Houve uma modificação da sensibilidade, segundo Sylvain, entre 1890 e 1930 que acompanhou a certeza da missão civilizadora (VENAYRE, 2002, p. 163).
O objetivo deste trabalho foi abordar como a viagem aérea foi representada através das imagens, que Sandra Pesavento sublinha, A arte é fonte privilegiada para o historiador interessado em resgatar não as verdades do acontecido, e sim as verdades do simbólico, expressas no imaginário de uma época (PESAVENTO, 2002, P. 57).
As imagens construídas pelos artistas contratados pelas empresas aéreas para realização dos cartazes revelaram uma nova geografia, transmitida a um grande número de pessoas através das fotografias aéreas, das ilustrações e do cinema. Até este momento, o referencial de viagem longa que a maior parte das pessoas possuía era o das viagens marítimas. O cartaz publicitário no domínio da viagem aérea é um exercício difícil para os artistas: não há descrição do produto, da técnica e não há como descrever o ar! O artista deve convidar o observador a viajar, sonhar, fazer o longe tornar-se perto, todo o universo ficar muito próximo. Na escassez de texto, a intenção é provocar o imaginário. Conclusão Ao abrirmos esta janela para olhar o passado, na tentativa de compreender o significado da viagem aérea no imaginário social, procuramos demonstrar como foi sendo construído através dos anos o mito de que a viagem aérea é moderna, mágica, sofisticada, elegante e para pessoas especiais. Voar passou a ser um símbolo de status, destinado para pessoas que não podem perder tempo e dinheiro. Procuramos demonstrar, através do estudo e da análise da propaganda realizada pelas empresas aéreas, os atributos intangíveis associados à viagem aérea. O avião era visto como símbolo da modernidade, da magnitude
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e do poder de influência dos Estados, bem como, remetia à idéia de pujança, luxo, conforto e magia. Tratamos de mostrar nessa pesquisa, que mesmo aquelas pessoas que não viajavam na época, ainda assim, tiveram contato com esse mundo mágico da aviação pelas imagens que chegavam até elas, sejam por intermédio de fotos, revistas, filmes, livros, novelas, cartões e tantos outros meios, oportunizando a construção da imagem da viagem dos “sonhos”. O avião, mais que qualquer outra máquina, canalizou sentimentos e fez sonhar várias gerações. Bem como, demonstrou a soberania dos Estados, a satisfação pessoal, o deslocamento rápido, a economia de tempo e certamente o mais simbólico e desejado pelos homens: o sonho de liberdade.
CHADEAU, Emmanuel. Le rêve et Ia puissance l’avion et son siecle. Paris: Fayard, 1996. PATLAGEAN, Evelyne. A história do imaginário. In: LE GOFF, J. (org.). A História Nova. São Paulo: Martins Fontes, 1990. PESAVENTO, Sandra J. Em Busca de outra História: Imaginando o Imaginário. Revista Brasileira de História, v. 15, n. 29, São Paulo, 1995. ______. O desfazer da ordem fetichizada: Walter Benjamin e o Imaginário Social. In: Cultura Vozes, v. 89, n. 5, set./out. 1995. ______. Este mundo verdadeiro das coisas de mentira entre a arte e a historia . In: Estudos Históricos , Rio de Janeiro , n. 30, 2002,p.56-75 PINHO, J.B. O poder das marcas. São Paulo: Summus, 1996.
Bibliografia BACZCO, Bronislaw. Les imaginaires sociaux. Paris: Payot, 1994. ______. Imaginação Social. In: Enciclopédia Einaldi. Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1986. v. 5. Antropologia, 1986.
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BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História. In: BENJAMIN, W. Obras Escolhidas. Magia e Técnica Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1986.
VENAYRE, Sylvain: La gloire de l´aventure. Paris, Aubier, 2002. WOHL, Robert. A passion for wings aviation and the western imagination 1908-1918. New Haven and Londres: Vale University Press, 1994.
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ARTE, IMAGEM, GUERRA: PICASSO, GUERNICA, BRASIL
Arte, Imagem, Guerra: Picasso, Guernica, Brasil*
Francisco Alambert Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Professor Titular da USP. É autor de, entre outros livros, D. Pedro I: o imperador cordial. 1. ed. São Paulo: Imprensa Oficial/Secretaria de Estado da Educação, 2006.
RESUMO O painel Guernica de Picasso é uma das obras mais vistas e influentes do século XX. Mais do que simplesmente uma obra de arte moderna decisiva, sua imagem marcou o imaginário do século, tornando-se quase uma imagem-símbolo de problemas extra-artísticos como as guerras, a injustiça social, etc. Ao mesmo tempo, sua vinda ao Brasil para a Bienal de 1953, centraliza um debate que já havia se iniciado e que terá consequências fundamentais para a história da arte brasileira: o debate entre figurativos e abstratos. Dos anos 50 até pelo menos os anos 1980, o quadro será elemento de polêmicas e de recontextualizações expressivas no debate artístico e político local, tanto quanto o foi no resto do mundo. Este artigo discute as circunstâncias históricas e os usos que deram à imagem desta obra de Picasso sua força permanente no imaginário social e na cultura artística e política contemporânea. PALAVRAS-CHAVE: Guernica; Picasso; imagem.
ABSTRACT Picasso´s panel, Guernica, is one of the most seen and influential work of art of the twentieth century. More than simply an important modern work of art, its image marked the imaginary of the century, becoming almost an image-symbol of extra-artistic ´s problems as wars, social injustice, etc. At the same time, its exhibitions in Brazil during the Biennial of art in 1953, centralized a discussion that had already been started and that would have some fundamental consequences to Brazil´s history of art: the debate between figurative and abstractive. From the fifties until at least the 1980´s, Guernica would be an element of controversy and of expressive recontextualisetion in the artistic debate and local politics, as it was all over the world. This article discusses the historical circumstances and the uses that gave to the image of this Picasso´s work its permanent strength in the social imaginary, in the artistic culture and in the contemporary politics. KEY WORDS: Guernica; Picasso; image.
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Esse ensaio é resultado de duas conferências que apresentei em 2007. A primeira em encontro promovido pela Universidade do Texas, em Austin, sobre os 70 anos de Guernica, organizado por Andrea Giunta. A segunda, em Londrina, no primeiro encontro promovido pelo Laboratório de Estudos da Imagem da UEL. Agradeço especialmente a R. Jackson Wilson pela leitura crítica afiada e pela tradução para o inglês da conferência que deu origem a esse texto. Agradeço também aos meus colegas da UEL, aos alunos e aos demais professores e pesquisadores presentes nos debates em torno do problema da imagem na História,
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FRANCISCO ALAMBERT
Arte, Imagem, Guerra: Picasso, Guernica, Brasil O que o sociólogo cultural ou o historiador cultural estudam são as práticas sociais e as relações culturais que produzem não só ‘uma cultura’ ou ‘uma ideologia’ mas, coisa muito mais significativa, aqueles modos de ser e aquelas obras dinâmicas e concretas em cujo interior não há apenas continuidades e determinações constantes, mas também tensões, conflitos, resoluções e irresoluções, inovações e mudanças reais. Raymond Williams1
I Guernica é uma obra de arte que está em nosso imaginário. Todo mundo conhece, ou imagina, a obra e seu significado. Ela é uma imagem da cultura, um fantasmagoria em nossa memória – ou então parte ativa da estrutura de sentimento do século XX. Por isso já foi muito estudada. Quase todos os mais importantes críticos e historiadores da arte, e não só dela, do século XX tiveram algo a dizer sobre a obra de Picasso 2 . Sua imagem reproduzida corta a segunda metade do século através de todos os meios de reprodução e divulgação existentes. Ela não apenas está em nosso imaginário, como ela é nosso imaginário, em qualquer das definições que possamos dar a esse termo. Quando uma obra de arte se torna uma “imagem” do imaginário? Como diferenciar ou especificar tanto “imagem” quanto “imaginário”? Ou ainda, perguntado de outra forma: quando e porque uma obra de arte “fica” em nosso imaginário, ou em nossa cultura, se perpetuando como uma “imagem”? Gosto de uma frase de Sérgio Milliet sobre isso: “Uma obra não fica tão 1 2
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somente porque reflete a sensibilidade de seu momento histórico. Mas fica ainda menos se não a reflete.” 3. No nosso caso, estamos falando de uma obra que “refletiu” seu momento histórico mas que também continua a refletir outros momentos históricos – daí se perpetuar em nossa estrutura de sentimento e poder assim ser revista e readaptada. “Estrutura de sentimento” é um termo caro ao vocabulário de Raymond Williams, que o usava no lugar de “mentalidade” ou “espírito do tempo” ou mesmo “imaginário coletivo ou histórico”. A arte, mesmo sendo uma atividade restrita (“elitista”) e específica (pois “fala”, se comunica por uma linguagem própria sua), é parte ativa da experiência comum de uma época, de sua “cultura”: é parte da estrutura de sentimento dessa época, que se transforma conforme é tensionada por novas experiências ativas. Williams provavelmente usou o conceito pela primeira vez em seu livro Preface to Film, de 1954. Em obra decisiva posterior, Cultura e Sociedade (1961), aplicou o conceito para estudar em conjunto os “romances industriais” da metade do século XIX na Inglaterra . No livro, diz que tais romances “ilustram certas idéia
WILLIAMS, R. Cultura. São Paulo: Paz e Terra, 1992, p. 29. Para ficar entre os mais conhecidos, ver: SCHAPIRO, Meyer. A unidade da arte de Picasso. São Paulo: Cosac Naify, 2002; CHIPP, Herschel. B. Picassos’s Guernica. History, transformations, meanings. Londres: Thames and Hudson, 1988 e ARNHEIN, Rudolf. The Genesis of a Painting: Picasso’s Guernica. Berkeley: University of California Press, 1973. MILLIET, Sérgio. “Da pintura moderna”. Três conferências. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1955, col. “Os Cadernos de Cultura”, p. 39.
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ARTE, IMAGEM, GUERRA: PICASSO, GUERNICA, BRASIL
comuns, em que se fundava a resposta direta de sentimento e pensamento à nova forma da sociedade. São os fatos da sociedade nova e a estrutura de sentimentos em elaboração que buscarei esclarecer à luz dos romances”4. Ao final do estudo, conclui: “esses romances industriais, quando lidos em conjunto, ilustram de modo suficientemente claro não apenas o tipo de crítica habitual ao industrialismo, que se vinha estabelecendo como tradição, mas também a estrutura geral de sentimentos que igualmente se formara e iria ser força determinante. O reconhecimento do mal equilibrava-se com o temor de se ver envolvido pela luta. A simpatia não redundava em ação, mas em retirada. Podemos todos observar quanto essa estrutura de sentimento persistiu e se prolonga até hoje na literatura e no pensamento social de nosso próprio tempo”5. Estrutura de sentimento não é uma outra forma da noção idealista de “espírito do tempo”. Se para Goethe (ou Hegel), o “Zeitgeist” definia-se por um conjunto de opiniões que predominavam em um período histórico, sobrederterminando o pensamento geral, para Williams a “estrutura de sentimento” nasce das inter-relações entre práticas sociais e hábitos mentais herdados que se relacionam, por sua vez, com as formas de produção e de organização sócioeconômica, resultando no sentido que damos à experiência do vivido. A análise da estrutura de sentimento trata de “descrever a presença de elementos comuns em várias obras de arte do mesmo período histórico que não podem ser descritos apenas formalmente, ou parafraseados como afirmativas sobre o mundo: a estrutura de sentimento é a 4 5 6 7
articulação de uma resposta a mudanças determinadas na organização social. Por essa via, dá conta do aspecto formante da obra de arte. O artista pode até perceber como única a experiência para a qual encontra uma forma, mas a história da cultura demonstra que se trata de uma resposta social a mudanças objetivas”6. A arte condensa essa experiência: “é na arte, principalmente, que o efeito total da experiência vivida é incorporado e expresso”7. E isso nos trás de volta a Picasso e sua Guernica. Guernica é uma obra de arte tão importante como arte quanto como imagem da cultura e na cultura. Aliás, mesmo não sendo “realista”, ela é símbolo e alegoria (imagem?) de um momento da arte engajada, da história do cubismo. Isto é certo. Porém é certo também que a obra ela mesma nasceu de uma imagem imaginada (Picasso não estava na cidade de Guernica quando pintou seu painel, estava em Paris, e viu o desastre da guerra através de fotos de jornais), que é resultado de um acontecimento histórico, de proporções trágicas: o bombardeio de uma cidade indefesa, o início da II Guerra, a ditadura de Franco, o nazifascismo, a barbárie. Creio que isso tudo é parte daquilo que nos liga a Guernica, ou que liga Guernica a Abu-Ghraib, à realidade do mundo contemporâneo. Mas para nós a imagem da obra de Picasso (e não apenas a obra em si de Picasso) é mais forte, poderosa e longeva que as imagens reais da tragédia, que foi bastante retratada, ou de suas representações populares (como as imagens e os outdoors que apareceram pela cidade de Guernica e por toda a Espanha republicana durante a
WILLIAMS, R. Cultura e Sociedade. São Paulo: Editora Nacional, 1969, p. 105. Idem, p. 125. CEVASCO, Maria Elisa. Para ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p. 153. WILLIAMS, R. Drama from Ibsen to Brecht. Londres: The Hogarth Press, 1987, p. 18.
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Guernica destruída (1937)
Fronte de Aragon (1938)
Guerra Civil e mesmo depois dela). Esse é um dos paradoxos de Guernica. Aliás, a imagem da tragédia já é uma imagem – é uma foto. O clichê diz que a imagem vale mais que mil palavras e a obra de arte é um objeto de reflexão culta e elitista. Mas de Guernica, a cidade, o que nos resta como significante contundente é mais uma obra de arte do que mil fotos – ou mil palavras. Guernica é um caso raro em que uma obra é revolucionária no campo autônomo (e outrora revolucionário) da arte moderna e também do ponto de vista da memória histórica. Nesse sentido, cabe perguntar: de alegoria ela passaria a símbolo, ou sua força deriva justamente da capacidade única de aliar a alegoria da barbárie (a dor, a injustiça, a guerra) e a efetivação de uma transformação formal no campo da arte, ou seja, de criar uma nova experiência, tensionar a estrutura de sentimento de sua época e da nossa? (criar uma nova experiência desalienada e motivadora, aliás, era a utopia da arte moderna em seu momento revolucionário). Creio que essa seria e melhor hipótese. Por isso a obra nos é mais presente do que outras tantas que trataram do mesmo tema, como a tela “Premonição da guerra civil”, de Dali, ou os trabalhos pioneiros de André Masson, que certamente influenciaram Picasso (assim como pinturas mais antigas,
como Il Compianto, de Giotto, ou O triunfo da morte, de Bruegel). Grande parte da obra artística de Picasso causou celeuma por toda a parte, especialmente os momentos dessa obra que desde Guernica colocava em xeque a política da guerra e a segurança do capitalismo triunfante. Na França e principalmente nos Estados Unidos, onde o Realismo Democrático rivalizava ainda com a arte moderna, mesmo depois de Guernica, a posição de Picasso podia ser terrivelmente incômoda. Francis Frascina faz um bom apanhado da celeuma político-ideológica trazida por uma obra posterior, o Massacre na Coréia, dentro da política cultural dos EUA em plena Guerra Fria:
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Quando Massacre na Coréia foi exposto no Salão de maio de 1951 [...], as questões de engajamento político, realismo social e inteligibilidade foram mais uma vez polemizadas na imprensa de esquerda. Os Modernistas, na época e desde então, atacaram a pintura, considerando-a ‘um fracasso estético’. [...] A comunidade artística de Nova York ficou desconcertada com o ‘novo Guernica’ de Picasso, no qual o agressor contra mulheres e crianças indefesas era a máquina de guerra americana, não a alemã. No contexto dos primeiros temores macarthistas, a visão estereotipada de Picasso sofreu um bombardeio: ele foi caracterizado como um gênio despolitizado e extraterreno, cuja compreensível preocupação
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ARTE, IMAGEM, GUERRA: PICASSO, GUERNICA, BRASIL com a paz [...] havia sido explorada por comunistas amorais e doutrinários. Depois que, no dia 16 de agosto de 1949, o congressista Dondero, de Michigan, fizera o seu discurso sobre’A arte moderna acorrentada ao comunismo’ na Câmara de Deputados americana, os órgãos artísticos institucionais passaram a se empenhar muito para convencer os americanos de que [...] a arte moderna não era um complô comunista para solapar os valores e a democracia ocidentais. Alfred H. Barr Jr., Nelson Rockfeller e Thomas Hess (diretor da Art News) vinham se esforçando muito para identificar a arte moderna com a liberdade. De repente, lá estava Picasso, com inúmeras obras no MOMA, atrapalhando sua causa8.
superar e a que a sociedade do espetáculo reativou através de suas imagens de beleza, força, heroísmo, fama, etc. Guernica, hoje, existe dentro desse universo contraditório. Mas, se vivemos na Sociedade do Espetáculo, se a maquinação do capitalismo não pode viver sem criar, comunicar e absorver imagens, o que resta de revolucionário em Guernica, em sua imagem, em Picasso, etc? Guernica e Picasso são um pouco como a famosa foto de Che Guevara: elementos de uma cultura pop que esvazia as imagens de seu conteúdo justamente por cultuá-las como símbolos não do que elas dizem, mas da própria sociedade que as consome como mercadorias. Quanto maior seu valor de exposição, maior seu valor de culto, como mostrou Walter Benjamin, atualizando a noção de valor de Marx para o mundo da cultura (de massas, mas não apenas): outdoors com a reprodução de Guernica podem significar, ou vender, qualquer coisa9.
Picasso - O Massacre na Coréia (1951)
Como se vê, não é apenas a obra que toma esse sentido difuso, mas também seu autor. Picasso é ele próprio a encarnação de todas as celeumas. E por isso é ele também convertido em clichê da modernidade: o “artista incorformista”, “radical”, “sensível” – pra não dizer “amante da vida”, “mulherengo”, etc. Enfim, o “gênio”, essa categoria romântica que a arte moderna quis 8
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Guernica outdoor - EUA
FRASCINA, F. “A política da representação” In WOOD, P. et alii. Modernismo em disputa – a arte desde os anos quarenta. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 1998, p. 141. A arte como mercadoria e produto da Indústria Cultural seria o último estágio do domínio da forma-mercadoria. O pensador e ativista francês Guy Debord denominou esse novo momento de Sociedade do Espetáculo, um novo complexo social em que se “domina os homens vivos quando a economia já os dominou totalmente. Ele nada mais é do que a economia desenvolvendo-se por si mesma”. Nesse sentido concordando com Benjamin e Adorno, Debord nota que a forma-mercadoria se sobrepõe à idéia da arte como um valor em si, transformando integralmente a cultura em mercadoria – na verdade, a “mercadoria vedete da sociedade espetacular” -–, o que fará com que, no mundo contemporâneo, ela assuma “o papel motor do desenvolvimento da economia, equivalente ao do automóvel na primeira metade e ao das ferrovias na segunda metade do século XIX”. Sobre o assunto, ver DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. Desenvolvi o tema da relação entre arte e mercadoria em outro ensaio: ALAMBERT, F. “Arte e mercadoria”. In WILLIAMS, R. Palavras-chave. São Paulo: Boitempo, 2007.
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Isso também é verdade. Mas não só. Mesmo a imagem superexposta pode ter um caráter negativo em determinados contextos. Um acontecimento recente ajudar a entender, e a embaralhar ainda mais, essa rede tensa de significações e re-signicações. Em 05 de fevereiro de 2003 a tapeçaria que reproduz o painel de Picasso, que está na sala de segurança da ONU em Nova York (ou seja,
Entretanto, diplomatas disseram a jornais norte-americanos que a ordem partiu do governo Bush. O fato é que controlar a imagem da obra era e é fundamental para formatar a ideologia da guerra contemporânea. Mostrar tudo, esconder tudo, ao mesmo tempo e sempre que possível: essa parece ser a divisa da política da imagem na sociedade pós-moderna. Hoje, Guernica está exposta no Museu Reina Sofia, na Espanha, de onde não pode sair, por ordem de Picasso, e para onde voltou apenas depois da morte de Franco, também por desejo do artista. Está lá depositada como um objeto sagrado. Mas ela ressurge nas ruas, em diferentes manifestações por todo o mundo contra as Guerras contemporâneas (e, em casos raros,
Guernica ONU
como símbolo tanto da dor da guerra quando do desejo da paz perpétua que essa entidade afirma ter como missão), foi coberta por uma cortina azul. A ordem para a censura teria vindo das próprias redes de televisão que iriam transmitir os discursos pró-invasão do Iraque feitos por Colin Powell e John Negroponte. Guernica manifestação contra guerra
também naquelas que são a favor dos conflitos). A reprodução do quadro é readaptada para funcionar como denúncia e sátira política, ou como uma releitura realista do horror (remetendo à carnificina de Falluja de maneira proposital), ou ainda ser colocada como uma instalação na própria cidade de Guernica de hoje, dentro de uma Espanha que se tornou parte da “coalisão”norte-americana em sua mais recente ação bélica. Colin Powell e Guernica
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ARTE, IMAGEM, GUERRA: PICASSO, GUERNICA, BRASIL
Guernica colagem (2003)
E para o Brasil, o que é Guernica? Todas essas questões até aqui referidas, creio eu, são fundamentais para entender a história contemporânea. E o historiador, da arte ou não, tem obrigação de lidar com elas, a não ser que queira se alienar ou participar desse mesmo mundo do espetáculo como mero espectador (ou como “agente secreto”). Creio que uma análise histórica, tanto artística quanto social, tanto formal (imanente) quando “conteudística”, dialética enfim, pode nos ajudar a pensar concretamente essas questões. Quero aqui ensaiar esse tipo de ação, propondo uma interpretação histórica de Guernica no Brasil do século XX. Mas não veremos uma análise imanente da obra, veremos sim uma análise de sua representação, do significado de sua imagem adaptada e readaptada. Porque nós temos uma história, particular, com essa obra, da mesma maneira que temos uma história particular com o século XX, do qual somos parte ativa e mediatamente dependente, para usar uma fórmula de Adorno criada justamente para entender a relação entre arte e sociedade. II Em 1972, Mário Pedrosa (o mais importante crítico de arte brasileiro do século XX) usou a recente morte de Picasso como símbolo da “crise” e da própria morte da Arte Moderna. A 10
idéia podia não ser original, mas vindo de quem vinha (talvez o primeiro crítico a cunhar a expressão “pós-moderno”), revestia-se de significado. Picasso foi, no Brasil como em outras partes, o símbolo da arte moderna. E Guernica, para muitos sua obra maior, foi também um marco para polêmicas e complexas interpretações. A presença destacada da obra na II Bienal de São Paulo (1953) serviu para materializar esta que é desde então a mais importante mostra de arte feita na América Latina e cuja existência contribuiu para consolidar determinadas tendências na arte latino-americana. Logo em seguida, porém, a estupenda influência de Guernica e da obra de Picasso decaiu diante do desejo de autonomia e de criação de uma vanguarda artística, brasileira e internacional ao mesmo tempo, partindo das vertentes abstrato-construtivas. Apenas depois do fim da ditadura militar instaurada em 1964, que acabou com esse projeto de criação de uma vanguarda local, é que os jovens artistas da “Nova Figuração” redescobriram Picasso como ícone de sua revolta. É essa história que pretendo contar. A história da vinda de Guernica ao Brasil começa antes mesmo da obra existir. Entre 1926 e 1928, auge do primeiro modernismo no Brasil, o pintor Cícero Dias realizou uma de suas obras mais importantes, o painel Eu vi o mundo..., ele começava no Recife. Já tomado pelo primitivismo modernista e pelo desejo de desenvolver grandes painéis, Dias se mudou para Paris, em 1937. Ao ver Guernica, recémfinalizada, pressentiu novas possibilidades estéticas, tanto políticas quanto expressivas, para o tipo de pintura em painel que cultivava desde os anos 20. Ao mesmo tempo, Dias e Picasso tornaram-se amigos íntimos10.
Cf. Cícero Dias – Uma vida pela pintura. São Paulo: Simões de Assis Galeria de Arte, 2001; BENTO, Antonio & CARELLI, Mário. Cícero Dias. Banco Icatu S.A., 1997; CAMPOS, Eduardo; ESCHER, Chico. Cícero Dias – décadas de 20 e 30. São Paulo: Fundação Armando Alvares Penteado, 1994; ANJOS Jr., Moacir & MORAIS, Jorge Ventura. Picasso ‘visita’ o Recife: a exposição da Escola de Paris em março de 1930. Estud.av (online). 1998, v.12, n° 34. http://www.scielo.br/scielo.php?. Sobre Dias e o abstracionismo ver PEDROSA, Mário. “Entre Pernambuco e Paris” e “Cícero Dias ou a Transição Abstracionista”. In Dimensões da arte. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura/Departamento de Imprensa Nacional, 1964.
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Dias e Picasso em Paris (1950)
Será através dessas relações pessoais que Dias conseguirá a autorização de Picasso para que Guernica e outras obras sejam enviadas para a II Bienal de São Paulo, em 1953. O anedotário costuma dizer que o “supersticioso” Picasso não queria que sua obra saísse dos Estados Unidos enquanto durasse a ditadura de Franco. Cícero Dias argumentou que o Brasil era um país pobre, porém em processo de desenvolvimento, tanto econômico quanto cultural, e por isso seria importante a arte moderna participasse dessas transformações. Assim, Guernica chegaria a um país que a esperava ansiosamente11. Para a maioria dos principais artistas e intelectuais modernistas brasileiros, Picasso era, como definiu Brassaï, o “símbolo da liberdade reencontrada”. Por ser esse “símbolo” é que Picasso e Guernica
foram o centro da II Bienal de São Paulo, justamente aquela que foi vista como a celebração tanto da arte moderna quanto da democracia (símbolos da liberdade reencontrada) e do futuro do Brasil. Se oficialmente a II Bienal celebrava os 400 anos da cidade de São Paulo, o mais vigoroso pólo de desenvolvimento brasileiro, a cidade “moderna” por excelência, igualmente ela deveria celebrar outros desejos que então se mostravam como possibilidades tangíveis: a recente consolidação da democracia, o desenvolvimentismo econômico (naqueles anos o Brasil estava próximo de se tornar o país de maior crescimento econômico no mundo), o estabelecimento da arte moderna como parceira dessa abertura ao futuro. Além do mais, ainda que as transações para a criação da Bienal (e, antes dela, do Museu de Arte Moderna de São Paulo) tivessem sido feitas à sombra da paranóia anticomunista e dos interesses norte-americanos personalizados pelo MoMa e por Nelson Rockfeller (que veio ao Brasil diversas vezes para negociar a formação tanto do Museu quando das Bienais), ela vinha a consolidar uma hegemonia dos intelectuais e artistas de esquerda que se propuseram a criar uma nova pedagogia da modernidade a partir da arte12. Foi neste contexto que Guernica chegou ao Parque do Ibirapuera, junto com Marcel Duchamp, George Braque e Paul Klee. Ao lado deles, obras de artistas vindos do Paraguai a Cuba, da Indonésia a Iugoslávia,
11
Em 1947, o sociólogo francês Roger Bastide, então professor da USP, polemizou, em artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, com o crítico Luís Martins a respeito do caráter social da arte em confronto com seu caráter “apolíneo” ou “dionisíaco”. Em seu artigo, Bastide busca enraizar seus argumentos através da influência da guerra e dos eventos sociais mais catastróficos nas mudanças mais significativas trazidas pela arte moderna. Dá como exemplos a influência da guerra no expressionismo de Lasar Segall, da rudeza do sertão na obra de Tarsila do Amaral e da tragédia de Guernica “nos monstros” de Picasso. Para ele, tanto o “inconsciente freudiano” quanto a dinâmica da arte moderna estavam intimamente determinados pela catástrofe e decomposição da vida social. Ver BASTIDE, R. “A pintura e a vida”. O Estado de São Paulo, 16/10/1947, p. 6. 12 Sobre o assunto ver o livro que escrevi em parceria com Polyana Canhête: Bienais de São Paulo: da era do Museu à era dos curadores. São Paulo: Boitempo, 2004. Ver também AMARANTE, Leonor. As Bienais de São Paulo – 1951 a 1987. São Paulo: Projeto, 1989.
