O AMIGO DA ONÇA: uma expressão da alma brasileira

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O AMIGO DA ONÇA

O AMIGO DA ONÇA: uma expressão da alma brasileira

uma expressão da alma brasileira

Alberto Gawryszewski (org.)

Coleção História na Comunidade – volume 1


O AMIGO DA ONÇA uma expressão da alma brasileira

Coleção História na Comunidade volume 1


Reitor Prof. Dr. Wilmar Sachetin Marçal Vice-Reitor Prof. Dr. Cesar Antonio Caggiano Santos Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-graduação Prof. Dr. Alamir Aquino Corrêa Pró-Reitor de Extensão Prof. Dr. Paulo Bassani Pró-Reitora de Ensino Profa. Dra. Fátima Cristina de Sá Diretor do Centro de Letras e Ciências Humanas Prof. Dr. Ludoviko Carnascialli dos Santos Chefe do Departamento de História Prof. Dr. Cristiano Gustavo Biazzo Simon Coordenador do Ledi Prof. Dr. Alberto Gawryszewski

Agradecemos aos funcionários: PROEX / UEL: Marina, Dayse e Edson; CDPH / UEL; Arquivo Público do Estado de São Paulo Biblioteca Municipal de Londrina


Alberto Gawryszewski (org.)

O AMIGO DA ONÇA uma expressão da alma brasileira

Coleção História na Comunidade volume 1

Universidade Estadual de Londrina Londrina • 2009


Uma publicação do Laboratório de Estudos dos Domínios da Imagem (LEDI), do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina Copyright© dos autores

Capa e editoração: Humanidades Comunicação Geral Imagem da capa: O Cruzeiro, 1957. Imagem da contracapa: O Cruzeiro, 11/01/1958. Tiragem: 1000 exemplares Distribuição gratuita. Venda proibida.

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) A516 O amigo da onça : uma expressão da alma brasileira / organizador Alberto Gawryszewski. Londrina: Universidade Estadual de Londrina / LEDI, 2009. (Coleção História na Comunidade, v.1 ) 90 p. : il.

Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7846-054-9

1. História. 2. Humor gráfico. 3. Imagem – História. I. Gawryszewski, Alberto. II. Título. CDU 930.2:77

Toda matéria publicada é de inteira responsabilidade dos autores. Impresso no Brasil / Printed in Brazil Feito depósito legal na Biblioteca Nacional


Sumário

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Apresentação

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O Cruzeiro: uma revista de imagens

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Quem é O Amigo da Onça?

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O Amigo da Onça: da construção do preconceito à sua contestação

Jorge Luiz Romanello

Ana Flávia Dias Zammataro

Alberto Gawryszewski

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Referências Bibliográficas



Apresentação A publicação deste livro é o início da realização de um desejo: dar transparência às atividades científicas produzidas pelos professores da Universidade Estadual de Londrina (UEL), em especial do Departamento de História, que participam do Laboratório de Estudos dos Domínios da Imagem (LEDI). É possibilitar um diálogo entre o saber científico e a comunidade. Daí, esta coleção se chamar História na Comunidade. Em agosto de 2006, foi criado no Departamento de História da UEL, na forma de projeto integrado (pesquisa/ extensão), o LEDI. Em três anos de existência, este tem desenvolvido diversas atividades relevantes. Entre elas podemos apontar: a realização, em maio de 2007, do I ENEIMAGEM (I Encontro Nacional de Estudos da Imagem – (www2.uel.br/eventos/eneimagem); a publicação da revista semestral Domínios da Imagem – http://www2.uel. br/cch/his/dominiosdaimagem/ (em novembro de 2009 será lançado o número 05); cursos de extensão e a realização, em maio de 2009, do II ENEIMAGEM (www.uel.br/eventos/ eneimagem). Em 2008, o LEDI teve aprovado seu projeto junto ao PROEXT/2008- Programa de Extensão Universitária (ProExt Cultura), um programa dos Ministérios da Cultura e da Educação, realizado com a colaboração da Fundação de Apoio à Universidade Federal de São João Del Rei (FAUF). Para este projeto partimos da afirmação contida nas Diretrizes Curriculares para o Ensino da História na Educação Básica, 7


que diz que as imagens, livros, jornais, fotografias, filmes etc. são documentos que podem ser transformados em materiais didáticos de grande valia na constituição do saber histórico. Os documentos possibilitam a reflexão e a construção de conceitos sobre o passado e permitem a formulação de questões sobre os conceitos já constituídos. Compreendemos a imagem como importante instrumento/documento para a formulação do conhecimento histórico. Na realidade ela pode ser a mediadora desse conhecimento. Assim, o projeto proposto atua em duas frentes: primeira, proporcionando ao aluno um novo olhar sobre as imagens, não como mera ilustração, mas rica de conceitos e interpretações; segunda, ajudando o professor a trabalhar com a imagem como instrumento de ensino, como fruto de uma criação humana repleta de significados. Este primeiro livro, que acompanha a exposição com o mesmo nome, foi concebido como mais um instrumento nas mãos dos professores na tarefa de dialogar com os alunos. A produção de Péricles e, depois, Carlos Estevão – O Amigo da Onça – que estava imbutida na revista de maior circulação nacional, O Cruzeiro, traz importantes reflexões sobre o papel da mídia e do humor gráfico como formadora de opinião ou como reflexo de uma sociedade. A exposição, composta por cerca de 80 banners (que podia variar conforme o espaço físico disponível), foi e está sendo montada em escolas, museus, associações esportivas, classistas e culturais. Foi dividida em três partes que se interligam: primeira, uma mostra da revistra O Cruzeiro, composta por capas, reportagens e entrevistas; segunda, composta pelas ilustrações O Amigo da Onça (AO), de Péricles.

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Esta foi subdivida em quatro partes: o preconceito do AO; as idades diversas do AO; a morte de Péricles e sua criação; e, por fim, o riso gratuito. A terceira e última parte da exposição apresenta as criações de Carlos Estevão. Este livro é formado por três artigos. O primeiro, de Jorge Luiz Romanello, trata da história da revista O Cruzeiro, típica “Revista de Variedades”. O autor privilegiou discutir um pouco sobre as fotos, os desenhos, charges e caricaturas que compunham a revista, pois era característica desta a ênfase sobre as imagens. O segundo artigo foi escrito por Ana Flávia Dias Zammataro no qual aborda alguns aspectos do personagem O Amigo da Onça. Escreve sobre a piada que deu origem a este e apresenta suas várias facetas: egoísta, mulherengo, sagaz; retratado como jovem e idoso, na forma animal e em vários empregos. Mas, sempre aparecendo como um amigo da onça. Faz uma ligeira biografia de Péricles, com seu fim trágico, e de Carlos Estevão, destacando o brilhante trabalho deste na continuação da produção do personagem O Amigo da Onça. O terceiro e último artigo foi escrito pelo autor destas palavras. Procurei trabalhar com alguns conceitos presentes em nossa época, tais como o belo, feio, riqueza, pobreza, velhice, etnia entre outros. Tais conceitos geram preconceitos, ou seja, uma forma unilateral de análise (ou não) que reforça valores, desagrega os laços humanos, gera ódios, sobrepõe um ser sobre outro e outros malefícos. Perícles e Carlos Estevão, astutos observadores da sociedade brasileira, colocaram seus traços a serviço da denúncia dos preconceitos existentes em nossa sociedade.

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Espero que este livro, que dá início a coleção História na Comunidade, composta inicialmente por nove livros, contribua para o debate e o ensino de História, bem como no resgate de um importante personagem de nosso humor gráfico, O Amigo da Onça. Este material pode ser copiado, no todo ou em parte, devendo ser nomeada sua fonte. O download dos textos, na versão em cores, poderá ser realizado na página do LEDI (http://www.uel.br/cch/his/ledi/), bem como dos vídeos produzidos e das imagens que compõem a exposição O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira. Boa leitura! Alberto Gawryszewski Coordenador da coleção

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O Cruzeiro uma revista de imagens Jorge Luiz Romanello

Introdução Neste capítulo discutiremos um pouco da história da revista O Cruzeiro e também de sua importância para o estudo da história recente do Brasil. Estamos acostumados a ler revistas e quase nunca nos perguntamos sobre seu conteúdo, como são feitas, a que grupos se ligam e quais interesses têm, e muito menos lembramos que não foram como são hoje. O simples folhear de uma revista antiga permite-nos perceber uma série de valiosas informações. Se atentarmos para isto podemos aprender muitas coisas sobre a sociedade em que vivemos. Ao manuseá-las, em geral, o que mais percebemos, nas fotos e propagandas, são as diferenças nos cortes de cabelos e nas roupas. Mais do que apenas mostrar mudanças da moda, mostram também transformações nos costumes. As mudanças nos modelos dos carros mostram mais que mudanças de estilos e marcas; nelas transparece, também, o esforço da indústria automobilística em associar seus produtos a estilos de vida.

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Notamos algumas permanências, também, como por exemplo, daqueles produtos que circulam por décadas a fio com a mesma embalagem ou de alguns assuntos que estão sempre em debate. O que em geral não notamos é que os aspectos gráficos das revistas – a diagramação (a forma de distribuir títulos, subtítulos e fotos das matérias e reportagens, a quantidade de texto em relação ao de fotos etc), as seções que as compõem e uma série de outros aspectos – praticamente, não mudam de uma edição para outra ou mudam tão devagar que só percebemos essas mudanças, quando manuseamos publicações de muitas décadas atrás. Dessas mudanças e permanências de assuntos e de estilos gráficos, da forma como são apresentadas, relações estabelecidas com o público, o tratamento dos temas e outros aspectos do gênero é que fazem da imprensa (jornais e revistas principalmente) importante fonte de pesquisa para os estudos históricos. Nesse sentido, os estudos das imagens – desenhos, fotos e outros – têm uma enorme contribuição a oferecer, pois permitem perceber características que nenhum outro tipo de fonte permite. A este respeito, podemos lembrar aqui, rapidamente, de aspectos específicos dos papéis da mulher e do homem na sociedade, do desenvolvimento industrial, dos preconceitos sociais e religiosos e assim por diante. Nesta perspectiva, O Amigo da Onça, de Péricles, é um personagem exemplar, e por meio do estudo de seus comportamentos podemos perceber que ele sintetiza muitos valores sociais predominantes da época em que foi produzido. A associação entre O Amigo da Onça e a revista O Cruzeiro, com sua circulação nacional e grandes tiragens no 12


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período em que Péricles trabalhou lá, foi muito benéfica para ambos, uma vez que aliou um personagem de grande aceitação popular com as condições necessárias para que as charges chegassem aos leitores de todo o Brasil. Portanto, conhecer um pouco mais sobre a revista O Cruzeiro é conhecer um pouco mais da história do Brasil e do veículo de comunicação que levou O Amigo da Onça ao interior dos lares brasileiros.

O Cruzeiro uma revista de variedades A revista O Cruzeiro foi fundada em 1928, uma época em que as técnicas de impressão de imagens estavam bem desenvolvidas e o público já estava bastante acostumado a ler revistas ilustradas, tinha circulação semanal e nasceu para ser a mais moderna do Brasil e a primeira a circular em todas as regiões do país e pertencia ao conglomerado de mídias chamado de “Diários Associados”.

