PATRIMÔNIO HISTÓRICO E CULTURAL cidade de Londrina-PR
Alberto Gawryszewski (org.) Coleção História na Comunidade – volume 5
PATRIMÔNIO HISTÓRICO E CULTURAL cidade de Londrina-PR
Coleção História na Comunidade volume 5
Reitora Profa. Dra. Nádina Aparecida Moreno Vice-Reitora Profa. Dra. Berenice Quinzani Jordão Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-graduação Prof. Dr. Mário Sérgio Mantovani Pró-Reitora de Extensão Profa. Dra. Cristianne Cordeiro Nascimento Pró-Reitor de Graduação Prof. Dr. Ludoviko Carnascialli dos Santos Diretor do Centro de Letras e Ciências Humanas Profa. Dra. Mirian Donat Chefe do Departamento de História Profa. Dra. Edméia Ribeiro Coordenador do Ledi Organizador da Coleção História na Comunidade Prof. Dr. Alberto Gawryszewski
Agradecemos ao Museu Histórico de Londrina/UEL pela cessão das imagens de seu acervo e, em especial, a funcionária Célia Rodrigues de Oliveira
Alberto Gawryszewski (org.)
PATRIMÔNIO HISTÓRICO E CULTURAL cidade de Londrina-PR
Coleção História na Comunidade volume 5
Universidade Estadual de Londrina Londrina • 2011
Uma publicação do Laboratório de Estudos dos Domínios da Imagem (LEDI), do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina Copyright© dos autores Capa e editoração: Humanidades Comunicação Geral Imagem da capa: Primeira Estação Ferroviária de Londrina, 1935, fotografia de José Juliani, acervo do Museu Histórico de Londrina/UEL. Imagem da contracapa: Cemitério São Pedro/2011, fotografia e arte final de Alberto Gawryszewski Tiragem: 1000 exemplares Distribuição gratuita. Venda proibida.
Catalogação elaborada pela Divisão de Processos Técnicos da Biblioteca Central da Universidade Estadual de Londrina Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
P314
Patrimônio histórico e cultural : cidade de Londrina-PR / Alberto Gawryszewski (org.). – Londrina : Universidade Estadual de Londrina / LEDI, 2011. 90 p. : il. (Coleção História na Comunidade ; v.5) Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7846-124- 9
1. Patrimônio histórico – Londrina (PR). 2. Patrimônio cultural – Londrina (PR). 3. História social. I. Gawryszewski, Alberto. II. Série. CDU 930.1:719
Impresso no Brasil / Printed in Brazil Feito depósito legal na Biblioteca Nacional
Sumário
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Apresentação
A Cidade de Londrina e a Imagem do Patrimônio Edificado: a Estação/Museu e a Secretaria de Cultura/Casa da Criança Zueleide Casagrande de Paula
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Casas de Madeira em Londrina
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Cemitério São Pedro: espaço de vida, espaço de memória
Antonio Carlos Zani
Alberto Gawryszewski
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Referências bibliográficas
Sobre os autores
Alberto Gawryszewski Doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor Associado do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina (UEL). agawry@pq.cnpq.br Antonio Carlos Zani Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP). Professor Associado do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual de Londrina (UEL). zani@uel.br Zueleide Casagrande de Paula Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP-Assis). Professora Associado do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina (UEL). zucapaula@uol.com.br