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do Egito a Noruega. Como disse o crítico inglês Guy Brett, “foi uma das mais completas exposições de arte moderna ocidental já montada até aquela ocasião”, onde praticamente toda a complexidade da cultura contemporânea na forma da arte podia ser vista13. O Estado brasileiro já havia então incorporado a arte moderna de tal forma que o mitológico arquiteto Walter Gropius, que também teve uma sala especial na II Bienal, disse: “Como no Brasil, em nenhum lugar do mundo existem tantos edifícios públicos de construção moderna” 14 . De fato, as coisas haviam mudado e pretendiam mudar ainda mais. Pouco antes da II Bienal, um dos mais violentos e apaixonados debates da história da arte tomava força: a querela entre os artistas (e críticos) que defendiam a figuração (a maioria comunistas) e os abstracionistas (também comunistas, trotskistas ou socialistas). Mário Pedrosa, o maior porta-voz dos abstratos, defendia que estes seriam os responsáveis por “libertar o homem, erguê-lo acima do cotidiano”, enquanto que os defensores da representação figurativa apenas concebiam a arte como “um nobre instrumento de educação, mas despido de autonomia”15. Este debate explode dentro da Bienal de 1953. Como entender Guernica e o resto da obra de Picasso dentro desse debate sectário e engajado passou a ser uma das grandes questões da arte moderna brasileira. O debate abstração/figuração era o fundo, mas Guernica era o centro. De tal modo que os jornais já chamavam aquela exposição de a “Bienal de Guernica”. Um
artigo convidava a ver Picasso no Ibirapuera pagando a quantia de “apenas quinze cruzeiros” – o preço do ingresso para a exposição “que não tinha preço” –, para em seguida calcular (em “duzentos milhões de cruzeiros!”) os valores do seguro das obras no Ibirapuera. Guernica e Picasso eram as atrações dos jornais, os preferidos do público e também de boa parte dos novos artistas (figurativos ou não). Os depoimentos sobre isso são abundantes. Recentemente, o importante fotógrafo brasileiro Thomaz Farkas, relembrando sua vida e sua participação na II Bienal, disse que “Guernica apareceu aqui como um milagre”. Mas os defensores do abstracionismo, como Mário Pedrosa, descobriam outros “milagres” nesta Bienal. O crítico elogiou as salas especiais, destacando o caráter “histórico pedagógico” que proporcionavam. Porém, para ele os marcos maiores da II Bienal foram as salas do Cubismo, do Futurismo e do Neoplasticismo, além de alguns artistas “protagonistas” da arte moderna, como Munch, Klee, os abstracionistas Kandinski e Mondrian, e a sala de Alexander Calder (cuja participação também foi negociada por Cícero Dias em Paris). Irônico, Pedrosa notou que Guernica trouxe definitivamente a febre muralista para a arte brasileira16. Isto é verdade, mas é verdade também que a influência de Guernica no Brasil já existia mesmo antes da obra vir para o país. Por exemplo, o pintor Clóvis Graciano sofreu a influência do Cubismo picassiano de tal maneira que podemos ver
13
BRETT, G. “Um salto radical”. In ADES, Dawn. Arte na América Latina: a era moderna ,1820-1980. São Paulo: Cosac&Naify, 1997, p. 254. Tradução brasileira de Art in Latina América: The Modern Era, 1829-1980. Yale University Press, 1989. 14 “Gropius para o repórter: ‘Como no Brasil em nenhum lugar do mundo existem tantos edifícios públicos de construção moderna”, Saldanha Coelho, Diário de Notícias, 01/1954. 15 PEDROSA, M. “O momento artístico”. In ARANTES, O. (org.). Acadêmicos e modernos. São Paulo: EDUSP, 1998, p. 243. 16 PEDROSA, Mário. “Dentro e fora da Bienal”. In Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília. São Paulo: Perspectiva, 1981, p. 53.
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em sua série Bombardeio, um eco de Guernica, que a antecedeu somente em alguns anos17.
Portinari viu Guernica pela primeira vez em 1942, em Nova York, na mesma época em que realizou quatro grandes murais para a Fundação Hispânica da Biblioteca do Congresso, em Washington, com temas referentes à história latino-americana. Em 1943, de volta ao Brasil, e sob o impacto tanto da Segunda Guerra Mundial quando da ditadura Vargas, realizou oito painéis conhecidos como Série Bíblica, claramente “decorrência do desenho e do conteúdo de Guernica”19.
Clovis Graciano - Bombardeio
Jacqueline Barnitz notou que as pinturas de Portinari nos anos 1940, assim como vários outros artistas, foram mais influenciadas por Guernica do que pelo modelos vindos do muralismo mexicano (então o principal modelo da arte engajada) por conta de sua “força expressiva e pela ausência de narrativa”. O “impacto de Guernica”, é ainda a historiadora norte-americana quem diz, “é especialmente visível na série Retirantes de 1944”18. De fato, tanto nas lágrimas de pedra do quadro Jeremias, quanto em uma obra como Mulher chorando (1937), é visível a influência de Picasso.
Portinari - Retirantes (1944)
Esta “angústia da influência” de Guernica para a arte mural de Portinari e seu duplo sentido – funcionar como referência ao mesmo tempo em que essa referência deveria ser superada – foi também notada, na época, por Mário Pedrosa. Mas sua leitura encaminha outra conclusão. Segundo ele, dessa vez analisando o mural A missa,
17
BARATA, Mário. “Guernica e a influência de Picasso no Brasil”. In Pablo! Pablo! Rio de Janeiro: Fundação Nacional de Arte, 1981, pp. 5-6 Segundo a leitura de Barnitz, “Portinari’s refugees emboided the universal condition of human misery rather than racial problems, yet at the same time, they were victims of a specifically Brazilian phenomenon – drought in the sertão”. BARNITZ, Jacqueline. Twentieth-century art of Latin America. Austin, Texas: University of Texas Press, 2001, p. 87. 19 BARATA, Mário. “Guernica e a influência de Picasso no Brasil”. In Pablo! Pablo! Rio de Janeiro: Fundação Nacional de Arte, 1981, pp. 5-6. 18
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Portinari “abandonou as tonalidades cinzas de sua fase precedente”. Esse abandono marcaria uma diferença para com a influência picassiana: “Picasso em Guernica limitou-se ao preto e branco. O mestre brasileiro não teve medo das tremendas dificuldades de uma composição tão vasta em têmpera [...] A composição resistiu ao clareamento natural da têmpera, depois de seca, mantendo-se dentro da escala tonal escolhida pelo artista. Foi uma prova de mestre”20. Está claro que Pedrosa “lia” a “superação” de Picasso por Portinari como um exemplo do trabalho do artista em seu caminho da figuração para a abstração. A influência de Guernica deveria ser superada. Mas nem todos pensavam assim. No mesmo ano em que Picasso terminava Guernica, o crítico Sérgio Milliet (o organizador da II Bienal) escrevia em um ensaio de juventude: “É preciso retornar a uma concepção menos esotérica da arte. Impõe-se a pesquisa de humanidade como um treino imprescindível à volta do artista, esse filho pródigo, à arte honesta, sincera, feita de sangue e carne, que foi a de seus antepassados maiores”21. Essa posição típica do “retorno à ordem”, mas com um certo apelo ao engajamento, se justificava no momento histórico do Brasil. Em meio a uma ditadura (o Estado Novo varguista) e às portas da II Guerra Mundial, o artista era chamado a interferir, a dialogar com o público. A inovação plástica ficava em segundo plano, ou melhor, ficava subordinada à capacidade do artista em criar uma problematização de sua época em contato com o público. E Picasso é citado como o grande exemplo. Em um ensaio escrito poucos anos depois, o crítico brasileiro abandona a pregação pela inovação
do “assunto” e pela “comunicabilidade”, militando agora a favor de uma “qualidade plástica” que seria a referência para o entendimento, e o julgamento, mesmo de obras que tratassem de temas tão urgentes e violentos quanto a guerra. Novamente a arte de Picasso é citada como exemplo22. Em 1951, ano em que se inaugurou a primeira Bienal de São Paulo, Milliet já não pensava nem segundo os termos do “retorno à ordem”, nem da “qualidade plástica” e nem mesmo das querelas em torno da oposição figurativismo versus abstracionismo. Apenas uma questão permanecia: a “comunicação com o público”. Se o abstracionismo tinha um ponto fraco a ser superado seria justamente a “supressão do auditório”, sua recusa em comunicar, em dar ao leigo acesso a seu discurso. Essa questão do público tinha, no Brasil daqueles anos, um sentido particular. Afinal, tratava-se de um país “jovem”, que saltava rapidamente na direção do desenvolvimento capitalista avançado e que sonhou incorporar criativamente a vanguarda cultural modernista, re-adaptada e remodelada diante das peculiaridades nacionais. A arte moderna devia educar o público para o novo país, o novo mundo, e o “futuro” (de preferência socialista) que nos era reservado. Por isso, aqui, mais que em qualquer outra parte, ela devia “comunicar”. A questão era: de que forma a arte moderna poderia comunicar a liberdade conquistada em suas formas? Essa era a questão de fundo que permeava o confronto violento entre defensores do neofigurativismo, de fundo cubista, e os abstracionistas. Ainda em 1951, o arquiteto Lucio Costa (o planejador de Brasília) escreveu
20
PEDROSA, Mário. “A missa de Portinari”. In Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília. São Paulo: Perspectiva, 1981, p. 32. MILLIET, Sérgio. “Posição do pintor”. Ensaios. São Paulo: Brusco & Cia, 1938, p. 142. 22 MILLIET, Sérgio. “A pintura e a guerra”. Pintura quase sempre. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1944, p. 162. 21
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um artigo em que defendia que tanto a figuração quanto a abstração eram válidas na medida em que representavam uma liberdade criativa sem domínios rígidos e sem regras impostas de fora do campo artístico. Haveria muitas maneiras de ser “contemporâneo”. Milliet empolgou-se com a idéia. Essa idéia de um caminho ainda moderno, porém efetivamente plural e múltiplo, foi a idéia que rondou o início do projeto das bienais de São Paulo. Para os pensadores imbuídos desse projeto, que cabia especialmente ao Brasil, uma nação “virgem”, em pleno processo de modernização e já devidamente “acostumada” às misturas e as pluralidades da formação cultural, a arte de Picasso seria o melhor exemplo, e Guernica sua grande realização, pois combinava “emoção e inteligência” de tal forma que seria a negação das oposições simplistas. A questão, dizia Milliet, não era uma “volta ao expressionismo” ou ao figurativismo: tratavase da comprovação da necessidade vital da expressão comunicativa, da arte “apaixonada”, cujo exemplo maior seria Guernica. A prova disso é que, em fins dos anos 50, depois da retrospectiva da II Bienal e da exibição de Guernica, a fama de Picasso no Brasil atingia o seu máximo culto. A tal ponto que o crítico Luís Martins identificava o artista não apenas com a pintura moderna: Picasso era a própria cultura moderna, o “homem símbolo do nosso tempo, como Charlie Chaplin, como Freud, como Einstein”23. Mas se Picasso era essa encarnação mitológica da modernidade, Guernica representava um momento de mudança, de quase revolução na arte de Picasso e, 23 24
portanto, na própria modernidade. Segundo Martins, com essa obra nascia não apenas um novo caminho estético, mas um novo compromisso do artista24. Desde então, a busca por uma estética “neo-expressionista”, expressão da gravidade e da imediaticidade de uma revolta política efetiva (portanto, de uma revolução) seria (o crítico escreve em 1960) a tarefa do artista moderno, como era a tarefa que Picasso se impôs. A urgência da vida moderna pedia uma expressão cujo segredo Guernica guardava. E esse segredo se mostrava iminente. No início dos anos 60, além das crises que prenunciavam a chegada da ditadura militar, o mundo em plena Guerra Fria, portanto em plena ameaça da volta da “guerra total”, agora talvez definitiva, e diante da tragédia da sobrevida do stalinismo soviético, Guernica podia ser convocada a se reapresentar. Creio que por isso, em 1962, o jornalista, crítico de arte e militante socialista Geraldo Ferraz resolveu reacender Guernica em versos e em forma de protesto. Em seu livro Guernica: poema vozes do quadro de Picasso, feito para ser distribuído e que trazia em sua contra-capa o aviso ‘é livre a publicação, tradução, representação sem qualquer direito autoral, em qualquer parte do mundo”, justificou assim seu esforço: Há vinte e cinco anos, que tantos já se passaram, acompanhamos, ‘vendo’ e ‘ouvindo’, a imortal acusação de Guernica, a obra de arte emergente do bombardeio de 26 de abril de 1937. Picasso fez de seu quadro a encarnação ativa do protesto que subscrevemos, naqueles dias de derrota. Na verdade, derrotados continuamos até hoje, diante de uma ditadura implantada em conseqüência direta do período subversivo, representado pelos extremismos totalitários.
MARTINS, Luís. Os pintores. São Paulo: Cultrix, 1960, p. 257. Idem, p. 256.
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ARTE, IMAGEM, GUERRA: PICASSO, GUERNICA, BRASIL Ao rever o noticiário, deparamos a justificativa para a ação da Divisão Condor, que atuou na Espanha, e possivelmente contra Guernica, quando uma publicação militar alemã inseria o bombardeio das ‘cidades abertas’ no contexto da ‘guerra total’, exprimindo tudo isso com uma frase conclusiva: ‘o fundamento desse tipo de guerra está de acordo com o nível elevado de nossa civilização’. É a subversão totalitária, que compreendemos como ensandecida raiz de um crime, mas que não admitimos, que rejeitamos e contra a qual lançamos nosso libelo25.
Mas havia outro caminho em elaboração, um caminho que guardava também uma ação utópica, que ainda não se via plenamente derrotada, como no libelo de Gerald Ferraz. Mário Pedrosa, como vimos, questionava esse novo “expressionismo” inspirado na ação picassiana de Guernica. Em 1951, mesmo ano da I Bienal e de uma marcante exposição do escultor suíço Max Bill no Brasil, ele escreveu um de seus principais textos, “Panorama da Pintura Moderna”. Neste longo estudo, avaliou Picasso sob o ângulo de uma nova concepção do espaço artístico, de uma “ordem arquitetônica mais vital” que resultará no cubismo e, em seguida, após o contato com o surrealismo, no neoexpressionismo. Agora, também tomado pelos acontecimentos políticos, passa “a usar do pincel como um Goya vingador”, culminando no expressionismo peculiar de Guernica. Porém, para Pedrosa o futuro da arte moderna passaria por outras referências. Uma delas era Mondrian, “o jacobino da revolução modernista”. Outra, e mais
importante, era Max Bill, que trouxe à I Bienal uma escultura que causou entre os defensores do abstracionismo no Brasil o mesmo furor que Guernica causou aos demais artistas, a Unidade tripartida. Nesta obra, o artista mostrava uma nova dimensão da abstração capaz de conciliar “a dinâmica e a estática, numa noção de espaço já inseparável do tempo” 26 . Uma dimensão que Picasso desconhecia, pois, é ainda o crítico que diz, apesar de suas fulgurações, “sua arte recaiu na etapa já ultrapassada de uma expressão de catársis”27. Assim, do ponto de vista dos defensores do caminho abstracionista, o repentino terremoto causado por Guernica perdia seu espaço para as novas vertentes da vanguarda abstrato-concreta, que em seguida seria substituída por uma vanguarda genuinamente brasileira, o neoconcretismo – para o qual as ações, o uso do corpo e a resignificação dos objetos seria o centro. Para a geração de Hélio Oiticica e Lygia Clark, orientados pelas idéias de Pedrosa e de Ferreira Gullar, Picasso e sua Guernica não tinham mais o que dizer. Nos anos 60, explicando sua transição da tela para o corpo e deste para a vida da rua, Oiticica ecoava as idéias de Pedrosa, pensando um conceito de “espaço como elemento totalmente ativo”, anunciando também um tempo de transformações firmes, pensadas por um artista que se via como sujeito histórico da transformação28. Mas essa transformação não veio. Ou melhor, teve vida curta. Em 1964, o golpe militar iria começar a desmantelar essa tentativa de criação de
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FERRAZ, Geraldo. Guernica: poema vozes do quadro de Picasso. São Paulo: Massao Ohno/Edição do autor, 1962, p. 04. PEDROSA, Mário. “Panorama da pintura moderna”. in ARANTES, Otilia (org.). Modernidade cá e lá. São Paulo: EDUSP, 2000. Textos Escolhidos de Mário Pedrosa, v. IV, p. 173. 27 PEDROSA, Mário. “Fundamentos da arte abstrata”. In Dimensões da arte. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura/ Departamento de Imprensa Nacional, 1964, p. 212. 28 OITICICA, Hélio. “A transição da cor do quadro para o espaço e o sentido de construtividade”. In Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 50. 26
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uma vertente brasileira para a vanguarda mundial (vertente esta que só agora, 40 anos depois, volta a ser pensada como precursora da arte contemporânea, como as constantes celebrações da obra de Oiticica, de Londres ao Texas, demonstram). O processo de construção da autonomia artística, elaborado pela esquerda modernista, bem como de qualquer forma de autonomia na vida cultural, social, política e, sobretudo, econômica, foi interrompido quando a ditadura de direita estabeleceu-se no poder. III Uma porta se fechava, mas outra se abria. Durante a ditadura, acompanhando a explosão da pop art no mundo, diante do adverso contexto brasileiro, marcado pelo autoritarismo e pelo fortalecimento da sociedade de massa e do espetáculo, irrompe no Brasil um retorno peculiar ao figurativo. Uma espécie de pop art politizada surge com os novos artistas, cujo dedo estava apontado tanto para a massificação social, quanto para o autoritarismo político local. No fim dos anos 70 e início dos 80, quando a ditadura militar ia terminando, Guernica renascia (ou era recordada) como inspiração para esses novos artistas. Em 1973, em plena ditadura, a XII Bienal fracassou em tentar trazer uma homenagem a Picasso. Na época, os organizadores alegaram falta de dinheiro, mas também era fato que a fama de Picasso não se enquadrava em um evento vigiado pela ditadura militar. No mesmo ano, Alfredo Buzaid, o Ministro da Justiça convertido também em déspota das artes e do imaginário (e não existe uma coisa sem outra) proibiu a venda no Brasil das gravuras eróticas de Picasso. Naqueles anos obscuros, a ausência pode ter se convertido
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em presença, em lembrança. A falta de Picasso fazia lembrar não apenas o arbítrio ditatorial, mas talvez também fizesse retomar a memória de uma obra que marcou as décadas anteriores e quis ser símbolo do período democrático. Por isso, quando já haviam ficado para trás tanto o otimismo desenvolvimentista quanto a defesa apaixonada do abstracionismo, Picasso e Guernica retornavam à iconografia cultural de resistência brasileira. Foi neste contexto que os críticos Mário Barata e Frederico Morais pensaram uma exposição chamada Pablo! Pablo! Uma interpretação brasileira de Guernica. Artistas importantes foram chamados a rever a obra de Picasso (dentre eles Antonio Henrique do Amaral, Carlos Scliar, Ivald Granato, José Roberto Aguilar, Rubens Gerchman e Siron Franco). Mas Guernica estava de tal forma introjetado na vida cultural brasileira que não eram apenas os artistas que o utilizavam, mas também os chargistas e jornalistas (como Henfil, Millor Fernandes e Jaguar). Agora Guernica era, a um só tempo, um ícone do desejo de reencontrar a liberdade (uma vez mais), e um signo da comunicação de massa (nesse caso voltada à crítica do autoritarismo). A imagem da revolta ainda era uma força crítica, mas ao mesmo tempo passava a habitar o mundo da “imagem” a se consumir entre outras.
Henfil (sem título), nanquim sobre papel, 0,44 x 0,32m
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ARTE, IMAGEM, GUERRA: PICASSO, GUERNICA, BRASIL
Jaguar, “Os incomodados que se mudem”, nanquim sobre papel, 0,35 x 0,30m
Mario Barata, o antigo defensor do figurativismo, agora convertido em entusiasta da nova figuração pautada na pop art, escreveu que Guernica era a “obra-chave em um mundo de guerras e massacres”, mas que sua doação “ao povo espanhol conclui
simbolicamente a guerra civil local”. A esperança era que agora Guernica nos ajudasse a concluir a ditadura militar e a retomar nossos sonhos de progresso e, para alguns, de revolução. Assim, no país em que o sonho do
Millôr, “Guernica um minuto antes. Guernica um minuto depois”, guache sobre papel, 1,00 x 0,70m
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desenvolvimentismo fracassou, que esteve sempre marcado pela fragilidade democrática, pela dependência econômica, mas ao mesmo tempo por uma efervescência cultural quase ininterrupta, Picasso e sua Guernica se tornaram símbolos fixados em uma espécie de estrutura de sentimento, no sentido de Raymond Williams. Em 1996 a
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XXIII Bienal encomendou uma pesquisa que revelou que Picasso era o preferido do público. E, em 2004, uma grande retrospectiva de sua obra levou mais de 900 mil pessoas, novamente, ao Parque do Ibirapuera. Através de Picasso o Brasil ainda sonha em entender e negar a sua Guernica particular.
DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO I, N. 2, P. 57-72, MAIO 2008
ARTE E CONCEITO EM MARCEL DUCHAMP: UMA REDEFINIÇÃO DO ESPAÇO, DO OBJETO E DO SUJEITO ARTÍSTICOS
Arte e conceito em Marcel Duchamp: uma redefinição do espaço, do objeto e do sujeito artísticos
José D’Assunção Barros Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor da Universidade Severino Sombra (USS) de Vassouras, nos Cursos de Mestrado e Graduação em História, e do Conservatório Brasileiro de Música nos cursos de graduação em Música. Autor de, entre outros livros, Cidade e História, Petrópolis: Vozes, 2007.
RESUMO: Este artigo busca esclarecer e discutir a obra de Marcel Duchamp na primeira metade do século XX, examinando uma questão mais específica: a relação entre Arte e Conceito nesta produção artística, atentando neste caso para os modos como a redefinição do espaço artístico e do objeto artístico terminam por propor uma nova noção de Arte e uma nova noção de Artista. PALAVRAS-CHAVE: arte moderna; Marcel Duchamp; arte e conceito.
ABSTRACT: This article attempts to clarify and discuss the works of Marcel Duchamp in the first half of twenty century, examining a specific question: the relation between Art and Concept in this artistic production, attempting in this case for the ways in which ones de redefinition of the artistic space and the artistic object conduces to propose a new notion of Art and a new notion of Artist. KEY WORDS: modern art; Marcel Duchamp; art and concept.
DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO I, N. 2, P. 73-88, MAIO 2008
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JOSÉ D’A SSUNÇÃO B ARROS
Arte e Conceito em Marcel Duchamp...
Muitos acontecimentos separam da Arte Moderna a Arte Renascentista, com seu padrão de representação naturalista e seu aprimoramento das possibilidades de criar efeitos para assegurar a ilusão de realidade. A Arte Moderna, conforme se sabe, veio no decurso do seu desenvolvimento a romper cada vez mais radicalmente com todo um padrão de representação que atribuía à Arte a função essencial de retratar uma realidade natural ou histórica, e que até meados do século XIX introduzia seus objetos artísticos em um curioso jogo de representação em que estes como que buscavam ocultar de seus fruidores as marcas da sua própria natureza enquanto objetos de Arte. Analistas diversos empenharam-se em mostrar que um dos traços mais proeminentes de diversas das correntes de Arte Moderna foi precisamente o de tornar cada vez mais explícita, nos vários objetos artísticos, a sua dimensão característica de obras de Arte2. Dito de outro modo, foi se produzindo de maneira cada vez afirmativa uma completa “autonomia do fenômeno artístico” 3. A pintura, por exemplo, libertava-se simultaneamente da obrigação de representar algo externo a ela mesma e da obrigação de esconder do observador da obra as marcas que denunciam a própria natureza
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do objeto contemplado como uma livre criação artística. Doravante, a única realidade física que existiria para o pintor seria o quadro, a realidade bidimensional sobre a qual ele deveria trabalhar com formas e cores que deveriam valer por elas mesmas, e não por uma realidade externa – paisagem ou fato histórico, por exemplo – a ser retratada. Essa leitura específica da natureza da obra de arte e da própria História da Arte constitui a chamada teoria modernista, que através de seu modo peculiar de compreender o fenômeno artístico consegue enquadrar diversas das correntes de arte moderna, embora não necessariamente todas. Ao lado da revolução na forma, também se abria com o século XX um grande interesse em refletir sobre não apenas o que era a Arte, mas sobre qual o seu papel na sociedade que a produzia, sobre qual o lugar do observador ou receptor no processo de produção da arte, ou sobre, enfim, o que deveria ser chamado de objeto de arte merecendo os conseqüentes privilégios decorrentes deste status. A Arte, enfim, tornava-se não apenas crítica, como também autocrítica, e punha em cheque os próprios lugares e instituições que nos séculos anteriores haviam contribuído para definir o objeto artístico e impor-lhe uma única direção. O Museu, a Academia, as Editoras,
Grande parte dos textos de Clement Greenberg, a partir do final da Segunda Guerra, constitui-se de uma demonstração deste processo, sendo que o estudioso americano de arte empenha-se em invocar esta tendência de diversas correntes modernistas para defender a idéia de que o destino da evolução da Arte Ocidental seria inexoravelmente a Arte Abstrata – uma arte que se concentrasse exclusivamente na elaboração de seus meios (cores, linhas e biplanaridade para o caso da pintura) em detrimento da tendência figurativa que caracterizara a História da Arte ocidental até fins do século XIX. PEDROSA, Mário. Panorama da Pintura Moderna in Arte, Forma e Personalidade, São Paulo: Kairos, 1979, p.130.
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o Mercado, a Crítica de Arte, a própria figura do Artista– tudo passava a ser interrogado ou mesmo contestado. Entre os vários artistas ou pensadores que se ocuparam de introduzir polêmicos questionamentos acerca do que vem a ser, afinal de contas, a obra de Arte – e do que deveria ser a Arte mais propriamente no mundo contemporâneo – foi seguramente Marcel Duchamp aquele que com mais intensidade lançou instigantes provocações com vistas à renovação conceitual do artístico4. Não é à toa que, talvez apenas rivalizado por Picasso, Duchamp é considerado um dos nomes de maior impacto na História da Arte Moderna 5. Mas, ao contrário de Picasso, a sua importância não se dá tanto pelas suas obras tomadas em si mesmas, mas sim pelo que elas vieram representar em termos de questionamento e redefinição do que vem a ser a própria Arte6. Pode-se dizer que as obras de Duchamp, entre outras coisas, apresentam-se como a própria negação da moderna noção de “obra”. Em vista dos profundos questionamentos que inspirou – e também devido a seus investimentos em um ‘campo expandido’ que passava a questionar tradicionais modalidades, gêneros e suportes artísticos como o ‘quadro’ de pintura ou o objeto tradicional de escultura – Marcel Duchamp produziu grande impacto em sua época, e posteriormente foi retomado por novas correntes da Arte Moderna, precisamente porque a sua contribuição conceitual para a Arte ainda não dá mostras de se ter esgotado.
Nos primeiros anos de sua produção, Marcel Duchamp havia se alinhado com o Cubismo – um movimento que, embora sem romper com a motivação figurativa, conseguira contribuir para a Arte Moderna com uma verdadeira revolução no âmbito das formas e meios de expressão. Até 1911, podemos examinar neste artista francês uma produção tipicamente cubista, com temas figurativos que vão sendo fragmentados, desconstruídos ou apresentados simultaneamente em perspectivas múltiplas. Mas a partir desta data ele começa a introduzir na sua pintura temas cada vez mais insólitos, ou tensões entre imagens difíceis de serem analisadas com relação a possíveis significados e os seus próprios títulos. Nu Descendo a Escada no 2, um óleo sobre tela de 1912, é um destes quadros intrigantes a partir dos quais Duchamp começou a exteriorizar um programa de profundo questionamento do que seria a própria Arte. Rejeitada para uma exposição cubista, e depois apresentada em uma exposição nos Estados Unidos, esta obra causou escândalo e impacto para um público que não conseguia enxergar o “Nu” neste quadro – que desta forma levava os espectadores a forjarem variados malabarismos mentais para tentarem conectar a obra com o seu título, para entenderem os propósitos do autor ou mesmo para aceitarem o quadro proposto como uma obra de arte. Esta obra começou a projetar a imagem de Duchamp como um artista extremamente polêmico e questionador.
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Para uma boa biografia sobre Marcel Duchamp, ver TOMKINS, Calvin. Duchamp: uma biografia. São Paulo: Cosac e Naify, 2004. Esta obra inicia-se com uma cuidadosa e profunda análise de O Grande Vidro, obra que discutiremos mais adiante. Para uma análise mais específica da inserção da obra de Duchamp no contexto histórico-social e artístico do início do século XX, ver AYALA, Walmir. Duchamp. Ventura, Rio de Janeiro, n. 2, p. 8-12, dez.fev 1987/1988. 5 Sobre uma análise que traz para o centro da revolução da Arte Moderna as figuras de Picasso e Duchamp, ver WEISS, Jeffrey. The Popular Culture of Modern Art: Picasso, Duchamp, and Avant-Gardism. New Haven: Yale University Press, 1994. 6 Esta comparação entre Picasso e Duchamp como os mais importantes artistas do século é encaminhada por Otávio Paz em Marcel Duchamp ou O Castela da Pureza. (São Paulo: Ed. Perspectiva, 1997).
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Marcel Duchamp Nu descendo a Escada no 2 (1912) Oil on canvas 147.5 x 89 cm. The Philadelphia Museum of Art, Philadelphia
Em depoimentos posteriores, Marcel Duchamp ressalta que teve grande importância na reformulação de seu caminho artístico uma insólita apresentação teatral baseada em um romance de Raymond Roussel intitulado Impressões da África (1911)7. Esta instigante obra literária, e sua contrapartida elaborada para o Teatro Moderno, impressionou Duchamp em diversos aspectos – entre os quais a quebra de convenções narrativas, o tratamento do tempo, a linguagem carregada de sofisticados jogos verbais, a temática insólita, e também a presença no enredo de umas estranhas 7
máquinas aparentemente absurdas que, além de estranhas, também questionavam os próprios meios de expressão artística. A “máquina de pintura”, por exemplo, era constituída de uma chapa fotossensível presa a uma roda com vários pincéis, e através de um curioso mecanismo seria capaz de captar imagens de paisagens e depois transmiti-las aos pincéis, para que estes registrassem a imagem em tinta sobre tela. A “máquina de música” era movida por um grande verme que, com as convulsões de seu corpo, deixava caírem gotas sobre as cordas de uma cítara, produzindo desta maneira sons musicais. Estas
ROUSSEL, Raymond. Novas Impressões da África. Lisboa: Fenda, 1988. Raymond Roussel pode ser considerado um dos precursores do surrealismo, e uma das características mais instigantes de sua obra literária é a fascinante combinação de elementos fantásticos e sobrenaturais com jogos lingüísticos de diversos tipos. Além de Impressões da África (1910), outra obra de destaque é Locus Solus (1914). Sobre Raymond Roussel, ver (1) FORD, Mark. Raymond Roussel and the Republic of Dreams. London: Faber, 2000; (2) FOUCAULT, Michel. Death and the Labyrinth: The World of Raymond Roussel. New York: Doubleday, 1966; (3) CARADEC, François. Raymond Roussel. London: Atlas Press, 1997; além do Dossier organizado sobre Roussel pelo Magazine littéraire (CARADEC, François et all. Magazine littéraire n° 410 - Juin 2002. Dossier Raymond Roussel et les excentriques).