Os “Diários Associados” foram um conglomerado de mídia que começara a ser montado em 1924 com a aquisição do jornal O Jornal. Este cresceu sem parar por quase quarenta anos, chegando a congregar, em 1959, dezenas de jornais, as principais estações de televisão, 28 estações de rádio, as duas mais importantes revistas para adultos do país, doze revistas infantis, agências de propaganda, um castelo na Normandia, nove fazendas produtivas espalhadas por quatro estados brasileiros, indústrias químicas e laboratórios farmacêuticos, estes encabeçados pelo poderoso [laboratório farmacêutico] Schering. Foi um império tão grande quanto frágil que sobreviveu poucos anos após a morte de Chateuabriand (MORAIS, 1994). 13


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Com uma tiragem inicial de cinquenta mil exemplares, estabelecia um verdadeiro record para os padrões da época, chegando a circular 600.000.000 exemplares, em média, entre o meio e o final da década de 1950, atingindo um público estimado entre três e quatro milhões de leitores (devemos lembrar que cada revista, normalmente, era lida por várias pessoas). A revista era propriedade do poderoso advogado e jornalista Assis Chateaubriand Bandeira de Mello – conhecido publicamente como Assis Chateaubriand e pelos íntimos simplesmente como “Chatô”. Assis Chateaubriand nasceu em 1892, em Umbuzeiro, na Paraíba, formou-se em direito na Faculdade de Direito do Recife de onde conseguiu se tornar professor aos 24 anos, após uma intensa batalha judicial – cargo que nem chegou a assumir. Mudou-se, em seguida, para o Rio de Janeiro disposto a formar uma cadeia de jornais, o que efetivamente começaria a acontecer alguns anos depois e que se personificou no império “Diários Associados”, que dirigiu por cerca de quatro décadas.

Chateaubriand reunia, na mesma pessoa, personalidades muito distintas, em que conviviam um perfil conservador e violento, quase de um antigo coronel do século XIX, com o de um homem visionário e elegante que amava a cultura, as artes e os museus. Com o poder e a influência que conseguiu, graças aos jornais, revistas, emissoras de rádio, e mais tarde de televisão, interferia diretamente na vida política brasileira, apoiando

ou

destruindo

candidatos

e

pressionando

presidentes, governadores e outras autoridades a atender 14


O Cruzeiro uma revista de imagens

suas reivindicações. O castigo para quem não concordava com ele ou não atendia às suas exigências era, com frequência, um conjunto de retaliações veiculadas em seus órgãos de comunicação. Por conta de seu temperamento e de sua forma de agir, conseguiu muitos admiradores e muitos inimigos também. Faleceu em São Paulo, em 1968 (MORAIS, 1994).

“Personalidades do ano de 1956”, 06/01/1957

Na imagem acima (página à direita), vemos Chateubriand em uma reportagem sobre as personalidades do ano de 1956. A própria forma como é diagramada uma reportagem já nos informa muita coisa; neste caso, são duas página divididas em três partes. A da esquerda (dividida em duas metades iguais), na parte superior, destaca as homenagens ao general Lott – um importante militar e político brasileiro que mais tarde chegou a disputar uma eleição presidencial. Com o título: “FIANÇA DA ORDEM” e duas fotos dele recebendo as honrarias da “Espada 15


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de Ouro” e de “Nossa Senhora”. Na metade inferior, com o título: “O ANO PASSA – E O TRABALHO CONSTRUTIVO FICA”, oito fotos exibem as realizações e grandes eventos que marcaram o primeiro ano de governo do presidente Juscelino Kubitschek (1955-1961). A da direita, inteiramente dedicada ao proprietário dos “Diários associados”, é uma montagem com cerca de vinte fotos menores impressas em uma cor rosa escuro formando um mosaico (fotos do próprio Chateaubriand publicadas anteriormente pela revista) e um grande close em preto e branco que ocupa quase toda a página. A

revista

noticiou

a

premiação

com

o

título

CHATEUBRIAND: Nacional e Internacional e com um pequeno texto que ressalta suas inúmeras qualidades e títulos, chegando até mesmo a destacar suas 160 viagens e “592,30” horas voadas. Ou seja, meia página e duas fotos para o General Lott, meia página e oito fotos para o presidente JK e uma página e mais de vinte fotos para o proprietário da revista. Devido a sua importância no cenário cultural brasileiro e à beleza das ilustrações e fotografias que ela continha, a revista transformou-se em objeto de coleção para muitos leitores que acreditavam guardar em casa reportagens que eram uma parte da história do Brasil em que viviam, uma vez que os editores e fotógrafos de O Cruzeiro produziam no leitor a sensação de contar “A Verdade” dos fatos, e não apenas uma versão – entre as muitas possíveis – sobre eles. Desde os primeiros números, sua principal característica era o uso de um grande número de imagens, recurso que atraía o público e facilitava a leitura. Também os textos eram cuidados para que o conteúdo pudesse ser lido com rapidez e compreendido com uma certa facilidade. A revista era impressa em papel de alta qualidade, o que a 16


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deixava atraente, as charges, em geral, eram usadas para criticar e divertir, os desenhos eram muito usados nas propagandas dos produtos anunciados e havia, ainda, diversos tipos de ilustração que enriqueciam histórias, destacavam as novidades do mundo da moda, além de várias outras finalidades. Havia um cuidado para que todos os tipos de assuntos estivessem presentes em cada edição. Assim, as grandes discussões internacionais dividiam espaço com as colunas sobre o cotidiano, a moda, os conselhos para as mulheres, futebol, automóveis, a política, novelas escritas, carnaval, tecnologia, acontecimentos no mundo do rádio, teatro, cinema entre outros A escolha de assuntos pretendia atingir o maior público possível, dirigindo especial atenção ao público feminino.

“Factos da Semana”, 22/03/1929

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Embora tenha se colocado como uma publicação moderna, no início as fotografias eram estáticas, com os participantes fotografados parados e fazendo poses. O texto era o elemento principal e o que gerava sentido às reportagens; este, quando mais longo era habitualmente intercalado com propagandas desenhadas. Tratar de inúmeros assuntos era a sua marca e, em função disso, estas revistas, passaram a ser chamadas de “Revistas de Variedades”, pois desde o começo do século XX, já existiam as “Revistas Especializadas” (aquelas que discutiam cinema, automobilismo, assuntos femininos etc.). No decorrer de sua longa história, O Cruzeiro viveu altos e baixos, esteve inclusive a ponto de ser fechada em meados da década de 1930. A revista recuperou-se espetacularmente alguns anos depois, tendo vivido sua melhor fase na década de 1950. Desde o lançamento, possuía correspondentes em várias partes do mundo e, em diversas ocasiões, patrocinou viagens de seus repórteres e fotógrafos a países como Portugal, França, Inglaterra, Egito, Líbano e diversas outras partes do mundo, incluindo o quase inexplorado Pólo Norte (meados da década de 1950). Os equipamentos gráficos utilizados em sua impressão muito cedo foram importados da Alemanha (início da década de 1930), colocando suas oficinas entre as mais modernas do mundo. Em suas páginas foram publicadas algumas das mais importantes reportagens da história do jornalismo brasileiro, por suas redações passaram alguns dos melhores repórteres brasileiros, como David Nasser, Armando Nogueira, Audálio Dantas, Luiz Carlos Barreto, e outros. O principal deles, sem dúvida, foi David Nasser (1917 –1980), que além de repórter foi um de seus principais 18


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diretores (a partir de 1959) e também escritor, além de letrista de sambas famosos. Trabalhou em O Cruzeiro entre 1943 e 1974. A seu respeito, estudiosos e ex-companheiros de trabalho são quase unânimes em dizer que possuía uma habilidade sem igual para escrever uma história, mas também para exagerar na cobertura dos assuntos e mesmo para inventar reportagens.

O Moderno fotojornalismo Em 1943, chega às redações da revista o sensacionalista e hábil fotógrafo francês Jean Manzon. Ele foi o principal responsável pelas mais importantes mudanças gráficas ocorridas na história de O Cruzeiro, e mesmo na história das revistas ilustradas brasileiras. Implantou na revista o “moderno fotojornalismo” e, com isto, as páginas e as fotos aumentaram de tamanho. A partir de então, passou a ser comum que uma única foto ocupasse até mesmo duas páginas, o que as transformava em um único grande espaço. As fotos passaram a ser editadas predominantemente sem as tradicionais margens brancas, o que causava a impressão de que continuavam para fora da página da revista, fazendo com que parecessem maiores. Começaram também a ser dispostas de maneira a contar uma história, sem ou com pouco auxílio dos textos, que encolheram muito de tamanho. Iniciava-se uma era em que a comunicação das revistas tornava-se mais ágil com o uso de imagens que se sucediam em um ritmo parecido ao do cinema. Outras mudanças importantes também ocorreram; uma das mais significativas foi a formação de duplas de jornalistas para a produção de matérias e reportagens, em que um 19


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produzia o texto e o outro as fotos. Nascia, desta forma, a mais famosa de todas, a formada pelo experiente David Nasser, que já trabalhava na revista e o recém chegado Manzon. O gosto do público pelo trabalho da dupla transformouos em estrelas da imprensa brasileira. A fama dos dois ajudava a vender revistas, seu trabalho passou a ser cercado pelo sensacionalismo, as reportagens que faziam eram anunciadas antecipadamente e tratadas como verdadeiras aventuras marcadas pelo perigo e pela ousadia. O Cruzeiro chegou a inserir, em diversos momentos, fotos da dupla como parte das reportagens para reforçar a veracidade daquilo que se publicava. Mostrar suas fotos era como certificar de que estiveram nos locais inóspitos onde se realizavam as reportagens (coisa que nem sempre aconteceu de fato), em meio aos perigos e desafios. Agindo dessa maneira, a revista transformavaos em homens corajosos e aventureiros, uma espécie de “desbravadores de assuntos”, que faziam de tudo para “Mostrar o Brasil aos brasileiros” por ângulos nunca antes vistos na imprensa brasileira. Temas da cultura, os “tipos brasileiros”, as formas tradicionais de trabalho e muitos outros, semanalmente, chegavam às mãos dos leitores que aumentavam mais e mais. Em “República do Peixe” podemos perceber o resultado das reformulações gráficas na revista: o título, o subtítulo, legendas e alguns pequenos boxes estrategicamente colocados na reportagem, praticamente dispensavam que o público soubesse ler, pois a comunicação, a partir de então, passou a ser feita principalmente pelas imagens, que mudaram de estilo, passaram a expressar a sensação de movimento e a ser tomadas por ângulos diferentes, o que as tornava mais atraentes. 20


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Além de Manzon, O Cruzeiro abrigou fotógrafos de primeira linha tais como: Flávio Silveira Damm, José Araújo de Medeiros, Indalécio Wanderley, Ed keffel, Henri Ballot e outros, chegando a manter um elenco de 25 fotógrafos contratados além dos colaboradores.

“República do Peixe” David Nasser e Jean Manzon, 23/09/1944

A reportagem “Orós”, publicada em 19 de março de 1960, com texto de Luiz Carlos Barreto e fotos do próprio Barreto e Alencar Monteiro, é um exemplo das inovações editoriais implantadas em O Cruzeiro e mostra que, com o passar dos anos, os padrões se modernizaram ainda mais, superando inclusive as concepções praticadas por Manzon. As grandes tiragens aumentaram proporcionalmente a importância da equipe de fotógrafos e repórteres. Essa respeitabilidade alcançada acabou por se traduzir no avanço da própria categoria. 21


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O sucesso atingido por O Cruzeiro foi tanto que mudaram os parâmetros profissionais vigentes. A partir de então, trabalhar em O Cruzeiro passou a ser o sonho para qualquer profissional da época, pois a fama, além de trazer dinheiro, trazia respeitabilidade, o que facilitava a vida de todos.