Apresentação A publicação deste quinto livro, da coleção História na Comunidade, é a continuidade da realização de um desejo: dar transparência às atividades científicas produzidas pelos professores da Universidade Estadual de Londrina (UEL), em especial do Departamento de História, que participam do Laboratório de Estudos dos Domínios da Imagem (LEDI). É possibilitar um diálogo entre o saber científico e a comunidade. No decorrer dos anos de suas atividades (2006 até hoje) muitas realizações: cursos de extensão, publicação da revista do LEDI (“Domínios da Imagem”), do livro “Imagens em debate” (pela EDUEL, 2011), realização do Encontro Nacional de Estudos da Imagem (ENEIMAGEM, 2007, 2009 e 2011), além da produção de exposições e vídeos. Toda esta produção pode ser conferida pelo site do LEDI - http://www.uel.br/cch/his/ledi Em 2008, o LEDI teve aprovado seu projeto junto ao PROEXT/2008Programa de Extensão Universitária (ProExt Cultura), um programa dos Ministérios da Cultura e da Educação, realizado com a colaboração da Fundação de Apoio à Universidade Federal de São João Del Rei (FAUF) o que possibilitou o início da coleção História na Comunidade, a realização de exposições e produção de vídeos. Em 2008 tivemos a grata notícia da aprovação de nosso projeto junto ao Conselho Nacional Científico Nacional (CNPq) no edital Difusão científica. Foi com este que demos a continuidade à coleção História na Comunidade, das exposições e da produção de vídeos. Este quinto livro, que acompanha a exposição com o mesmo nome, foi concebido como mais um instrumento nas mãos dos professores na tarefa de dialogar com os alunos. A exposição, composta por cerca de 60 banners (que podia variar conforme o espaço físico disponível), foi e está sendo montada em escolas, museus, associações esportivas,classistas e culturais. Foi dividida em três partes, as mesmas que compõem este livro. Assim, portanto, este possui três capítulos. A cidade de Londrina completou, neste ano de 2011, 77 anos de emancipação. Uma cidade recente de conta com dois cursos de História (sendo um não presencial) e dois cursos de especialização em Patrimônio Histórico e Cultural. Conta a prefeitura com uma diretoria de Patrimônio Histórico, vinculada a Secretaria Municipal de Cultura. O PROMIC (Programa de Incentivo à Cultura) têm financiado diversos projetos de educação patrimonial e publicação de livros. Da mesma forma Universidade Estadual de Londrina tem conseguido verbas para desenvolver projetos nesta área (PROEXT, Universidade Sem Fronteiras entre outros). Entretanto o que se assiste hoje na cidade de Londrina é a devastação de seu patrimônio histórico cultural. Dezenas de edificações de seu centro histórico, dezenas de casas de madeiras, tanto na zona rural quanto urbana, centenas de jazigos de seus cemitérios são destruídos no silêncio de todos os membros da comunidade londrinense. Este livro se insere na discussão da necessidade da compreensão do patrimônio histórico e cultural de uma cidade nova, mas possuidora de uma rica história e memória e, portanto, necessitando de sua conservação para esta e futuras gerações.
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O primeiro texto desta obra foi escrito por Zueleide Casagrande de Paula e é intitulado “A cidade de Londrina e a imagem do Patrimônio edificado: a Estação/ Museu e a Secretaria de Cultura/ Casa da Criança”. Sua preocupação foi abordar o patrimônio urbano de Londrina sob os aspectos histórico e cultural, mas na perspectiva da identidade, da rememoração, utilizando-se de espaços e lugares sacralizados e ainda não patrimonializados (Casa da Criança/ Secretaria de Cultura) e já patrimonializados (Estação rodoviária/ Museu de Arte), ambas obras projetadas pelo consagrado arquiteto João Batista Vilanova Artigas (1915-1985). O segundo texto foi escrito por Antonio Carlos Zani sob o título “Casas de madeiras em Londrina”. O objetivo deste texto foi apresentar um pequeno histórico das construções das casas de madeira em Londrina entre os anos 40/60, período que se deu o boom desta modalidade de construção. Pretendeu demonstrar a existência de uma cultura arquitetônica local, única, por meio dos ornamentos (frontões e varandas), tipos de madeiras usadas, técnica de carpintaria entre outras. Mostrou que é impossível pensar a história de Londrina e região sem compreender a importância das casas de madeira na ocupação deste espaço geográfico. Por décadas elas resolveram o problema