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e outras máquinas questionavam a seu modo os processos de produção artística, e também este produto final que no fim de tudo recebia o status de obra de arte8. Tal como ressalta a crítica e historiadora de arte Rosalind Krauss, o espaço literário das Impressões sobre a África seria habitado por pessoas que mecanizaram a rotina de criação artística9. O ponto importante é que, ao fim de seu processo de criação de obras alicerçado nestas mecânicas insólitas, estas máquinas terminavam por produzir resultados ditos “artísticos” inteiramente desligados do indivíduo que dá origem à arte, isto é, aquele que põe a máquina em funcionamento. Com isto, questionava-se a existência necessária de um vínculo entre o indivíduo criador e sua produção. Questionava-se também a importância que, na civilização ocidental, parecia possuir a marca de um ser na obra por ele produzida para que esta tivesse reconhecida sua autenticidade. As inquietações provocadas em Duchamp por este espetáculo deram-lhe muitas idéias para
iniciar uma verdadeira revolução que iria abalar a tradicional conceituação do que seria uma obra de Arte. Talvez o primeiro trabalho que já revela o novo Duchamp a partir de sua leitura de Impressões da África seja a obra que mais tarde ficou conhecida como “O Grande Vidro” (1915-1923), mas que Duchamp havia denominado originalmente “A Noiva e seus celibatários”. A idéia matriz desta obra é um sistema imaginário de engrenagens que simboliza uma relação erótica entre uma noiva e um grupo de celibatários. A obra, no que se refere à sua estrutura mais ampla, tem a forma de uma grande janela de vidro, que convida o espectador a examinar as cenas que elas imobilizam. Trata-se de uma espécie de ambiente ecológico-mecânico-virtual carregado de sugestões eróticas que devem ser decifradas pelo espectador. Otávio Paz, que a analisou com grande argúcia, destaca que esta obra “é um enigma e, como todos os enigmas, não é algo que se contempla mas sim que se decifra” (PAZ, 1997, p.79).
Marcel Duchamp La mariée mise à nu par ses célibataires, même (Grande Vetro) (1915-23) Colore ad olio, fogli di piombo e d’argento tra pannelli di vetro, chiusi in telaio di legno e acciaio, 272,5x173,8 cm Philadelphia Museum of Art
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Sobre a interação da imaginação de Marcel Duchamp com máquinas insólitas, ver FONTANILLE, Jacques. Máquinas, próteses e impressões: o corpo pós-moderno (a propósito de Marcel Duchamp. Revista de Comunicação e Linguagens, Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, n° 29, p. 235-254, Maio 2001. Sobre um diálogo entre arte e ciência relativo à imaginação criadora, ver HOLTON, Gerald. Henri Poincaré, Marcel Duchamp and innovation in science and art. Leonardo, Cambridge: The MIT Press, v. 34, n. 2, p. 127-134, 2001. KRAUSS, Rosalind. “Formas de Ready-Made: Duchamp e Brancusi” in Caminhos da Escultura Moderna, São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.86.
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Na parte superior da janela que é este Grande Vidro está a Noiva, enquanto na parte inferior estão as Testemunhas e os Celibatários – estes últimos sugeridos a partir de roupas que pairam de pé, embora sem seres humanos por dentro. Os celibatários apresentam-se assim como moldes de uniformes profissionais, seres bidimensionais. Aparecem também estranhas e insólitas máquinas que trazem reminiscências da obra de Roussel que Duchamp assistira anos antes: um triturador de Café e um Moinho cuja função é “moer desejos”. Assim, a Máquina de Moer Café é representada moendo o desejo dos Celibatários, de modo que destes se projetam espumas de prazer em direção ao território onde habita a noiva que está nua (a parte de cima do Vidro). As três testemunhas situam-se no lado direito desta mesma parte inferior, e são representadas por três lentes circulares. Elas situam-se abaixo de um pequeno círculo que – conforme uma análise descritiva que Otávio Paz desenvolve sobre esta obra – seria uma espécie de buraco de fechadura através do qual se bisbilhotaria a privacidade da Noiva (na parte de cima da janela). Esta e outras interpretações, naturalmente, não tem senão o peso de uma interpretação das imagens apresentadas – que em alguns momentos mostram-se bastante enigmáticas e abertas ao ato criativo do espectador que busca darlhes sentido. Igualmente aberta à especulação de sentidos é a parte superior da Janela – o quarto da Noiva. Neste não há formas circulares – apenas três quadriláteros que representam espelhos onde a Noiva vê-se através de nossos olhos. Otávio Paz, com relação a estas
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imagens, assim as comenta: “Reversibilidade: nós nos olhamos olhando-a e ela se olha em nosso olhar que a olha nua” (PAZ, 1997, p.82). O Grande Vidro foi definitivamente “inacabado” em 1925, quando, em virtude de acidente, um pedaço do vidro fica rachado e Duchamp aceitou esta rachadura como parte da própria obra. Aliás, este acidente veio a calhar para iluminar ainda mais a obra, que viu ressaltada por um golpe de acaso a fragilidade e transparência do suporte. E introduz um novo questionamento, que é o papel do acaso na elaboração da obra de arte. Desta forma, muitas coisas interferiam na produção de uma obra de arte para além da mera vontade do artista – desde o acaso até a atuação criadora do espectador ou do fruidor de arte. Marcel Duchamp, que a partir de 1911 passou a produzir uma sistemática reflexão sobre a arte seja sob a forma de textos, de entrevistas ou de gestos polêmicos, registra bem esta questão: Resumindo, o ato criador não é executado pelo artista sozinho; o público estabelece o contato entre a obra de arte e o mundo exterior, decifrando e interpretando suas qualidades intrínsecas e, desta forma, acrescenta sua contribuição ao ato criador. Isto se torna ainda mais óbvio quando a posteridade dá o seu veredicto final e, às vezes, reabilita artistas esquecidos.10
O trecho acima destacado, entre as diversas declarações de Duchamp sobre o seu trabalho, chama atenção para certos aspectos revolucionários que estavam sendo propostos pelo artista francês em relação a uma redefinição do papel do artista e do público com relação à constituição da obra de arte. Em Duchamp, já não há mais como considerar o público ou o espectador de arte
DUCHAMP, Marcel. O Ato Criador. Apresentado à Federação Americana de Artes, em Houston, abril de 1957 (DUCHAMP, Marcel. “O Ato Criador”. In: BATTCOK, G. (org.). A nova arte. São Paulo: Perspectiva, 1975, p. 83).
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como um sujeito passivo, que apenas usufrui e algo criado, uma vez que este participa diretamente do Ato Criador completando o que foi proposto pelo artista. Para além disto, não apenas nas obras que clamam por uma participação mais direta do espectador como sujeito interativo que se torna parceiro do artista na criação e recriação da obra de arte, a própria recriação interpretativa movida por cada um dos usufruidores de uma obra seria um outro fator de máxima importância a se considerar. O público ou o espectador da obra de arte, em última instância, é aquele que atribui valor à obra, o que é perceptivelmente integrado por Marcel Duchamp em sua concepção da obra de arte. Duchamp exige na verdade um partilhar entre o público e o artista no que concerne à responsabilidade do fazer artístico. A recepção do trabalho produzido pelo artista (ou transformado por este em obra de arte) já modifica necessariamente a obra, acrescentando-lhe novas dimensões. Isto implica em uma redefinição da própria concepção do artista. A tradicional figura do artista como “médium” (expressão proposta pelo próprio Marcel Duchamp), deve ser substituída por uma nova modalidade de artista que se coloca como “propositor”. O artista médium, bem entendido, seria aquele que se imagina com a missão de estabelecer um canal que só pode se concretizar através dele. Nesta perspectiva, o artista estabelece uma ponte entre um mundo transcendental e o mundo material sensível (DUCHAMP, 1975, p.72). O artista propositor, ao contrário, faz do gesto de criação artista uma
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confluência de escolhas (e não um ato intuitivo gerado por uma atitude de se deixar levar), e, por fim, submete estas escolhas e responsabilidades das quais não pode abrir mão ao espectador, não mais um sujeito passivo que usufrui a obra de arte. O Grande Vidro, obra particularmente interativa e que incorpora simultaneamente os novos papéis propostos por Duchamp para o artista e seu público, abrange quase todos os elementos que caracterizariam a produção subseqüente de Marcel Duchamp: o rompimento com convenções, a proposta de inquietantes enigmas, a ruptura com os suportes e gêneros artísticos tradicionais, a conclamação da participação do espectador no processo que configura ou não um sentido para a obra de arte, e por fim os polêmicos questionamentos sobre o próprio conceito de Arte. Neste último particular, o principal desdobramento da reflexão de Marcel Duchamp sobre o processo criador da Arte conduziu-o a criar um gênero artístico novo, um gênero questionador por excelência – o ready-made. Marcel Duchamp, que começara a sua carreira artística como pintor, já vinha trabalhando desde 1911 no questionamento do suporte tradicional da pintura – o “quadro” – e contribuiria sistematicamente para recolocar a questão da “morte da pintura” em obras como O Grande Vidro (1915) ou Planador contendo um Moinho de Vento (1913-1915) 11 . Ao mesmo tempo, de diversos pontos do conjunto de tendências modernistas não deixavam de emergir tensões que pareciam colocar em cheque a
Esta última obra pode ser descrita como um objeto ilusionista preso entre duas peças de vidro em forma semicircular, estando todo o conjunto suspenso no espaço com o apoio de dobradiças onde o lado plano se prende à parede. Com isto, o objeto ilusionista (a representação de um moinho entre as duas placas de vidro) pode ser examinado de todos os ângulos pelo observador, ao mesmo tempo em que – ao ser examinado de um determinado ponto de vista – torna-se explícito o espaço delgado e plano que o objeto de arte ocupa. Por fim, sendo o fundo de vidro transparente, o observador pode enxergar para além do objeto uma continuação do seu próprio espaço, de modo que ocorre uma fusão ou confusão entre os contextos do objeto e do observador.
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tradicional forma de apresentação da pintura como um conjunto de imagens dispostas em uma tela emoldurada. Os cubistas, por exemplo, haviam introduzido uma nova técnica – a colagem – que já sugere um movimento para fora do quadro. Em algumas colagens cubistas, de Picasso e Braque principalmente, são colados ou adaptados pedaços de materiais diversos que passam a interagir com as imagens desenhadas na tela12. Situações semelhantes começavam a ocorrer também no âmbito da Escultura, que para além do Talhe e da Moldagem ia abrindo cada vez mais espaço para a Escultura Construída.13 O ready-made – gênero introduzido na História da Arte por Marcel Duchamp – mostra-se como um passo adiante tanto no sentido do abandono do quadro como na direção do abandono da peça de escultura tradicionalmente moldada, talhada ou mesmo construída pelo artista14. Duchamp propõe, com diversos de seus ready-mades, a substituição do trabalho tradicional de feitura da obra de arte pela apropriação de objetos industriais ou objetos prontos, já encontrados de antemão pelo artista em outros ambientes externos ao espaço de arte. Com isto, introduzse uma série de novos questionamentos no âmbito da conceituação de Arte. A arte não precisaria mais depender diretamente do trabalho artesanal do artista – não precisaria ser fruto deste trabalho prévio de concretização da obra através do pintor ou escultor – e neste sentido o artista poderia deixar de ser um artesão para se tornar um
artesão, um inventor – em uma palavra: um intelectual puro. Este último desdobramento anuncia uma discussão dos anos 1960 – época em que começam a surgir as Instalações, a Arte Conceitual, a arte participativa. Surgiria aí a indagação sobre os destinos da Arte, que alguns responderiam afirmando que a Arte estaria se transformando em alguma outra coisa bem distinta: em uma espécie de Filosofia, por exemplo. Não é à toa que Marcel Duchamp começa a ser retomado nesta época, e passa a ser apontado como o grande precursor de todas estas questões. E os ready-mades puderam, neste caso, ser apontados como objetos fundadores de um campo novo que rediscutia o próprio conceito de Arte. Os primeiros ready-mades de Marcel Duchamp surgem entre 1913 e 1914: uma Roda de Bicicleta presa em um banco de cozinha e uma Armação para secar Garrafas que na verdade havia sido produzida industrialmente. Neste último caso, o objeto sequer precisou ser montado por Duchamp, ele simplesmente apôs-lhe uma assinatura e propôs o seu deslocamento para um espaço de arte. Este, aliás, é o autêntico ready-made – algo que já se encontra pronto, e que originalmente fazia parte do mundo dos objetos comuns. Mas Duchamp também elabora outros ready-mades que são reelaborados pelo artista, tal como ocorre com a junção da Roda de Bicicleta a um banco de cozinha de modo a constituírem um novo e insólito objeto.
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Sobre a colagem dentro do contexto inaugurado pelo cubismo, ver POGGI, Christine, In Defiance of Painting: Cubism, Futurism, and the Invention of Collage. New Haven and London: Yale University Press, 1992. Ver ainda KRAUSS, Rosalind. The Picasso Papers. New York: Farrar, Straus and Giroux, 1998. 13 Ver ARCHER, Michael. “O Campo Expandido” in Arte Contemporânea: uma história concisa. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2001, p. 61-116. Para entrar em contato com uma artista brasileira que explora a expansão do campo escultural, ver FABRINI, Ricardo Nascimento. O Espaço de Lygia Clark. São Paulo: Atlas, 1994. 14 Sobre isto, ver Ferreira GULLAR, “O quadro e o objeto” in Argumentação contra a Morte da Arte, São Paulo: Revan, 1977, p.24. Para uma abordagem dos ready mades, ver KRAUSS, Rosalind. “Formas de ready-made” in Caminhos da Escultura Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p.61-116.
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Bicycle Wheel (1913)
Bottle Rack/Egouttoir (or Porte-bouteilles) (1914)
Assemblage: metal wheel mounted on painted wood stool 128.3 x 63.8 x 42 cm The Sidney and Harriet Janis Collection.
Bottle rack made of galvanized iron. 59 x 37 cm. Original lost.
Após a Armação de secar Garrafas, Duchamp dá existência artística a outros ready-mades – como uma pá de neve que recebeu o título de Antes de um Braço Quebrado (1915), e como aquele que se tornou seu mais polêmico ready-made: um mictório arrancado ao tradicional espaço dos banheiros públicos para ser transferido para o espaço de arte sob o nome de Fonte (1917).
O que estes objetos industrializados subitamente transformados em obras de arte trazem para a discussão sobre o próprio conceito de Arte? Antes de mais nada, eles são objetos sobre cuja produção o artista não havia exercido qualquer controle – uma vez que antes de serem escolhidos para se tornarem obras de arte eles habitavam não mais que passivamente o espaço da vida cotidiana. Como poderiam – dentro dos tradicionais conceitos do mundo da arte – serem declarados repentinamente como portadores da marca de um ato criador se eles não haviam surgido das emoções pessoais de um artista? Pela primeira vez alguém propunha como obra de arte algo que não era senão produto de um gesto de seleção. O artista assumia aqui o papel de mero mediador de um processo impessoal que gerara a obra de arte, e neste sentido via-se também comprometido o próprio conceito de “autoria”. Adicionalmente, era sugerido que o que deveria
Fountain (1917) glazed ceramic with black paint. 14 x 19 5/16 x 24 5/8 in. 1/8 Collection SFMOMA
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ser considerado como a obra de arte neste caso não se reduzia ao objeto físico em si mesmo, e que a obra de arte poderia ser simplesmente uma idéia, uma questão, ou o próprio gesto de seleção que empreendera o deslocamento do objeto cotidiano para o espaço de arte. No futuro, a chamada “arte conceitual” iria brotar precisamente desta redefinição da natureza de um ‘trabalho de Arte’ como algo ligado ao mundo das idéias – independente de o objeto de arte ter sido criado pelo artista, ter sido selecionado entre objetos já existentes, ou mesmo não ter nunca existido. O ready-made Fontaine (“fonte”), já mencionado, foi de todos o que produziu maior escândalo.Tratava-se de um mictório girado em ângulo de 90 graus de modo que a parte que habitualmente estaria presa à parede passasse a ser agora a base do objeto. Não apenas o deslocamento deste objeto para o espaço de arte, como também o seu reposicionamento, obrigavam a que o observador percebesse duplamente que um ato de transferência havia subitamente transformado o objeto comum em objeto de arte. Dito de outra forma, o observador era obrigado diante desta visão insólita a indagar sobre a própria natureza da Arte, ou talvez a rever os seus próprios conceitos sobre a Arte. Alguns estudiosos observam que, nesta situação, o objeto torna-se transparente a seu significado – que não é nada mais do que a própria curiosidade de sua produção (KRAUSS, 2001, p.95). E conforme outra leitura possível, não necessariamente excludente a esta, um ready-made como este é proposto essencialmente como um enigma – como uma indagação acerca do que aquele objeto está fazendo ali, ou sobre quais os seus possíveis significados, mesmo que ele não tenha significado algum. Para La Fontaine, alguém poderia propor a leitura de que o mictório invertido acabava 82
adquirindo a aparência de um torso feminino com um útero aberto para o exterior. Assumir o mictório invertido como uma metáfora visual do nu feminino é buscar significados numa tentativa de saltar para fora da perplexidade que o objeto instaura; mas sempre um outro espectador poderia contrapor a opinião de que o objeto é meramente um mictório invertido que fora transferido para o museu, e nada mais. O ready-made, conforme se vê, apresenta esta capacidade de mobilizar questionamentos e polêmicas em torno de si, e talvez tenha sido este o principal objetivo de Marcel Duchamp ao introduzi-los no mundo da Arte. A última posição mencionada – a de que o ready-made não significa nada mais que não ele mesmo – implica em novos questionamentos sobre o âmbito conceitual da Arte, pois ela obriga o observador a indagar se a obra de arte, afinal de contas, precisa transmitir necessariamente algum conteúdo. Essa questão, aliás, não era propriamente nova: ela vinha sendo colocada por diversos movimentos modernistas à medida que eles rejeitavam o uso da arte como representação de algo, ou em que renegavam o figurativismo ou qualquer transferência de significados em favor de uma arte que se concentrava exclusivamente nos seus próprios meios: para o caso da pintura, esses meios corresponderiam a cores e linhas que não remeteriam a nenhuma imagem que pudesse ser associada a um conteúdo que não as próprias cores e linhas; para a escultura, os meios corresponderiam à mera organização de massa, forma e espaço. Diante destas abordagens da arte como pura forma e materiais auto-referentes, torna-se possível assimilar para as fileiras da ‘linha formalista’ da Arte Moderna o ready-made duchampiano, embora este de algum modo também comporte a possibilidade de se
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apresentar como uma crítica vigorosa ao formalismo da arte moderna. A contribuição de Marcel Duchamp para a história da Arte Moderna, conforme continuaremos a verificar, abre-se a diversas leituras possíveis. De qualquer modo, a contribuição dos ready-mades para uma redefinição da arte moderna é inquestionável. A presença no espaço de arte de um objeto que fora dali possui um outro significado ou função, mas que com o seu deslocamento passa a ter este significado original literalmente destruído, trazia novas nuances a esta intrigante questão acerca da necessidade ou não de haver um significado a ser decifrado nas obras de arte. Indagar sobre os significados possíveis de uma obra de arte leva, finalmente, a interrogar acerca do lugar onde este significado pode ser gerado. Nos projetos iniciais do artista criador? No observador que sobre o objeto de arte dará a sua palavra final? No lugar institucionalizado que o legitima – o espaço de arte, a Exposição, o Museu, ou mesmo o texto de crítica? Leva-se a indagar se, apesar de o artista criador ter imaginado um determinado sentido para a sua obra – ou tê-la concebido para não ter sentido nenhum – esta obra finalmente concretizada não irá se oferecer generosamente a uma infinidade de sentidos gerados pelo próprio processo de recepção. De qualquer modo, a rede de sentidos produzida pelos ready-mades será sempre plena de tensões, uma vez que cada um destes objetos parece ter sido convocado para o espaço de arte precisamente para resistir a qualquer tipo de análise redutora. O objeto que se propõe originalmente como trabalho que estaria literalmente desvinculado dos sentimentos pessoais do artista – porque encontrado pronto – presta-se naturalmente a isto, e a entender por algumas entrevistas e textos de Marcel Duchamp esta teria sido a
sua motivação. Em todo o caso, uma vez instalado no espaço de arte, o ready-made abria-se a apreensões estéticas que não necessariamente teriam de ser as inicialmente previstas pelo seu autor. Mas o importante é que a inquietante polêmica estava lançada. Os ready-mades de Duchamp obrigaram artistas e consumidores de arte a repensarem o que seria ou deveria ser a própria Arte. As experiências de Duchamp continuaram dilacerando o habitual quadro conceitual que antes definia a Arte, ou pelo menos o que não era a Arte, quase consensualmente. Foi também Duchamp um dos primeiros a se mover em direção a um “campo expandido” – entendendo-se por esta expressão a superação dos compartimentos tradicionais da Arte que até então se acomodavam dentro das designações de Pintura, Escultura, Arquitetura, Literatura. Ele contribui para a experimentação contemporânea do campo expandido tanto “por dentro” como “por fora” da Arte – ou seja, favorece-se aqui uma expansão simultaneamente interna e externa do campo artístico. Por dentro do habitual campo artístico, ele quebra as tradicionais fronteiras entre os subcampos de expressão artística: sua pintura transforma-se em objeto que invade o espaço tridimensional (um tradicional critério de definição do âmbito escultórico). Seu Planador contendo um Moinho de Vento (1913-15) é um objeto suspenso e preso na parede através de uma dobradiça, e cria ambíguas tensões entre a planaridade e a tridimensionalidade, inclusive lançando mão de um envolvimento transparente que observador enxerga como um fundo que deixa entrever atrás de si a continuidade do seu próprio espaço real (isto, é do espaço real do observador). Portanto mostram-se aqui mútuas invasões entre o que antes seria do
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âmbito da pintura e o que seria do âmbito escultórico. Estas interpenetrações, Marcel Duchamp as produz precisamente para obrigar a usufruidor de arte a problematizar o conceito de arte.
Glider Containing a Water Mill in Neighboring Metals. /Glissière contenant un moulin à eau (en métaux voisins) (1913-1915) Oil and semicircular glass, lead, lead wire. 147 x 79 cm. The Philadelphia Museum of Art, Philadelphia
Ao experimentar a expansão da arte por dentro de si mesma, rompendo as suas fronteiras internas, Duchamp acompanha de certo modo o movimento de uma arte moderna que – com Picasso e os construtivistas russos, para apenas citar dois exemplos – começa a impor à escultura novos materiais como vidros, ferros, materiais plásticos. Mas a revolução conceitual de Duchamp no bojo destas transformações é ainda mais sutil. Do “objeto na arte”, que os cubistas haviam introduzido com a prática das colagens – estas que recolhem materiais diversos para serem misturados às camadas de tinta sobre as telas – Duchamp passa à “arte como objeto”. Os já discutidos readymades constituem o exemplo mais concreto desta transfiguração, e eles também nos levam a ver como Duchamp ajudou a expandir o campo da Arte, como um todo, 84
para fora dos seus limites. Os mesmos readymades conduzem a Arte a se expandir para um mundo que até então lhe era exterior: ele a posiciona em posição de trabalhar com o campo dos objetos industriais, e com esta operação a força a uma nova redefinição. Mas há mais. Como tinha contribuído para fazer com que o conceito de Arte passasse a se referir mais ao âmbito das idéias do que dos tradicionais objetos ditos “artísticos”, Duchamp logo também começou a enveredar pelo campo de imbricamento das Artes Visuais com a Literatura e a Poesia. Ao aproximar-se da década de 1920, ele começou a produzir “Discos Giratórios” ou “Máquinas Ópticas” que registravam visualmente puros jogos verbais – frases construídas com trocadilhos, homofonias, ou jogos de inversão verbal onde uma frase girava sobre ela mesma multiplicando sentidos. Para além disto, era proposto um tipo inédito de imbricamento entre o visual e o verbal. Estas experiências não estavam muito distantes de algo que não existia ainda – o âmbito da chamada “poesia concreta”, tal como seria denominado no futuro um gênero de poesia que se organiza a partir de uma certa visualidade.
Marcel Duchamp, “Anaemic-Cinéma” (1926)
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Marcel Duchamp costumava assinar os seus discos giratórios com seu pseudônimo Rose Sélavy, que já era em si mesmo mais um jogo verbal (“Eros c’est la vie”). O interessante de alguns destes trabalhos é que mais uma vez eles deslocam a ênfase da obra de arte para a curiosidade de sua produção (o jogo verbal, as emendas fonéticas, os deslocamentos) e não necessariamente para o campo dos significados objetivamente enunciados e percebidos em relação linear (embora a experiência também se abra para o âmbito dos significados múltiplos). Por outro lado, estes trabalhos introduzem questões que virão novamente à tona em décadas posteriores, como a da interpenetração entre Arte e Linguagem. Nesta mesma direção, uma das tendências que mais contribuiria para a discussão das interpenetrações entre Arte e Linguagem foi a da chamada “Arte Conceitual”, que teve em Joseph Kosuth um nome bastante representativo15. É sintomático o fato de que o próprio Joseph Kosuth rende a Marcel Duchamp devidas homenagens por este ter, na sua época, introduzido a dimensão do “conceitual” na obra de arte. Sua releitura de Duchamp, já em fins da década de 1960, acentua não mais o que poderia haver de “non-sense” nas obras e atitudes do artista francês. Ao contrário, ele atribui a Duchamp o mérito de ter dotado a Arte de novos sentidos. Em um texto escrito em 1969, Kosuth indica a apresentação do primeiro “ready-made não modificado” de Duchamp como o evento inaugural de uma nova postura diante da Arte. Ele ressalta que, a partir destes ready-mades e da revolução conceitual que eles introduziam, a arte podia deixar de focar necessariamente a “forma da linguagem”
para passar a preocupar-se também com “o que estava sendo dito” (mas não mais no sentido antigo, de uma obra que transmite linearmente a sua mensagem através da mera representação visual de um tema, à maneira clássica ou romântica). Para registro desta posição, podemos retomar literalmente as palavras do próprio Joseph Kosuth: A partir desse trabalho, a arte deixou de enfocar a forma da linguagem para preocupar-se com que estava sendo dito, o que em outras palavras, significa a mudança da natureza da arte de uma questão de morfologia para uma questão de função. Esta mudança – de “aparência para “concepção” – foi o início da arte moderna e o início da arte conceitual. Toda arte (depois de Duchamp) é conceitual (em sua natureza) porque arte existe apenas conceitualmente. [...]16
A revolução duchampiana, conforme se vê, pode ser lida nas duas direções. De um lado ela permite que a obra de arte passe a atrair os olhares para os aspectos e fatores relacionados a uma consciência referente à suas condições de produção. De outro lado, ela intensifica as indagações dirigidas para aquilo que existe para além da mera feitura do objeto artístico, para muito além da sua presentificação. As proposições impactantes de Marcel Duchamp remetem, por assim dizer, para o verdadeiro reduto da Arte – que não é tanto o mundo dos objetos artísticos, mas o universo mental dos próprios seres humanos. Para sintetizar o resultado final da passagem de Marcel Duchamp pela história da Arte Moderna, podemos indicar alguns pontos centrais dos quais seriam devedores algumas correntes posteriores da Arte Moderna. Em primeiro lugar, o deslocamento do interesse principal da arte: não mais o produto final em si, mas o mundo das idéias –
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Para um conjunto de fontes relativo à arte conceitual de Kosuth, ver KOSUTH, Joseph. Joseph Kosuth: The Making of Meaning. Selected Writings and Documentation of Investigations on Art since 1965. Stuttgart: Staatsgalerie, 1981. 16 KOSUTH, Joseph. “Arte depois da filosofia”. In: Malasartes, Rio de Janeiro, n.1, set-nov, 1975.
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aqui tomado como o ponto de partida de tudo – ou pelo menos o processo da criação artística ao invés do objeto de arte dele resultante. Em segundo lugar, sob o signo fundador dos ready-mades, aquilo que já foi descrito como “a convicção infinitamente estimulante de que a arte pode ser feita de qualquer coisa”17. Esta idéia de que a Arte podia existir para além dos campos convencionais da pintura e da escultura – portanto uma abertura para o campo expandido – retornará outras vezes, conforme veremos a seguir. E também a idéia de que a arte relacionase muito mais com as intenções do artista do que com qualquer produto que ele tivesse de fazer com as suas próprias mãos. A arte retorna mais uma vez como “coisa mental”, para lembrar uma antiga formulação de Leonardo da Vinci em seu Tratado sobre a Pintura, mas agora se abrindo a novas possibilidades. Referências bibliográficas Fontes CABANNE, Pierre. Entretiens avec Marcel Duchamp. Paris: Belfond, 1967 [traduzido como Marcel Duchamp: Engenheiro do Tempo Perdido. São Paulo: Perspectiva, 2002.
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Os Signa Loquendi do Mosteiro de Alcobaça*
José Rivair Macedo Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-doutorado na Universidade Nova de Lisboa. Professor Associado no Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Coordenador do Programa de Pós-Graduação em História entre os anos de 2007 e 2009. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Autor de, entre outros livros, Riso, cultura e sociedade na Idade Média, Porto Alegre/São Paulo : EDUFRGS/UNESP, 2000.
RESUMO Alguns manuscritos do Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça preservados na Biblioteca Nacional de Lisboa, em Portugal, reproduzem listas de sinais utilizados nos séculos XIV-XVI na comunicação entre os monges durante os períodos de silêncio impostos pela regra beneditina. Os signa loquendi eram movimentos feitos com as mãos ou com os dedos das mãos para designar sujeitos/objetos concretos e/ou abstratos, vindo a constituir uma modalidade da comunicação gestual. Neste artigo serão apresentadas sua gênese, evolução, composição e significado nos sistemas simbólicos de inspiração monástica. PALAVRAS-CHAVE: cultura monástica medieval; regra beneditina; comunicação gestual.