“Orós”, 19/03/ 1960

Essa trajetória de glórias, proporcionada principalmente pela implantação do moderno fotojornalismo, começou a ser interrompida. Primeiramente pelo adoecimento repentino de Chateubriand, no início de 1960. Depois com as mudanças nas estruturas da mídia brasileira, provocadas pelo golpe militar de 1964, fato que Chatô tão ardosamente apoiou e no fim vitimou suas poderosas e frágeis empresas. Os desenhos Em O Cruzeiro, no período de 1928 a 1940 aproximadamente, as imagens – desenhos, charges e fotos 22


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– serviam mais para explicar, demonstrar e acrescentar informações ao texto escrito, que era o principal conteúdo da revista. Podemos dizer que as imagens, embora fossem muitas e importantes, eram usadas para seduzir e atrair a atenção dos leitores, que deviam fascinar-se pela beleza ou se interessar pelos assuntos mostrados, enquanto praticamente todas as informações eram trazidas pelo texto escrito. Os desenhos imperavam, significativamente, a começar pelas capas, que eram verdadeiras obras de arte. O fato de serem geralmente assinadas pelo autor, como uma pintura, reforçava esta característica. As capas eram limpas, nelas predominava o título “O Cruzeiro”, em destaque na parte superior da capa, em um tipo de letra que mais parecia um desenho do que uma letra produzida por máquinas, logo abaixo, em letras menores e mais finas o subtítulo “Revista semanal ilustrada”, em itálico, e o preço um mil réis (a moeda da época), significado por um “1$” e o desenho que ocupava cerca de oitenta por cento, espaço disponível nas partes intermediárias e inferior da capa. Não havia sequer chamadas para os assuntos que a revista traria naquele número, nem mesmo a data ou o número da publicação impressos. Para a pesquisadora Ana Cristina Teodoro da Silva, historiadora e autora do trabalho “O tempo e as imagens de mídia: capas de revistas como signo de um olhar contemporâneo” em que pesquisou o funcionamento das capas de revistas: “A utilização de estereótipos corporais, de cores em seu sentido mais didático, de tipos e símbolos de fácil e ágil leitura fazem da capa um atrativo fugaz, de rápida duração. Com isso é reforçada a busca por sínteses “eficazes”, que digam muito em pouco espaço e em pouco tempo. O acúmulo de informação seduz, oferecendo agilidade e síntese”. (SILVA, 2003)

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A figura de uma bela mulher desenhada imperava enquanto modelo de capa. É importante notar que na maioria dos casos a imagem feminina apresentada era a de uma mulher moderna, arrojada. O apelo à sensualidade (se havia) deveria ser discreto, tendendo mais para um charme ousado e misterioso do que para algo mais explícito, que as pessoas pudessem considerar apelativo; isto certamente chocaria o público e colocaria em risco o espaço e o respeito da revista.

Capa, 16/08/1930

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Temos de considerar que a escolha desse modelo “bem comportado” devia-se ao fato da sociedade ser conservadora e tradicionalista. Naquele tempo (1930), para entrar nos lares das famílias brasileiras, uma revista deveria antes de mais nada ser discreta em suas opiniões e posturas e, ao mesmo tempo, parecer avançada, inovadora, destemida para agradar ao público mais liberal. Neste sentido, nada mais lógico do que mostrar, por exemplo, a figura de uma mulher piloto de corrida (o que ocorre na capa da edição de 11/01/1930). É certo que, embora pouquíssimas, existiam mulheres piloto no mundo e ao menos uma no Brasil. Mas o que poderia representar uma imagem dessas publicada em uma capa de revista daquela época? Principalmente se levarmos em conta que não havia no interior da revista nenhuma reportagem sobre o assunto. Podemos facilmente imaginar o quanto uma figura como essa deve ter causado de polêmicas e críticas em uma sociedade em que pilotar automóveis de corrida era coisa para homens – e mesmo assim para homens corajosos – o que muita gente, inclusive muitas mulheres, não deviam pensar desta ousadia? Por outro lado, provavelmente esta imagem deve ter mexido com a cabeça de muitas mulheres “modernas”, insatisfeitas por não poder trabalhar fora, disputar eleições e praticar outras atividades que, na época, eram consideradas tipicamente masculinas. Isto já mostrava um tipo de direcionamento da publicação ao público feminino, atraindo simultaneamente a atenção do público masculino. Um estudo do conjunto das capas mostra que o uso de desenhos era um estilo, mais uma opção do que apenas uma limitação técnica. Ocasionalmente publicavam-se fotos na capa. 25


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Com o decorrer do tempo, as capas mantiveram a tradição de personagens femininas, a diferença é que começaram a aparecer em fotos retocadas e coloridas à mão, que pareciam ainda desenhos e, somente mais tarde, em fotografias (geralmente de alta qualidade, coloridas e produzidas em estúdios), sem retoques perceptíveis. As propagandas usavam majoritariamente desenhos ainda no início da década de 1950. Por meio de desenhos, oferecia-se ao consumidor uma enorme variedade de serviços e produtos. Hoje, ao folhearmos estas revistas facilmente encontramos

propagandas

desenhadas

de

produtos

farmacêuticos (que apareciam em grande quantidade), mobiliários, louças sanitárias, sapatos, bebidas, máquinas de escrever, vitrolas, discos, rádios, e etc.

Propagandas do “Espumante Único” e “Iofoscal”, Contracapa 11/09/1937

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Destaca-se, entre eles, especialmente os produtos dirigidos às mulheres, que despontavam enquanto um grande público consumidor e que por isso merecia atenção especial de O Cruzeiro.

Propaganda do “Pó de Arroz Lady” - 07 09 1931

Havia uma série de seções especialmente direcionadas a elas, algumas sob títulos gerais como “Moda” ou “Culinária”, que permaneceram na revista ao longo de quase toda sua trajetória, e outras mais específicas como “De Mulher Para Mulher”, direcionada aos “conselhos femininos” que esteve presente nas páginas da revista por um período de tempo menor, mas que mesmo assim foi publicada por algumas décadas. Nas propagandas, usavam-se também fotografias, o que mais uma vez demonstra que havia os recursos técnicos para isto, e que o uso de desenhos era, também neste caso, 27


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uma opção, uma forma de corresponder ao gosto do público, ainda muito acostumado a esse tipo de comunicação e uma opção pela qualidade, entre outros motivos, pois os desenhos permitiam ressaltar detalhes e o farto uso de cores, coisas que ainda estavam se desenvolvendo na fotografia e nas técnicas para imprimi-las.

Propagando do “Purgoleite”, 08/01/1944

A propaganda do “Purgoleite” (um tipo de remédio), foi elaborada a partir de uma montagem de imagens. Podese perceber que a fotografia de um ginásio de esportes ocupa o plano de fundo, sobreposta pelos desenhos de caixas do “purgativo e laxativo” e de “comprimidos robôs” que disputam uma corrida. 28


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Havia, ainda, as propagandas exclusivamente escritas, o que demonstra a importância do texto escrito e pressupõe um leitor, no mínimo, alfabetizado, uma vez que os textos eram longos e escritos em português culto.

As Charges, Caricaturas e Cartoons As charges, caricaturas e cartoons eram variados e possuíam, nas primeiras décadas da revista, um perfil diferente do que ganhariam depois. Naquele tempo (1930), a seção “A Caricatura no Estrangeiro”, como o próprio nome diz, reproduzia tiras e quadros publicados em jornais internacionais como L’ Esquella de Torratua, de Barcelona na Espanha, o Humoristicke Sisti,

Seção “Caricaturas no Estrangeiro” e Charge de Belmonte “Hontem e Hoje”, 28/06/1930

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de Praga, na Hungria, do The Passing Shaw, de Londres, e outros que se alternavam de uma publicação para outra. Esta era uma forma de apresentar ao público brasileiro o traço e os modelos de desenhos que circulavam o mundo, além de ajudar a dar um caráter internacional à publicação. Quando essa seção dividia espaço com as charges do cartunista brasileiro Belmonte (1896 – 1947), por exemplo, estabelecia-se quase que naturalmente uma comparação entre o que se fazia no Brasil e o que circulava pelo mundo. Aqui, Belmonte observa a mudança dos costumes do século XIX para o século XX, em charge intitulada: “Hontem e Hoje”, por Belmonte. No quadro, representando o ontem (1830), aparecem: ao lado esquerdo, um casal de jovens vestidos de forma discreta, adequada à época, com expressão assustada, como que surpreendidos em atitude inadequada em plena rua; ao lado direito, um senhor de pistola em punho e guarda costas negro, um provável escravo, com sorriso sádico. A legenda informa “1830. Em plena rua, Elle, ella e o pae. Fim de scena levemente amorosa. O Pae: [acusando o rapaz] Bandido! Manchaste minha honra, conversando em público com a minha filha !! Vaes morrer libertino !! Pum. E fazia uma lavagem em regra da “honra ultrajada’... ”. No quadro, representando o hoje (1930), ao lado esquerdo também um jovem casal, só que desta vez confiante e sorridente, com roupas mais arrojadas, modernas para a época, ela inclusive usando um vestido curto e o rapaz trajando um terno despojado e chapéu do tipo paleta, parados defronte um automóvel (sinônimo da modernidade e um lugar pouco indicado para garotas de “boa família”, na década de 1930). À esquerda, um senhor de chapéu côco e bengala, com expressão sorridente. 30


O Cruzeiro uma revista de imagens

Dessa vez, a legenda comenta: “‘1930... Em plena rua Elle, ella e o pae. Fim de scena cinematograficamente amorosa. ELLA... Papae! quero apresentá-lo a um novo amiguinho meu. Elle quer levar-me ao cinema mas você precisa emprestar-nos dez mil réis!...’ ” No primeiro quadro, “O ontem”, quem determina as ações é a figura de um pai rigoroso, preocupado com a honra da família. No segundo, “O hoje”, quem as determina é a filha liberal, em sintonia com os “tempos modernos”. Embora uma charge – assim como qualquer imagem – possa ser lida de diversas maneiras, a comparação de esteriótipos do namoro e dos comportamentos e suas mudanças nos cem anos que separam 1830 e 1930 sugere uma exagerada liberalização dos costumes. Para que ela fizesse sucesso, ou mesmo fosse compreendida, é importante que o assunto estivesse em discussão e a sociedade preocupada com isto. Em 1943, começou a ser publicada a célebre charge O Amigo da Onça, de Péricles Maranhão (1924 – 1961). Com o passar dos anos, tornou-se a mais famosa e importante série de charges publicada em O Cruzeiro e uma marca que consagraria definitivamente a revista no gosto do público. A linguagem de Péricles era objetiva, o autor utilizavase pouco de palavras. Em seu trabalho, a comunicação era mais direta, utilizando-se muito da cor e dos movimentos dos personagens retratados e dispensando normalmente textos e legendas – o que o colocava em sincronia com o moderno fotojornalismo que, como vimos, também se comunicava mais pelas imagens. Mais tarde, nasceram outras páginas e seções de caricaturas, charges e cartoons, os quais se tornaram parte do rico acervo de desenhos de O Cruzeiro. 31


O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira

A página de Borjalo (1925 – 2004), por exemplo, circulou entre as décadas de 1950 e 1960.

21/01/1961

Na charge, intitulada “Cabo Cañaveral”, aparecem minúsculos dois militares ao lado de um conjunto de foguetes enquanto um comenta “– Não há dúvida, sargento. O estilo é gótico”, uma alusão ao estilo das catedrais medievais construídas a partir do século XII em diversas partes da Europa, e que possuía, como uma de suas principais características, o uso dos arcos em forma de ogiva, tal qual a ponta dos mísseis do desenho. 32


O Cruzeiro uma revista de imagens

Cabo Cañaveral é uma referência direta ao mais famoso centro de lançamentos de foguetes dos Estados Unidos, de onde partiram várias missões espaciais e se desenvolveram projetos de mísseis, durante a chamada “Guerra Fria” (1947 – 1991), um conflito que opôs países do chamado bloco capitalista ao chamado bloco comunista ou socialista e que manteve por décadas o mundo à beira de uma guerra nuclear. Mais uma vez o cotidiano em discussão, agora com uma crítica política sutil que apresenta militares que parecem apenas entender sobre os aspectos estéticos, a aparência, o “estilo” dos poderosos mísseis que possuíam. Na revista, trabalharam ainda Milton Fernandes, o Millôr, Hilde Weber Abramo, Antônio Gabriel Nássara, o Nássara, Amilde Pedrosa o APPE, Ziraldo Alves Pinto, o Ziraldo, além de muitos outros.