de moradia, sempre com estética e exatidão construtiva. Mas, hoje, há uma sistemática demolição deste importante instrumento da história da cidade e da zona rural de Londrina. Assim, adverte o autor: “Caso não hajam mecanismos legais de controle pela preservação desta arquitetura ela estará fadada a desaparecimento.” Por fim, o último texto, escrito por mim, trata do cemitério São Pedro de Londrina, localizado no centro da cidade e fundado no ano de 1935. Voltamo-nos para vários aspectos do cemitério São Pedro: o uso da fotografia e dos epitáfios nas sepulturas, a estatuária, ornamentos e outros signos. Foi dividido em três tópicos: os epitáfios, no qual percebemos o uso de metáforas e eufemismos que ajudam a enfrentar a morte; a fotografia cemiterial como forma de memória do falecido, sendo este tópico subdividido em três partes (casais; “personalidades” e retratos pintados); por fim, o último, os túmulos, ornamentos e estatuária. O cemitério é compreendido como um espaço privilegiado da memória da cidade, daí o título do capítulo “Cemitério de São Pedro: espaço de vida, espaço de memória”. Pelas imagens fotográficas, pelos epitáfios, pela estatuária podemos perceber os valores morais e sociais de uma época. As formas de vestir, o uso de variados cortes de cabelo, do bigodinho entre outros aspectos culturais. As imagens de casais, o uso da fotopintura nos apresentam as marcas de um tempo na forma de produzir uma imagem e a valorização da permanência da imagem do casal, formador de uma família, exemplo de união e amor. Espero que este livro, da coleção História na Comunidade (composta por nove livros), contribua para o debate e o ensino de História, em especial na discussão da preservação dos bens históricos e culturais de nossa terra. Este material pode ser copiado, no todo ou em parte, devendo ser nomeada sua fonte. O download dos textos poderá ser realizado pela página do LEDI . Prof. Dr. Alberto Gawryszewski / coordenador da coleção
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A Cidade de Londrina e a Imagem do Patrimônio Edificado: a Estação/Museu e a Secretaria de Cultura/Casa da Criança Zueleide Casagrande de Paula Introdução
O século XXI apresenta uma nova perspectiva quando tratamos do patrimônio, sobretudo do urbano. O patrimônio urbano proporciona uma racionalidade socioespacial diferente daquela que marcou o século passado, pois o patrimônio arquitetônico assumiu novos contornos e novos sentidos de uso. Este texto tem, portanto, a preocupação de abordar o patrimônio urbano na cidade de Londrina (localizada na parte norte do Estado do Paraná), sob os aspectos histórico e cultural. Porém, na perspectiva da identidade, da rememoração, principalmente do uso relativo aos espaços e lugares, sacralizados e não patrimonializados ainda, como a antiga Casa da Criança, hoje Secretaria Municipal da Cultura (no decorrer do texto, serão empregados Casa da Criança e Secretaria de acordo com o necessário); de edificações já patrimonializadas, como a antiga Estação Rodoviária de Londrina, hoje Museu de Arte (mencionada, doravante, como Estação/Museu). Esses espaços foram sacralizados na memória promotora da identidade, no uso cotidiano de tais lugares. Se para as cidades antigas há uma preocupação em discutir a revitalização e consequente refuncionalização do patrimônio urbano, para as cidades que nasceram no século XX, há um cuidado em definir o que deve ser primeiro contemplado como bens patrimoniáveis, 9
Patrimônio Histórico e Cultural: cidade de Londrina-PR
para, então, ser defendido como tal, visto que a cidade é, ela toda, um lugar de atenção e de tensão, pois sua temporalidade é muito recente e os processos de construção/demolição/reconstrução perpassam seu cotidiano com a naturalidade que marca sua essência, ou seja, aquilo que a identifica na sua condição de urbana – em outras palavras, edificar/demolir, reconstruir, restaurar.