ABSTRACT Some of the manuscripts of Saint Mary´s monastery maintained by the Nacional Library of Lisbon, Portugal, reproduce lists of signals used during the XIV – XVI centuries by the monks for their own communication during the period of silence imposed by the benedictine rule. The signa loquendi were moviments made with the hands or with the fingers of the hand to designate subjetcs/objects concretes and/or absracts, constituting a modality of gestual communication. This article will discuss the genesis, evoluiton, composition and meaning of this gestual communication in the simbolic systems of monkish inspiration. KEY WORDS: medieval monkish culture; benedictine rule; gestual communication.
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Versão ampliada deste trabalho encontra-se publicada em SIGNUM: Revista da ABREM, vol. 5, 2003, pp. 88-107, com o título “Disciplina do silêncio e comunicação gestual: os signa loquendi de alcobaça”.
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Os Signa Loquendi do Mosteiro de Alcobaça
Alguns fólios dos códices alcobacenses da Biblioteca Nacional de Lisboa reproduzem aquilo que os copistas denominaram “signaes que p(er)teecem aa Egreja”, “methodo de explicar por sinaes” ou “signa loquendi”. Em todos os casos trata-se de uma lista de tamanho variável contendo indicações escritas com sinais a serem efetuados em certos momentos e lugares na comunicação entre os monges. Os signa loquendi consistiam numa série de movimentos feitos com a(s) mão(s) ou com o(s) dedo(s) da(s) mão(s) para designar determinados sujeitos/objetos concretos e/ou abstratos, vindo a constituir uma forma de comunicação gestual1.
As listas de sinais entre os beneditinos Nos códices alcobacenses, há quatro listas de sinais, três das quais foram redigidas em vernáculo e uma em latim. A mais antiga pertence ao códice nº 218, cujo volume está escrito em duas colunas, em letra gótica de duas mãos – possivelmente as dos monges copistas Frei Nicolau Vieira e Frei Bernardo , composto em torno de 1440. Esta versão serviu de base para uma cópia da primeira
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metade do século XVI, inscrita no códice nº 223. A terceira lista pertence ao códice latino nº 76, mandado copiar pelo cardeal Afonso, um dos filhos de D. Manuel I, entre 1519 e 1540. A quarta e última encontra-se no códice nº 91, escrito em português arcaico por copista não identificado e datado de 15472. O conteúdo dos signa loquendi encontrados em Alcobaça não difere muito daquele conhecido noutras congregações monásticas do Ocidente. Pelo que nos foi possível perceber, as primeiras listas de sinais apareceram no século X, no bojo da reforma beneditina. De acordo com João de Salerno, biógrafo de Odo (o grande reformador de Cluny entre 927-944), a linguagem por sinais já era empregada no mosteiro de La Baume quando este iniciou sua vida religiosa. Contudo, o texto cluniacense preservado mais antigo data da segunda metade do século XI, tendo sido redigido pelos monges Bernardo e Uldarico por volta dos anos 1075 e 10833. Entrementes, outra lista era incluída nas Constitutiones atribuídas a Guilherme – Abade reformador do mosteiro de Hirsau, no sudeste da Germânia, que governou aquele estabelecimento entre 1071-10914.
Numa das acepções do verbete “signum”, DU CANGE, Glossarium ad scriptores mediæ et infimæ latinitatis, Paris, Firmin Didot, 1846, t. 7, col. 252, propõe a seguinte definição: “apud monachus, dicebatur forma quædam manu aut digitis res quaslibet, et quæ haberent in mente, vel petere deberent, designandi”. BNL, Alc. 76, fls 1-15; BNL, Alc. 91, fl. 1-21; BNL, Alc. 218, fls. 163-168; BNL, Alc. 223, fls. 291-298. Nas citações, valemo-nos também da transcrição dos códices 218 e 91 que acompanha o estudo de M. MARTINS, “Livros de sinais dos cistercienses portugueses”, Boletim de Filologia (Lisboa), t. 17, n. ¾, 1958, pp. 293-357. Antiquiores consuetudines Cluniacensis monasterit, PL 149, cols. 635-778. Constitutiones Hirsaugiensis seu Gengenbaceses, PL 150, cols. 923-1146.
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Na Inglaterra, tudo leva a crer que a mais antiga linguagem por sinais, escrita em anglosaxão, tenha datado do reinado de Edgar (959-975). O manuscrito preservado foi copiado em meados do século XI, provém da Catedral de Cantuária e denomina-se Tiberius III. É um códice compósito que contém 173 fólios onde se pode encontrar, antes da lista, a Regularis concordia, uma versão em old english da Regra de São Bento e alguns escritos menores5. Os sinais coletados por Bernardo e Uldarico compõem o quarto capítulo do segundo livro do costumeiro de Cluny, sendo constituídos por apenas 38 indicativos de alimentos, objetos litúrgicos e vestimentas sacerdotais, enfim, de elementos presentes em geral na vida cotidiana dos membros da congregação. Com as Constitutiones de Guilherme de Hirsau, ocorre alteração significativa na difusão da linguagem gestual. Neste documento, os sinais são distribuídos em 18 capítulos, tendo o número ampliado (359) e tendo sido organizados por temas. Parece que a lista de Hirsau é que veio a exercer influência sobre as posteriores. Doravante, elas passaram a ser inseridas em costumeiros de outros estabelecimentos cluniacenses, e mesmo de outras ordens, como a Cartuxa, a dos cônegos vitorinos e a de Cister. Aqui compreendemos sua existência junto aos textos normativos de Alcobaça – a mais importante comunidade cisterciense fundada em Portugal em meados do século XII. Um breve cotejo das listas de sinais produzidas nestes diferentes séculos, e nestes diferentes ambientes monásticos, será
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suficiente para que se possa perceber a profundidade dos vínculos observados na prática conventual dos beneditinos e dos vitorinos – que tomavam por base a Regra de Santo Agostinho. Com efeito, numa lista do século XII inserida no costumeiro da Ordem de São Vitor, os 112 sinais que a compõe indicam os mesmos temas e assuntos encontrados nas listas cluniacenses anteriores, e nas cistercienses de Alcobaça, posteriores. Em todas elas, os sinais gestuais referem-se a objetos, animais, alimentos, as repartições do mosteiro, as pessoas e os ofícios existentes, a hierarquia monástica, enfim, à organização e hierarquia dos estabelecimentos e à aspectos da liturgia e do cerimonial ali desenvolvidos6. A respeito desta recorrência temática e da tradição associada à linguagem gestual, enfim, a respeito dos vínculos observados nos signa loquendi, vejamos um caso específico. Nas listas alcobacenses não existia um sinal exclusivo para designar as mulheres. Nada a estranhar, considerando tratar-se de um ambiente integrado por homens celibatários. Nas biografias, textos hagiográficos e tratados morais produzidos em ambiente monástico, as mulheres, com exceção das monjas, aparecem mencionadas ou como mães amorosas e caridosas dos santos, ou como seres pérfidos e cruéis destinados a corromper os homens 7 . Contudo, era impossível deixar de indicar o gênero feminino. De outro modo, como denominar a Virgem Maria? Neste caso, a solução era juntar dois sinais complementares: o de santo, que consistia em colocar os cinco dedos da mão direita sobre o ombro direito, e o de mulher,
Monasteriales Indicia: the anglo-saxon monastic sign language, ed. D. BANHAM, Wiltshire, Anglo-Saxon Books, 1993. Agradecemos ao Prof. Dr. Ivo Castro, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, pela indicação e disponibilização deste documento. Liber Ordinis S. Victoris Parisiensis, cap. 22, em DU CANGE, Glossarium, op. cit., t. 7, col. 253-254. G. MICCOLI, “Os monges”, em J. LE GOFF (dir.), O homem medieval, trad., Lisboa, Ed. Estampa, 1989 p. 43.
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isto é, mover o dedo indicador pela testa, de uma sobrancelha à outra8. Quanto ao sinal de truta - peixe com denominação feminina -, também se recorria a duas imagens: a de peixe, que consistia no movimento da mão simulando as ondulações provocadas pelo rabo de um peixe, associada com a de mulher, ou seja, o referido movimento com o dedo indicador da mão direita, de uma sobrancelha até a outra9. Como se vê, nas duas situações o sinal a ser utilizado para designar o feminino apenas complementa um referente principal – a Virgem Maria ou a truta. Entretanto, ao contrário de muitos outros sujeitos e/ou objetos, cujo gesto mimetiza algo de sua natureza original, nada neste caso contribui para esclarecer porque o movimento do dedo indicador de uma sobrancelha à outra simbolizaria o feminino. Mas o mencionado sinal era conhecido na comunicação gestual dos monges há muito tempo. Na lista da Ordem de São Vitor, do século XII, está a mesma definição dos códices alcobacenses para truta10. A elucidação do significado do gesto está nas listas do final do século XI. Nas Constitutiones de Guilherme de Hirsau consta que passar o dedo de sobrancelha à sobrancelha designaria as mulheres por causa das fitas que traziam amarradas na cabeça (propter ligaturas quæ in tali loco habentur a feminis)11. Algo parecido pode-se ler na lista em anglo-saxão da Catedral de Cantuária,
onde também se menciona explicitamente as fitas utilizadas pelas mulheres para prender o cabelo na altura da testa12.
Monasteriales indicia, ed. D. BANHAM, Wiltshire, Anglo-Saxon Books, 1993, p. 49.
Portanto, a razão de ser do sinal estava na simulação de um adereço que as mulheres utilizavam para arranjar e prender os cabelos: as fitas (ligaturas). Trata-se, contudo, de um referencial sujeito a alterações, uma vez que os códigos de embelezamento corporal
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BNL, Alc. 218, fls. 164: “Por signal de uirgem, fecto o signal do sancto, faze signal de femea, que he trazer o dedo demostrador pella testa, de sobrancelha a sobrãcelha”; Alc. 91, fl. 7: “Por sinal de uirge, faze sinal de sancto e de molher, que he trazer o segido dedo da mão dereyta polla testa atraues contra a parte dereyta”. 9 BNL, Alc. 218, fl. 166: “Por signal de truta, fecto o signal do pexe traze o dedo demostrador de sobrãcelha a sobrãcelha, que he signal de femea”; BNL, Alc. 91, fl. 9: “Por sinal de truyta, feyto o sinal de pescado faze o sinal de molher, que he ter o dedo segido da mão dereyta de hua sobrãcelha a outra” 10 Liber Ordinis S. Victoris Parisiensis, cap. 22, em DU CANGE, Glossarium, op. cit., t. 7, col. 253: “Pro signo tructæ, hoc adde, ut de supercilio ad supercilium trahas, quia est signum feminæ, quia et tructa femineo genere pronuntiatur”. 11 Constitutiones Hirsaugiensis seu Gengenbaceses, PL 150, col. 942. 12 Monasteriales indicia, op.cit., p. 48-49: “Gewylces ungehadodes wifes tacen is pæt pu mid fore weardum fingrum pin fore wearde heafod fram pam anum earan to pon oprum on bindam tacne (O sinal para qualquer mulher que não pertence à ordem é: passe a ponta do dedo pela testa, de uma orelha a outra, fazendo o sinal de uma faixa na cabeça)”.
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evoluem com certa rapidez. Isto levou a que, nas primeiras listas, houvesse conexão imediata entre o referente (as mulheres) com certo traço que o distinguia (o arranjo da cabeleira): o movimento do dedo pela testa, de uma sobrancelha à outra, desenhava o formato de uma fita - utilizada por pessoas do sexo feminino13. Mas a passagem do tempo, com a mudança das formas de arranjos e de penteados, acarretou a perda da conexão inicial. O gesto manteve-se conhecido devido sua forma convencional, embora por si mesmo tivesse se tornado incompreensível. Isto prova que as antigas listas cluniacenses vieram ao longo dos séculos a representar modelos na comunicação gestual monástica, fossilizando-se. Por isto, a linguagem visual mantinha sempre algo de comum, válido para diversos tempos e espaços, podendo ser compreendida por membros de distintas congregações. As adições e alterações de conteúdo deviam-se às adaptações necessárias na comunicação em diferentes realidades, pois as linguagens devem ser vivas para ter eficácia. Tais informações nos permitem perceber com mais clareza os limites e possibilidades de interpretação do conteúdo expresso nas listas de sinais alcobacenses. Embora copiadas ou em parte redigidas por cistercienses portugueses, sua cotidianidade não diz respeito necessariamente ao ambiente geográfico ou cultural em que foram produzidas, isto é, a uma cultura
monástica “portuguesa”, mas, isto sim, a uma cotidianidade monástica cujos vínculos extrapolavam os limites do reino, persistindo ao longo dos séculos.
Os gestos nos Signa Loquendi Desde o princípio do século V, ao apresentar os ensinamentos fundamentais para a formação do bom cristão, Santo Agostinho percebeu a eficácia da linguagem e dos signos não verbais no processo de transmissão da mensagem cristã. Em seu tratado De doctrina christiana ele formulou as noções preliminares a respeito do símbolo e da interpretação simbólica que viriam a ser aceitas no medievo. Estabeleceu a distinção fundamental entre os signos (signa) e as coisas (res), os primeiros vindo a ser a referenciação da “coisa”, mas, conferindo a esta “coisa” um certo sentido. Na grande variedade de signos, estes podiam ser “naturais” (a fumaça indicando a existência de fogo, por exemplo) ou “convencionais”, os quais são capazes de constituir uma linguagem. Todos os seres vivos empregam tais signos para comunicar, tanto quanto possam, os movimentos de sua alma, quer dizer, tudo o que sentem e o que pensam14. Encontra-se aqui esboçada a problemática da semiótica e, em particular, da kinésica moderna*. Considerada canal de expressão e fonte de criação de sentidos, a comunicação gestual transforma signos
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Parece que o uso das fitas para arranjar os cabelos das mulheres era mais freqüente na Antigüidade. Salvo engano, uma das últimas imagens evocativas deste costume está no mosaico feito no século VI na abside da igreja de São Vital, em Ravena, no retrato da imperatriz Teodora. A melhor descrição das formas vestimentárias e dos adornos corporais femininos dos tempos iniciais do cristianismo, inclusive laços e penteados, encontra-se em TERTULIANO, De cultu feminarum (La toilette des femmes), ed. e trad. M. TURCAN (Sources Chrétiennes, 173), Paris, Du Cerf, 1971, esp. pp. 122-124. Para a evolução dos adornos da cabeleira feminina, cf. Y. DESLANDRES e M. de FONTANÈS, “História das modas do toucado”, em J. POIRIER (dir.), História dos costumes, trad., Lisboa, Estampa, 1998, v. 2 , esp. p. 225-226, 233. 14 SANTO AGOSTINHO. De doctrina christiana, ed. G. COMBES e FARGES (Œuvres de Saint Augustin, 11), Paris, Desclee de Brower, 1949, p. 239-242. * Adaptamos livremente o termo francês “kinésique”, empregado para designar a parte da teoria da comunicação aplicada ao estudo dos aspectos comunicativos do comportamento a partir da observação dos movimentos corporais. Cf. J. KRISTEVA, “Le geste, pratique ou communication”, Langages (Paris), v. 10, 1968, p. 55.
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naturais em signos culturais. A motricidade humana é um atributo natural, mas a gesticulação, resultante da observação, repetição e transmissão de sinais, torna-se elemento constitutivo de significação quando oferece um sentido às coisas, transformandose em fenômeno sócio-cultural 15 . Considerando a classificação dos usos corporais proposta por Koechlin, a linguagem gestual dos signa loquendi não se enquadra na função das posições e movimentos do corpo humano dita “pragmática” (empregada na vida corrente), nem na função “estética” ou “decorativa” (como a dança, por exemplo), mas sim na função “simbólica”, por dar origem a uma forma de comunicação específica, constituída por sinais artificiais16. Entretanto, para melhor esclarecer a referida função simbólica convém destacar algumas particularidades da comunicação não verbal. Os princípios metodológicos aplicados por François Garnier ao estudo das imagens medievais revestem-se de particular importância para o que pretendemos, uma vez que aquelas representações também diziam respeito a gestos17. Porém, cumpre lembrar que, em nosso caso, não nos deparamos nem com uma representação iconográfica do gesto, nem com o gesto em si, mas apenas com o registro escrito de sinais gestuais. Portanto, para se aproximar do movimento convencional do corpo, e de seu possível significado, deveremos realizar operação inversa daquela efetuada pelos monges, quer dizer, deveremos decodificar o
escrito e reconstituir a imagem daquilo que, outrora, constituía um gesto, um sinal. Na definição proposta por Garnier, o termo gesto se aplica a todo movimento de uma ou diversas partes do corpo visando realizar uma ação ou manifestar certas disposições interiores. Quando decodificado, transmite uma maneira de sentir e de pensar, pode ser considerado quanto ao seu grau de complexidade e sua eficácia, quanto à sua forma, origem e conteúdo. Além disso, na análise de seu possível significado podem-se distinguir três elementos essenciais: aquele que o produz; o objeto de que trata; e a natureza da operação efetuada. No exame, deve-se levar em conta o contexto em que a comunicação se produziu e a natureza do referente – que pode ser real, ou simbólico18. Quanto à origem, os gestos enunciados nos signa loquendi nunca são naturais (porque se trata de uma linguagem), nem rituais (pois não pertencem à liturgia ou qualquer cerimônia ordinária). Todos, sem exceção, constituem signos convencionais, em geral produzidos através da simulação da(s) propriedade(s) de um referido sujeito/objeto. O sinal de mártir, por exemplo, era realizado mediante o movimento da mão pela cabeça imitando um cutelo, como se o instrumento imaginado a fosse decepar19, numa alusão evidente ao sacrifício dos mártires em nome da fé. Na própria iconografia cristã, não havia os santos ditos cefalóforos – representados com a cabeça separada do corpo20? Já para criança ou jovem, bastava que se colocasse o
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A. J. GREYMAS, “Conditions d’une sémiotique du monde naturel”, Langages (Paris), v. 10, 1968, pp. 3-35; G. CALBRIS e L. PORCHER, Geste et communication, Paris, Hatier/Credif, 1989, esp. pp. 57 e segs. 16 B. KOECHLIN, “Techniques corporales et leur notation symbolique”, Langages (Paris), v. 10, 1968, pp. 44-45. 17 F. GARNIER, La langage de l’image au Moyen Age, Paris, Le Leopard d’or, 1982/1989, 2 vols. 18 F. GARNIER, La langage de l’image au Moyen Age, op.cit., v.1, esp. pp. 43-50. 19 BNL, Alc. 223, fl. 293: “Por sinal de martire põe a mão destra na cabeça asi como se quiseses matar algu fecto primeiro o sinal de sancto”; BNL, Alc. 91, fl. 7: “Por sinal de martire, feyto o sinal de sãcto, põe a mão dereyta sobre o pescoço e faze como quem corta”. 20 Sobre as origens e desenvolvimento desta representação, cf. P. SAINTYVES, “Les saints céphalophores: étude de folklore hagiographique”, Revue de l’Histoire des Religions (Paris), t. 99, n. 2/3, 1929, pp. 158-231.
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dedo mínimo na boca21, imitando deste modo o hábito infantil de chupar o dedo ou de mamar. O mesmo para o sinal de leite, no qual reaparece a sugestão da imagem da amamentação22. De modo geral, nas listas alcobacenses prevalecem sinais que indicam gestos simples, isto é, movimentos envolvendo apenas uma ação e/ou um membro do corpo – realizados por um dedo ou por uma das mãos. Para designar gestualmente o calar, bastava, como até hoje, colocar o dedo indicador sob os lábios, tendo a boca fechada23, ou então, para indicar o ato de partida, apontar a mão direita com o dedo indicador sinalizando a direção de quem foi embora24. Entretanto, sobretudo na lista em vernáculo do século XVI, alguns gestos tornam-se mais complexos. Não raro, envolvem dois ou três movimentos sucessivos que, por acumulação, dão origem a uma idéia específica. Para o sinal de liçoeyro, isto é, o livro de leitura litúrgica noturna, articulam-se o gesto convencional de livro, de lição e de noite Quando se trata de expressar noções abstratas, em alguns casos o sinal gestual acaba perdendo de vista seu referente objetivo. Para designar o sinal de algo realizado, a solução apresentada não nos permite identificar com clareza a razão do gesto: “Por signal de qual quer cousa ja fecta, ta mãao igual dos pectos, e a parte de dentro stê tornada pera cima e asy a chega oos pectos”. Por que o movimento da palma das mãos para cima, na direção do peito, significaria a conclusão de algo? Nada de imediato parece explicar. Todavia, em outras vezes certa noção abstrata encontra com
facilidade seu referencial objetivo. Para designar gestualmente o mal, o sinal torna-se mimético: “Por maao, põe os dedos na face spargidos [e] faze semelhãça de hunha d’aue que tira per algia cousa” 25. A imagem é bastante evocativa, uma vez que o movimento e a posição dos dedos, ao imitar o ataque das garras de um pássaro, sugere de imediato a idéia de perigo, de algo a ser evitado. Do ponto de vista quantitativo, é muito maior o número de referentes concretos, objetivos, do que de noções abstratas, sensações ou emoções. Isto constitui um indício revelador dos limites dos signa loquendi na constituição de uma linguagem completa – capaz de expressar os vários elementos da comunicação. Embora por vezes dois ou mais sinais apareçam articulados cumulativamente, não chegam a formar “frases gestuais”, mas apenas conseguem esclarecer um significado específico – como no caso antes mencionado do liçoeyro das noites. Pela sucessão de dois sinais convencionalmente codificados era possível deduzir o terceiro, mas nunca articular idéias, conceitos, e muito menos elaborar um discurso. Na realidade, os signa loquendi não podiam vir a se constituir em linguagem completa, situação em que passariam a representar o mesmo inconveniente da palavra num mundo monástico dominado pelo silêncio. Não deveriam substituir a loquacidade, mas apenas assegurar, quando necessário, as condições mínimas de comunicação. A gestualidade excessiva, ou recorrente, implicaria os mesmos riscos da palavra ociosa, tornando-se um meio hipócrita de burlar a disciplina do silêncio estabelecido nas regras monásticas.
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BNL, Alc. 91, fl. 20: “Por sinal de moço, toca cõ o dedo pequeno duas uezes no beyço pera bayxo”. BNL, Alc. 91, fl. 7v: “Por sinal de leyte, põe a cabeça do dedo pequeno na boca, a semelhãça do menyno que mama”. BNL, Alc. 91, fl. 16v: “Por sinal de calar, põe o segido dedo sobre os beyços, tendo a boca çarrada”. 24 BNL, Alc. 223, fl. 296: “Por hyr, çarra a mãao direita e estende ho dedo mostrador per findo e faze assy como qu vay”. 25 BNL, Alc. 218, fl. 167 22 23
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Monasteriales indicia, ed. D. BANHAM, Wiltshire, Anglo-Saxon Books, 1993, p. 23.
Corpo e disciplina nos Signa Loquendi Devido aos limites da comunicação por sinais, os referentes e enunciados pretendiam ser objetivos. Os sujeitos e objetos figurados eram minimamente descritos, e a descrição em geral apenas fornecia informações elementares, a fim de tornar visível o sujeito na emissão da mensagem. Para se referir ao refeitório, bastava que se fizesse o sinal de casa (juntando os os dedos das duas mãos na parte de cima e abrindo as duas palmas, simulando um teto), seguido do sinal de comer (levando o dedo polegar e o indicador à boca, e imitando a ação de mastigar). Para
se referir aos pobres, a fricção das unhas dos dedos polegares, ao imitar o gesto de matar pulgas e piolhos, sugeria de imediato a relação existente entre a situação de pobreza e as más condições de higiene26. Mas também havia referentes abstratos e gestos carregados de significados simbólicos. Aqui, as listas abrem possibilidades interessantes para percebermos certas características do modo de pensar daquela época (noções de tempo e espaço, de bem e mal, de claro e escuro; noções de proporção, equivalência entre o alto e o baixo, entre o esquerdo e o direito). Por enquanto, restringiremos a análise à certas partes do corpo envolvidas na comunicação, procurando detectar seu enquadramento nos sistemas de valores daquele tempo e seu valor enquanto signo. Nestas operações, a atenção deverá ser deslocada dos referentes para os enunciados, quer dizer, do sujeito/objeto para a descrição gestual empregada em sua representação. Observemos em primeiro lugar os valores e/ou noções relacionados com a boca. Nos gestos que a ela fazem referência, a boca aparece representada em suas propriedades naturais: emitir sons, ingerir alimentos líquidos e sólidos. Entretanto, a faculdade da comunicação tornada possível pelo recurso da linguagem oral garantia-lhe valor semiológico, enriquecendo os usos e significados do órgão. Assim, ao trazer a mão encurvada à boca duas ou três vezes indicar-se-ía o cantar; ao colocarse o segundo e terceiro dedo sobre os lábios, tirando-os logo, indicar-se-ía o falar; ao trazer o dedo indicador horizontalmente, sob os lábios, indicar-se-ía o mentir27.
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BNL, Alc. 218, fl. 167v: “Por refectoiro, fecto o signal de casa, faze signal de comer”; BNL, Alc. 91, fl. 20v: “Por sinal de proue, da cõ a unha do dedo polegar da mão dereita ençima da unha do dedo polegar da mão ezquerda, duas ou tres uezes”. 27 BNL, Alc. 91, fl. 2v: “Por allelluya, leuanta a mão dereyta e, cõ os dedos abertos, faze sinal de uoar e logo de cantar, que he trazer a mão curuada diante da boca, duas ou três uezes”; fl. 16v: “Por sinal de falar, põe os dedos segido e terceyro sobre os beyços e tiraos logo”, “Por sinal de mentir, traze o segido dedo atraues, debayxo do beyço”.
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Certas descrições permitem supor um deslocamento entre o referente e o sinal utilizado para designá-lo. Nestes casos, a boca torna-se ela própria parte da significação simbólica. É o caso do sinal de pregar, que consistia em cruzar os dedos nos lábios – referência evidente à cruz. Também o sinal para monge confessor, que acumulava o sinal de santo (segundo e terceiro dedos juntos sobre o coração) e de confissão (levar os dois dedos do coração à boca, ou mover a mão da boca ao estômago)28. Portanto, neste último caso o acento estava no movimento de baixo para cima (coração/boca) ou de cima para baixo (boca/estômago), ambos corporificando a idéia de interiorização ou exteriorização – relacionadas com o momento da confissão auricular, quando o confitente devia expor suas inquietações interiores e receber o perdão e a remissão dos pecados. Algo parecido vem a ocorrer com as indicações relativas à orelha. Embora o órgão seja evocado devido à sua propriedade natural – a audição -, também tem seu significado ampliado. A orelha é empregada para assinalar as diferentes posições de alguns membros do mosteiro ou a situação de determinadas pessoas de algum modo relacionadas com a esfera religiosa. Para abade, o sinal era colocar os dedos indicador e médio sobre a orelha direita; para noviço, os mesmos dedos sob a orelha direita; para
clérigo, girar o dedo indicador em torno da orelha; para excomungado, ferir a orelha com o dedo indicador 29. No conjunto, os referentes associados com a orelha e/ou ouvido revelam-se bastante coerentes. Aqui, a faculdade de ouvir é apresentada com conotações simbólicas bem conhecidas na tradição judaico-cristã. Entre os judeus, a orelha desempenhava papel central em rituais religiosos, lembrando por vezes a sujeição de um indivíduo à outro, e noutras vezes estando relacionada com compreensão e inteligência. Em diversas sociedades, o órgão simboliza a abertura do homem em relação ao mundo, e, para o cristianismo, o ouvido é o canal de assimilação da palavra, via de acesso ao alimento espiritual, podendo transformar-se, por outro lado, na porta de entrada de sentimentos baixos30. Compreende-se deste modo que, nos signa loquendi, a audição estivesse relacionada com a recepção de idéias morais positivas, sobretudo daquelas prescritas na Regra, conduzindo-as para o interior, para o coração. O sinal para livro da Regra podia ser o mesmo utilizado para indicar o abade, quer dizer, o “pai” espiritual dos monges, a quem, em ultima instância, cabia a tarefa de manter a disciplina imposta pelo texto31. Quanto ao movimento circular dos dedos para os clérigos, pretendia reproduzir a forma de uma coroa – que, por sua vez, era uma alusão à tonsura32 -, enquanto o ferimento da orelha
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BNL, Alc. 218, 168v: “Por preegar, faze cõ o dedo hia cruz nos beiços”; BNL, Alc. 223, fl. 293v: “Por signal geeral de cõfessor, fecto o signal de sancto, faze o signal de confesar, moudo a mãao da boca ao estamago”; BNL, Alc. 91, fl. 6v: “Por sinal de confessor, faze sinal de sancto e de confissão, que he poer os dedos segido e terceyro jutos sobre o coração e despoys leua os a boca”. 29 BNL, Alc. 91, fl. 18v: “Por sinal de abbade, põe o segido e terceyro dedos sobre a orelha dereyta”, fl. 19: “Por sinal de mestre dos nouiços, faze sinal de soprior, uolta a mão pera bayxo e acreçenta o sinal de nouiço, que he por o segido e terceyro dedos na orelha dereyta”, fl. 20: “Por sinal de clerigo, traze o dedo segido apartado da orelha, fazendo roda cõ elle”; Alc. 218, fl. 167: “Por scomugado, fire a orelha cõ o demostrador”. 30 H. LESESTRE, “Oreille”, em F. VIGOUROUX (dir), Dictionnaire de la Bible, Paris, Letouzey et Ané, 1916-1928, v. 4-2, col. 1857-1860; H. FRANCO JR, “O ouvido de Adão: escultura e mito no Caminho de Santiago”, em IDEM, A Eva Barbada: ensaios de mitologia medieval, São Paulo, EDUSP, 1996, pp. 210-211. 31 BNL, Alc. 91, fl. 2v: “Por regra, fecto o sinal de liuro, põe os dedos segido e terceyro da mão dereyta em çima da orelha dereyta, que senifica abbade”. 32 A explicação encontra-se nas Constitutiones Hirsaugiensis, PL 150, col. 954: “Pro signo clerici digitum auri circumfer, quasi gyrando, propter similitudinem coronæ, quam in capite clericus habet”.