Considerações Finais Todo este conjunto de excelência formado por gráficas, pelas grandes tiragens, seus ótimos repórteres, fotógrafos, chargistas, cartunistas, desenhistas e editores, somados à opção estética pelo moderno fotojornalismo e à influência de Chateubriand presentes na revista O Cruzeiro funcionava articuladamente e cada um deles contribuiu para torná-la uma publicação única do gênero no Brasil. Durante os quase cinquenta anos em que O Cruzeiro circulou (entre 1928 e 1974), lançou modas, reforçou costumes e influenciou bastante a vida política e cultural do país. Seu estilo influenciou diretamente a criação da revista Manchete e indiretamente a de várias outras. Chegou a ser considerada 33


O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira

por alguns, – talvez de forma um pouco exagerada – como a “Rede Globo da década de 1950”. Podemos dizer, hoje, que a revista ocupa um lugar importante na história da cultura brasileira. Como vimos, nos textos, fotos, desenhos, charges, caricaturas e propagandas de O Cruzeiro, podemos buscar informações sobre inúmeros aspectos da própria história recente do Brasil. O estudo de conjuntos das revistas publicadas ajuda a perceber, ainda, aspectos da evolução da imprensa brasileira, pois ela foi uma publicação que fundou, no Brasil, novos modelos de se fazer revistas, mudanças do olhar, na medida que nos acostumamos a ler certos tipos de imagens, além de permitir perceber outros importantes aspectos do funcionamento dos meios de comunicação. Por meio do seu estudo, podemos também aprender sobre a história da moda, pois afinal este segmento de mercado não existiria se não houvesse como divulgar os novos modelos e tendências, sobre a evolução do cotidiano e dos comportamentos, pois, como vimos, ao circularem as propagandas de produtos industrializados e modelos de comportamento contribuíram para que o público passasse a consumir estes artigos e mesmo estilos de vida. Devemos considerar ainda a importância da revista para o estudo da história política do país, uma vez que era lida por muitas pessoas que a recebiam como a única fonte de informações para formar suas opiniões com relação a candidatos, projetos de governo, etc. Mas também devemos sempre considerar que a revista apresentava apenas um lado dos acontecimentos, que ela tinha um proprietário e um corpo editorial que definiam a linha da revista (a forma como os assuntos iriam ser publicados, 34


O Cruzeiro uma revista de imagens

quantas páginas seriam dedicadas para cada assunto, que tipo de fotos usariam e até mesmo que palavras seriam escolhidas para compor os títulos e subtbtítulos), que dependia de vender propagandas para existir e isto acabava dirigindo e limitando as escolhas dos jornalistas e editores e a forma como seria apresentado seu conteúdo. Esses cuidados que o historiador deve ter, por obrigação, ao estudar este, ou qualquer outro tipo de fonte – pois afinal toda vez que estudamos um documento, devemos saber quem o escreveu, a que classe social pertencia, que tipos de interesses defendia etc – não são a rigor muito diferentes dos que o leitor deveria ter, por precaução, ao ler uma revista. Por meio dessa breve discussão, pudemos perceber que esta ou qualquer outra revista oferece-nos excelentes oportunidades de aprender um pouco mais sobre o passado e, consequentemente, sobre o presente.

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Quem é O Amigo da Onça? Ana Flávia Dias Zammataro

Um pouco sobre o personagem Baixinho, porém de porte atlético, nariz adunco, olhos grandes e arredondados, com sua vestimenta inconfundível, nasce, nos traços de Péricles Maranhão, o personagem O Amigo da Onça. Nas paginas da revista O Cruzeiro, O Amigo da Onça dá “o ar de sua graça” em 23 de outubro de 1943 mantendo sua publicação praticamente regular durante os mais de 30 anos seguintes em que a revista foi publicada. Após a morte de seu artista criador, em dezembro de 1961, dá continuidade ao personagem, Carlos Estevão. Este já trabalhava na revista com desenhos de êxito como Perguntas Inocentes e As aparências Enganam, ficando até o ano de 1972. Partindo de uma piada em voga na época, (vide box), ao artista Péricles Maranhão foi dada a tarefa de captar a personalidade do carioca típico em seu rótulo de “malandragem”. As raízes de O Amigo da Onça, personagem então caracteristicamente brasileiro, estão, por sua vez, no The Enemies of man, da revista americana Esquire, que deu origem ao El enemigo del hombre, da revista argentina Pataruzy. As piadas de O Amigo da Onça causavam humor e 37


O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira

Dois caçadores conversam em seu acampamento: — O que você faria se estivesse agora na selva e uma onça aparecesse na sua frente? — Ora, dava um tiro nela. — Mas se você não tivesse nenhuma arma de fogo? — Bom, então eu a matava com meu facão. — E se você estivesse sem o facão? — Apanhava um pedaço de pau. — E se não tivesse nenhum pedaço de pau? — Subiria na árvore mais próxima! — E se não tivesse nenhuma árvore? — Sairia correndo. — E se você estivesse paralisado pelo medo? Então, o outro, já irritado, retruca: — Mas, afinal, você é meu amigo ou amigo da onça?

a essência delas dava sentido

ao

nome

do

personagem principal – Amigo da Onça – aquele que é para desmascarar, para entregar o próximo em seus deslizes físicos e psicológicos, para satirizar a corrupção política, para rir da hipocrisia social daquele momento. O primeiro O Amigo da Onça – considerado charge1, pela sua legenda, de

23/10/1943

foi

republicado em 02 de fevereiro de 1962, logo após a morte de Péricles

Maranhão (ver página seguinte). Sem hesitar, O Amigo da Onça entrega o personagem que sai intencionalmente – ou não – pagando menos: “Foi esse aí mesmo, seu trocador. Só botou ‘um tostão’”. Notemos a legenda do cartum: “O Cruzeiro inicia nesse número, a reprodução de piadas de ‘O Amigo da onça’, charges do desenhista Péricles, recentemente falecido. Essa foi publicada em 1943, quando a passagem de ônibus, no Rio, custava dois tostões. Era pago com moedas, no caixa, à saída.” A imagem corresponde a uma das primeiras, então feitas, do artista Péricles, e que, após a sua morte, em 1961, foi publicada pela O Cruzeiro retomando a obra do artista. É curiosa, também, a conceituação da imagem feita pela revista como charge, na legenda. Partindo das leituras feitas para esse artigo consideramos, no entanto, a imagem como cartum, ja que é “desenho humorístico que privilegia, geralmente, a crítica de costumes, satirizando comportamentos, valores e o cotidiano” (RIANI, 2002, p. 26) 1

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Quem é O Amigo da Onça?

O Cruzeiro, 02/02/62

As vestimentas dos personagens são características da época, quando mesmo no calor do Rio de Janeiro, vestia-se roupas “pesadas”: calças compridas, terno, sapatos sociais, seguindo os padrões da moda. A roupa do personagem trocador se diferencia dos demais. São mais simples, um terno que está um pouco fora de suas medidas, pochetinha remendada e sapatos comuns. Esses elementos indicam que o seu trabalho é mais humilde e que não lhe provê muitos recursos materiais. O plano de fundo da imagem mostra, também, um Rio de Janeiro ainda em fase de crescimento urbano, com um sombreamento de prédio e, claro, o transporte público. 39


O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira

Consideramos as imagens trabalhadas, como cartuns: abordagens cotidianas e universais de temas que não dependem de um espaço e de uma temporalidade específica para serem compreendidas. Há imagens que, ao contrário, são temporais, tratando de assuntos da época. São, desse modo, consideradas charges. O personagem com seu humor e crítica obteve sucesso entre os leitores, associando-se isso, também, como um dos motivos para a grande tiragem da revista. O cartum, a seguir, pode confirmar isso, nele temos O Amigo da Onça como personagem único e central na imagem.

O Cruzeiro, 02/12/50

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Quem é O Amigo da Onça?

Sua posição em relação aos objetos do cartum lhe dá um lugar de destaque. Através de sua fala notamos que o olhar é dirigido ao público leitor. O Amigo da Onça apresenta-se como gerente e articula sua fala para justificar o aumento do preço da revista O Cruzeiro. Em formato de poema, o personagem busca o convencimento do leitor utilizando o argumento de que todos os gêneros têm seu preço elevado: “Levanta os preços a feira Sobe o bonde sobe o trem, Até mesmo a lavadeira Levanta o preço também Se sobe o preço o teatro E o preço o sapateiro, É justo que vá para quatro Um exemplar d’O Cruzeiro Sobe o feijão, sobe o milho, Ja nada vale o dinheiro, Sobe muito o café, filho, Tem que subir O Cruzeiro Ninguém promova levante, Nem se zanguem pechincheiros, Que um Cruzeiro assim brilhante, Vale bem quatro cruzeiros.” Não há dúvidas de que esse cartum foi encomendado, dando a Péricles Maranhão seu conteúdo e colocando a própria imagem da revista como temática central: são os interesses da 41


O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira

O Cruzeiro que estão em jogo. O Amigo da Onça se apresenta com sua vestimenta tradicional, assim como foi criado por Péricles. O ambiente privado do trabalho em que se encontra lhe dá a base necessária para atuar como gerente e comunicar o aumento do valor da revista. Nos mais diversos temas, O Amigo da Onça satirizava costumes, a hipocrisia, o jogo de aparências; por vezes, fazia críticas à política, nesse caso se dirigindo a abordagens muito específicas de seu momento. A partir da década de 50, mais particularmente na segunda metade, os ambientes privados em detrimento dos públicos passaram a ganhar espaço nos cartuns O Amigo da Onça. Isso se deve ao imaginário em formação no qual fervilhavam as perspectivas de desenvolvimentismo e modernidade, associados a ideais de consumo. Dessa forma, as propagandas, charges e reportagens, invadiram o universo privado dos indivíduos, relatando o seu cotidiano, fazendo críticas à instituições como a da familia e demonstrando por meio da cultura material (conjunto de objetos dos quais utiliza determinada sociedade) os valores do consumismo com a presença de televisores, aspiradores de pó, entre outros elementos que “facilitaria a vida das donas de casa”. Péricles Maranhão lançou mão desses ideais de consumo em suas abordagens, utilizando-os como meio para provocar o riso e para se fazer críticas, satirizando a ordem então estabelecida. Nessa medida, eletrodomésticos e eletroeletrônicos poderiam não somente fazer parte da imagem como objeto para compô-la, mas também como peçachave para a sua temática. Caracterizado de maneiras diversas, O Amigo da Onça já foi louco e médico, jovem, velho e adulto, pai, filho, pedreiro, 42


Quem é O Amigo da Onça?

garçom, engraxate, se vestiu de mulher, foi ele por ele mesmo. E, assim, por meio de suas piadas, chamava a atenção do público de todas as idades. Leitores e não leitores assíduos da revista esperavam ansiosos por mais uma peripécia do personagem, fosse através da compra de mais uma edição da O Cruzeiro, fosse por uma olhadela rápida na página do O Amigo da Onça nas bancas. O cartum de 1958 tem a televisão como objeto do qual utiliza O Amigo da Onça para dar o sentido de seu humor, simbolizando a perspectiva de consumo. A novidade vem também com O Amigo da Onça jovem, caracterizado como criança na imagem.