A revitalização implica o uso dos bens patrimonializados com seus interiores readaptados, mantendo-se, geralmente, as fachadas restauradas, para a nova realidade que passarão a compor. A revitalização das cidades, de acordo com Odete Douro, apresenta a seguinte perspectiva, a qual destacamos: “Na verdade, trata-se de construir sobre o já construído, aproveitando o já existente como base para uma nova configuração tanto funcional quanto estética. Aliás, nesses casos, uma nova configuração estética é considerada primordial, no sentido de obliterar a antiga imagem de decadência da área abordada, fazendo reemergir a sua nova condição moderna, condição essa fundamental para sua reinserção na totalidade do tecido urbano e na vida econômica do país.” POR UM RESTAURO URBANO: novas edificações que restauram cidades monumentais”. http://www.portalseer.ufba.br/index. php/rua/article/view/3225/2342
A paisagem das cidades novas é marcada por esta espécie de tripé – construção/demolição/reconstrução. Isso caracteriza todas as cidades, mas nas cidades novas tais práticas são intrínsecas à sua condição de terem sido iniciadas no século XX. Esses espaços urbanos recentes são marcados pela velocidade, pela urgência em renovar sua plasticidade de acordo com os materiais mais atuais e dentro das mais modernas tendências arquitetônicas. Características como as mencionadas se fazem presentes nas cidades do norte paranaense. Diferentemente daquelas que praticam demolições de construções antigas para “atualizar” sua paisagem urbana, as cidades novas dessa região substituem uma arquitetura que remonta a setenta anos atrás, no máximo, por outra em estilo mais recente, por não entendê-la como cidade histórica, entre outras razões. No caso de Londrina, a paisagem nos lembra um canteiro de obras, pois nela há regiões em que a construção nunca silencia. A cidade 10
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está em expansão constante: regiões desabitadas pertencente às áreas rurais são integradas à área urbana; são planejadas para se tornarem habitáveis. Em alguns casos o planejamento propõe aglomerados de edifícios, como é o caso da região da gleba Palhano, cujo aspecto altera a paisagem de quem circula ou mora nessa região: e de onde olharmos, vemos cotidianamente as constantes transformações, seja um edifício finalizado, seja uma construção iniciada. Enfim, é a cidade se fazendo... Essa imagem urbana parece nos dizer que o horizonte, embora não devesse ser um limite para as edificações horizontais, necessita respeitar o limite imposto pela verticalização, por contraditório que possa parecer.
Marcos: são referenciais que o observador desenvolve em contato com a cidade numa relação de interação. Os marcos, na visão de Kevin Lynch (1997), quase sempre, são físicos e se constituem como tais porque o usuário estabelece uma relação simples, mas funcional, com o marco. Geralmente são edifícios, sinais, lojas ou outro lugar, como uma praça, etc. Um exemplo para o morador de Londrina: a “Casa dos Anões” era um marco, bem como o relógio instalado no alto do Edifício América, no cruzamento da rua Paraná com a rua Rio de Janeiro, e conhecido pelos usuários como “Relojão”. Para se tornar marco, foi preciso que a imagem do “Relojão” se construísse socialmente. http://www.jornaldelondrina. com.br/edicaododia/conteudo.phtml?id=992888. Exposições retratam a busca do tempo perdido. Consulta em 29/10/2010. Reportagem de 15/04/2010 | 00:00 Paulo Briguet. - Limites: Os limites podem ser barreiras claras e definidas, como abaixo do Calçadão ou acima dele, abaixo da linha de trem ou acima dela, abaixo da Avenida Leste-oeste ou acima dela, ou ainda, a travessia do lago que divide os bairros ( Cinco Conjuntos) da zona norte de Londrina. Portanto, são elementos entendidos como fronteira entre uma face e outra dentro da cidade, mas podem também ser espaços em construção, muros e paredes. - Bairros: são lugares reconhecíveis por seus moradores e por possuírem características comuns que os identificam, como, no caso de Londrina, a gleba Palhano: sua verticalização faz com que o bairro seja reconhecido por essa característica e, quando mencionado, remeta o observador a essa imagem já mentalmente construída. Nesse bairro também encontramos a ideia de limite.
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O mesmo cenário há pouco descrito encontramos na região dos Cinco Conjuntos, que, há muito tempo, deixou de abranger apenas cinco conjuntos habitacionais para reunir vários, que podem ser considerados bairros, aonde a verticalização também chegou. Embora ainda impere ali a residência horizontal, o número de construções verticais vem aumentando, e até mesmo a legibilidade urbana está sendo comprometida.
Entendemos, a legibilidade, com base na leitura de Kevin Lynch (1997), como a facilidade com a qual as partes podem ser reconhecidas e organizadas numa estrutura coerente. Um exemplo: ao nos aproximarmos da entrada da Praça Primeiro de Maio pela Avenida Souza Naves a partir da Secretaria da Cultura, reconhecemos, o espaço/lugar, e sabemos que o prédio do Correio fica na extremidade da praça, cujo o acesso se faz pela rua Rio de Janeiro. Trata-se de uma informação dada pela capacidade do usuário de ler o espaço urbano e se reconhecer nele, mesmo que ele não visualize a edificação que tem em mente. A imaginabilidade também pode ser definida em termos de uma qualidade de um objeto físico que oferece grande probabilidade de evocar uma imagem forte num dado observador; Cada usuário constrói sua própria Londrina de acordo com as informações, percepções, religiosidade, cultura, poder econômico e até mesmo lugar de residência que tenha, enfim sua visão de mundo é que permite essa imaginabilidade. A imagem elaborada a respeito da antiga casa dos anões e sua integração á imagem urbana depende da formulação de cada usuário e do seu lugar social (os moradores do Centro a viam diferentemente do modo como a viam os moradores dos bairros da região norte da cidade).