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era uma sugestão à punição imposta aos excomungados. As diferenças de status e posição no interior do mosteiro são assinaladas pelos movimentos dos dedos em direção ao órgão em pauta: no caso do abade, a posição dos dedos está acima da orelha porque ele está acima de todos, ao contrário dos noviços, em que os dedos deviam ser postos abaixo da orelha porque deviam-lhe obediência. Tudo em conformidade com o prólogo da Regra: “Obscvlta, o fili, praecepta magistri, et inclina avrem cordis tvi, et admonitionem pii patris libenter excipe et efficaciter conple”33. Também o sistema capilar tornava-se um referencial para a visualização da hierarquia e ordem, assim como para a classificação dos membros da comunidade, confirmando o quanto, na percepção do corpo tida pelos medievais, os cabelos e o sistema capilar podiam vir a ser tomados como signos na elaboração de uma consciência de si e da representação social. A primeira distinção assinalada pela pilosidade estava na separação entre os monges do coro e os leigos iletrados que participavam da comunidade como frades conversos. O uso da barba distinguia-os dos monges do coro, a ponto de serem por vezes chamados de “frades barbados”. Para identificá-los na linguagem por sinais, bastava imitar o gesto de segurar a barba com os dedos indicador e o polegar34.
Como se vê, neste caso o tamanho e a disposição dos pêlos transformava-se em signo de distinção na separação daqueles provenientes do mundo leigo para aqueles participantes integrais da vida cenobítica. Na tradição cristã, o tamanho e a forma da cabeleira, bem como a disposição do sistema piloso do rosto, podiam indicar certas qualidades morais e propensões espirituais. O costume da tonsura imposta aos membros das ordens menores, e depois das ordens maiores, por ocasião das ordenações, simbolizava a submissão incondicional a Deus, submissão que dizia respeito à renúncia de todos os gozos e prazeres mundanos35. A mudança de status do indivíduo que entrava para o mundo sagrado ocorria no plano simbólico no momento em que se dava a explicitação do rompimento com o mundo profano, isto é, a partir do abandono da impureza mundana - visualizada nos cabelos 36. Com isto podemos compreender melhor porque o próprio texto da Regra podia ser facilmente identificado pelo gesto ritual de corte do cabelo37. O porte da barba longa, por outro lado, era signo positivo, associado com força, retidão moral e conhecimento38. Por isto é que o sinal a ser empregado para designar a mentira tenha sido o gesto de esfregar a barba com o dedo indicador sob os lábios39 – uma
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La Règle de Saint Benoit, op. cit., t. 1, p. 412. Eis a tradução em português arcaico constante em BNL, Alc. 223, fl. 1: “Filho escuita os preceptos e ma(n)dam(en)tos do meestre he inclina e abaixa a orelha do teu coração E Reçebe de boa mente e toma amoestam(en)to he co(n)selho do padre piadoso”. 34 BNL, Alc. 218, fl. 168: “Por signal de frade cõuerso, toma a barba cõ o polegar e o demostrador”; BNL, Alc. 91, fl. 20: “Por sinal de frade barbato, pega na barba cõ o primeyro e segido dedos”. 35 L. GOUGAUD, “Chevelure”, em Dictionnaire de Spiritualité, Paris, Beauchesne, 1953, t. 2, pp. 832-834; “Cabello”, em Enciclopedia de la Religión Catolica, Barcelona, Dalmau y Jover, 1951, t. 2, p. 251. 36 Conforme E. LEACH, “Cabelo mágico”, em R. DA MATTA (org.), Leach (Coleção Grandes cientistas sociais), São Paulo, Editora Ática, 1983, p. 158: “quando um indivíduo é ‘tornado sagrado’, tem que ser separado de suas primeiras qualidades profanas; quando ele é ‘tornado profano’ novamente, a condição perigosa de santidade tem que ser afastada. Pensando desta forma, os antropólogos tenderam a classificar juntos a limpeza ritual do sujo do corpo, a remoção ritual do cabelo da cabeça, a extração de dentes, a sangria, a circuncisão, etc., como ‘ritos de separação’”. 37 BNL, Alc. 218, fl. 163: “ Por signal do liuro da regra, fecto o signal do liuro, toma cõ dous dedos o cabelo que pende sobre a orelha”. 38 F. GARNIER, La langage de l’image au Moyen Age, op.cit., v. 2, p. 88. 39 BNL, Alc. 218, fl. 168v: “Por mtir, cõ o dedo demostrador esfrega a barba de soo o beiço, asi como quita”.
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OS SIGNA LOQUENDI DO MOSTEIRO DE ALCOBAÇA
maneira de ilustrar ciência da palavra enganosa. Até hoje, uma das formas empregadas para denunciar alguma balela não consiste no gesto simulado de cofiar a barba? Mas a melhor ilustração do valor moral da barba pode ser encontrada na oposição dos sinais empregados para a designação de pessoa humilde ou soberba: a primeira, colocando-se o dedo polegar debaixo da barba, e a outra, colocando o mesmo dedo encima da barba 40 – a ocultação ou explicitação dos atributos pessoais podendo indicar a idéia de renúncia genuína ou de vanglória. ... Eis, pois, algumas possibilidades de leitura
destes testemunhos interessantes do modo de pensar e dos comportamentos tidos na vida claustral. À primeira vista limitados e pouco atraentes, revelam-se material muito útil que nos capacita a penetrar no interior das paredes do mosteiro e vislumbrar algo da vida que ali transcorria. Embora não sejamos tão otimistas quanto o saudoso Pe. Mário Martins, para quem o uso destes gestos significativos dava a impressão “dum silencioso claustro monacal , cheio de mudos a falar”41, cumpre reconhecer o valor dos signa loquendi como instrumentos de comunicação e sua expressividade gestual e mesmo visual – motivos pelos quais eles continuam a ter muito a nos ensinar.
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BNL, Alc. 91, fl. 21: “Por sinal de humylde, põe o dedo polegar debayxo da barba”, “Por sinal de soberbo, põe o dedo polegar çima da barba”. 41 M. MARTINS, “Livros de sinais dos cistercienses portugueses”, art. cit., p. 293.
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FOTOGRAFIA COMO OBJETO DE MEMÓRIA:...
Fotografia como objeto de memória: produto técnico e suporte ideológico na conformação do homem ocidental
Mauro Guilherme Pinheiro Koury Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Coordenador do Grupo Interdisciplinar de Estudos em Imagem (GREI). Autor de, entre outros livros, De que João Pessoa tem Medo? Uma abordagem em Antropologia das Emoções. João Pessoa: Editora Universitária, 2008.
RESUMO Este ensaio pretende entender o fascínio que a fotografia proporciona enquanto objeto de memória. Vista como duplo do real, a fotografia é apresentada como o real reproduzido. Como uma cópia que tem o poder de apropriar o real referenciado pela definição atemporal de sua ação. Como um passado em revelação para o olhar que a observa, a fotografia parece, então, realizar sua utopia de produtora da memória. PALAVRAS-CHAVE: fotografia; memória; emoção, indivíduo moderno.
ABSTRACT This essay intends to understand the allure that the photograph provides while of memory. Sight as double of the real, the photograph is presented as the real reproduced. As a copy that has the power to appropriate of the real represented for the fixed definition of its action, this is, as a past in revelation for who it observes. The photograph seems, then, to carry through its utopia of producer of the memory. KEY WORDS: photography; memory; emotion; modern individual.
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MAURO G UILHERME PINHEIRO KOURY
Fotografia como objeto de memória: produto técnico e suporte ideológico na conformação do homem ocidental
Este ensaio conciso pretende entender a fascínio que a fotografia proporciona enquanto objeto de memória. Produto técnico da sociedade ocidental serviu como suporte ideológico na busca da representação perfeita do real que o homem vinha perseguindo desde a antiguidade. A banalização do espaço da experiência pessoal e social, da privatização do indivíduo ao campo da subjetividade na sociedade ocidental moderna se, por um lado, proporcionou a emergência do indivíduo, livre e despojado, para o mercado, por outro lado, permitiu as formas de controle social sobre as individualidades emergentes (KOURY, 1998 e 2003). Presos na subjetividade, zona onde tudo é possível porque não social por excelência (DUMONT, 1985), os indivíduos no capitalismo emergiram expostos a uma lógica utilitária que, ao mesmo tempo em que buscava homogeneizar o tempo e o espaço sociais, linearmente definidos, fragmentava o mundo comum, pensado em Arendt (1974) como espaço da tradição, em uma polissemia de mundos privados. Mundos privados aqui entendidos, como em Benjamim (1985, p. 198), por espaços de finalização da faculdade de intercambiar experiências. A fotografia provoca no olhar uma síntese da memória pessoal Nesse processo, a fotografia parece encontrar um encaixe perfeito. Duplo do real, a fotografia é apresentada como o real reproduzido. Como uma cópia que tem o
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poder de apropriar o real referenciado pela fixidez intemporal de sua ação. Como passado em revelação para o olhar que observa, a fotografia parece realizar sua utopia de produtora da memória. Utopia que, é bom aqui frisar, encontra realização na ilusão que provoca de inserção do humano ao moderno, através de uma lógica linear que submete e banaliza trajetórias individuais, ao mesmo tempo em que exclui o indivíduo, enclausurando-o na subjetividade através de momentos fixos registrados e escolhidos de um passado sempre possível de resignificações. A fotografia, assim, caracterizada como lembrança, provoca no olhar que vê uma síntese da memória pessoal. Significa gestos, atos e sentimentos. Constrói redes de significados precisos que singularizam a rememoração pelo ato emocionado que provoca no observador. Pela cumplicidade que estabelece ou busca estabelecer entre aquele que observa e aquele que a foto representa, referenciado e fixo na ausência presente de um tempo e de um espaço que não mais existem, embora continuem a existir na realidade da foto. Assim, ao refletir sobre um passado que se foi e que permanece na intemporalidade fria da foto, referencia a própria fotografia como ilusão da manutenção dos momentos queridos eternamente presentes. Cria, ao mesmo tempo, o vazio da fixidez que pode ser tocada, acariciada, observada, mas que permanece como não sendo o objeto do desejo.
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FOTOGRAFIA COMO OBJETO DE MEMÓRIA:...
Evocada, a foto realiza o anseio de trazer situações e mantê-las sob controle, na imobilidade eterna registrada e apreendida pelo ato fotográfico. O que provoca uma sensação de poder e de posse sobre o outro ou sobre o si mesmo registrado, ao mesmo tempo em que onipotencializa as relações do observador com as imagens reveladas e por ele possuídas. Esta evocação provoca, deste modo, relações imaginárias que remetem a códigos simbólicos de apropriação, como fundamento da permanência. E nessa viagem, o observador exerce um movimento de transfiguração do seu cotidiano ameaçado, pela doce e continuada presença da coleção possuída e manuseada. Coleção manuseada em momentos de busca de afetos, positivos ou negativos, que recomenda para situações felizes ou não tanto, mas, próximas da felicidade na distância que as fotos aproximam sem, contudo, trazê-las de volta. A memória é feita de fotografias A memória é feita de fotografias, afirma Dubois (1984, p. 314-317). É o equivalente exato da lembrança. Desde a antiguidade grega as artes da memória foram concebidas como um procedimento artificial de mnemotecnia, baseado no jogo de duas noções: os lugares (loci) e as imagens (imagines). A fotografia, portanto, é uma das formas modernas que melhor encarna certo prolongamento das artes da memória. É uma máquina da memória, feita de loci (a câmera) e de imagines (as revelações). A fotografia, enfim, pode ser concebida, metaforicamente, como um aparelho psíquico, onde se pode trabalhar a questão do inconsciente, isto é, “a questão das inscrições dos traços mnésicos e de sua volta eventual e parcial ao sistema da consciência”
(1984, p. 317). Entre o olho e a memória, entre a visibilidade e a latência, bate a foto. Em seus maiores desafios, é a própria fotografia que se encontra revelada como um dispositivo psíquico de primeira linha. Como um jogo de separação e distância, o ato fotográfico revela passagens do imaginário no real. Uma foto é sempre um referente captado em um tempo e em um espaço (distância) diferente e inalcançável pelo sujeito que vê (separação). Ao mesmo tempo, é uma separação e uma distância presentes à visão e observação em qualquer tempo e lugar que for colocada a disposição ou manipulação. Esta presentificação da fotografia indica um movimento, no sujeito que a vê, de atualização de suas lembranças e, em um processo de contigüidade, de aprofundamento da fantasmagoria que invade a vida com recortes do passado não de todo visíveis na atualidade da foto. O que permite consolo ou tormento em quem se debruça nas impressões que a foto trás. Sempre presente e deslocada do sujeito que a observa e autônoma a ele e com vida própria, a fotografia se permite colocar para o observador como os olhos que imprimem o real, o que vale a pena conservar no caos ou na existência multifacetada de um cotidiano. Parece indicar, ao mesmo tempo, o lugar da alucinação dos que não se contentam com a fixidez das lembranças que a foto revela. O desvairo tem o seu lugar na busca incansável do olhar nas regiões fantásmicas da fotografia. Nos invisíveis que parecem insistir em manterem-se como ausências em estado de latência. O que parece poder causar uma ruptura entre o real e o imaginário, diluindo toda a segurança da identidade do sujeito que observa. As relações imaginárias entre o real que a foto revela e a realidade vivida pelo sujeito
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que recorda parecem indicar, na sociedade ocidental, as relações do sujeito consigo mesmo e com a sociedade. São as fotos que credibilizam o passado e as relações sociais estabelecidas pelo observador. A fotografia como viabilizadora do passado e da identidade do humano se encontra no filme Blade Runner, por exemplo, caminhando junto com o desafio limítrofe do ser humano de criar a vida e o humano perfeitos, e as discussões sobre o novo homem na sociedade pós-industrial. Como comprovação de uma origem natural e não artificial de andróides. Como produto, enfim, social. Embora sem querer aprofundar o assunto, é bom lembrar que desde o início deste século as fotografias foram associadas ao registro do cidadão. A presença identitária do sujeito na sociedade se complementava pela fotografia afixada nos documentos que atestavam a sua cidadania. Em última instância, pode-se afirmar que é a fotografia que indica ser o sujeito ele mesmo. Quem já não passou o vexame de provar que a foto de um documento é sua, apesar das diferenças com o hoje, nela impressas? A fotografia aparece também socialmente como prova de identidade, ou como índice, utilizando o conceito barthesiano (1980, p.16). Princípio de designação que informa que o referente esteve ali, presente, no momento da fotografia. Que a fotografia é o próprio referente apreendido temporal e espacialmente. Lugar de uma singularidade insubstituível de um referencial único. A memória é então informada pela fotografia, indicando momentos insubstituíveis que constroem uma vida para si e para os outros. Como uma ausência permanentemente prisioneira de um presente que já aconteceu, como portadora no presente de um registro que já foi a fotografia 104
parece estabelecer as bases necessárias à exclusão do referente, pela sua inclusão fixada nos registros que cada foto revela. O referente parece ser sempre aquele que não é mais o que na foto se encontra revelado. Parece ser sempre o que foi. Sua nominação será aquela que o passado da foto presentifica, sempre um outro em relação a si próprio no agora da observação. É aquilo que não mais é o que a foto revela. Sempre o que foi, o que a foto informa em sua fixidez de passado presente, aprisionando os homens e o social nela expresso como um real que não é. Como um duplo que evoca emoções mas emoções dissociadas do presente vivido, pelo presente passado fixo nos registros fotográficos e possíveis de manipulação e banalização pela similitude. A fotografia mistura-se com a história social do capitalismo A fotografia aprofunda os padrões de homogeneidade e estandartização propostos, ao abolir fronteiras e acentuar a semelhança como ordenação do mundo real (Jeffrey, 1981). A história social da fotografia misturase com a história social do capitalismo, aperfeiçoando, como técnica, a perpetuação da impressão de realidade. Técnica esta buscada desde a Grécia antiga e aprofundada no Renascimento através da perspectiva artificialis, isto é, da perspectiva geométrica que resulta de uma convenção em parte arbitrária, diferindo da perspectiva linear, ou naturalis, baseada no modelo ocular através de projeções sobre a retina (AUMONT, 1993, p. 42-43). A perspectiva artificialis, deste modo, pode ser pensada como um sistema de representação nascido no Renascimento e que significa a emancipação do olhar do Homem relativamente ao sistema de
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representação religioso. Segundo Panofsky (1973), a constituição da perspectiva artificialis abarca, antes de qualquer coisa, um modo de representação onde o sujeito se resume ao cerne da própria representação. Um interior e um exterior da representação pictórica onde habita o espectador são nela e através dela, então, definidos. A fotografia e o cinema são herdeiros deste sistema de representação. O que dá margem à reflexão sobre a potencialidade ideológica nela contida. A ideologia aqui, assim, pode ser pensada e remetida através da mistura entre representação e realidade proporcionada por este sistema. A perspectiva artificialis, como técnica de representação imagética e ideologia, logrou identificar a si mesma com o próprio real registrado (GILARDI, 1976). Como controle do referente através de sua fixação em um espaço e em um tempo singular, apropriado e possível de colecionar e intercambiar. Como posse simbólica sobre o real apreendido e, conseqüentemente, como fundamento deste real, a fotografia altera a inserção do sujeito no mundo. Este passa a vivenciar o mundo pela visibilidade que a apreensão fotográfica permite. Através de relações imaginárias que o situam em uma homogeneidade estandartizada do mundo burguês, e, ao mesmo tempo, paradoxalmente, permitem situá-lo como particular e singular. As experiências individuais dos sujeitos, que moldam a singularidade de uma existência podem, assim, através da fotografia, serem visibilizadas e comprovadas. Deixam o mundo interior para comprovar-se como socialmente existente, como reprodução objetiva de uma existência como passado. A temporalidade do sujeito na fotografia é uma sobreposição de tempos e espaços registrados A possibilidade de um mundo imaginário a partir de um mundo real e a posse simbólica
sobre o real através do imaginário fixado como prova de existência, altera as concepções de tempo e espaço e de homem na sociabilidade burguesa. A temporalidade do sujeito na fotografia é, assim, uma sobreposição de tempos e espaços registrados, singulares, porém comuns a uma temporalidade social universal. O mundo burguês, através da fotografia, logra conseguir fundar um padrão de semelhança e objetividade capaz de apreender uma linearidade espaço-temporal que caracteriza a sociedade ocidental. Isso, através da pulverização desta lógica em mundos particulares, com tempos e espaços singulares e sobrepostos. A sociedade ocidental ao conferir o sentido de realidade ao que a fotografia apreende, não faz mais que representar ela própria (BOURDIEU, 1978, p.111-113). Esta representação se permite através da ilusão tautológica de que uma imagem construída de acordo com uma concepção de objetividade é verdadeiramente objetiva. Tempos e espaços capturados passam a dominar o mundo de quem neles se encontram incluídos. Através deste sistema técnico-ideológico, proporcionado pela fotografia, configuram passados, apreendem presentes, informam leituras e futuros. Evocam e revelam o real. Uma vez que a imagem fotográfica se impõe como entidade objetiva, ela parece deixar de lado a necessidade de uma decodificação, tornandose natural e universal. Critério de verdade. A fotografia, assim, ao revelar o real usurpa o referente, afirmando-se como tal. Traço do real impresso, ela age sobre os indivíduos como fenômeno natural, exorcizando o tempo pela fixação do referente. O ato fotográfico, assim, ao incorporar o referente em um lugar e em um tempo imobilizados, parece agir no sentido
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da imortalidade. Da criação, como afirma Bazin (1958: 12), de “um universo ideal à imagem do real e dotado de um destino temporal autônomo”. O passado, desta forma, é referenciado pelo seu duplo ideal e perfeito, - livre de tempos e espacialidades, - a fotografia. A imagem fotográfica parece realizar completamente a ilusão ocidental de um referente produzido mecanicamente como duplo, que dá credibilidade e veracidade a este mesmo referente através da usurpação e exclusão. A fotografia vale, então, pelo que é ou apresenta: duplo perfeito do real, o autonomiza do tempo e do lugar que se desfaz, por uma intemporalidade que reduz o passado a uma sucessão fixa de presentes incorporados. Dribla a morte e a solidão do sujeito que observa pela sensação de onipotência do possuir (recortes fixos de um real comprovadamente e intemporalmente existente, na realidade da foto). A foto tornase o referente de si mesma. A objetividade fotográfica permite, assim, ao sujeito que a observa, acreditar na existência do objeto representado, isto é, tornado presente no tempo e no espaço (BAZIN, 1958, p. 16) e, ao mesmo tempo, autônomo da mediação humana. Independente do mundo exterior e, em uma extrapolação, quase uma afronta, que dá realidade e sentido a essa exterioridade. Conclusão Diante de uma fotografia, diria Barthes (1980), ninguém pode negar que o objeto fotografado esteve lá, comprovando a realidade do fenômeno. A fotografia, porém, não pode apenas ser caracterizada como uma simples imanência do objeto. Inaugura a ilusão de uma realidade a partir dela. A realidade parece passar a existir a partir dela e nela. Neste sentido, transfigura o referente, 106
base da fotografia, na própria fotografia, indicando através dela as configurações ingênuas do olhar que vê e que denega a si mesmo o estatuto de similitude que das fotos provêm, comprovando uma história e uma memória pessoal e social. Bibliografia ARENDT, Hannah. Vies Politiques. Paris: Gallimard. 1974. AUMONT, J. A Imagem. São Paulo: Papirus Editora. 1993. BARTHES, Roland. La chambre claire. Paris: Seuil. 1980. BAZIN, Andre. Ontologie de l’image photographique. Qu’est ce que le cinéma?. Vol.1. Paris: CERF. 1958. BENJAMIN, Walter. O Narrador: considerações sobre a obra de Nicolai Leskov. In: ______. Obras Escolhidas. Vol. 1. São Paulo: Brasiliense. p. 197221. 1985. BOURDIEU, Pierre. Un art moyen: essai sur les usages sociaux de la photographie. Paris: Minuit. 1978. DUBOIS, Phillipe. O ato fotográfico. Campinas: Papirus. 1984. DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco. 1985. GILARDI, Aldo. Storia sociale della fotografia. Milão: Feltrinelli. 1976. JEFFREY, Ian. Photography: a concise history. New York: Oxford University Press. 1981. KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Imagens & Ciências Sociais. João Pessoa: Editora Universitária. 1998. KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Sociologia da Emoção. Petrópolis: Vozes, 2003. MACHADO, Arlindo. A ilusão especular: introdução à fotografia. São Paulo: Brasiliense. 1984. PANOFSKY, Erwin. La perspectiva como forma simbólica. Barcelona: Tusquets. 1973. SONTAG, Susan. On Photography. Midleses: Penguin Books. 1977.
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A FOTOGRAFIA COMO MÍDIA VISUAL DA RECUPERAÇÃO HISTÓRICA DE LONDRINA
A fotografia como mídia visual da recuperação histórica de Londrina*
Paulo César Boni Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do Departamento de Comunicação da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Coordenador do Programa de Pós-graduação em Comunicação Visual da UEL. Autor do livro Fincando estacas! A História de Londrina (década de 30) em textos e imagens. 1ª. ed. Londrina: Ed. do Autor, 2004.
RESUMO Este artigo aborda a fotografia como importante mídia visual da recuperação histórica da cidade de Londrina, no estado do Paraná. Recupera historicamente a chegada da fotografia ao Brasil, em 1840, e sua crescente utilização para documentar os feitos do Império, especialmente na cidade do Rio de Janeiro. Destaca a importância das fotografias produzidas pelos primeiros fotógrafos de Londrina, nas décadas de 30 e 40 do século XX, para a recuperação histórica da cidade. Utiliza como metodologia as pesquisas bibliográfica e documental. Conclui que a história de Londrina – tanto quanto a do Rio de Janeiro – não seria tão rica sem essas importantes mídias visuais. PALAVRAS-CHAVE: mídia visual; fotografia; Londrina; documentação fotográfica.
ABSTRACT This paper describes photography as key visual medium in the make up of historical facts in Londrina City, state of Paraná. The arrival of photography in Brazil in 1840 is historically recovered, so is its steady utilization to record the facts of the empire, especially in the city of Rio de Janeiro. The importance of the production by the earliest photographers in Londrina, in the decades of 30 and 40 of the XX Century is emphasized for the historical recuperation of the city. Bibliographic and documental are the methodologies employed. The conclusion is that the history of Londrina – and that of Rio de Janeiro – would not be as rich without these important visual media. KEY WORDS: visual media; photography; Londrina; photography records.
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Artigo resultante do Projeto de Pesquisa “A História de Londrina (década de 40) em textos e imagens”, desenvolvido pelo autor na Universidade Estadual de Londrina. Apresentado no V Congresso Nacional de História da Mídia, realizado em São Paulo (SP), de 31 de maio a 2 de junho de 2007.
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A fotografia como mídia visual da recuperação histórica de Londrina
A história de Londrina – tanto quanto a história da maioria dos municípios brasileiros, notadamente os fundados a partir de 1840 – não seria tão consistente sem os importantes documentos iconográficos representados pela fotografia. Ao longo do tempo, para a história, a fotografia passou de mera ilustração para instrumento auxiliar de pesquisa; depois foi aceita como documento e, mais recentemente, tem despertado o interesse de muitos historiadores para pesquisas iconológicas, ou seja, foi alçada à condição de fonte, pois, segundo Borges (2005, p.80), “seus discursos sinalizam lógicas diferenciadas de organização do pensamento, de ordenação dos espaços sociais e de medição dos tempos culturais”. A chegada da fotografia ao Brasil A fotografia chegou ao Brasil em 16 janeiro de 1840 (à época chamava-se daguerreotipia), trazida pelo abade Louis Compte, capelão da corveta fraco-belga L´Orientale, que havia recém-aportado no Rio de Janeiro. Compte registrou três “vistas” da cidade com seu daguerreótipo e as expôs, no dia seguinte (17 de janeiro de 1840), no Hotel Pharoux, no Largo do Paço, para um grupo seleto de surpresos observadores, entre eles o futuro imperador D. Pedro II (1825– 1891), então com 14 anos de idade. D. Pedro se entusiasmou, de imediato, por aquela “máquina mágica” chamada daguerreótipo. Foi o primeiro brasileiro a
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adquirir uma dessas máquinas, que lhe chegou às mãos em março de 1840, vinda diretamente de Paris, ao preço de 250 mil réis. Ele é, portanto, considerado o primeiro fotógrafo do país. Visionário, percebeu logo a importância da fotografia como instrumento de preservação da memória familiar e documento histórico. Passou a fotografar – e mandar que fotografassem – todas suas viagens ao interior do país e ao exterior. Contratou fotógrafos para acompanhar os passos da Família Real. Um dos primeiros profissionais do Rio de Janeiro, o alemão Revert Henrique Klumb chegou, inclusive, a dar aulas de fotografia para sua filha, a princesa Isabel. Criou prêmios e honrarias para os fotógrafos que se destacassem pelas inovações ou pelo conjunto da obra. Klumb foi agraciado com o título de Photographo da Casa Imperial. De seu primeiro contato com o daguerreótipo, em 1840, a seus últimos dias como Imperador do Brasil, em 1889, D. Pedro II amealhou uma coleção de mais de vinte mil imagens que, reunidas e intituladas Coleção D. Theresa Christina Maria (nome de sua esposa), foi doada à Biblioteca Nacional, em 1892, após o advento da República e de sua morte no exílio (faleceu em 5 de dezembro de 1891, em Paris, três dias após haver completado 66 anos de idade). De acordo com ex-presidente da Fundação Biblioteca Nacional, Pedro Corrêa do Lago: “Trata-se do mais importante acervo fotográfico em qualquer instituição pública
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do país.” (LAGO, In: De volta à luz: fotografias nunca vistas do Imperador: 2003, p.18). A coleção de fotografias de D. Pedro II constitui uma importante mídia que, além de suas viagens ao exterior, documenta as transformações paisagísticas, urbanísticas, arquitetônicas, econômicas e de costumes do Brasil durante o II Império (1840 a 1889), principalmente as ocorridas no Rio de Janeiro. Com a produção industrial do daguerreótipo, no início da década de 1840, fotógrafos estrangeiros vislumbraram a possibilidade de ganhar dinheiro com essa atividade e aportaram nas principais cidades brasileiras: Rio de Janeiro, Salvador, Recife e Belém, portando seus pesados equipamentos. Num primeiro momento, notadamente nas décadas de 1840, 1850 e 1860, houve uma predominância acentuada de daguerreotipistas estrangeiros trabalhando no Brasil. Por ser a capital do Império, o Rio de Janeiro foi a cidade que recebeu o maior número desses profissionais. Pela novidade que representava, pela potencialidade de mercado que descortinava e com as bênçãos da Corte Imperial, a fotografia instalou-se de forma gradual, mas em caráter definitivo no Brasil. A fotografia não foi necessariamente concebida, produzida ou percebida como fonte de documentação. Mas ao longo de sua trajetória, em todas as partes do mundo, foi se caracterizando como importante fonte de pesquisa para a recuperação e compreensão histórica. Burke (2004, p.20-21) constata que “independente de sua qualidade estética, qualquer imagem pode servir como evidência histórica”. Historiadores contemporâneos têm se valido de imagens, notadamente de fotografias, para decifrar e compreender épocas anteriores.
Historiadores da agricultura, da tecelagem, da impressão de papéis, da guerra, da mineração, da navegação e das outras atividades práticas, a lista é virtualmente infinita, têm-se baseado intensamente no testemunho de imagens para reconstruir as maneiras pelas quais arados, teares, máquinas impressoras, arcos, armas de fogo, e assim por diante, eram utilizados, bem como para mapear as mudanças súbitas ou graduais por que passaram as concepções desses instrumentos. (BURKE, 2004, p.100).