O Cruzeiro, 05/04/58

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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira

Notemos que há dois tempos no cartum, divididos pelo artista em partes “I e II”. O Amigo da Onça criança está tipicamente caracterizado: com meias 3/4, sapatinhos e um pouco mais cabeludo que O Amigo da Onça adulto. Sua fisionomia parece ser a de quem está distraído, com um ar despreocupado, lendo o seu livro ao lado da TV. No primeiro quadro, o indivíduo que a assiste se mostra empolgado com as cenas exibidas. Ele se curva para frente em sua poltrana, contorce o corpo, arregala os seus olhos; empolgação essa que o levou ao ato de babar, recurso que utilizou Péricles como modo de enfatizar o estado de euforia do personagem, mas ao mesmo tempo para ridicularizá-lo. Os elementos em volta de sua cabeça – a espiral, as hastes, e os corações – indicam um homem embasbacado com o que vê, apaixonando-se pela imagem da mulher na televisão. Num segundo momento, O Amigo da Onça criança, aproveitando-se da posição que ocupa, sente-se à vontade para se apoiar no botão da tv, des-sintonizando-a. Há aí, uma quebra de continuidade às reações de euforia do personagem ao ver a moça na televisão. Ele é surpreendido pela peça pregada pelo “amiguinho” que “ingenuamente” fez com que o aparelho ficasse fora de sintonia. O personagem mais uma vez curva-se para frente, entretanto, indignado e furioso com a ação do Amigo da Onça, levando a mão à face, curvando as sobrancelhas e abrindo a boca numa atitude de surpresa e ódio, confirmados pelas estrelinhas em volta de sua cabeça. Na particularidade do lar do indivíduo, O Amigo da Onça adentra com suas armações ironizando elementos que davam status social. O televisor – tão almejado pelas famílias brasileiras naquele momento – sinal da modernidade e do consumo estava na ordem dos paradigmas impostos por 44


Quem é O Amigo da Onça?

esses símbolos; tê-lo era sinônimo de bem-estar e de status. Péricles, entretanto, utilizou desse elementos para levar o leitor ao riso. Da mesma maneira que poderia ser criança, O Amigo da Onça já aparecera também como velhinho.

O Cruzeiro, 22/10/60

Muito atual e crítico, O Amigo da Onça velhinho nesse cartum, dá o sentido necessário para a sua compreensão pelo leitor. Em um ambiente carcerário O Amigo da Onça representa o advogado que “finalmente” conseguiu provar a inocência de seu cliente. O velhinho cliente com sua longa barba branca indica que ele está ali há tempos, mas também 45


O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira

alguns recursos dos quais Péricles utilizou: a contagem dos anos na parede feitas pelo próprio velhinho – de 1923 até a data atual do cartum – os desenhos sobre algum crime cometido no plano de fundo da imagem e também os objetos no primeiro plano, a moringa de barro e um livro, que pelo crucifixo indica ser uma bíblia, já gasta pelo tempo. A fala do Amigo da Onça simboliza uma justiça lenta, discussão muito pertinente ainda nos dias de hoje, que somente depois de passados tantos anos conseguira provar a inocência de um individuo: “Pronto, rapaz! Consegui afinal, provar tua inocência. Vais começar vida nova!”. Percebemos a ironia no tom de sua fala, como se tivesse conseguido provar a inocência do seu cliente de imediato, fala essa que contrasta com a fisionomia do cliente com um olhar baixo e desanimado, denotando a sua tristeza por ter estado ali tantos anos – elemento esse que leva ao riso. O Amigo da Onça, nesse caso, representa não somente ele mesmo como “amigo da onça” que é, mas caracteriza uma justiça insípida e lenta, no Brasil, uma justiça a favor dos ricos e contra os pobres, uma justiça, afinal, “amiga da onça”! Uma característica marcante é seu egoísmo muito aguçado já que sempre pensa em si mesmo em detrimento do próximo, visa sempre a própria vitória, o seu bem-estar, não importando de que maneira. Podemos notar isso nas inúmeras imagens publicadas, mas há aquelas em que seu egoísmo nato se torna mais latente. Principalmente se tratando da conquista de mulheres bonitas, O Amigo da Onça não hesitava em expressá-lo. Isso se torna claro no cartum a seguir, no qual temos prováveis náufragos em alto mar deitados sobre um pedaço de madeira, o que pode ter sobrado da barco. O Amigo da Onça 46


Quem é O Amigo da Onça?

não deixa de tirar vantagem sobre a distração do homem: dormindo que está ao lado de uma linda mulher, O Amigo da Onça passa o serrote na intenção ficar só, com a mulher e os mantimentos, que ficaram no seu lado da prancha. A mulher, é claro, tem um tipo físico dos padrões ditados naquele momento: cintura fina e quadris largos e arredondados. O Amigo da Onça não hesita, então, em pôr a vida do outro em risco para satisfazer as vontades próprias. As intenções do Amigo da Onça são muito bem caracterizadas nesse cartum, simbolizando os sentidos de seu próprio nome – O Amigo da Onça – prejudicando o outro em benefício próprio.

O Cruzeiro, 31/07/1954

Os diferentes modos pelos quais o personagem se apresentava na imagem lhes davam base para conseguir aquilo que queria. O cartum da página seguinte é cotidiano e se passa num ambiente corriqueiro do trabalho. 47


O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira

Ao acender seu cigarro, o Amigo da Onça rompeu o ciclo de trabalho. Distraído deixa de pegar o tijolo, passando por ele e acertando a cabeça de um indivíduo que passa na rua, em frente à construção. Sua expressão demonstra a sensação de dor pelo ocorrido, acompanhado da feição de surpresa do sujeito que vem logo atrás dele. A ingenuidade irônica do Amigo da Onça é o risível da imagem, que, juntamente com o mote de surpresa que a queda do tijolo na cabeça do indivíduo causa, leva o leitor ao riso imprevisto.

O Cruzeiro, 02/11/49

Como imagem do cotidiano ela indica que era muito comum construção em meio ao trânsito de pessoas, levando a acidentes de trabalho, talvez não intencionais como o 48


Quem é O Amigo da Onça?

causado pelo Amigo da Onça. Faz parte também do processo de desenvolvimento das cidades, demolindo o antigo e inaugurando o novo. Para atuar como O Amigo da Onça o personagem poderia ser tudo o que ele quisesse, poderia até mesmo estar ausente na imagem, mas presente através de suas armações. Dessa maneira, não seria nada incomum um “amiguinho” caracterizado como qualquer animal. O interessante da imagem abaixo é justamente essa caracterização particular do personagem.

O Cruzeiro, 14/02/59

Não há seres humanos presentes, mas sim dois ratinhos. O Amigo da Onça foi zoomorfado ou o ratinho foi humanizado, para compôr o sentido do cartum. Sua abordagem é muito universal, e mesmo que não se reconheça em um dos ratinhos a feição do Amigo da Onça compreende-se o seu sentido. Ora, 49


O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira

ratos são animais que vivem nos lugares escuros das casas, são atraídos pelo queijo e, como na imagem, são pegos através da ratoeira – que simboliza que esse objeto é antigo, mas ainda muito usado. Péricles Maranhão utilizou o recurso da caricatura, já que esse é um tipo de imagem que tende a reforçar as partes mais relevantes da fisionomia de uma pessoa – seu orelhão, seu barrigão, seu nariz grande, seus labios grossos ou muito finos – , associando até mesmo a sua imagem a de um animal revelando aspectos do seu psicológico. No caso do Amigo da Onça a sua imagem associada a de um ratinho não se liga a elementos de sua fisionomia, mas sim de sua personalidade: sempre ágil, habilidoso em escapar de armações e de piada pronta. O outro ratinho, no entanto, que sai da sua toca, é o oposto do rato Amigo da Onça, já que vai ser pego por sua “peça”. Esse ratinho tem um aspecto mais infantilizado, quase que ingênuo, seu corpinho é mais cheio e o ato de babar feito pelo traço de Péricles dá a esse um aspecto tolo. O ratinho Amigo da Onça come o pedaço de queijo, que como indica o plano de fundo da imagem, pegou da dispensa da casa e diz ao outro: “Onde eu consegui este queijo?? Foi dali...” apontando para o pedacinho que está na ratoeira. Sabemos que a ratoeira é para pegar ratos, então nem mesmo como animalzinho Amigo da Onça deixa de sê-lo (“amigo da onça”) aprontando com suas peripécias.

O Amigo da Onça em sua trajetória: de Péricles Maranhão a Carlos Estevão Nascido em 14 de agosto de 1924, no Recife, Péricles Maranhão, já desde muito jovem, quando estudava no Colégio 50


Quem é O Amigo da Onça?

Marista, publicava seus desenhos no jornal do colégio, sendo quase que autoditada. Foi, no entanto, na década de 40 que viu a sua carreira como desenhista “deslanchar”. Chegou ao Rio ainda menor de idade com uma carta de recomendação de Leão Gondim de Oliveira, então o “manda-chuva” dos Diários Associados, rede de comunicação pertencente a Assis Chateaubriand. Estreou em 6 de junho de 1942. No Diário da Noite emplacou seu primeiro personagem cômico com As aventuras de Oliveira, o trapalhão. Foi, porém, com o irreverente O Amigo da Onça, em 1943, que se consolidou como desenhista. Na tarefa de criar um personagem dinâmico e que circulava por todos os meios sociais, Péricles deu vida a fatos reais vividos naquele momento levados a ridicularização pelo O Amigo da Onça. Casou-se com Angélica Braga Guimarães, em setembro de 1949, com quem teve seu único filho, Péricles. Separou-se 6 anos depois. Era um tipo simples, sem grandes inquietações artísticas, com seu foco mais ligado ao emprego. Era dito como um boêmio inveterado, pois adorava frequentar alguns bares do Rio.

O Cruzeiro, 1962

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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira

O seu personagem obteve tanto sucesso que o criador e criatura passaram a ser confundidos, por vezes identificados. Há quem diga que o Amigo da Onça seria o alter-ego de Péricles, pela aparência muito próxima entre o personagem e seu artista. O que não fica muito longe para se afirmar. Ambos – criador e criatura – tinham um rosto fino e anguloso, nariz adunco, bigodinho, cabelos penteados para trás, à base de gel. Isso, no entanto, perturbava Péricles, que viu seu nome ligado diretamente ao de seu personagem; era vinculado ao Amigo da Onça, como se um fosse o outro, um fizesse parte do outro. As piadas foram inúmeras, abordando diferentes temas. Haja imaginação! Péricles, nesse sentido, chegou a participar de um de seus cartuns, como desenho animado. Talvez fosse a falta de criatividade que estava, por um momento, pairando a sua mente. Sua saída foi então, utilizar sua própria falta de imaginação para compor a anedota da imagem.

O Cruzeiro, 27/10/56

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Quem é O Amigo da Onça?

Através dela poderíamos compreender as “inquietações” do artista que viu seu nome ligado ao de seu personagem e teve, por quase 20 anos, sua vida regida por ele. De 27 de outubro de 1956, temos um Amigo da Onça que surge na privacidade do quarto de Péricles, em seu sono, depois de uma noite, ao que tudo indica, de festa – taça de bebida, roupas e sapatos espalhados, máscara de baile à fantasia, etc – e mal dormida. A fisionomia de Péricles ao ser acordado pelo Amigo da Onça demonstra irritação e as hastes em volta de sua cabeça podem indicar – por que não? – um Péricles de ressaca. O Amigo da Onça ao lhe dizer: “Como é Péricles. Já desenhou a piada de hoje?” fá-lo participar da anedota. Isso indica que nem mesmo o artista de criação, estava livre das peças que seu personagem pregava. Notemos por meio dessa imagem que festas de máscaras como diversão, era costume naquele momento. Com o Péricles abordado em seu universo particular percebemos a disposição dos móveis, as cores da imagem que nos revelam a cultura material de então, saindo de um âmbito público, com anedota que se passavam principalmente nas ruas, para um âmbito privado. Depois de desenhar para a revista por 18 anos ininterruptos, sua morte foi surpreendente. Dezenas são os motivos atribuídos ao suicídio do artista que, em 31 de dezembro de 1961, trancou-se em seu apartamento no Rio de Janeiro, lacrou todas as janelas e portas, ligou gás e ali ficou até a morte. Antes, porém deixou dois bilhetes. Um, apesar do fato trágico, não deixou de ter seu mote de humor. Deixa um recado atrás da porta: “Não risquem fósforos” e o outro dizendo respeito às razões de seu suicídio. 53


O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira

GUIMARÃES, 1987.