As construções “antigas” (erguidas há sete décadas, por exemplo) também são atingidas pela renovação da paisagem urbana. Nesse momento, põem-se em risco as edificações que já se consolidaram no imaginário urbano e são referência para seus usuários. Isso não as impede, contudo, de serem “varridas” da face urbana para que outras ocupem seu lugar. Um exemplo desse processo é a “casa dos anões”, uma das residências mais mencionadas pelos usuários urbanos de Londrina. Foi demolida recentemente para que, em seu lugar, fosse erguido um edifício onde funciona hoje uma agência de atendimento 12
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a clientes especiais (contas personalizadas) do Banco do Brasil. Dito de outra forma, o que poderia vir a ser patrimonializado sucumbiu ao capital. A cidade vive entre a expansão territorial com construções que fazem uso das mais modernas tecnologias e a demolição de edificações consideradas velhas, mas não históricas o suficiente para serem protegidas pela patrimonialização. Mas não é só isso: há prédios que devem ser preservados; entra, então, em cena, a ideia de restaurar o “antigo” – o que, como dito anteriormente, não exclui a renovação, ou seja, manter a cidade sempre “nova”. Se nas cidades mais antigas o tratamento dado à arquitetura, quando falamos de bens patrimoniáveis, visava a manter a cidade com sua legibilidade histórica “intacta” quanto a seus equipamentos urbanos (praças, parques, playgrounds, entre outros) e também sua arquitetura com a “marca” de antiga (caso das cidades mineiras), ou seus “centros históricos” sempre antigos, há, por outro lado, no contexto da patrimonialização, a ideia de revitalização, como o que se propõe hoje para o centro da cidade de São Paulo.
Patrimonialização é o termo utilizado para referir-se a todo o processo instaurado para proceder ao possível tombamento da obra, incluindo a base jurídica que sustente os argumentos de defesa do bem a tombar, assim como a avaliação técnica e o parecer dos vários técnicos (engenheiros, arquitetos entre outros) e conselheiros (membros eleitos, geralmente integrantes dos órgãos oficiais de tombamento, como Iphan e representantes da comunidade). Também se inclui nesse processo o próprio registro de tombamento. Ao se iniciar esse processo a obra ficará impossibilitada de sofre qualquer alteração até finalizar. Se tombada, e, em sua maioria, sempre ocorre o tombamento, somente os órgãos oficiais podem conceder qualquer mudança na obra, mas apenas em caráter de manutenção. Tombamento é o ato de registrar a obra, com todas as suas características, no livro tombo (livro de registro especial para esse fim), junto ao órgão no qual se iniciou o processo de patrimonialização. O registro no livro tombo é o último ato a ser praticado para que uma obra esteja realmente tombada. 13
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Nas cidades novas, por seu turno, as práticas levam-nos a concluir que sua arquitetura se revigora, mesmo que não se pergunte aos seus usuários se desejam ou não que o lugar por eles habitado permaneça constantemente em renovação/reformulação. Quando há uma preocupação puramente estética, em outras palavras, do ponto de vista da beleza, da forma, da criatividade do arquiteto etc. sobre uma edificação, a perspectiva histórica tende a se perder nesse caminho, porque a estética de uma construção, muitas vezes, não tem valor para a arquitetura, pois a edificação pode apresentar uma repetição de expressões já existentes e, portanto, nada de novo a acrescentar e a legitimar seu valor. Para a história, no entanto, a relação é outra, pois, independentemente de como seja a visualidade que temos do edifício, ele está ligada a uma memória e a uma história do lugar. Não levamos em consideração, portanto, se o edifício em questão atende ou não a uma forma de ver e entender a arquitetura – como faz o arquiteto, por exemplo. Quando tratamos de patrimonialização, vemos, sobretudo, o sentido de memória, de vivência histórica, de identidade, de lembrança afetiva. Talvez seja essa última a primeira que estabelecemos com um bem que se pretende tombar e tornar patrimônio. Em outros termos, a ideia de patrimonializar um bem pode ocorrer primeiro pela relação de afetividade que o usuário e a comunidade estabeleceram com ele. Essa relação não é histórica, mas