Nesta perspectiva, a história do Rio de Janeiro, com certeza, não seria tão rica sem os documentos iconográficos produzidos primeiro pelos pintores e gravuristas e, na seqüência, também pelos fotógrafos. O francês Victor Frond (1821–1881) foi um dos profissionais que transitaram com desenvoltura pelas duas técnicas. Começou como gravurista e enveredou pela fotografia (o termo fotografia passou a substituir daguerreotipia a partir de 1859). Na fotografia, iniciou suas atividades profissionais como “retratista”, na década de 1840. Na década seguinte, rendeu-se à fotografia documental (o termo “documental”, segundo Burke (2004, p.26) começou a ser utilizado na década de 1930 nos Estados Unidos) e registrou dezenas de “vistas” do Rio de Janeiro. Vasquez (2002, p.15) diz que Frond “fotografou a cidade a partir de 1858, fazendo dela um dos temas centrais de seu Brazil pittoresco, o primeiro livro de fotografia realizado na América Latina, editado em 1861”. Contemporâneo de Frond na documentação fotográfica do Rio de Janeiro, o alemão Revert Henrique Klumb também se iniciou na fotografia como retratista. E não sem justa causa: em seus primeiros anos, a fotografia despertou nas pessoas comuns a possibilidade de possuírem um retrato seu ou da família e explorou essa potencialidade de
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mercado. Vasquez (2002, p.14) conclui que: “Durante as décadas de 1840 e 1850, a produção fotográfica carioca concentrou-se, por razões estritamente comerciais, em torno do retrato.” Mas, tanto quanto Frond, Klumb também se enveredou pela fotografia documental. “A 23 de julho de 1861, ele documentou a inauguração da primeira estrada de rodagem macadamizada do país, a União e Indústria, ligando a cidade fluminense de Petrópolis à cidade mineira de Juiz de Fora.” (VASQUEZ, 2000, p.58). Boa parte dos primeiros registros fotográficos do Rio de Janeiro é de sua autoria. Klumb foi o pioneiro da FOTOGRAFIA ESTEREOSCÓPICA no Brasil, efetuando uma ampla documentação com esse sistema entre os anos 1855 e 1862, focalizando – em mais de 300 vistas – os principais monumentos e logradouros públicos da época, e sendo o primeiro a se aventurar pelo Alto da Boa Vista e a Floresta da Tijuca. (VASQUEZ, 2002, p.14)
Os registros de Klumb foram importantes para a documentação de transformações históricas. Algumas de suas fotografias mostram o Passeio Público do Rio de Janeiro antes das reformas paisagísticas implementadas no início da década de 1860. Vasquez (2002, p.14) destaca: Em seu trabalho sobre a cidade merece destaque um conjunto de quase 50 vistas do Passeio Público, pois mostram esse que foi o primeiro jardim público brasileiro com seu desenho original de 1783, obra do gênio Mestre Valentim (Valentim da Fonseca e Silva), antes que fosse alterado pelo paisagista francês Auguste Marie Glaziou em 1862.
Diversos outros fotógrafos registraram vistas do Rio de Janeiro entre as décadas de 1850 a 1880, deixando um valioso inventário iconográfico da então capital do Império. Depois de Frond e Klumb, na seqüência 110
cronológica, provavelmente tenha sido o alemão Augusto Stahl o próximo a deixar suas contribuições gravadas para a história. Stahl era fotógrafo em Recife, desde que chegou ao país, em 1853, e transferiu-se para o Rio de Janeiro no início de 1862, onde, em sociedade com Germano Wanschaffe – também vindo de Recife – instalou o estúdio Stahl & Wanschaffe. Logo se destacou como um dos mais criativos e produtivos fotógrafos de paisagens urbanas e bucólicas. Dentre as tantas fotografias produzidas, algumas são consideradas uma espécie de complemento do ensaio fotográfico de Klumb sobre o Passeio Público. Klumb o fotografou antes e Stahl depois das reformas paisagísticas de 1862. Vasquez (2002, p.17) ressalta que Stahl “deixou imagens memoráveis tanto do centro da cidade quanto das regiões de Botafogo, Jardim Botânico e Catumbi”. Em outra obra, o autor enaltece a criatividade do fotógrafo alemão na busca por novos ângulos e o preciosismo estético de suas composições fotográficas e o compara a um grande mestre estadunidense da fotografia. Com efeito, dotado de uma grande segurança estilística, Stahl foi um dos raros fotógrafos a transcender as influências das regras de composição herdadas da pintura, para construir imagens com uma visão essencialmente fotográfica, que antecipa o arrojo visual dos mais ousados mestres contemporâneos, como o norte-americano Lee Friedlander. (VASQUEZ, 1995, p.37).
Muitas informações urbanas, sociais e antropológicas do Rio de Janeiro foram registradas pelas lentes de outros fotógrafos, na década de 1860. O português José Christiano de Freitas Henriques Júnior (1832–1902), ou simplesmente Christiano Jr. – como batizou seu estúdio –, veio em 1863, de Maceió, onde havia chegado em 1855, e se destacou por fotografar os negros
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que, ainda escravos, representavam um terço da população da cidade à época. Ele explorou fotograficamente os negros como “objeto pitoresco” e os transformou em carte-de-visite, para venda no varejo. Gorender (1988, p.31) destaca que o fotógrafo chegou, inclusive, a inserir reclames no Almanaque Laemmert de 1866, anunciando a venda de uma “variada colleção de [...] typos de pretos, cousa muito própria para quem se retira para a Europa”. Foi muito criticado à época – e posteriormente também – pela exploração comercial de imagens da escravidão e por contribuir para que o europeu criasse um olhar distorcido sobre o Brasil. Mas era um fotógrafo criterioso e, atrás de suas fotografias, identificava a origem étnica de seus modelos. Sua coleção fotográfica, com 50 imagens de negros, hoje disponível no acervo do IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, é uma fonte para estudos e já rendeu a publicação de diversos livros de história e antropologia. Christiano Jr. trocou o Brasil pela Argentina em 1867, onde continuou a exercer o ofício de fotógrafo. Não tanto pelas fotografias que produziu, mas principalmente por sua visão empreendedora e contribuição para a popularização da fotografia, também merece destaque na recuperação iconográfica do Brasil Império o suíço Georges Leuzinger (1813-1892). Proprietário de uma loja comercial, denominada Casa Leuzinger, que prestava diversos serviços ligados às artes e comercializava artigos e equipamentos fotográficos, o suíço, de acordo com Vasquez (2002, p.18), foi quem “sistematizou a venda de paisagens fotográficas na cidade”. Segundo o autor, por volta de 1865, Leuzinger editou um catálogo listando 337 vistas diferentes, quase todas dedicadas à cidade, mas incluindo também panoramas
das regiões serranas de Petrópolis, Teresópolis e Friburgo. [...] Por sinal uma série dessas imagens foi premiada com a medalha de prata na Exposição Internacional de Paris em 1867, conquistando a primeira distinção do gênero obtida pelo Brasil no cenário internacional. Nessa mesma ocasião Leuzinger expôs pela primeira vez fora do país imagens do Amazonas – focalizando os índios e seus costumes, bem como a fauna e a flora da região –, que ele havia encomendado ao alemão Albert Frisch em 1865 e que as distribuía em seu estabelecimento. (VASQUEZ, 2002, p.18-19).
A popularização da fotografia no Brasil, na segunda metade do século XIX, deu-se de forma lenta e gradual se comparada ao significado do termo “popularização” aplicado à fotografia digital dos dias atuais. Os avanços técnicos – principalmente a possibilidade de multiplicar positivos a partir de um único negativo –, a vinda de estrangeiros e a formação de fotógrafos brasileiros contribuíram para que a fotografia deixasse de ser algo meramente imaginável e passasse a ser um produto palpável e gradativamente acessível a camadas cada vez maiores da população. Em seu início no país, ressalte-se, ela não foi conscientemente produzida ou utilizada como mídia de documentação histórica. Sua produção estava voltada, por um lado – o do fotógrafo – como uma nova fonte de rendas; por outro – o do fotografado – para a satisfação de vaidades pessoais, ou seja possuir um retrato seu ou da família. Ambas as ambições, no entanto, convergiam: A imensa maioria dos fotógrafos em atividades no Brasil no século XIX dedicouse exclusivamente aos retratos. Os retratistas eram de fato os profissionais que melhor ganhavam a vida, dada a constante demanda por parte das famílias por imagens de seus diversos membros, que cresceu a ponto de transformar-se numa verdadeira febre durante a década de 1860, quando a
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PAULO CÉSAR BONI fotografia no formato carte de visite tornou o retrato individual acessível e extremamente popular. (FERNANDES JUNIOR; LAGO, 2000, p.30).
De forma mais lenta e gradual ainda, a fotografia passou a ser utilizada como fonte de documentação histórica. As primeiras imagens produzidas – e hoje utilizadas como documento – também não foram necessariamente produzidas para esse fim. Boa parte estava atrelada à vaidade pessoal de governantes e empresários ou à publicidade de governos. Muitas fotografias produzidas ao longo da história da humanidade tiveram sua finalidade e classificação alteradas com o decorrer do tempo, processo conhecido por anacronismo. Uma fotografia que, num primeiro momento, satisfez a vaidade do imperador D. Pedro II, numa de suas viagens ao exterior, hoje serve como documento da construção da imagem do exterior no Brasil. Outra, produzida numa de suas viagens ao interior do país, para vistoriar as obras de uma estrada de ferro em construção, e que, à época pode ter servido como publicidade do “estadista visionário e realizador”, hoje serve como documento histórico da ferrovia, da expansão dos transportes, do desenvolvimento da região, etc. As contribuições documentais de Marc Ferrez para a história do Império Um dos primeiros – e provavelmente o mais importante do período, no Rio de Janeiro – fotógrafos esporadicamente contratados pelo Império para documentação foi Marc Ferrez (1843–1923). Nascido no Rio de Janeiro, filho de franceses, ficou órfão de pai e mãe, em 1851. Foi morar em Paris, sob custódia do escultor Alphée Dubois, de onde retornou em 1860, aos 17 anos. De 1860 a 1866, Marc Ferrez trabalhou na Casa
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Leuzinger. Não se pode afirmar que ele tenha trabalhado somente com fotografia, pois a loja atendia diversas atividades e apenas em 1866 apareceu no Almanaque Laemmert como oficina especializada em fotografia. Antes mesmo de completar 24 anos, Marc Ferrez abriu, em 1867, seu próprio negócio: a casa Marc Ferrez & Cia, especializada em equipamentos e serviços fotográficos. Turazzi (2000, p.113) diz que, entre 1870 e 1871, “Ferrez fotografa a construção de um Arco do Triunfo e os festejos públicos no Templo da Vitória erguido no Campo da Aclamação, no Rio de Janeiro, para comemorar o término da guerra com o Paraguai”. Essas imagens, provavelmente, devem ter sido as primeiras produzidas por Ferrez que, mais tarde, foram utilizadas como documentos de época, até porque passaram a fazer parte da coleção particular de D. Pedro II. Em 1873, um incêndio consumiu por completo o estabelecimento comercial de Ferrez, destruiu seus arquivos e equipamentos fotográficos e interrompeu por quase dois anos sua produção fotográfica. Entre 1875 e 1877, viajou pelo nordeste brasileiro documentando fotograficamente a região e os trabalhos da Comissão Geológica do Império. Em 1879, de acordo com Turazzi (2000, p.115), iniciou, no Rio de Janeiro, “extenso trabalho de documentação das obras de canalização do rio São Pedro e construção de um reservatório no morro Pedregulho, destinadas a melhorar o abastecimento de água na cidade”. Ou seja, a partir dessas duas experiências, a documentação iconográfica passou a ser uma constante na produção fotográfica de Marc Ferrez. Seu estabelecimento comercial, reconstruído no mesmo endereço do anterior (na rua de São José, no centro do Rio de Janeiro), cresceu, especializou-se e ganhou
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notoriedade. Seu prestígio profissional também cresceu: suas fotografias, com imagens de diversas vistas e obras do Brasil, eram expostas em diversas exposições nacionais e internacionais, rendendo-lhe diversos prêmios. Em 1882, documentou, contratado pela Estrada de Ferro D. Pedro II, as obras da linha férrea nos estados de São Paulo e Minas Gerais. Em 1884, fotografou um dos mais ousados projetos de engenharia em execução no mundo: a estrada de ferro que ligaria Curitiba a Paranaguá. Suas fotografias dessa obra foram oferecidas a D. Pedro II pelo engenheiro Francisco Pereira Passos (que mais tarde, como prefeito, foi o responsável pelo saneamento e reurbanização do Rio de Janeiro), gerente brasileiro da construtora belga responsável pela obra. Marc Ferrez fotografou profissionalmente até 1914, ano do falecimento de sua esposa. Septuagenário – e doente – viajou para França, onde permaneceu até 1920. Aproveitou para rever amigos, freqüentar exposições, participar de salões e também estudar fotografia na terra dos mestres dessa arte. Faleceu no Brasil, em 12 de janeiro de 1923. A diversidade, a quantidade, a qualidade e a preservação da produção fotográfica de Marc Ferrez o consolidam como o mais importante fotógrafo documentarista do Brasil do final do século XIX e início do século XX. Durante sua carreira profissional, publicou vários álbuns, o que muito contribuiu para a preservação de suas fotografias. Um dos mais importantes, que publicou em 1907, de acordo com Turazzi (2000, p.120), foi o “álbum monumental [...] com o título Avenida Central: 8 de março de 1903 – 15 de novembro de 1906, contendo as imagens [...] de todas as plantas e fachadas dos edifícios da nova avenida, por ele fotografados”.
De 1902 a 1906, o Rio de Janeiro passou por um intenso processo de saneamento e reurbanização, capitaneado pelo então prefeito Francisco Pereira Passos (que ficou conhecido como o Hausmann brasileiro, numa alusão ao urbanista francês que havia reurbanizado Paris e Buenos Aires) que, sob os auspícios do então presidente Rodrigues Alves, deu carta branca ao médico sanitarista Oswaldo Cruz e ao engenheiro Paulo de Frontin para transformar a cidade no maior canteiro de obras do país. As fotografias de Marc Ferrez são mídias imprescindíveis para a compreensão e documentação dessas transformações históricas. Rosemblum (apud VAZQUEZ, 2003, p.69) classificou Marc Ferrez como “o mais famoso fotógrafo latino-americano de seu tempo”. Opinião partilhada pelos estudiosos alemães Rainer Fabian e Hans-Christian Adam (apud VASQUEZ, 2003, p.69), que o chamaram de “o mais eficaz cronista visual do Brasil na segunda metade do século XIX”. E não sem justa causa. Vasquez afirma que: Ao longo da vida, Ferrez foi o fotógrafo do século XIX que mais viajou pelo Brasil, não à cata de eventuais clientes, como os itinerantes dos primeiros tempos, e, sim, executando serviços previamente acertados, como o fazem os modernos fotógrafos da atualidade. (VASQUEZ, 2003, p.68).
A produção fotográfica de Marc Ferrez, hoje espalhada pelo Museu Imperial, Instituto Moreira Sales, Biblioteca Nacional, Mapoteca do Palácio Itamaraty e em mãos de colecionadores particulares são importantes documentos do Brasil dos tempos do Império e do início da República, bem como registros importantíssimos das transformações paisagísticas, urbanas e econômicas pelas quais o país passou naquele período. Vasquez (2003, p.68) destaca que: “Na Região
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Sudeste, documentou em profundidade os trabalhos de mineração na província de Minas Gerais, [...] focalizando ainda trabalhos de siderurgia na usina de Boa Esperança, bem como a extração aurífera em interior de mina fechada.” Mas a menina dos olhos de Ferrez foi mesmo o Rio de Janeiro, cidade que documentou com tamanha intensidade que o autor o compara ao grande documentarista imagético de Paris no mesmo período, Eugène Atget. Sua maior fonte de inspiração foi a cidade do Rio de Janeiro, onde nasceu, sempre morou – salvo no interlúdio como estudante em Paris – e fotografou sistematicamente por mais de quarenta anos. Ferrez produziu uma ode fotográfica em louvor à cidade, similar somente àquela dedicada por Eugène Atget a Paris. Todavia, enquanto Atget se preocupava sobretudo com o legado do vieux Paris, que ia desaparecendo sob seus olhos para dar lugar aos grandes bulevares concebidos pelo barão Hausmann (1809–1891), Ferrez era um convicto entusiasta do ideal de progresso. (VASQUEZ, 2003, p.68-69).
A soma das contribuições de Frond, Klumb, Christiano Júnior, Leuzinger, Marc Ferrez e tantos outros fotógrafos conhecidos – outros menos conhecidos ou até mesmo anônimos – forma um documentário iconográfico importantíssimo para que os brasileiros (não só brasileiros, claro!) possam conhecer melhor o Brasil de tempos passados. Cada uma dessas imagens é uma mídia de recuperação e preservação da história. Seguramente, a história do Rio de Janeiro – e de cada uma das cidades do Brasil e mesmo do mundo – não seria tão rica sem esses documentos reveladores de seu passado. Documentos iconográficos, inclusive, são importantes instrumentos de pesquisa e estudos iconológicos. [...] as imagens que contenham um reconhecido valor documentário são
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importantes para os estudos específicos nas áreas de arquitetura, antropologia, etnologia, arqueologia, história social e demais ramos do saber, pois representam um meio de conhecimento da cena passada, e, portanto, uma possibilidade de resgate da memória visual do homem e do seu entorno sociocultural. Trata-se da fotografia enquanto instrumento de pesquisa, prestando-se à descoberta, análise e interpretação da vida histórica. (KOSSOY, 2001, p.55).
A história de Londrina, seguramente, também não seria tão rica sem os documentos iconográficos produzidos – e deixados para a posteridade, quer por doações a museus e centros de estudos, quer pelo seu uso comercial em jornais e reclames de publicidade, quer pela coleção em mãos de pioneiros e colecionadores – pelos primeiros fotógrafos que tomaram imagens da emergente cidade no meio da mata. Sem as fotografias, certamente, seria muito mais árdua a tarefa de narrar a história de Londrina: ficariam faltando a riqueza dos detalhes e o “clima” de envolvimento que só elas são capazes de despertar. Sem a “mídia” fotografia, seria preciso usar muito mais palavras, multiplicar substantivos e adjetivos e, mesmo assim, com certeza, os leitores não teriam a mesma visualidade, aquele ar de imersão que a fotografia oferece.
Os primeiros registros fotográficos de Londrina Segundo Boni (2004, p.248), “alguns fotógrafos, mesmo sem saberem de sua importância histórica, à época, se transformariam em peças fundamentais na engrenagem narrativa da história de Londrina”. Quem primeiro a fotografou, de forma amadora, foi o pioneiro George Craig Smith, em 1929. Dias depois de chegar ao
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local que mais tarde seria a cidade 1, ele fotografou a clareira aberta no meio da mata, a fonte de água da qual se serviam e os dois primeiros ranchos de palmito, que ele e os demais integrantes da caravana dos desbravadores construíram para se abrigar das intempéries e dos animais. São os mais antigos documentos iconográficos de Londrina.
A primeira imagem de Londrina Foto: George Craig Smith
Durante anos, Craig Smith documentou do corte da árvore à construção da casa, passando pelo beneficiamento da madeira. Fotografou os pioneiros que chegaram com ele e muitos dos que os sucederam. Registrou as primeiras culturas plantadas e os primeiros frutos colhidos. Animais de estimação e animais criados para alimentação. Pessoas e famílias. A vida social, encontros festivos, os hóspedes do primeiro hotel da cidade.
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Atividades esportivas, do prazer da pescaria à conquista da caça. Pessoas trabalhando, construindo suas casas. Registrou também a beleza dos primeiros rostos femininos do Patrimônio Três Bocas, primeiro nome de Londrina. Sem as mídias fotográficas de George Craig Smith seria muito mais difícil recuperar os primórdios da história de Londrina. Outro nome importante para a recuperação iconográfica da história da cidade foi o alemão Hans Kopp. A Companhia de Terras Norte do Paraná (CTNP), colonizadora de Londrina e de boa parte do Norte do Paraná, guardadas as devidas proporções, sempre fez muita publicidade de seu empreendimento imobiliário. Depois do início da colonização da região e da instalação de um escritório em Londrina, passou a produzir e veicular ainda mais publicidade. Quando já tinha o que mostrar do lugar: a exuberância das matas, a excelência das madeiras (enormes árvores de peroba, figueira branca, pau d’alho e outras), a qualidade da terra roxa, casas, hotel, serviços de infra-estrutura, passou a utilizar fotografias em suas publicidades. Uma das mais importantes estratégias publicitárias era preparar álbuns de fotografias e distribuí-los para os corretores de terras, que viajavam por diversos estados e impressionavam os potenciais compradores com as fotografias que mostravam. Num primeiro momento, para produzir essas fotos, contratava os serviços de Hans Kopp, um fotógrafo de origem alemã, sediado em Ourinhos (SP), que vinha a Londrina esporádica e especialmente para produzi-las.
George Craig Smith foi o líder da caravana dos desbravadores, que chegou em Londrina dia 21 de agosto de 1929; a emancipação política da cidade deu-se em 10 de dezembro de 1934.
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José Juliani e a história imagética do desenvolvi-mento de Londrina Em 1933, o Sr. Ernest Rosemberg, engenheiro da CTNP, precisava de uma fotografia do salto do ribeirão Cambézinho (nome atual), que fica no Parque Arthur Thomas (nome atual) para enviar à Inglaterra. O escritório de Londrina havia solicitado a construção de uma turbina geradora de energia elétrica para viabilizar, num primeiro momento, o fornecimento de eletricidade para o próprio escritório e as casas de seus diretores. Os estudos para o empreendimento estavam sendo desenvolvidos pela matriz, em Londres, que solicitou uma fotografia do salto do ribeirão para saber da viabilidade – ou não – do projeto. A CTNP, como de costume, solicitou a presença do Sr. Hans Kopp para produzir a fotografia. Mas, no dia marcado, o fotógrafo não apareceu. Arruda (1999, p.31-33) informa que, meses antes, havia chegado a Londrina, procedente do interior de São Paulo, um senhor que, ao terminar a construção de sua residência – uma rudimentar casa de madeira, sem piso ou forro – afixou uma tabuleta anunciando seus serviços: Photo Studio. O engenheiro Rosemberg não teve dúvidas. Foi até essa casa e interpelou seu dono: “Precisamos tirar uma foto do salto de um ribeirão aqui perto, o senhor pode fazer isso?” Surpreso, ele apanhou sua máquina, o chassi e o tripé e acompanhou o engenheiro numa longa caminhada a pé, por picada aberta na mata, até o local. Ajustou o equipamento, analisou a luz e fez a foto. Para dar à matriz uma referência do volume e da altura da queda d’água, o engenheiro posou sentado numa pedra que ficava no meio do 2
córrego, em frente ao salto. A fotografia agradou tanto pela qualidade técnica quanto pela beleza estética. Foi enviada a Londres e acabou se tornando peça fundamental para convencer os ingleses a construírem a turbina geradora. O nome do fotógrafo era José Juliani.
Ribeirão Cambézinho Foto: José Juliani
Diante da oportunidade de ter um fotógrafo por perto, pois eram poucos à época e menos ainda os que se dispunham a morar em lugarejos novos, sem muitos habitantes e sem eventos sociais para fotografar, a CTNP não teve dúvidas: dispensou o esporádico Hans Kopp e tentou contratar José Juliani como fotógrafo oficial. De acordo com seu filho 2 , Juliani resistiu. Amava demais a fotografia para vinculá-la somente a
JULIANI, Luiz. Entrevista concedida ao autor em 27 de setembro de 2004.
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interesses empresariais. Queria continuar fotografando “por conta”. Concordou apenas em prestar serviços, sem exclusividade. Fecharam um acordo nesse sentido. José Juliani (1896–1976) chegou em Londrina em 11 de março de 1933, então com 37 anos. Curioso nato em decifrar o funcionamento de mecanismos (relógios, máquinas de costura, armas) e autodidata (lia indiscriminadamente tudo o que lhe caía à mão: manuais, jornais, revistas e livros), havia aprendido o ofício de fotógrafo em Nova Europa (SP), com um senhor lembrado apenas pelo apelido de “alemão” que, ao se aposentar, vendeu-lhe o equipamento necessário para o início da profissão: uma máquina 13 x 18, tipo caixote, uma lente marca Xenor com diafragma f 5,5, os chassis (aquele tempo não se usava, nessa máquina, filmes de rolo e sim negativos de vidro), o tripé e o invólucro de proteção à luz – um pano preto com o qual era comum os fotógrafos cobrirem a cabeça na hora de fotografar. Quando optou por viver em Londrina, Juliani tinha os pés no chão: pensava em exercer a profissão de carpinteiro, pois construir casas numa cidade emergente parecia um bom negócio. Porém, logo se deu conta da inexistência de fotógrafos no lugar e decidiu apostar num sonho: viver de fotografia. Mas o momento não era, ainda, financeiramente muito propício para a fotografia. Segundo Boni (2004, p.256): “Na
década de 1930, todos estavam ocupados demais em ‘ganhar a vida’ e não tinham tempo ou não se davam ‘ao luxo’ de tirar fotografias.” A tabuleta Photo Studio afixada na fachada de sua casa atraía pouca clientela e o dinheiro que havia trazido para o início de uma nova vida estava se esvaindo. O sonho de trabalhar com fotografia, sua paixão, ameaçava ruir. Juliani já estava conformado em trabalhar como pedreiro ou carpinteiro, quando foi procurado para fazer a fotografia do salto do ribeirão Cambézinho. Como prestador de serviços para a CTNP, José Juliani se tornou uma testemunha ocular da transformação de matas em lavouras, de árvores em casas e móveis, de casebres em edifícios, de barro em estradas pavimentadas, de crianças em homens que fizeram a história de Londrina. Fotografou pessoas chegando, estradas sendo abertas, a terra produzindo, as lavouras florescendo, casas sendo construídas, igrejas sendo levantadas, a cidade crescendo, festas populares, casamentos, batizados, solenidades, inaugurações, visitas de personalidades à cidade, reuniões e manifestações políticas, trabalho, esporte, lazer, cultura. Produziu inúmeras “vistas gerais” de Londrina em tempos e ângulos diferentes. Documentou o florescer e o crescimento da cidade, especialmente na década de 30, quando os londrinenses ainda não se preocupavam com a posteridade.
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Construção da ponte ferroviária sobre o rio Tibagi Foto: José Juliani
Juliani gostava muito de caçar e pescar. Mas praticamente abriu mão desses prazeres pessoais para se dedicar à fotografia. Durante a semana, invariavelmente estava a serviço da Companhia de Terras, além de fotografar uma ou outra pessoa que o procurava. Nos finais de semana, Londrina era “invadida” por pessoas que vinham da roça ou de outras localidades para fazer compras ou simplesmente “dar uma volta” na cidade. Muitas dessas pessoas, vestidas com sua melhor roupa, aproveitavam para tirar um retrato. Para retratá-las, e receber sempre um dinheirinho a mais – e bem-vindo para o sustento da numerosa família – Juliani adiava as caçadas e pescarias. Enquanto crescia, a cidade assistia à chegada de novos fotógrafos. Vindo de centros maiores, traziam equipamentos modernos, montavam estúdios sofisticados e abocanhavam fatias do mercado que era de 118
Juliani. Ao mesmo tempo, com o empreendimento aqui consolidado, a Companhia de Terras começou a transferir o foco de atenção mais para o Noroeste do Estado (região de Maringá e Cianorte), onde repetiria o processo de colonização – e publicidade – adotado em Londrina, mas contrataria os serviços de fotógrafos de Maringá. Assim, gradativamente, os serviços fotográficos minguavam para José Juliani. No início da década de 40, para ganhar mais uns “cobres”, além de fotógrafo, passou a consertar câmeras fotográficas e relógios. Em razão das características econômicas e sociais da época, era mais procurado para consertar relógios. Mesmo assim, desenvolveu uma relação de confiança com os fotógrafos da cidade, que a ele recorriam para todo e qualquer tipo de conserto. Esses fotógrafos, inclusive, criaram um chavão que afiançava sua irrestrita confiança no mestre: “Se o Juliani não der jeito, ninguém mais dá”. Em meados da década de 50, passou a trabalhar também como lambe-lambe na Praça Marechal Floriano Peixoto, ao lado da Catedral, onde seu filho Luiz Juliani já exercia o ofício. Lá, por mais de duas décadas, retratou londrinenses famosos e anônimos; pessoas que precisavam de fotografias para tirar documentos (poucas à época) ou simplesmente para mandar de lembrança a parentes distantes. Realizou o sonho de centenas de pessoas que visitavam Londrina e, pela primeira vez na vida, deparavam-se com a oportunidade de “tirar um retrato”. Vez ou outra era chamado para um serviço que pouco lhe agradava: fotografar mortos. Era costume à época fotografar o corpo do familiar falecido, principalmente de crianças, antes do sepultamento. Dadas as condições de comunicação e transporte da época, parentes distantes sequer conseguiam ser avisados a tempo do falecimento de algum
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membro da família; chegar para o velório e sepultamento, então, menos ainda. Assim, as fotografias de mortos eram uma espécie de lembrança póstuma enviada aos que não puderam comparecer ao velório. Esse costume era mais adotado quando o morto era criança, pois, não raro, seria essa sua primeira – e única – fotografia. Para o bem da história, uma coincidência do destino fez Juliani se dedicar ao que gostava e sabia fazer melhor: fotografar. Com
ou sem vínculo com quem quer que fosse, ora ganhando mais, ora ganhando menos, em casa ou na praça, acompanhou e documentou as paisagens rurais e as transformações urbanas. Graças ao vasto documentário fotográfico que produziu sobre os primórdios da cidade, a história de Londrina, ao longo dos tempos, e mesmo hoje, pôde e pode – a partir dessas mídias visuais – ser contada, revista e acrescida.