As atribuições ao suicídio de Péricles Maranhão, foram inúmeras e, por isso, não deixaram de ter alguma associação com as imagens do Amigo da Onça que publicava. Em um cartum, de 07 de maio de 1960, que podemos ver a seguir, pouco mais de um ano antes de seu suicídio, a verve humorística da anedota é justamente o gás ligado, no qual O Amigo do Onça se protege em detrimento de sua esposa, que ao sentir um cheiro estranho, desconfia do mesmo. O humor desse cartum é um humor que, embora cotidiano, é carregado em seu sentido. Apesar do ambiente privado familiar abordado, as intenções do Amigo da Onça transcendem o sentido da ironia, da sátira e da ridicularização, intenciona a morte da esposa – essa com traços que intencionalmente se aproximam do feio, do tosco. Ao dizer: “Querido. Não esqueceste o gás do banheiro aberto??” desconfia do cheiro exalado no ar, enquanto O Amigo da Onça já se protege com uma máscara de oxigênio, claro, sem sua esposa ver. A associação entre o gás ligado e o suicídio de 54


Quem é O Amigo da Onça?

Péricles – da mesma forma – é, portanto, inevitável, embora seja mera coincidência. O cotidiano familiar muito comumente tematizado faz parte do imaginário donde a vestimenta dos personagens e os objetos presentes revelam os seus costumes. Trabalhando com esse universo, Péricles trazia por meio do humor de seu cartum intrigas familiares, sobretudo crises conjugais.

O Cruzeiro, 07/05/60

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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira

Até o ano de 1965 originais dos desenhos de Péricles continuaram a ser publicados pela revista. Após esse ano, assume posto de artista da imagem, Carlos Estevão. Também pernambucano de Recife, Carlos Estevão nasceu em 16 de setembro de 1921. Nunca teve aulas de desenho ou pintura, somente quando começou a trabalhar na Secretaria de Agricultura, Industria e Comércio fez seus primeiros trabalhos como desenhista na área de arquitetura. Casou-se aos 24 anos de idade com Neusa Torres Correa de Araújo em 1945, com quem teve três filhos: Carlos Estevão, Jáder e Dóris. Ficou casado até 1961. “Naquele ano, foi homologado o desquite (ainda não havia divórcio no Brasil) e Carlos foi morar em Belo Horizonte (MG) com Helena, sua nova companheira, com que viveria até o final de sua vida. Dessa união nasceu Stephanie.”2

www.memoriaviva.com.br/ carlosestevao 2

Fonte: http://www.memoriaviva.com.br/carlosestevao/cemais.htm

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Quem é O Amigo da Onça?

Vai para o Rio de Janeiro em 1946 onde, também, começa a trabalhar nos Diários Associados, particularmente na revista Diretrizes e no Diário da Noite, no qual Péricles também trabalhava. Em 1948 emplacou com a tira cômica Ignorabus, o contador de histórias e, logo depois, começa a trabalhar em O Cruzeiro. Com suas ilustrações, na revista, fazia ataques à vaidade feminina, abordava os martírios da vida de casado, como em O casamento antes e depois e o Ser mulher. Foi também, criador do personagem Dr Macarra, que de uma maneira cômica falava sobre os fracassos da vida.

GUIMARÃES, 1987

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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira

Ao receber o convite (ou a imposição?) para desenhar o Amigo da Onça no lugar de Péricles a sua reação foi de surpresa. Carlos Estevão, porém, deu conta do recado. Manteve o espírito irreverente, debochado, satírico do Amigo da Onça de Péricles, tanto no próprio traço do desenho, quanto no conteúdo. Quando passou a desenhar O Amigo da Onça, a imagem vinha com a legenda “Criação de Péricles. Original de Carlos Estevão”. Com espírito crítico, Carlos Estevão revelou o cotidiano do seu tempo, fazendo do Amigo da Onça instrumento de suas abordagens. Na ridicularização da sogra ou na denúncia ao passado corrupto do político, o artista soube lidar com os trâmites vividos naquela sociedade cheia de fissuras e em constante transformação.

O Cruzeiro, 08/12/71

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Quem é O Amigo da Onça?

Seus cartuns eram por vezes carregados em seu espírito crítico, ou com o riso desprendido e despreocupado. No cartum acima, aproxima-se da História em Quadrinhos, pois há uma temporalidade dividida em três partes que caminham rumo à conclusão da tira. É um cartum de costume, que leva ao riso despreocupado intencionando apenas o humor no leitor. O Amigo da Onça caracterizado de uma maneira um pouco diferente da de costume, representa o pastor dos carneiros que “colaboram” para o sono do rapaz. Ele então, é revelador do antigo costume de se “contar carneirinhos” para que o sono venha. O personagem que dorme conta por pensamento os carneirinhos “...1214... 1215...1216...1217...” essas todas rebanhadas pelo pastor Amigo da Onça, que parece estar vestido para isso. Num segundo momento temos, a supressão da imagem do rapaz que dorme para que a ênfase recaia na parada repentina de sua contagem: “...2816...2817..zzzz”, significando que ele finalmente conseguiu adormecer. Isso, no entanto, causa uma espécie de indignação no pastor Amigo da Onça que ao notar que a contagem parou no “2817”, número de destaque na imagem, emite a sua opinião rumo à conclusão do terceiro quadrinho. Neste, o personagem volta a aparecer e é repentinamente acordado pelo Amigo da Onça que “ingenuamente” lhe avisa que há ainda mais carneirinhos para serem contados: “Hei! Hei!... 2817, não!... Ainda faltam 22!” O rapaz se assusta cerrando os dentes, arregalando os olhos e contraindo pés e mãos; seus cabelos espetados simbolizam também esse âmbito, fazendo parte dos elementos de humor da imagem. É o Amigo da Onça, personagem que representa os trâmites da realidade, mas é fictício ao estar presente até mesmo na tranqüilidade do sono das pessoas. 59


O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira

A imagem do quarto do personagem denota quanto se tornava mais comum os temas se dirigirem a universos privados. O plano de fundo e os objetos da imagem compuseram a temática do cartum. Através desses últimos podemos fazer um estudo dos costumes bem como da cultura material de então: o criado-mudo ao lado da cama, a xícara, o abajur e o livro indicam o costume da leitura antes de dormir.

O Cruzeiro, 1967

Carlos Estevão também trabalhou muito com imagens de linguagem fácil e humor direto, às vezes, lançando mão de cartuns sem falas. No cartum acima, a paisagem compõe o tema da imagem. Carlos Estevão optou por um desenho sem bordas definidas nem sombreamento, como se o tivesse feito à maneira do personagem pintor Amigo da Onça: um quadro de paisagem feito na tela com aquarela. A paisagem é amena, 60


Quem é O Amigo da Onça?

as cores são leves para contrastar com o elemento que dá à imagem o sentido de seu humor: as hastes presentes na água demonstram que algo ou alguém está ali. A revelação vem justamente pela obra do artista Amigo da Onça que pintando a paisagem que está a sua frente capta os últimos segundos do indivíduo que se afoga no rio: a sua mão, que parece pedir socorro no quadro do Amigo da Onça é a última parte do seu corpo a afundar. A surpresa vem pela reação do Amigo da Onça – ou da falta dela – que é alheio àquilo que vê em sua frente, não prestando socorro ao afogado. É, pois, um cartum universal e de rápido entendimento, sem falas, sem onomatopéias, sem elementos que necessitam ser decifrados para sua compreensão. Pela vestimenta e pelas ferramentas de trabalho do Amigo da Onça, pincel, aquarela, maleta que carrega seus instrumentos, revela-se-lhe a sua profissão: a boina tipicamente caracterizava a profissão de artista plástico. O riso provocado pela cartum desprendia-se do sério e do preocupado, buscando somente o humor pelo humor. Nessa próxima imagem podemos perceber o tom satírico do Amigo da Onça fazendo mais uma de suas vítimas. A abordagem da imagem é muito irreverente e atual. Em uma festa ao tesoureiro do Banco Legal S/A – o nome do banco é também uma ironia feita com a sua “legalidade” duvidosa – feita pelos seus amigos, O Amigo da Onça lhe presenteia com um retrato que “entrega” o seu passado como um condenado pela lei. As roupas que está vestindo indicam que é ex-presidiário fator de relevância negativa para quem tem um cargo de confiança na tesouraria do banco como ele. Notemos que o Amigo da Onça ao dizer: “Uma surpresa pra você, Waldyr... Mandei ampliar aquela foto da nossa juventude!” não poupa nem a reputação 61


O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira

de si mesmo, já que como “amigo da onça” que é, intenciona mesmo denunciar e desmascarar o colega perante os outros – que apresentam todos, uma fisionomia de surpresa, de preocupação, assim como a cara de assustado do personagem Waldyr – mesmo que isso lhe custe à própria imagem. Dando continuidade às armações do Amigo da Onça, – e muito bem! – Carlos Estevão desenhou em O Cruzeiro até o ano de sua morte. Faleceu em 14 de julho de 1972, em Belo Horizonte.

O Cruzeiro, 15/04/67

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Quem é O Amigo da Onça?

Considerações Finais Da multiplicidade de temas de O Amigo da Onça, podemos perceber que o personagem mantinha a personalidade então uma vez encomendada por Leão Gondim de Oliveira a Péricles Maranhão. Seu riso mordaz, seu jeito malandro de ser, criticando com sua verve humorística revelava aquilo que se pretendia esconder ou escondendo aquilo que se queria revelar. Foi, então, confeiteiro, amigo do prefeito, marido, gerente, e foi sempre.... O Amigo da Onça!! Seja em Péricles Maranhão ou Carlos Estevão, O Amigo da Onça esteve nos mais diferentes meios sociais, tratando de temas cotidianos, aos universais, da crítica privada a crítica pública. Através dessa imagem podemos pensar nos valores daquela sociedade de então, e nos que permanecem até hoje, já que muitos desses cartuns são atuais e nos fazem rir justamente porque podemos nos identificar com seus temas.

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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira

GUIMARÃES, 1987.

“O Amigo da Onça se transformou no tipo mais popular da história do humor brasileiro. Quando Péricles morreu, 18 anos depois, o Amigo, já era – sem nenhum exagero retórico – um personagem imortal”. Millôr Fernandes (idem)

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O Amigo da Onça: da construção do preconceito à sua contestação Alberto Gawryszewski O homem vive em sociedade; portanto, suas ações, atitudes, pensamentos, posições políticas e religiosas resultam dessa interação. O homem é fruto da sociedade e esta é fruto dos homens. Toda essa confusão pode ser explicada pela História, Antropologia, entre outras ciências. O Amigo da Onça, produzido em grande parte por Péricles e publicado pela revista O Cruzeiro por quase 30 anos, entre 1943 e 1972, não foi sucesso à toa. O que queria o autor com seus desenhos, o que buscava neles o leitor são questões difícieis de responder. Péricles, um homem de sua época, como todos nós, vivia e pensava como seus contemporâneos. Sua produção artística, com traços suaves e cores vivas, tinha uma relação direta com seu público. Homens, mulheres, adolescentes, crianças, todos buscavam n´O Amigo da Onça o riso alívio aos seus problemas diários (no trabalho, na escola, em casa etc.). O riso relaxa, traz leveza e ânimo para viver. Quem ri seus males espanta! Quem é feliz aproxima pessoas! Então, O Amigo da Onça era muito útil no dia-a-dia das pessoas. Mas, o que é o riso? Por que rimos? De que rimos? Para o provocar o riso ou ser risível, são necessárias 65