é também a partir da afetividade que uma edificação desperta em seus usuários que se manifesta o desejo de preservação dos bens edificados. Entretanto a afetividade, geralmente se constitui a partir da convivência com a edificação, mas não é suficiente para que seja patrimonializada, é sim mais um dos elementos de definição desse processo. Nesse sentido, ao pensarmos a cidade de Londrina, consideramos que a velocidade característica de sua história é realmente muito significativa; contudo, ou exatamente por essa razão, foi possível a sacralização de lugares no decorrer desse mesmo tempo veloz. Temos claro que, ao nos propormos tratar de tal tema nessa dimensão, inserimo-nos na condição de sacralizadores, pois assim trazemos para o leitor um debate que diz respeito à história e à memória dos 14
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usuários dessa cidade. E não apenas nós historiadores, mas também os professores de história dos Ensinos Fundamental e Médio, quando levam seus alunos para visitar lugares considerados de memória e de lembranças, como os museus, o Centro “velho” da cidade, as áreas verdes preservadas; os representantes de instituições oficiais e não oficiais de preservação patrimonial, quando propõem que determinado edifício seja tombado pelo patrimônio histórico, e não outro que possui a mesma temporalidade; os legisladores, ao propor a proteção em forma de lei; o Poder Judiciário, quando faz o cidadão e a cidade cumprirem essa lei, o Poder Executivo, quando aplica a lei... Desse modo, somos um grupo social significativo de sacralizadores. Porém, ao historiador cabe tratar a respeito da história da obra, sobre seu passado e sua relevância histórica na composição da paisagem urbana no presente. Compete tratar a respeito da relevância ou não da edificação, se esta é merecedora de atenção dos órgãos patrimolializadores, de acordo com o que pensa a comunidade, enfim, contribuir no que tange à sua história. Neste ponto, cabe lembrar o que dissemos ao iniciar esse texto: nas cidades novas tudo é histórico, pois tudo está-se fazendo, ou se fez em um tempo tão próximo que não dispomos dos instrumentos oferecidos pelo tempo histórico para definir o que é necessário e premente preservar (isto é, o que compõe a paisagem urbana há muito, muito tempo). No caso de que tratamos, a temporalidade de tudo é a mesma. Também não podemos “descartar” a presença viva dos “fazedores de história”, ou seja, daqueles que controem a cidade – e esses são todos, pois ela está em construção contínua desde sua fundação, portanto seu fazer histórico é ininterrupto, atual, e seus fazedores estão vivos. Entretanto não se pode preservar tudo, pela razão já exposta: o que caracteriza a cidade é a sua demolição/construção permanente. Então, vemo-nos frente a um problema, qual seja: o que eleger, quando tratamos de edificações, e como justificar que um determinado edifício seja merecedor de preservação/patrimonialização? Esta é uma das questões-chave da nosso texto. Para responder a essa indagação, destacamos duas edificações, a fim de mostrar por que elas são diferentes das demais de sua época e por que elas podem ser integrantes do patrimônio edificado da cidade na perspectiva do historiador. 15
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A contribuição de João Batista Vilanova Artigas ao patrimônio histórico de Londrina As duas obras que elegemos para discutir o patrimônio edificado em Londrina, como já dissemos, são a Casa da Criança e a Estação/ Museu. Visamos a demonstrar seu valor histórico e por que merecem compor o patrimônio histórico da cidade. Nesse sentido, faz-se necessário dizer quem as idealizou, dito de outro modo, quem é o arquiteto que as concebeu – João Batista Vilanova Artigas –, pois se trata de um dos motivos pelos quais essas edificações são possuidoras de características diferentes das de outros prédios da mesma época. João Batista Vilanova Artigas, conforme informa Suzuki (2007), nasceu em junho de 1915, em Curitiba, no estado do Paraná. Sua formação superior se deu na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo – USP, quando a engenharia e a arquitetura formavam o engenheiro-arquiteto. Embora sua relação com a cidade de Curitiba tenha se mantido sempre atualizada, pois era lá que se encontravam seus familiares, estabeleceu-se