Londrina, 1934 Foto: José Juliani
Em 1979, o Museu Histórico de Londrina Padre Carlos Weiss adquiriu da família de José Juliani cerca de 400 negativos de vidro. Recuperados, limpos e adequadamente acondicionados, esses registros iconográficos são parte importante da história de Londrina, testemunhas fiéis do início da cidade e suas importantes transformações na década de 1930. A poesia imagética de Haruo Ohara Outro fotógrafo a quem a história de Londrina deve muito é Haruo Ohara. Nascido na província de Kochi (Japão), em 1909, chegou ao Brasil em novembro de 1927. Foi
com a família (pai, mãe e cinco irmãos) para Cotia (SP), trabalhar numa lavoura de batatas. Menos de dois meses depois, a família seguiu para Santo Anastácio (SP), onde passaram a trabalhar numa fazenda de café. Lá, conheceram Hikoma Udihara, que havia chegado ao Brasil em 1910. Udihara era agenciador de terras (corretor) da Companhia de Terras Norte do Paraná, da qual havia conseguido exclusividade para negociar com imigrantes japoneses. Ele convenceu os Ohara e outros japoneses a conhecerem o que dizia ser o “maior projeto de colonização” em terras brasileiras. Em dezembro de 1929, os japoneses vieram e gostaram do que viram. Eram nove
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potenciais compradores de terras. Entre final de março e início de abril de 1930, cinco deles compraram os primeiros lotes vendidos pela CTNP. Entre os adquirentes estava Massaharu Ohara, pai de Haruo. A família Ohara só veio para Londrina em agosto de 1933. Na Gleba Cambé, onde foram instaladas outras famílias de japoneses, Haruo conheceu Kô Sanada, com quem se casou em junho de 1934. O casamento foi realizado na propriedade da família e reuniu praticamente toda a, até então, pequena colônia japonesa de Londrina. Um dos poucos não-japoneses presentes era José Juliani que, além de registrar a cerimônia, introduziu o nubente ao mundo da fotografia. Haruo Ohara se tornou amigo de Juliani, de quem adquiriu sua primeira máquina fotográfica. Juliani o ensinou a manuseá-la e a revelar os filmes em negativo. Ohara chamou-a de “brinquedo” e, depois do trabalho na roça, passava horas “namorandoa”. Aprendeu a decifrar as nuances técnicas da fotografia. Apaixonou-se pela arte de registrar imagens. Como se tratava de uma paixão, empregava-a para registro do que mais amava: sua família e seu espaço. Sua primeira fotografia foi um retrato de sua esposa, Kô Sanada, ao lado de um pé de laranja, na propriedade da família, em 1938. Família, trabalho, produção e principalmente a natureza foram focados pelas lentes de Ohara que, não raro, reunia dois, três ou mesmo os quatro elementos em uma única fotografia. Produziu centenas de fotografias em que registrou os parentes – pais, esposa, filhos – cultivando ou exibindo, orgulhosos, os frutos de seu trabalho na lavra da terra – café, frutas e hortaliças. Amante da natureza, fotografava árvores, rios, lagos e animais; flores e floradas em todos os estágios; frutos em desenvolvimento, em ponto de colheita e colhidos. Valorizava o homem e seu trabalho. Era um homem simples; vivia na 120
roça e reproduzia poeticamente, nesse ambiente, a relação do homem com a natureza. No início da década de 50, a família Ohara mudou-se para a área central de Londrina. O lote de 20 alqueires em que moravam foi desapropriado para a construção do novo aeroporto. Losnak e Ivano registram que: Na escritura de venda, constava que mais da metade da área do sítio seria destinada à construção do aeroporto e o restante seria loteado. Ainda havia no terreno mais de 6 mil pés de café, um extenso pomar, jardim, 4 casas de madeira, tulha, terreiro, etc. Tudo foi posto abaixo pelas máquinas de terraplanagem, moradias e planta. As mulheres derramaram lágrimas. Os homens engoliram seco. (LOSNAK; IVANO, 2003, p.87).
Na cidade, Ohara acompanhou e registrou as transformações urbanas de Londrina, mas continuou sendo um fotógrafo de pessoas e da natureza. Dedicou-se com mais tempo à fotografia. Aprimorou as técnicas de captura de imagens, passou longos períodos no laboratório fotográfico de sua casa, perseguindo, com a tradicional “paciência oriental”, a perfeição nas imagens reveladas. Atento às inovações técnicas, comprou novos – e melhores – equipamentos. Nas décadas de 50, 60 e 70 trabalhou com Voigländer Bessa e Rolleiflex. Depois, com uma Asahi Pentax. No final da década de 70, passou a fotografar em cores. Desde sua vinda para a cidade, o prazer da fotografia passou a ser sua principal ocupação. Era puro amor à arte, posto que sempre se recusou a ganhar dinheiro com a atividade. Foi um dos fundadores do Foto-cine Clube de Londrina. Em 1951, tornou-se sócio do Foto-cine Clube Bandeirantes, de São Paulo, o mais famoso do país, e participou de
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salões nacionais e internacionais. Em 1956, ganhou o I Salão Nacional de Arte Fotográfica da Biblioteca Municipal de Londrina, primeiro evento organizado para expor e valorizar a fotografia na cidade. Em 1973, perdeu a esposa e transformou o laboratório fotográfico num refúgio: passou a se dedicar quase exclusivamente à sua outra grande paixão: a fotografia. Uma paixão resignada, introspectiva, silenciosa. Haruo Ohara não era dado a mostrar suas fotografias. Dizia que ninguém se interessaria em ver imagens velhas e antigas. Na década de 80, a comunidade londrinense e a sociedade brasileira descobriram definitivamente a arte, a beleza e a poesia de suas imagens. Foi homenageado em vida pelo Festival Internacional de Londrina (Filo), em 1998, com uma exposição individual. Em 2000, depois de sua morte, uma mostra de parte de seu acervo fotográfico foi a principal atração da III Bienal Internacional de Fotografia de Curitiba. Haruo Ohara faleceu em agosto de 1999, aos 89 anos. Deixou um acervo de mais de 20 mil negativos entre preto e branco e colorido, preservado e administrado pela família. Fotógrafo amador por opção e amante da arte de fotografar por convicção, retratou a estética, a poesia, a esperança, a inocência das crianças da cidade e da cidade criança. As fotografias de José Juliani documentaram as transformações físicas de Londrina em seus primeiros anos; as de Haruo Ohara capturaram a beleza em seu estado primitivo e o estado de espírito de sua gente. Nomes que a história perdeu Em razão de haverem fixado residência, constituído família e criado raízes em 3
Londrina, bem como por serem protagonistas de publicações, os nomes de José Juliani e Haruo Ohara são mais lembrados e reverenciados que os de outros fotógrafos da mesma época. Os livros que retratam a vida e obra de ambos foram escritos e publicados após sua morte e tiveram participação direta ou indireta de seus descendentes. Outros fotógrafos que atuavam na cidade nas décadas de 30 e 40, no entanto, por motivos diversos, não tiveram a mesma sorte. Foto Mello Em 1934, chegou em Londrina a família Mello. O patriarca, Antonio José de Mello, era fotógrafo na cidade de Presidente Wenceslau (SP). Assim que chegou, montou o Foto Mello, que funcionava anexo à casa da família. Segundo depoimento de seu filho3, Antonio sempre viveu da fotografia. “Não ficou rico, mas levou uma vida de razoável conforto”. O Foto Mello funcionou em Londrina até meados da década de 40, quando ele se mudou com a esposa e filhas para Arapongas (a 40 km de Londrina), onde continuou na profissão. Fora do estúdio, atendia chamados para fotografar batizados, casamentos e pessoas mortas. Vez ou outra fotografava um caminhão carregado de toras, a pedido do motorista ou do proprietário da madeira, ou uma casa em construção para o proprietário guardar de recordação. Alcides, o filho, destaca que “no mês de maio, o conhecido mês das noivas, a demanda por serviços crescia. Em contrapartida, durante a quaresma (àquele tempo ninguém casava durante a quaresma) e no mês de agosto, o faturamento despencava a níveis próximos de zero”. No início de Londrina (décadas de 30, 40 e 50), os casamentos não
MELLO, Alcides de. Entrevista concedida ao autor em 7 de setembro de 2004.
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eram fotografados à exaustão como são atualmente. O costume era a cerimônia religiosa ser realizada sem a presença de fotógrafos. Depois da cerimônia, os noivos, as famílias, padrinhos e convidados caminhavam até o foto e faziam uma ou duas fotografias, internas (no estúdio) ou externa (em frente ao foto ou numa praça próxima). Normalmente se fazia uma foto dos noivos no estúdio e uma externa, com os noivos ladeados pelas famílias e convidados. A quantidade reduzida de fotografias tinha três motivos. O primeiro era a falta de hábito, ou seja, a cultura familiar e social de registrar as cerimônias de casamento. O segundo era a dificuldade técnica de tirar fotografias, com o uso de enormes caixotes sobre tripés e negativos em chapa de vidro. O terceiro era o preço das fotografias ou, pior que isso, o baixo poder aquisitivo da maioria das famílias. O próprio Alcides de Mello, filho de fotógrafo, não tem fotografias de seu casamento, em 1936. Uma série de fatores, segundo ele, contribuiu para que as fotos não fossem feitas. O mais sério deles é que chovia muito no dia do casamento. Sem iluminação elétrica, o interior da igreja estava muito escuro, o que impossibilitava o registro, posto que, àquele tempo, não existia flash em Londrina. A solução, diz Alcides, seria irem a pé até outro foto, haja vista que seu pai, dadas as circunstâncias, deveria estar à frente e não atrás da câmera. “Mas como chovia muito e não dava para sair da igreja, desistimos das fotografias”, conta. Antonio José de Mello não era exatamente um sujeito metódico, um profissional organizado. Trabalhava apenas para ganhar a vida e a vida para ele era o momento presente. Fazia os serviços que
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apareciam e quando não aparecida nada, não fotografava nada. Não tinha o hábito, a curiosidade ou o prazer de fotografar o crescimento urbano ou o desenvolvimento social de Londrina (e de Arapongas, a partir de meados da década de 40 até seu falecimento, em setembro de 1958). Pouco depois de entregar um serviço, dava cabo dos negativos em rolo ou em chapa de vidro. Com certeza, muito da história de Londrina se perdeu e deixou de ser contada por conta desse procedimento. Hoje, o filho lamenta os atos do pai, mas justifica sua atitude: “Ele entregava o serviço e considerava sua missão cumprida. Naquele tempo, ninguém imaginava que guardar negativos seria importante 60, 70 anos mais tarde.” Foto Estrela Em meados da década de 30, chegou a Londrina um fotógrafo alemão vindo do interior de São Paulo. Carlos Stender abriu o Foto Estrela e se dedicou a “ganhar a vida” com fotografia. Na prática, Stender montou o primeiro estúdio de Londrina, um local em que as pessoas podiam ser fotografadas com iluminação e fundo adequados. Trabalhou com fotografia de estúdio – retratos e fotos para documentos – e fotografia social – casamentos, aniversários, batizados, primeiras comunhões. A pedido da proprietária, começou a fotografar as formaturas de uma escola de corte e costura. Descobriu um filão comercial e passou a fotografar formaturas de outras escolas e colégios. Também fotografava, por encomenda ou interesse próprio, cenas da cidade, especialmente construções, inaugurações, bailes e outras festividades.
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A FOTOGRAFIA COMO MÍDIA VISUAL DA RECUPERAÇÃO HISTÓRICA DE LONDRINA
Londrina, década de 40 Foto: Carlos Stenders
Carlos Stender, por quem o conheceu (depoimentos dos fotógrafos Yutaka Yasunaka4 e Tenkei Matsuo5), era um típico alemão: alto, loiro, gordo, de bochechas avermelhadas, simpático e falador; um homem muito educado e extremamente organizado. Em primeiro de outubro de 1952, “com um contrato rigoroso nos mínimos detalhes”, diz Yutaka, Carlos Stender vendeu o Foto Estrela para seu pai, Suejiro Yasunaka e se mudou para Cotia (SP), retornando a Londrina de vez em quando apenas para concluir negócios pendentes. Em 2005, com auxílio financeiro do Promic – Programa Municipal de Incentivo à Cultura (um programa da Secretaria de Cultura da Prefeitura Municipal de Londrina), Edson Luís da Silva Vieira, então funcionário do Foto Estrela, de propriedade de Yutaka Yasunaka até dezembro de 2007 (quando foi fechado), coordenou a recuperação do arquivo e a publicação do livro Revelações
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da história: o acervo do Foto Estrela, com imagens de Londrina das décadas de 40 a 70, de autoria de Carlos Stender e Yutaka Yasunaka, mídias importantíssimas para a preservação da memória da cidade, que estavam “perdidas” na história e agora estão disponíveis a historiadores e pesquisadores. Matsuo, uma família de fotógrafos Em 19 de janeiro de 1937 o Sr. Mineso Matsuo e sua família chegaram em Londrina. Nascido no Japão, aprendeu lá o ofício de fotógrafo. Matsuo, com a esposa e um casal de filhos, desembarcou no porto de Santos em meados da década de 20 e seguiu para o município de Água Limpa (SP), onde começou a trabalhar na agricultura. Na roça, contraiu malária e, em razão da doença, deixou o campo e se mudou com a família para a cidade de Valparaíso (SP). Por fim, veio para Londrina, onde se estabeleceu como fotógrafo.
YASUNAKA, Yutaka. Entrevista concedida ao autor em 10 de outubro de 2004. MATSUO, Tenkei. Entrevista concedida ao autor em 27 de outubro de 2004.
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Somados os filhos que nasceram no Japão aos que nasceram no interior paulista, o casal Matsuo teve oito – quatro homens e quatro mulheres. Mais da metade da família enveredou pelo mundo da fotografia, inclusive uma das mulheres, o que ainda não era muito comum à época. Procurando cair nas graças na colônia japonesa que se avolumava na cidade, o Sr. Matsuo batizou seu estabelecimento de Foto Nippon. Conquistou boa parte da colônia, mas seu filho Tenkei ressalta que a maior parte da clientela era brasileira. Primeiro porque o número de brasileiros na cidade era muito maior que o de japoneses; segundo porque os brasileiros acreditavam que fotografia “era coisa de japonês”. Como os japoneses, aparentemente, levavam mais jeito para a compreensão e operação de “aparelhos complicados”, os brasileiros atribuíam o conceito de qualidade na fotografia principalmente aos fotógrafos japoneses. Nesse caso, fotografia tirada por japonês era garantia de qualidade. O foto, propriamente dito, era um “puxado” coberto anexo à casa de madeira em que a família residia, na (atual) rua Quintino Bocaiúva, um pouco distante do centro da cidade. Em menos de um ano, a família se mudou para outra casa, na mesma rua, também em madeira, agora mais próxima do centro. O foto continuou sendo um “puxado” coberto no fundo da casa. Alguns anos mais tarde, no início da década de 40, família e foto se mudaram para a (atual) rua Sergipe, próximo ao local onde por muito tempo funcionou o Nóbile Hotel. No início da década seguinte, novamente família e foto se mudaram para a (atual) rua Minas Gerais, no local onde o filho mais velho, Chinzoo, abriria o restaurante Matsuo. Foto e restaurante funcionaram no mesmo endereço por cerca de quatro anos. O 124
patriarca da família, Mineso Matsuo, um dos pioneiros da fotografia em Londrina, faleceu em 1969. A família trabalhava mais com fotografia de ateliê (retratos e fotos para documentos), mas também fazia fotos externas. Um dos nichos comerciais era fotografar a colônia japonesa. Um ponto de referência – e preferência – dos nipônicos era a escolinha da colônia. Era comum fotografar famílias ou grupos de japoneses em frente à escola. Pais posavam sisudos, mas com indisfarçável satisfação, ao lado dos filhos, diante da escola. Educação sempre foi motivo de orgulho para os japoneses. Independente do orgulho, os japoneses também eram práticos: uma foto com toda a família ficava mais barato que uma de cada um de seus membros. Era o princípio – até hoje utilizado – de unir o útil ao agradável.
Primeira Igreja Católica de Londrina final da década de 30 Foto: Foto Matsuo
Tenkei Matsuo, o primeiro dos filhos a nascer no Brasil, chegou em Londrina com oito anos. De todos os filhos do casal era o mais resistente, o que menos queria trabalhar com fotografia. Evitou-a enquanto pôde ou, melhor, até levar uma “dura” do irmão mais velho (Chinzoo), já em meados da década de 40. Tenkei logo percebeu que a aversão à fotografia era um preconceito sem
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fundamento. Mal começou a fotografar, apaixonou-se pelo ofício. Entre 1954 e 1965, inclusive, atuou como repórter fotográfico da Folha de Londrina. Ironia do destino: trabalhou com fotografia até próximo dos oitenta anos de idade. Orgulhoso de seu trabalho, fazia questão de chancelar sua produção, sempre no canto inferior direito das fotos. Procedimento, aliás, também adotado pelo pai e demais fotógrafos da família desde os tempos do Foto Nippon. Na década de 30, segundo Tenkei Matsuo, além do Photo Stúdio (de José Juliani), do Foto Nippon (de sua família), do Foto Estrela (de Carlos Stender) e do Foto Mello (de Antonio José de Mello), havia um outro em Londrina. Sem se lembrar do nome dos proprietários, diz que o estabelecimento ficava na atual avenida Paraná e pertencia a um casal de alemães, que tocava o empreendimento sem empregados. Relata que um dia se deu conta de que há meses não via mais o alemão ou sua mulher. Procurou saber o que havia acontecido com eles e foi informado de que ambos haviam falecido. Ninguém, por enquanto, soube falar nada sobre o casal de alemães ou do foto que a ele pertencia. Não são citados em reportagens, trabalhos ou livros publicados sobre Londrina e não existem vestígios de sua produção fotográfica no Museu Histórico de Londrina. São outros nomes perdidos na história. A saga dos Matsuo, uma família de fotógrafos, com certeza tem muitas contribuições a dar para o resgate e documentação iconográfica da história de Londrina. Ela só precisa ser organizada, narrada e publicada. Chinzoo e Tenkei ainda são vivos e têm muita história para contar e fotografias para mostrar. No entanto, é preciso que isso seja feito com certa urgência, sob pena de seus nomes também serem perdidos na história.
Considerações finais Desde seu advento, a fotografia tem contribuído para o registro (em seu tempo) – e recuperação (em tempos posteriores) – da história. Possivelmente, a prova mais cabal de sua importância, neste sentido, seja a existência e reprodução da primeira fotografia, produzida por Joseph Nicéphore Niépce, em 1826, para que a história dessa mídia visual fosse recuperada, comprovada e democratizada por meio de publicações. Ao longo do tempo, em maior ou menor escala, a fotografia foi e tem sido utilizada com um suporte, no mínimo confiável, para a narrativa histórica de todos os segmentos da sociedade. No início, enquanto não se tinha ainda uma noção exata de sua importância e magnitude, era considerada apenas uma mera ilustração. Tempos depois, galgou à condição de instrumento auxiliar de pesquisa. Pouco precisou, a partir de então, para ser reconhecida como documento histórico. Hoje, tem sido largamente utilizada como fonte de pesquisa. Provavelmente, a primeira iniciativa planejada e organizada de uso da fotografia como mídia de recuperação e preservação da memória tenha vindo da França. Preocupado em inventariar, tornar conhecidos e preservar seus monumentos históricos, o governo francês criou, em 1851 (apenas 12 anos depois do anúncio do Daguerreótipo), a Missão Heliográfica Francesa. Segundo Borges (2005, p.93): “Imediatamente, as regiões da nação francesa começaram a ser mapeadas, divididas e entregues aos mais renomados fotógrafos da França e de outros países da Europa e dos Estados Unidos.” No Brasil, as primeiras iniciativas com este propósito aconteceram durante o período do Império (1840-1889), especialmente em razão do imperador D. Pedro II ser uma pessoa
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culta, visionária e que, de imediato, apaixonouse pela fotografia. Foi fotógrafo, incentivador e mecenas da fotografia. Ao longo de seu governo amealhou uma coleção de mais de vinte mil imagens, hoje importante acervo da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, à disposição de pesquisadores do país e do exterior. No final do século XIX, com o início da publicação de fotografias – pelo sistema de autotipia, ou seja, sem qualquer interferência de gravuristas – nos jornais e revistas brasileiras6, elas passaram a contribuir ainda mais para a recuperação e preservação da história, pois, a partir de então, um único original podia ser reproduzido em milhares de exemplares de jornal e atingir um público muito maior, tendência que se consolidou no começo do século XX. Neste tempo e contexto – década de 30, com a fotografia já popularizada no país – nasceu, nas matas da região Norte do Estado do Paraná, uma nova cidade: Londrina. Para sorte de sua história, o chefe da caravana dos desbravadores, que veio para demarcá-la e iniciar seu processo de colonização, trazia consigo uma câmera fotográfica. Coube a George Craig Smith a produção de seus primeiros documentos iconográficos. Suas fotografias, hoje à disposição para apreciação e consultas no Museu Histórico de Londrina Padre Carlos Weiss, foram – e são – importantíssimas mídias para a recuperação da história da cidade e região. Depois de George Craig Smith, outros fotógrafos registraram a colonização, crescimento e desenvolvimento de Londrina
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em sua primeira década de existência. Parte desses registros – especialmente os produzidos por José Juliani, que fora contratado pela Companhia de Terras Norte do Paraná, para registrar seus feitos – também fazem parte do acervo do Museu Histórico de Londrina. O acervo de fotografias do museu, no seu todo, contribuiu e continua contribuindo para a recuperação da história. São mídias visuais importantíssimas – provavelmente as mais importantes – para recuperação e democratização da história de Londrina. Referências ARRUDA, Maria Juliani de. Juliani: um homem, sua máquina e a história de Londrina. Londrina: Eduel, 1999. BONI, Paulo César. Fincando estacas! a história de Londrina (década de 30) em textos e imagens. Londrina: Edição do autor, 2004. BORGES, Maria Elisa Linhares. História & fotografia. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru (SP): EDUSC, 2004. CADERNOS de fotografia brasileira. Georges Leuzinger. São Paulo: Instituto Moreira Sales, 2006. De volta à luz: fotografias nunca vistas do Imperador. São Paulo: Banco Santos, 2003. FERNANDES JUNIOR, Rubens; LAGO, Pedro Corrêa do. O século XIX na fotografia brasileira. São Paulo: Francisco Alves, 2000. GORENDER, Jacob. A face escrava da corte brasileira. In: AZEVEDO, Paulo César de; LISSOVSKY, Maurício. Escravos brasileiros do século XIX na fotografia de Christiano Jr. (18641866). São Paulo: Ex. Libris, 1988.
As primeiras fotografias publicadas pelo sistema de autotipia, ou seja, impressão do original fotográfico direto no papel, por meio de um clichê e sem qualquer interferência de gravuristas, constavam de um encarte semanal do Jornal do Brasil, intitulado Revista da Semana, que começou a circular em 20 de maio de 1900.
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CULTURA VISUAL: DEFINIÇÕES, ESCOPO, DEBATES
Cultura Visual: definições, escopo, debates
Rosana Horio Monteiro Doutora em Política Científica e Tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Pesquisadora visitante no Departamento de Science and Technology Studies (STS) no Rensselaer Polytechnic Institute (RPI) em Troy/New York (EUA) em 1998. Professora na Universidade Federal de Goiás (UFG), no Programa de Pós-graduação em Cultura Visual. Editora responsável pela revista Visualidades. Autora de, entre outras publicações, Descobertas múltiplas. A fotografia no Brasil (18241833), Campinas/São Paulo: Mercado de Letras/Fapesp, 2001.
RESUMO: O presente trabalho é parte de uma pesquisa ainda em andamento em que investigo questões relacionadas ao conceito de cultura visual e sua ligação com a história da arte. É uma disciplina emergente, um tópico de pesquisa, uma área ou subárea dos estudos culturais? Qual é o estatuto do objeto artístico dentro da cultura visual? Discuto, em particular, a importância do “visual culture questionnaire” para o desenvolvimento da área e o debate em torno do conceito de cultura visual. Esse questionário foi enviado para uma variedade de pesquisadores, críticos e artistas norte-americanos em 1996, e as respostas publicadas na revista October numa edição organizada por Rosalind Krauss e Hal Foster. PALAVRAS-CHAVE: história da arte; cultura visual; estudos culturais.
ABSTRACT: This paper is a still work in progress that investigates issues related to the concept of visual culture and its connection with the history of art. Is it an emerging discipline, a topic of research, an area or sub-area of cultural studies? What is the status of the artistic object within the visual culture? I discuss particularly the role of the “visual culture questionnaire” to the development of the area and the debate around the concept of visual culture. The questionnaire was sent to a variety of researchers, critics and artists from North America and the answers were published in a 1996 edition of the journal October organized by Rosalind Krauss and Hal Foster. KEY WORDS: art history; visual culture; cultural studies.
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Cultura Visual: definições, escopo, debates
Introdução Em 1996, a edição nº 77 da revista norteamericana de arte e cultura October1, então editada por Rosalind Krauss e Hal Foster, dedicou um número especial para os resultados de um questionário intitulado ‘visual culture questionnaire’. O questionário, composto por quatro questões abertas, foi enviado para uma variedade de pesquisadores, críticos e artistas norteamericanos, entre os quais Svetlana Alpers, Carol Armstrong, W.T. Mitchell e Martin Jay, e pretendia explorar o conceito de ‘cultura visual’, na medida em que este emergia como uma discreta área de estudo nos meios universitários norte-americanos desde a década anterior. Krauss, Foster, entre outros pesquisadores, mostraram-se apreensivos com a possibilidade de a abordagem interdisciplinar dos estudos visuais poder levar à rendição do conhecimento histórico e dos métodos críticos mantidos pela tradicional disciplina de história da arte. Se todas as articulações do visual fossem tratadas indiscriminadamente dentro de uma “meta-disciplina” de cultura visual, a diferença entre arte e imagem midiatizada
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seria nivelada. Como um todo, acreditava-se que a abordagem generalizante dos estudos visuais pudesse promover um entendimento simplista da análise cultural, implicando numa perda radical de criticidade. Apesar do impacto causado pelo questionário, a “Cultura Visual” ou os “Estudos Visuais” sobreviveram e alcançaram reconhecimento institucional no século 21, como atestam alguns indicadores: dois fóruns eletrônicos – um criado por Nicholas Mirzoeff e outro pela American Studies Association; periódicos, como o Journal of Visual Culture, criado em 2002 e publicado pela SAGE,2 uma nova série de livros editada pela University of Rochester e a reedição de The visual culture reader, organizado por Nicholas Mirzoeff. Mas, conforme alerta Jay (2005), com a maturação do campo também surgem reflexões sobre até onde essa área caminhou e onde deverá se localizar nos anos vindouros.3 Da arte para a cultura visual Os editores de October estavam preocupados com a localização dos estudos da cultura visual em relação às tradições das
Publicação acadêmica, cujo nome faz referência ao filme Outubro, de Sergei Einsenstein, a revista, especializada em arte contemporânea, crítica e teoria, foi fundada em 1976 em Nova York por Rosalind Krauss e Annette Michelson. No período de sua criação, tornou-se a porta-voz em língua inglesa do pós-estruturalismo francês, focando seus artigos na arte pós-moderna. Publicada pelo MIT Press, os números da revista podem ser acessados no sítio: http://www.mitpressjournals.org/loi/octo. Disponível para consulta no portal de periódicos da CAPES. Para discussões recentes sobre o tema, ver Bal (2003) e Dikovitskaya (2005).
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disciplinas de humanidades, tais como a história da arte, e reivindicavam que o projeto interdisciplinar da cultura visual não estava mais organizado sobre o modelo da história assim como acontecera com a história da arte, da arquitetura e a teoria do filme, mas sim sobre o modelo da antropologia. A essa mudança Evans e Hall (1999) chamaram de dupla troca: da arte para a cultura visual e da história para a cultura. Nesse contexto, a arte deixa de ter um estatuto privilegiado em relação a outras práticas de significação e de produção de discursos. O termo cultura visual pode englobar uma variedade de formas de representação, desde as artes visuais e o cinema, até a televisão e a propaganda, atingindo ainda áreas em que, em geral, não se tende a pensar em cultura visual – as ciências, a justiça, a medicina, por exemplo. A cultura visual se ocupa da diversidade do universo de imagens. O conceito de ‘cultura visual’ foi introduzido no debate acadêmico como um novo foco de investigação e rapidamente tornou-se tema de uma discussão acalorada, embora ainda bastante incipiente no cenário acadêmico brasileiro. Localizado em algum ponto no cruzamento da tradicional história da arte, do cinema, da fotografia e dos estudos midiáticos, da filosofia da percepção, da antropologia dos sentidos e dos estudos culturais, os estudos visuais desafiam qualquer categorização, como ocorre freqüentemente com os “híbridos” (JAY, 2005). Apesar da dificuldade em se precisar o início dos assim chamados estudos visuais como um novo campo acadêmico marcado pela interdisciplinaridade, pode-se identificar 4
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como período fundador, sobretudo no cenário acadêmico anglo-saxão, o final dos anos 80. É o momento em que a história da arte, a antropologia, a lingüística, os estudos de cinema e a literatura comparada encontram a teoria pós-estruturalista e os estudos culturais (DIKOVTSKAYA, 2005). Alguns esforços pioneiros podem ser destacados, tais como a publicação de Ways of seeing (1972), de John Berger; Vision and painting: the logic of the gaze (1983), de Norman Bryson; History of bourgeois perception (1983), de Donald Lowe e Iconology (1986), de Mitchell. Ou, ainda, como destaca Jay (2005), conferências como a organizada por Hal Foster, em 1983, no Dia Art Foundation, em Nova York, cuja produção originou a coleção Vision and visuality, com ensaios de Rosalind Krauss, Jacqueline Rose, Jonathan Crary, Norman Bryson, entre outros colaboradores. Às iniciativas acima descritas, juntam-se dois programas acadêmicos que podem ser considerados como fundadores: o da Universidade de Rochester (1989), em Nova York, e o da Universidade da Califórnia, em Irvine (1998). Além deles podemos citar os da Universidade de Chicago e da SUNY Stony Brook (NY). É importante ressaltar, ainda, o papel de alguns periódicos no debate em torno do novo campo dos estudos visuais, com destaque para o já citado Journal of Visual Culture e o Visual Studies4, além, é claro, da própria October. No Brasil, podemos citar a revista Visualidades, publicação semestral do programa de mestrado em Cultura Visual da Universidade Federal de Goiás (UFG).5 Criado em 2003, o programa de mestrado da UFG é o único no Brasil em Cultura Visual
Visual Studies é uma publicação da International Visual Sociology Association. Para conferir as edições da revista, ver http:// www.visualsociology.org/publications.html. O primeiro número da revista foi publicado em 2003. Ver números já publicados em www.fav.ufg.br/culturavisual.www.fav.ufg.br/ culturavisual.