O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira

duas ou três coisas: a pessoa que ri; o objeto de que se ri (uma pessoa, por alguma razão em particular, uma piada, um desenho cômico etc.); e, nestes dois últimos casos, a pessoa que os produziu. Assim, o riso, embora seja personalíssimo, pois ninguém pode rir por você, é um ato social, faz parte de um coletivo. Como a sociedade é composta por vários grupos (de caráter sexual, econômico, étnico etc.), um destes pode rir de outro. Inclusive, esse riso pode funcionar como um elemento aglutinador, reforçador identitário. Se ele reforça identidade, igualmente reforça a diferença, como, por exemplo, a relação de duas torcidas organizadas de futebol. O riso, portanto, é um agente político por essência. Ele é tão importante que por muitas vezes foi e é combatido, em especial pela forma da censura da liberdade de expressão (imprensa, programas televisivos e radiofônicos), por desmistificar, desnudar, reforçar valores e ações da sociedade. Este foi o caso do cartunista Henfil, no período da ditadura militar no Brasil (1964-1984): seus desenhos críticos e humorísticos denunciavam a miséria social e repressão política, daí por que muitos foram impedidos de serem publicados pela imprensa. O riso como fruto da sociedade é um fenômeno cultural, varia no tempo e no espaço. Um fato, uma idéia ou outra coisa qualquer pode causar riso em um lugar e em uma época e não em outro lugar ou época. Portanto, para compreendê-lo, fazse necessário colocá-lo na sociedade que o gerou. Muitos estudiosos do riso e do humor costumam afirmar que o riso desnuda aquilo que se pretende esconder. Se isso é verdade, O Amigo da Onça faz com maestria tal empreitada: denuncia um pouco da alma do brasileiro, com seus preconceitos. A necessidade de levar “vantagem em tudo”, abusar das fragilidades alheias para ser vitorioso ou apenas 66


O Amigo da Onça: da construção do preconceito à sua contestação

humilhar foi atitude constante do personagem O Amigo da Onça ao retratar as relações humanas. Wladimir Propp, um estudioso russo, ao discutir o riso, afirmou que a sátira levanta e mobiliza a vontade de lutar, cria ou reforça a reação de condenação, de não compactuação com os fenômenos representados e, por isso mesmo, contribui para intensificar a luta para removê-los e erradicá-los (PROPP, 1992, p. 211). Ou seja, a sátira pode ser contestatória aos hábitos e costumes de seu tempo. Em nossa opinião, nem sempre o é, ou melhor, nem sempre é contestatória e, muito pelo contrário, pode reforçar uma situação já existente. Como fator humano, com suas essências de bondade e maldade, podemos encontrar, de imediato, dois tipos de riso: um “bom” e um “mau”. O primeiro seria o riso simplório, o riso inocente. Vejamos dois exemplos em O Amigo da Onça.

O Cruzeiro, 15/08/1953

O Cruzeiro, 09/10/1954

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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira

No primeiro caso, vemos que O Amigo da Onça está vestido com roupa de prisioneiro, mas a sua fala e parte do revólver na cintura denunciam que ele é um policial. Inversamente temos o prisioneiro vestido de guarda do presídio. Este propõe fuga ao seu suposto colega, mas O Amigo da Onça denuncia sua condição de guarda, ou seja, traz o riso ao desvendar uma situação inesperada. Na outra imagem, O Amigo da Onça levou ao “pé da letra” o pedido da noiva: arrumou uma mansão abandonada, cheia de teias, sinistra e isolada para passarem a lua de mel. Além da beleza plástica, causa um riso gostoso. Quanto ao riso “mau”, aquele com caráter destruidor/ vexatório em relação ao seu objeto, veremos vários casos adiante. Uma questão interessante sobre o riso ou sorriso é sê-lo uma construção corporal. É por meio da face que ele se expressa. É claro que uma gargalhada pode mexer com todo o corpo (ombros, braços, inclinação do corpo, retração da barriga etc.). Às vezes pode ser uma expressão falsa, um “sorriso amarelo”, mas, em geral, quando verdadeiro, dá-se por meio do corpo e a ele proporciona prazer. O riso é uma demonstração física de prazer, devolve ao corpo relaxamento e leveza, tranquiliza. Podemos, utilizando-nos das imagens que compõem a exposição O Amigo da Onça, uma expressão da alma brasileira, tratar de um tema atual: preconceito. Preconceito étnico, de idade, de sexo, entre outros, que vivenciamos cotidianamente. Nesse sentido, iniciaremos tratando a questão do “belo” e do “feio”. Como o riso e o risível variam no tempo e no espaço, o “belo” ou “feio” também. A história de ambos é longa e difícil. 68


O Amigo da Onça: da construção do preconceito à sua contestação

O Cruzeiro, 26/06/1954

Na figura acima temos um exemplo do “feio” para esta época e para este personagem. Repare que todos os juízes são Amigo(s) da Onça e, como tal, tinham que aprontar alguma. Em um concurso de beleza, a ironia seria eleger uma mulher considerada feia para os padrões. A eleita tem as pernas finas e cabeludas, quadril muito avantajado, cintura grossa, dentes salientes, assim como seus lábios, além de rugas e pelos no rosto e, por fim, nariz desproporcional. Neste contraponto, temos as outras duas candidatas surpresas com o resultado. Ambas jovens, com um corpo conhecido como “violoncelo”: cintura fina, quadril largo. Seus narizes são finos, olhos claros, pele branca, seios em tamanho mediano. Na imagem, personificam a “beleza”. Se comparamos com a modelo brasileira Gisele Bündchen, vamos verificar um padrão de beleza bem diferenciado. Hoje, o conceito de beleza passa por mulheres magras. Assim, as modelos atuais não teriam a 69


O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira

menor chance de vencer um concurso de beleza na época d´O Amigo da Onça, se ele fosse “honesto”segundo seu tempo. Diz o ditado que “quem ama o feio, bonito lhe parece”. Mas, o que seria do belo se o “feio” não existisse? Um é a negação do outro: o belo tem a carga do positivo enquanto o feio o negativo, e cada período estabalece padrões próprios de beleza e – seu contraponto – de feiúra. O belo e o feio são elementos importantes para o riso, pois reforçam valores e modelos. O riso provocado pelo feio é, na maioria das vezes, preconceituoso, humilhante, depreciativo da pessoa retratada. O pensador Nietzsche interpreta a construção do padrão da beleza-feiúra do corpo a partir dos sinais e sintomas de sua degenerescência. Como o homem adora a si mesmo, ver o declínio de seu tipo causaria horror e repulsa. Portanto, pessoas idosas, possuidoras de características fora da estética ideal de beleza e juventude (estas, em geral, caminham juntas) ou deficiência física, com corpo desproporcional em suas partes etc. são por isto consideradas “feias”. Estas foram vítimas d´O Amigo da Onça. É bem verdade que a questão da proporcionalidade é variável, ainda que seja um dos itens clássicos de identificação do belo, desde a Grécia antiga, pois é suplantada por modelos de época. Assim, o gosto pela proporção não se aplica às jovens “bonitas” da imagem anterior, pois tais desproporcões (modelo “violoncelo”) eram as que formavam o conceito de beleza. Dentro

desta

perspectiva

de

feiúra

e

beleza,

desproporção e proporção, podemos enquadrar o (a) obeso (a), que por seu corpo “desproporcional” foi alvo de gozações e motivo de piadas. Entretanto, o obeso, em contraponto, é também possuidor de uma imagem feliz e bem-humorada, 70


O Amigo da Onça: da construção do preconceito à sua contestação

sendo, portanto, padrão considerado “negativo” e “ positivo”, dependendo do contexto em que é apresentado: o obeso pode ser representação do “feio” ou portar um valor positivo, como expressão de alegria e fartura. A pessoa idosa, ainda recebedora de maus tratos por nossa sociedade, também foi retratada por Péricles. Na imagem seguinte vemos, em uma festa de Ano Novo, O Amigo da Onça, aparentemente alcoolizado, dirigir-se a uma senhora idosa e a uma jovem fazendo referências ao Ano Novo e ao Ano Velho. A senhora seria o Ano Velho, ou seja, o que passou. A senhora, vestida elegantemente, demonstra sua indignação por meio de seu olhar e a forma da boca. Reforçando, símbolos foram colocados sobre a cabeça da personagem (raios, círculos, estrelas...).

O Cruzeiro, 02/01/1960

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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira

As mulheres são retratadas n´O Amigo da Onça de duas formas: belas ou feias. Para estas últimas, um tratamento humilhante, de repulsa, de rebaixamento. No desenho a seguir vemos uma senhora entrar em um salão de beleza (“Amigo da Onça”) e, ao sentar na cadeira, é questionada pelo barbeiro, o nosso Amigo da Onça, se ela iria fazer barba ou cabelo. Tal pergunta é a tradicionalmente dirigida aos homens. A mulher foi retratada de forma caricaturesca, grotesca, ou seja, com excesso de pelos no rosto e obesa. Tal fato, somado ao questionamento, transforma-a em um ser passível de humilhação. Está fora dos padrões desejados de beleza. Não seria possível corrigir sua “feiúra” no salão de beleza. Também nesta imagem a personagem demonstra seu descontentamento com o tratamento recebido.

O Cruzeiro, 18/11/1954

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O Amigo da Onça: da construção do preconceito à sua contestação

Em outra imagem, seguindo a lógica anterior, a radialista apresenta seu programa de sugestões de tratamento para as suas ouvintes ficarem mais belas. Trata-se de uma senhora obesa e com verrugas cabeludas no rosto, ou seja, bem fora dos padrões de beleza da época e de hoje. Entretanto, apresentase bem vestida, com colar de pérolas e unhas pintadas, ressaltando aspectos de feminilidade. Em seu característico sarcasmo, O Amigo da Onça se dirige à mulher perguntadolhe quando ela iria iniciar em si as sugestões de beleza que indica às suas ouvintes. Assim, de forma direta, chama de “feia” sua colega de trabalho. Esta deixa claro sua opinião sobre a pergunta d´O Amigo da Onça, dirigindo-lhe um olhar faiscante e contorcendo sua boca.

O Cruzeiro, 23/01/1954

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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira

O desprezo ao pobre ou ao trabalho dito inferior é outra característica d´O Amigo da Onça. Uma experiência feita recentemente é interessante para vermos como é ainda um padrão recorrente. Um pesquisador se vestiu de gari e ficou meses varrendo o chão do campus da Universidade de São Paulo (USP) e verificou que os passantes o ignoravam totalmente, como se ele não existisse. Ninguém conversava com ele, nem “bom dia” davam! O desprezo d’O Amigo da Onça é ressaltado na próxima imagem. Ao cruzar com os garis, dirige-se a eles e pergunta: “Muito bem, fazendo sua propagandazinha eleitoral, hem?!”. Era época de eleição presidencial e um dos candidatos, Jânio Quadros, usava a vassoura como seu símbolo eleitoral. Vemos na imagem o caminhão de lixo, como era na época, aberto e vazando lixo pelas ruas, os garis com roupas rasgadas e sujas com as barbas por fazer. Todos carregando lixeiras repletas. As feições dos garis demonstram indignação com a “brincadeira de mau gosto” do personagem. Qual seu sentido a não ser humilhar e rebaixar o trabalhador do lixo?

O Cruzeiro, 12/08/1960

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O Amigo da Onça: da construção do preconceito à sua contestação

Da mesma forma o trato com os mendigos. Em um país onde havia um enorme êxodo rural, falta de emprego, população analfabeta, existir mendigos, moradores de rua, era uma contingência econômica e social, não uma opção. Não percebendo deste modo, o olhar d’O Amigo da Onça para com o mendigo era de superioridade, considerando-o, portanto, passível de ser humilhado. A ironia está presente nas imagens abaixo. O mendigo, retratado com roupas rasgadas, sem sapatos e meias furadas, chapéu em frangalhos, e barbado, procurando algo no bolso foi a “deixa” para que O Amigo da Onça saísse com a frase “O que foi? Perdeu a chave do cadillac?” O mendigo não gostou de ser humilhado e soltou palavrões, apresentados na forma de símbolos, para demonstrar sua indignação. O Cruzeiro, 18/02/1956

O Cruzeiro, 11/08/1962

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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira

No outro desenho, O Amigo da Onça compara um maltrapilho ao personagem fictício “Bicho-Papão”. Ele ameaçou chamá-lo se o menino não parasse de chorar. O senhor mal vestido pára, volta-se para a cena e demonstra sua raiva por meio de sua face (sobrancelha, olhar e boca). Agora vejamos uma demonstração do preconceito, da discriminação para com o obeso. O Amigo da Onça é um ascensorista, e como tal está vestido. Na imagem vêmolo parar um senhor obeso pedindo-lhe que pegasse o outro elevador – de carga – , já que o pessoal que estava dentro daquele elevador queria subir. Ou seja, se ele entrasse no elevador, seu peso iria bloqueá-lo. Os personagens do elevador tem reações diferentes: o menor demonstra medo, o segundo repulsa, e a senhora apenas um olhar atento, de surpresa. A feição do obeso é de extrema raiva pela situação. Ao comparar este com carga, O Amigo da Onça busca humilhá-lo, rebaixálo, ele que estava em posição hierarquicamente inferior, de empregado, enquanto o senhor obeso

apresenta-se

vestido

nobremente. Assim, mesmo em situações adversas, O Amigo da Onça consegue se mostrar superior com os preconceitos disponíveis na sociedade.

O Cruzeiro, 21/01/1961

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O Amigo da Onça: da construção do preconceito à sua contestação

Nem o cego escapou de ser maltratado pel´O Amigo da Onça. Vemos no desenho que o autor deixou claro o sentido a ser seguido pelo cego. O cachorrinho sabe a direção certa e se surpreende com a informação prestada pelo nosso personagem. O Amigo da Onça aponta em sentido contrário da direção a ser seguida, ou seja, dá uma informação incorreta propositalmente. A face do cego é de tranquilidade e até de felicidade pela ajuda recebida. Ainda desconhece a traquinagem d´O Amigo da Onça.

O Cruzeiro, 15/02/1958

Outra personagem que não poderia ficar de fora seria a sogra. Motivo de várias piadas pejorativas, discriminatórias e humilhantes, a sogra também foi retratada, neste caso pelo substituto de Péricles n’O Cruzeiro, o genial Carlos Estevão. Neste desenho, na pastelaria “Amigo da Onça”, o confeiteiro, logo ele, O Amigo da Onça, apresenta o bolo encomendado pelo casal. Para surpresa do futuro genro e alegria de futura sogra, o confeiteiro escreveu no bolo a frase “Até que a morte nos separe”, colocando na parte superior os nubentes acompanhados pela sogra, que foi apresentada de forma bem

específica.

Carlos

Estevão

deixou transparecer o caráter da O Cruzeiro, 23/10/1966

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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira

sogra pelo seu olhar, seu sorriso, ou seja, demonstrando que a vida do futuro genro seria bem difícil. Pela expressão deste, ele concorda com o autor. Um personagem atual, que sempre está na mídia e que foi tema d´O Amigo da Onça, é o político. Péricles e Carlos Estevão denunciaram seus hábitos e história de vida. Assim, muitas vezes o político foi retratado de forma pejorativa. Na imagem seguinte vemos O Amigo da Onça aprontar mais uma, pois, ao escolher uma foto jovem do prefeito para fazer parte de galeria de retratos, conforme este pediu, denunciou seu passado inglório, de ex-detento. O prefeito, que nada sabe, levanta o polegar, em um sentido positivo, pois esperava que seu amigo deixasse para a posteridade uma foto falsa, que escondesse sua idade, mas não tão denunciadora como aquela escolhida. Na outra imagem O Amigo da Onça desmascara uma prática comum nos políticos, ou seja, a encomenda de seus discursos a outros.

O Cruzeiro, 20/11/1969

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O Amigo da Onça: da construção do preconceito à sua contestação

Dentro da questão do preconceito n´O Amigo da Onça, um que retrata bem a nossa sociedade e que está no debate atual é o etnico, em especial com respeito ao afrodescendente (negro). Sobre este tema nos centraremos um pouco mais, na medida em que trata de uma questão específica da cultura e da história nacional. Recentemente (agosto de 2009), em um programa religioso televisivo, o pastor deu a palavra a um presente que relatou que, depois que passou a ajudar tal igreja, seu pai, um semi-analfabeto, havia conseguido um emprego de assessor de vereador. Narrou que isso é muito difícil no Brasil, “um país preconceituoso para com os negros”, em especial semiletrados. O pastor disse, imediatamente, que “isto era raro”, só alguns “boboquinhos” é que seriam assim. Seria verdade tal afirmação?

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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira

Existem muitas “piadas” carregadas de preconceitos contra os negros passadas de geração a geração neste país. O autor destas linhas se recusa a citá-las. Podemos incluir na lista das piadas preconceituosas as que têm como sujeito ou tema: estrangeiro, gênero, sogra, obeso, judeu, árabe (muitas vezes confundido com turco), gago, fanho etc. Todas fazem parte de nosso cotidiano, sempre há alguém para contá-las, mesmo que não achemos graça ou não queiramos ouvi-las. É comum ainda se ouvir que os negros são “inferiores”, utilizando-se da lógica de que eles só se destacavam em esportes, ou seja, correr ou saltar. Portanto, assemelhavam-se aos animais. Fruto do preconceito das elites brancas coloniais, imperiais e depois republicanas, dos imigrantes europeus e asiáticos, o negro foi visto como representante do atraso, do vício, da malandragem. Enfim, era um agente perigoso. Um pequeno país do Caribe, o Haiti, colônia francesa, foi sacudido por revoltas de escravos e pela deposição dos brancos do poder no início do século XIX (1801 a 1803). Este fato foi um importante fator de pavor de toda a elite escravocrata branca brasileira. Em 1835, ocorrera em Salvador o levante dos escravos Malês e por todo o Brasil assassinatos de brancos demonstravam a não passividade do negro frente à sua condição. Tais fatos, provavelmente, levaram a que o Código de Postura da Corte de 1838 (capital do Império e atual cidade do Rio de Janeiro) determinasse a prisão de qualquer escravo que estivesse após as 19 horas na rua sem a permissão por escrito de seu proprietário. Da mesma forma, recomendava que os donos das tavernas não permitissem que mais de quatro escravos ficassem juntos em suas portas. Qualquer negro que 80


O Amigo da Onça: da construção do preconceito à sua contestação

estivesse de posse de objetos de valor era imediatamente considerado suspeito de furto. Vemos, portanto, que passa a ser construída uma visão de que todo negro é suspeito e ladrão. Nesse sentido, um lundu (gênero musical e dança do Brasil de origem angolana com ritmos portugueses) nos traz informações interessantes do olhar do negro sobre a justiça no Brasil imperial: Barranco dize – preto fruta. Preto fruta co razão: Sinhô baranco também fruta Quando panha casião Nosso preto fruta garinha Fruta saco de feijão; Sinhô baranco quando fruta Fruta prata e patacão Nosso preto quando fruta Vai pará na coreção Sinhô baranco quando fruta Logo sai sinhô barão. (Lundu de Pai João, retirado de CHALHOUB, 1988) Este lundu é muito atual se pensarmos que um pobre pode ficar oito meses preso na delegacia por furtar uma lata de óleo no mercado e um banqueiro responder em liberdade o desvio de milhões de reais. Muitos pensadores compartilhavam de todo esse preconceito, inclusive reforçando-o. Oliveira Vianna, por exemplo, foi um intelectual brasileiro que, com suas idéias que valorizavam os brancos em detrimento dos negros, obteve 81


O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira

prestígio e importância. Divulgava, entre outras coisas, que a etnia negra era incapaz de produzir civilização, uma vez que possuiria um comportamento instável. Afirmou que a solução do atraso brasileiro seria a vinda de imigrantes europeus para o Brasil para, assim, embranquecê-lo. Portanto, deu um caráter “científico” à questão. Outros importantes intelectuais se equivocaram em suas observações ao usarem como base para suas pesquisas os relatos dos viajantes europeus no Brasil do século XIX, pois foram incapazes de perceber o olhar discriminatório destes. Ora, brancos europeus, de religião e moral rígidas, ao transporem para o papel suas observações, faziam-no com toda carga preconceituosa que possuíam. Além disso, buscavam atingir um público europeu; portanto, suas escritas deviam atender aos objetivos de consumo deste. Ao não perceberem isso acabaram reforçando, por exemplo, visões distorcidas sobre a constituição familiar dos escravos, como a de serem incapazes de contituir laços familiares. Estudos realizados por historiadores nas décadas de 80 e 90 do século passado demonstraram que existiam muitas famílias escravas com laços fortes, ou seja, relações estáveis e mantidas por várias gerações, contradizendo os velhos estudos. Vejamos agora como o preconceito contra o negro estava presente n´O Amigo da Onça. Ao vermos a imagem a seguir, deduzimos que os personagens estão no inverno. O Amigo da Onça está sem seu clássico terno, pois usa casaco longo e chapéu. Seu colega veste um pulôver, casaco e porta  chapéu. É uma cena urbana. Ao passar a senhora negra de casaco de pele (símbolo de status na época), O Amigo da Onça fala ao seu colega que “A essa altura a patroa deve 82


O Amigo da Onça: da construção do preconceito à sua contestação

estar viajando”. Seu parceiro, branco, cai na gargalhada. A senhora negra demonstra sua indignação soltando palavras impublicáveis para a época, sem se voltar aos provocadores. Por que uma senhora negra não poderia ter um casaco de peles? O negro em nossa sociedade sempre esteve ligado à pobreza, seu local de moradia é a favela ou as periferias das cidades, seu emprego é de baixa remuneração. Ao não nos questionar sobre razões históricas para tal fato, pouco avançaremos para a construção de uma sociedade igualitária e sem preconceitos étnicos.

O Cruzeiro, 20/08/1960

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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira

O Cruzeiro, 10/04/1954

Em outro desenho em que podemos visualizar especialmente o desrespeito étnico é o da negra na praia: O Amigo da Onça dirigi-se a ela e comenta: “Queimadinha, hein?!...”. O olhar da negra tem um misto de desprezo e raiva. A praia é um local de descontração, relaxamento, encontro com colegas, de olhar o céu azul em contraste com o mar verde, brincar na água e para brincadeiras e o brozeamento. Ao fazer tal pergunta, O Amigo da Onça buscou ironizar a negra, já que esta não teria necessidade de pegar sol para se bronzear. Ao se “esquecer” das outras atividades prazerosas da praia, O Amigo da Onça deixou claro sua intenção de provocar a praiana. As feições da mulher demonstram sua indignação e desprezo pelo personagem. 84


O Amigo da Onça: da construção do preconceito à sua contestação

Considerações finais: reprodução ou contestação? O artista sabe dos limites de sua obra. Suas intenções podem ter um significado, mas o olhar e a interpretação daquele que a vê pode ser bem distinta. Ao desenhar a forma preconceituosa e humilhante como era tratado o negro, a “feia”, a sogra, o portador de necessidades especiais e outros tantos, o autor procurava reforçar tal forma de tratamento ou denunciar, desnudar estas ações, nossa forma de pensar e agir? Um detalhe que está em todas as imagens mostradas neste trabalho foi a indignação. Todos reagem à provocação – mendigo, “feia”, idosa, negra, obeso e gari. Não há passividade. NINGUÉM ACEITA SER HUMILHADO! A ordem estabelecida é contestada pelos que são ridicularizados. Talvez esta seja a grande chave para se compreender a proposta de denúncia feita por Péricles e, depois, por Carlos Estevão. Nestas imagens, o humor se apresenta como denunciador da opressão, e desmascara as formas de relacionamento humano degradantes e humilhantes em que um igual é tratado como desigual.

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Referências Bibliográficas

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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira

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Sobre os autores

Jorge Luiz Romanello Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP-Assis). Professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina. ediromanello@yahoo.com.br Ana Flávia Dias Zammataro Mestranda do Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Estadual de Londrina. afzammataro@yahoo.com.br Alberto Gawryszewski Doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor Associado do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina. agawry@pq.cnpq.br

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promoção:

Departamento de História Laboratório de Estudos dos Domínios da Imagem (LEDI)

realização:

978-85-7846-054-9

patrocínio:


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