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e divide-se em duas áreas de concentração – processos e sistemas visuais e educação e visualidade -, com três linhas de pesquisa: história, teoria e crítica da arte e da imagem; poéticas visuais e processos de criação; culturas da imagem e processos de mediação. Anualmente realiza um seminário de pesquisa, cujo objetivo é apresentar a diversidade de olhares sobre os estudos visuais, estimulando o debate em torno de questões relacionadas ao campo da arte e da cultura visual. A partir desse ano, o seminário passa a ter abrangência nacional. Com relação às publicações no Brasil, talvez a primeira em português tenha sido o artigo de Douglas Crimp, publicado na Revista USP em 1998, num dossiê sobre arte e contemporaneidade, em que ele comenta a relação entre os estudos culturais e a cultura visual. Meneses publica em 2003 na Revista Brasileira de História um estudo sobre o tema e em 2006 Knauss atualiza a discussão. A edição mais recente da revista Visualidades traz um dossiê sobre “cultura visual”, com artigos de pesquisadores brasileiros, espanhóis e norte-americanos. Em 2006, a revista Interin6 publica tradução de Showing seeing: a critique of visual culture, artigo de Mitchell originalmente publicado no Journal of Visual Culture em 2002. Com a temática “Space, time and image”, a International Visual Sociology Association realiza sua conferência pela primeira vez na América Latina. Será em Buenos Aires, de 6 a 8 de agosto desse ano.7
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O questionnaire e seus desdobramentos Numa pesquisa desenvolvida em 2001 como parte de sua tese de doutoramento8, Dikovtskaya entrevistou os pesquisadores que responderam ao “visual culture questionnaire” e identificou três grupos dominantes: o primeiro que considera a cultura visual como uma expansão apropriada da história da arte; outro que vê o campo como independente da história da arte e mais apropriadamente estudado com as tecnologias da visão relacionadas à era digital e virtual e, finalmente, um terceiro grupo que entende a cultura visual como um campo que desafia a tradicional disciplina de história da arte. As entrevistas foram incluídas em seu livro Visual culture: the study of the visual after the cultural turn, publicado em 2005. Nos estudos de cultura visual, como observa Knauss (2006), a cultura é entendida como produção social e, por isso, o olhar pode ser definido como construção cultural, com a competência visual do espectador sendo estabelecida socialmente. Assim, o conceito de autonomia da arte é substituído pelo conceito de intertextualidade; o valor estético também é uma construção social. Em vez de uma história da arte, passa-se a pensar em uma história da imagem. Dessa forma, do “pictorial turn”, proposto por Mitchell (1994) nos anos 90, passa-se ao “visual turn”, como sugere Jay (2002), com a visão deixando de ser entendida como dada naturalmente e a universalidade da experiência visual sendo questionada.
Publicação on-line do programa de Mestrado em Comunicação da Universidade Tuiuti do Paraná. Ver www.utp.br/interin. Ver sítio do evento: http://www.visualsociology.org/conf_2008/. Dikovitskaya foi orientada por Keith Moxey na Universidade de Columbia e sua tese intitula-se “From art history do visual culture: the study of the visual after the cultural turn”.
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CULTURA VISUAL: DEFINIÇÕES, ESCOPO, DEBATES
Para Mirzoeff (1999), contudo, a cultura visual não é simplesmente uma história das imagens. Para ele, a cultura visual é uma abordagem para o estudo da vida na contemporaneidade do ponto de vista do consumidor mais do que do produtor e um meio de entender a resposta do consumidor à mídia visual. O autor considera, ainda, que a cultura visual não depende propriamente das imagens, mas da tendência moderna de visualizar a existência. Mirzoeff entende cultura visual como a interface entre todas as disciplinas que lidam com a visualidade e a cultura contemporânea. Como conclui Dikovitskaya (2002), alguns pesquisadores usam o termo “estudos visuais” para denotar novas abordagens teóricas em história da arte; outros querem expandir o território profissional dos estudos da arte para incluir artefatos de todos os períodos históricos e culturas; alguns enfatizam o processo do ver através das épocas; enquanto mais alguns pensam a categoria do visual como incorporando mídias não tradicionais, não somente a televisão e a mídia digital, mas também a ciência, a medicina e as leis. Não existe consenso com relação às abordagens estratégicas, metodologias e práticas pedagógicas a adotar. No contexto da cultura visual, a imagem, além de representação, pode ser entendida como um artefato cultural; por isso ela permite a reconstituição da história cultural de grupos sociais, contribuindo também para um melhor entendimento de processos de mudança social, do impacto da economia e da dinâmica das relações interculturais. Ou seja, a representação também é uma prática de significação. Contudo, a imagem não fala por si só, mas expressa e dialoga constantemente com
modos de vida típicos da sociedade que a produz. Nesse diálogo ela se refere a questões culturais e políticas fundamentais, expressando a diversidade de grupos e ideologias presentes em determinados momentos históricos. Assim, através da análise das imagens, é possível melhor entender as mudanças e transformações por que passaram os diferentes grupos sociais. Como, então, analisar imagens? Falar em métodos de pesquisa da imagem é falar de metodologias referentes à construção, transmissão e decodificação de produtos visuais, produzidos dentro de uma dita cultura visual. Referências bibliográficas ANDERMANN, Jens and ROWE, William (Ed.). Images of power: Iconography, culture and the state in Latin America. Oxford and New York/ Berghahn Books, 2005. BAL, Mieke. Visual essentialism and the object of visual culture. Journal of Visual Culture 2 (1): 5-32. CRIMP, Douglas. Estudos culturais, cultura visual. Revista USP. Dossiê Arte e Contemporaneidade. São Paulo: USP, Dezembro / Janeiro / Fevereiro, 1998-1999. DIKOVITSKAYA, Margaret. A look at visual studies. Afterimage, Mar-Apr, vol. 29, n. 5, 2002. DIKOVITSKAYA, Margaret. Visual culture: The study of the visual after the cultural turn. Cambridge, MA: MIT Press, 2005. EVANS, J.; HALL, S. Visual culture: The reader. London: Sage, 1999. JAY, M. Cultural relativism and the visual turn. Journal of Visual Culture, Vol. 1, n. 3, p. 267278, 2002. JAY, M. Introduction to show and tell. Journal of Visual Culture, Vol. 4, n. 2, p. 139-143, 2005. KNAUSS, P. O desafio de fazer história com imagens: Arte e cultura visual. ArtCultura, Uberlândia, v. 8, n. 12, p. 97-115, jan-jun, 2006.
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Visualidades. Revista do Programa de Mestrado em Cultura Visual. Dossiê Cultura Visual. Goiânia, GO: Faculdade de Artes Visuais/UFG. V. 4, n. 1 e 2, 2006.
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resenhas
RESENHA
DUPRAT, Annie. Images et Histoire: outils et méthodes d’analyse des documents iconographiques. Paris: Belin, 2007. 224 p.
Angelita Marques Visalli Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Professora Adjunto do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e do Programa de Pós-graduação em História Social da UEL. Autora de, entre outras publicações, O corpo no pensamento de Francisco de Assis, Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco; Curitiba: Faculdade São Boaventura, 2003.
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ANGELITA MARQUES VISALLI
DUPRAT, Annie. Images et Histoire: outils et méthodes d’analyse des documents iconographiques. Paris: Belin, 2007. 224 p.
O estudo de Annie Duprat vem ao encontro das inquietações daqueles que se iniciam nas reflexões sobre a imagem na história. Pesquisadora renomada, com vasta produção acerca da França moderna, já há alguns anos explora material imagético como objeto de seus estudos. Podemos destacar Marie-Antoinette, une reine brisée (Paris, Perrin, 2006), Histoire de France par la caricature (Paris, Larousse, 2000), Les rois de papier. La caricature de Henri III à Louis XVI, (Paris, Belin, 2002), La monarchie absolue et la remise en cause de l’absolutisme, (Paris, CNED, 2006), entre inúmeros artigos e obras coletivas. Neste estudo A. Duprat se afasta um pouco das discussões sobre a política francesa no período moderno para apresentar trabalho de cunho metodológico, uma introdução ao estudo da imagem na perspectiva histórica, uma necessidade premente dessa área. A ampliação do leque de possibilidades, em termos de documentação, para a análise histórica foi, certamente, fundamental para a verdadeira revolução historiográfica processada no século passado, mas as dificuldades diante da constituição de novos recursos metodológicos ainda é uma realidade. Assim, percebemos que o uso da imagem tem sido ampliado grandemente como recurso fundamental para tentarmos compreender as expressões pretéritas, mas a intenção esbarra, muitas vezes, no
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desconhecimento de instrumental metodológico específico, o que leva à repetição de lugares-comuns, à interpretações superficiais, à percepção da imagem como recurso para confirmação de idéias preconcebidas. Nesse sentido, a obra de Annie Duprat vem tentar suprir essa carência, apresentando texto claro e consistente, dedicado ao pesquisador/historiador, diante do desafio da extrapolação da documentação escrita. Convidado a explorar os caminhos da história das sensibilidades e da emoção, da história política e das convicções, da memória, da história cultural e da comunicação (p.82), ao historiador é apresentada a iconografia histórica como via nova e complementar de outros métodos de trabalho (p. 95). A obra apresenta, primeiramente, um panorama geral e conceitual e, em seguida, volta-se para questões metodológicas propriamente ditas, onde, inclusive, é dado um exercício de análise sobre vários dossiês temáticos (a batalha de Bouvines, imagens religiosas, a guerra, a morte, o poder). Na primeira parte (Savoirs. Observations sur les images), a autora apresenta uma reflexão sobre a expressão “imagem” e suas correlatas, retomando, em grandes linhas, sua significação desde a pré-história à emergência da cultura visual no período moderno e contemporâneo. Nesse caso, a percepção da relação entre imagem e morte
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RESENHA
serve como um fio condutor a partir da préhistória e deságua na conteporaneidade. De substituta e simulacro do real, a imagem desempenha, hoje, eminentemente funções comerciais e de informação mas, de qualquer modo, “invade o mundo sensível e configura os imaginários” (p. 33). Após a advertência ao pesquisador de que não há caminho sistemático e unívoco que possa servir de método para análise de imagens, sob risco de reduzi-la a uma simples dimensão de ilustração ou informação sobre um “acontecimento histórico” (p.35), Duprat sugere um trajeto: inicialmente a observação sobre a imagem, sobre a referência escrita possivelmente presente, a relação com o texto, a confrontação com outras imagens de igual ou semelhante temática. Em seguida, partindo do questionamento fundamental dos teóricos da comunicação (quem fala?, para quem?, para dizer o que?, quais os resultados?), a autora apresenta um quadro das questões fundamentais que precisam ser consideradas pelo pesquisador/historiador: sobre a natureza institucional da imagem e a relação liberdade/enquadramento do artista; sobre a difusão pública ou privada da imagem; sobre seu conteúdo (utilitário ou publicitário); sobre os recursos utilizados (alegoria, simbolismo, mitologia, história); finalmente, sobre os resultados, onde a pesquisadora apresenta uma interessante reflexão sobre a imagem como registro: as imagens podem construir o acontecimento e sua memória. Percebe-se, mesmo, uma tendência a que o conhecimento seja creditado pela imagem, a exemplo das imagens de extermínio no campo de Auschwitz, “símbolo absoluto de crime contra a humanidade”, enquanto as ações em outros campos de concentração, como Dora ou Sobibor, são praticamente
rejeitadas face à sua destruição e ausência de registros visuais. (p. 80) Partidária da justaposição e confrontação de várias representações de um mesmo acontecimento, personagem ou questão, a autora apresenta, na segunda parte de sua obra (Savoir-faire. Lectures d’Images), uma série de dossiês organizados a partir de critérios bastante distintos, procurando evidenciar as diversas possibilidades de abordagem. Assim, são identificadas representações em torno de um acontecimento – a batalha de Bouvines; da caracterização do suporte e técnica empregada – a imagem religiosa; da caracterização específica do traço/desenho – a caricatura; e de um tema – a guerra, a morte. Certamente, os dossiês não apresentam uma análise aprofundada das representações, mas a disposição segue a preocupação com a abrangência permitida a temas variados. Desse modo, os exemplos abordados quanto à Batalha de Bouvines foram escolhidos em razão das técnicas de elaboração (iluminura, gravura, pintura a óleo e cromolitografia) e o acontecimento é evidenciado segundo os imaginários das várias épocas das imagens (séculos XIII, XVII, XVIII e XIX). As principais discussões acerca da questão metodológica no uso da imagem como documento histórico são identificadas, podendo ser destacado o problema evidenciado por Michel Vovelle acerca da inclinação à especialização: a tendência dos estudos de casos de que se valem, em geral, os pesquisadores das imagens, inclina-os a análises fechadas, sem uma “teorização” de seus resultados. Atenuando a crítica do
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historiador francês à micro-história e às pesquisas “fechadas sobre si próprias”, Annie Duprat evidencia a consequência mais direta desses estudos de casos para a historiografia: não há como, hoje, fazer história sem recorrer também às fontes iconográficas (p.96). Os comentários da historiadora às obras referidas no corpo do texto são preciosas indicações ao pesquisador iniciante. Além disso, o historiador encontrará nesse trabalho uma extensa referência bibliográfica e indicação de endereços de vários sites interessantes, o que certamente facilita e muito o trilhar de novos campos, mas a conclusão da obra o remete a um desafio
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instigante e ao mesmo tempo assustador: o historiador, tendo em vista a erudição de que é portador, tem condições de explorar o material iconográfico, assim como o faz com a documentação escrita (p.207-208). Como mesmo evidencia a autora, a ausência de uma metodologia capaz de abranger a diversidade de suportes imagéticos, tipos, etc, apresenta um universo a ser desbravado. Isso, certamente, leva-nos aos riscos de uma liberdade inconseqüente, à construção de uma história sem conteúdo, superficial, quando não, anacrônica. No entanto, somente o exercício da análise dos registros visuais pode nos possibilitar condições de avaliação.
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RESENHA
CAVALCANTI, Lailson de Holanda. Historia del humor gráfico en el Brasil. Lleida: Editorial Milenio, 2005. 334 p.
Rodrigo Rodrigues Tavares Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Doutorando em História pela USP. Autor do livro A “Moscouzinha” brasileira: cenários e personagens do cotidiano operário de Santos (19301954). São Paulo: Humanitas: Fapesp, 2007.
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RODRIGO RODRIGUES TAVARES
CAVALCANTI, Lailson de Holanda. Historia del humor gráfico en el Brasil. Lleida: Editorial Milenio, 2005. 334 p.
O humor gráfico, seja ele na caricatura, charge, história em quadrinhos, entre outros, ganha mais espaço no Brasil: proliferam as publicações de antologias de diversos autores, as traduções de clássicos estrangeiros, os sites especializados, as charges animadas nas emissoras de TV, e, acompanhando esse movimento, os estudos sobre o assunto nas universidades. No entanto, nenhum desses estudos têm a proposta abrangente e audaciosa presente no livro História del humor gráfico en el Brasil, de Lailson de Holanda Cavalcanti, publicado em 2005 na Espanha, pela editorial Milênio. A obra faz parte da coleção História del humor gráfico, que já lançou obras similares sobre Cuba, México, Espanha, Portugal, Uruguai e Venezuela. O livro abarca um período com início em 1500 e término em 2004, tendo como foco os estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco, mas esta abrangência geográfica aumenta para os demais estados da federação, especialmente na história mais recente. O tamanho dessa empreitada está distribuído em 334 páginas com cerca de 400 imagens entre reproduções de quadros, vinhetas, caricaturas, charges, capas de revistas e jornais etc. Tamanha quantidade de material iconográfico faz com que a obra seja tanto para ser lida no texto como nas imagens. Desde a publicação da História da caricatura no Brasil, de Herman Lima, em 1963, referência obrigatória sobre o assunto,
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nenhum autor buscou fazer um trabalho tão abrangente e minucioso sobre o tema. Já foi levantada a hipótese de que o trabalho de fôlego de Lima acabou por inibir estudos mais sistemáticos sobre a questão. Dessa maneira, a própria publicação da obra de Lailson já preenche um espaço importante. O autor é desenhista e, portanto, também personagem do livro, além de pesquisador e colecionador. Esse caráter multifacetado ajuda a encarar a difícil tarefa de dar conta de mais de 500 anos de humor gráfico. A organização estrutural da obra se dá por ordem cronológica, em 12 capítulos que, em geral, utilizam como referência o contexto histórico vivido pelo país. Dentro dos capítulos o autor faz subdivisões que geralmente privilegiam os estados da Federação, que, por sua vez, estão organizadas por periódicos e/ ou desenhistas. Dessa maneira, a obra certamente abre espaço de discussão com vários pesquisadores que desenvolvem pesquisas monográficas sobre temas, periódicos e autores presentes no livro. Com tamanha amplitude, vários de seus capítulos ou subdivisões dariam outros livros, a obra se transforma em fonte de consulta para vários tipos de leitores, com interesses diversos, gerando muitos assuntos para uma resenha. Todavia, um aspecto que deve ser ressaltado numa obra que trata do humor gráfico é a sempre difícil relação entre texto e imagem, dois códigos de comunicação distintos.
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RESENHA
Lailson aborda o contexto político e cultural do país, algo necessário para entender as imagens, mas o seu trabalho poucas vezes faz uma análise mais aprofundada das imagens presentes ao longo das páginas. A definição de qual é a primeira caricatura publicada no Brasil é amplamente debatida, mas muitas das demais imagens são meramente acessórias, “ilustram” o trabalho de algum artista. Sem dúvida, em um livro sobre humor gráfico, o leitor espera a reprodução de caricaturas e charges, mas sendo elas as principais fontes históricas, valeria a pena uma análise mais detalhada das mesmas. Para o leitor, basta ver como muitas delas podem ser dispensadas do livro, ainda que isso diminua o prazer da obra, sem comprometer ou acrescentar algo às informações presentes no texto. O lançamento do livro na Espanha determina algumas características específicas por ser voltado para o público estrangeiro. A ordem cronológica adotada pelo autor ajuda o leitor não familiarizado com a nossa história, assim como o texto também vai ao auxílio desse público ao ser acessível, contando o contexto histórico em que estão inseridas as imagens, e, de certa maneira, a história nacional. Assim, o leitor estrangeiro conhece não só o humor gráfico no Brasil, como também o contexto geral da história do país. Se para o estrangeiro, sem essas informações, as imagens seriam incompreensíveis. Para o brasileiro familiarizado com o contexto básico da história do país, algumas passagens ganham um caráter mais didático, longe de ser fundamental para o entendimento do humor gráfico. Alguns pontos precisam, também, ser analisados pelo fato do livro estar escrito em espanhol. Como não consta nome de tradutor, aparentemente, o próprio Laílson Cavalcanti
escreveu em espanhol. O autor fala sobre a situação política de Pernambuco citando as “oligarquias feudales” (p.123) do estado. Por muito tempo, parte da historiografia, principalmente aquela ligada ao Partido Comunista Brasileiro, defendeu a tese do feudalismo no Brasil, dentro de uma visão esquemática em que o próximo passo seria o capitalismo e, então, o almejado socialismo. Provavelmente, Lailson usou a expressão para facilitar o entendimento do leitor espanhol possibilitando a comparação com a história de seu país. Ainda assim, a expressão ecoa uma discussão hoje superada. Já o desenho (p.235) em que se vê o contraste de riqueza entre as moradias da planície e as do morro tem como título “Abaixo, o capitalismo” e, ao ser vertido para o espanhol, foi omitida a vírgula, o que acaba com a ironia original. Há também um desenho de um avião em queda livre (p.253) em que o comandante e o copiloto conversam, um em espanhol e outro em português, ficando o leitor na dúvida se era assim no original. Há ainda uma referência ao “estado” de Fortaleza (p.254). Um dos aspectos que mereceria melhor cuidado, especialmente para o leitor especializado, é o das fontes. Ao longo do trabalho, alguns sites (p.318) e livros (p.67, 251, 304, 307) são citados, mas não incluídos na bibliografia final. A bibliografia conta ainda com algumas ausências que poderiam auxiliar a pesquisa. O autor deu ênfase maior às publicações dos cartunistas, deixando de lado alguns trabalhos acadêmicos importantes. Os livros de Gonçalo Junior, A Guerra dos Gibis, de Goida, Enciclopédia dos quadrinhos, de André Toral, Imagens em desordem, os de Álvaro de Moya, História da história em quadrinhos e Shazam!, e os de Marcos Silva, Prazer e poder do Amigo da Onça e Caricata república – Zé Povo e o Brasil
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são trabalhos que contribuíram para a história do humor gráfico no Brasil, mas não são citados na obra de Lailson. No caso específico do personagem Amigo da Onça, o estudo de Marcos Silva trata especificamente dessa criação de Péricles, mas Lailson cita o personagem sem fazer qualquer referência ao estudo pioneiro de Silva. Também facilitaria ao pesquisador conhecer os acervos pesquisados, quais bibliotecas e arquivos foram consultados na localização das imagens, o que só valorizaria a ampla pesquisa empreendida pelo autor. Como são muitos os desenhistas e os periódicos citados, também seria de grande auxílio um índice onomástico. Ainda que esses cuidados editoriais sejam menos importantes para o público espanhol. No que diz respeito à periodização, o autor segue a tradicional que vai do descobrimento do Brasil pelos europeus até os dias atuais, 2004, com o governo Lula, uma visão panorâmica que muito auxilia o leitor estrangeiro. Todavia, ao valorizar a imagem como fonte histórica, o autor poderia ter construído uma periodização que tivesse como base as próprias imagens. Já que o próprio autor dá ênfase à questão da primazia - ao ressaltar o primeiro processo contra o humor (p.55), a primeira análise da caricatura (p.83), a primeira mulher desenhista (p.105) o primeiro diário a cores (p.100) o primeiro número da revista Careta (p.106), o primeiro historiador da caricatura (p.117) e discute, inclusive, a primeira caricatura no Brasil, em uma interpretação original, contrária àquela expressa por Herman Lima - ficaria mais coerente com uma história do humor gráfico se o autor tomasse as imagens como eixo de periodização.
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Ainda com relação à periodização, de certa maneira, o autor “atualiza” o trabalho de Herman Lima de 1963 pois, ao mesmo tempo que aborda desenhistas consagrados já trabalhados por Lima, Lailson também tem a oportunidade de fazer um amplo painel dos artistas que atuaram no período da ditadura brasileira, quando o humor foi uma arma importante de contestação ao regime, e na redemocratização. E termina a obra ressaltando que é o começo “de um nuevo siglo, de uma nueva etapa em la história del humor gráfico em Brasil” (p.323). Analisa então o humor gráfico no governo Lula, que ainda estava no começo quando da concepção do livro, tocando em uma questão interessante. Tendo em vista que tradicionalmente a caricatura e o riso servem contra o poder instituído, esse novo milênio do humor gráfico está ligado, evidentemente, à ascensão ao governo de uma figura que por muito tempo contou com a simpatia de muitos caricaturistas. O que coloca dilemas a serem enfrentados tanto pelos desenhistas como para os historiadores que enfrentam o assunto. Lailson constata que “muchos dibujantes no quieren hacer críticas, porque creen que es muy temprano” (p.322) e complementa “como la mayoría de los dibujantes y humoristas gráficos, el Pasquim 21 también tiene sus esperanzas en el nuevo gobierno, pero deja um espacio para las críticas a los deslices políticos que van surgiendo” (p.323). Fica implícita a tarefa futura de abordar o humor nesta nova fase. Mas antes de auxiliar na construção do conhecimento histórico sobre o humor gráfico do novo milênio, vale aprofundar a pesquisa do período anterior e, para isso, o pesquisador tem nas mãos uma obra abrangente e referência fundamental
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RESENHA
sobre o tema. Como o próprio autor reconhece ante a magnitude da tarefa a que se propôs traçar, seu objetivo era facilitar “el máximo de datos que permita a otros investigadores profundizar más en este estúdio.”(p.324). Portanto, seguindo os próprios anseios do autor, o livro acaba fazendo um convite necessário para que outros historiadores voltem as suas pesquisas para o período retratado, embora sem abrir mão do prazer que é rir das sátiras à política brasileira neste novo milênio.
Bibliografia CAVALCANTI, Lailson. História del humor gráfico en el Brasil. Lleida: Editorial Milênio, 2005.
GOIDA. Enciclopédia dos quadrinhos. Porto Alegre: L & PM Editores, 1990. JUNIOR, Gonçalo. A Guerra dos gibis: a formação do mercado editorial brasileiro e a censura aos quadrinhos 1933 – 1964. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. LIMA, Herman. História da caricatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1963. MOYA, Alvaro de. História da história em quadrinhos. São Paulo: Brasiliense, 1994. ________. Shazam! São Paulo: Perspectiva, 1977. SILVA, Marcos A. da. Caricata república: Zé Povo e o Brasil. São Paulo: Marco Zero, 1990. ________. Prazer e poder do Amigo da Onça 19431962. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. TORAL, André Amaral. Imagens em Desordem: a iconografia da guerra do Paraguai. São Paulo: Humanitas, 2001.
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Normas para Publicação
A Revista Domínios da Imagem é uma publicação do Laboratório de Estudos dos Domínios da Imagem na História – LEDI, um projeto integrado (pesquisa/extensão) do Departamento de História e está vinculada ao Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Paraná-Brasil. Tal iniciativa tem como objetivo difundir o diálogo intelectual entre pesquisadores que atuam em diferentes regiões do país e no exterior, bem como fomentar a interlocução entre distintas áreas que tratam dos domínios da imagem. A Revista Domínios da Imagem tem periodicidade semestral, com chamada periódica para o recebimento de artigos e resenhas. Conta com um Conselho Editorial, formado por membros do LEDI, um Conselho Científico e um Conselho Consultivo, compostos por pesquisadores ligados à várias universidades brasileiras e estrangeiras. Solicitamos aos nossos colaboradores que enviem seus trabalhos para o endereço abaixo mencionado atendendo as seguintes especificações: • Os textos aqui publicados são de inteira responsabilidade do(s) autor(es); • Todo o material deve ser encaminhado em envelope contendo: 3 (três) cópias impressas em papel A4 (210x297mm), sendo 1 (uma) identificada e 2 (duas) sem identificação; • 1 (uma) cópia idêntica em CD-Rom; • 1 (uma) folha contendo os seguintes dados de identificação: seção para a qual envia o trabalho (artigos ou resenhas), título do texto, nome completo do(s) autor(es), instituição a que pertence, titulação, endereço completo, telefone, fax e endereço eletrônico; • Os textos devem ter a seguinte formatação: editor Word for Windows, fonte Times New Roman, tamanho 12, espaço entrelinhas 1,5 cm. e com margens de 3 cm; • Todos os textos deverão ser apresentados após revisão ortográfica e gramatical; • Os artigos terão a extensão de 08 a 20 laudas, no máximo, incluindo imagens; • As notas deverão ser colocadas no final do texto, podendo nelas constar referências bibliográficas e/ ou comentários críticos ficando as referências restritas exclusivamente ao espaço das notas. Da remissão deve constar, entre parênteses, o nome do autor, em caixa alta, seguido da data de publicação da obra e do número da página, separados por vírgulas. Exemplo: (FRANCO, 1983, p. 114); • Os artigos serão acompanhados de título, resumo de, no máximo, 10 linhas e de 03 palavraschave em português e em inglês; • Os artigos e as resenhas em inglês, francês e espanhol serão publicados na língua original, sem a necessidade de título, resumo e palavras-chave em português; • As resenhas poderão ter entre 03 e 05 páginas e deverão vir acompanhadas de 03 palavraschave em português e em inglês; • As fotografias, ilustrações e/ou gráficos deverão vir em preto e branco, com resolução mínima de 300 dpi, desde que as fontes sejam devidamente mencionadas e autorizadas, respeitando a legislação em vigor. • Abaixo do nome do autor deverá constar a Instituição à qual se vincula, bem como titulação máxima;
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• Caso o trabalho/pesquisa e/ou experiência didática tenha apoio financeiro de alguma agência de fomento, esta deverá ser mencionada; • Caberá ao Conselho Editorial, a decisão referente à oportunidade da publicação das contribuições recebidas. Normatização das notas cf. NBR 6023: • SOBRENOME, Nome. Título do livro em itálico:subtítulo. Tradução. edição, Cidade: Editora, ano, p. ou pp. • SOBRENOME, Nome.Título do capítulo ou parte do livro. In: Título do livro em itálico. Tradução, edição, Cidade:Editora, ano, p. x - y. • SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Título do periódico em itálico.Cidade: Editora, vol., fascículo, p. x-y,ano.
Os textos deverão ser enviados para o seguinte endereço: Revista Domínios da Imagem Departamento de História Universidade Estadual de Londrina Campus Universitário Cx. Postal 6001 Londrina – Paraná – Brasil CEP 86051-990
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