em São Paulo (SP), onde a identidade urbana e a do arquiteto se encontraram e se manifestaram em vários momentos e obras. Artigas amava São Paulo; a cidade, por sua vez, proporcionou tudo aquilo de que precisou para expor seu pensamento modernista em suas obras, consideradas obras de arte. Artigas igualmente deixou sua marca no Paraná, sobretudo na cidade de Londrina. A Estação/Museu foi sua principal obra, mas há outras, como veremos mais adiante. Era filiado ao Partido Comunista Brasileiro , e essa filiação rendeu-lhe o exílio durante a época da ditadura militar. Foi considerado um dos fundadores da arquitetura modernista no País (KAMITA, 2003). Era um defensor, no Brasil, das ideias de Frank Lloyd Wright, arquiteto norte-americano que defendia a tese de que, quando três linhas eram suficientes para projetar uma edificação, era estupidez fazer empregar mais. Em outras palavras, defendia a arquitetura limpa. Por essa influência, Yves Bruand (1981) denominou a primeira fase da obra de Artigas (a compreendida entre 1938 e 1944) de “fase wrightiana”. Mais tarde Artigas manteve estreito diálogo com o pensamento e 16
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as obras de Le Corbusier. Esse arquiteto era francês e teve uma influência marcante no pensamento dos arquitetos brasileiros. Artigas foi um desses arquitetos e acabou por estabelecer laços com Le Corbusier, cujo nome verdadeiro era Charles-Édouard Jeanneret. Corbusier era também modernista e defendia que “as formas primárias são as formas belas, porque são claras de ler” (LASZLO TASCHEN, 2010). Artigas fundia o pensamento dos dois arquitetos em suas obras, embora tenha sido influenciado, num determinado período, mais por um do que por outro. Como veremos em suas duas obras aqui destacadas, Vilanova Artigas apresenta essa mesma clareza na leitura das formas, pois entendia que deveria expressar, ao propor um projeto para qualquer edificação, uma linguagem arquitetônica que fosse acessível ao público – como a que se expressou na Estação/Museu e na Casa da Criança. Simultaneamente à atividade de arquiteto, Artigas foi professor na Escola Politécnica na Universidade de São Paulo e, posteriormente, no curso de Arquitetura dessa mesma instituição. Muitos foram seus discípulos durante sua atuação como professor. Vários foram seus projetos, os quais marcaram profundamente sua carreira e sua existência. Em consequência de suas convicções políticas, foi exilado durante a ditadura militar no Brasil. Ao retornar ao País, não mais pode assumir a cadeira de Projetos, a qual lhe pertencia antes do exílio. Permaneceu na Universidade de São Paulo como professor colaborador de outras disciplinas e, em 1985, submeteu-se a uma banca de titulares para reintegrar o quadro de professores daquela instituição, o que causou grande constrangimento na ocasião (ARANTES, 2002). As exigências institucionais às quais não pode fugir, ainda com os resquícios da ditadura militar e reforçadas pelas correlações de forças dentro da FAU/USP, ficam claras nesse acontecimento. Morreu um ano depois, em consequência de um câncer. Tornou-se, em sua época, um dos mais reconhecidos arquitetos do País. Porém, foi arremessado ao esquecimento cultural e histórico. Se não tivesse tido uma morte prematura e vivido como seus colegas de trabalho e de vida – Oscar Niemeyer, ainda atuante, Lucio Costa, que morreu em 1998, e Oswaldo Bratke, falecido em 1997 –, certamente seria o arquiteto mais festejado depois de Niemeyer, conforme afirma o arquiteto e professor Hugo Segawa. 17
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Hugo Segawa, também professor da USP, teceu o seguinte comentário em artigo que publicou sobre o evento do retorno oficial de Artigas a FAU/USP: “figura emblemática do ativismo engajado do Partido Comunista Brasileiro, seu discurso espelhou as vicissitudes que marcaram a trajetória das esquerdas brasileiras. Dono de uma retórica mais impetuosa que a esquemática oratória comunista de Niemeyer, Artigas não viveu para acompanhar a queda do muro de Berlim. Um homem que sempre estimou a literatura e a escrita, ele é um dos poucos arquitetos que têm registrado no papel seus posicionamentos intelectuais como cidadão e como artista, e esses textos retratam as ortodoxias e as incoerências de um período pleno de contradições. Por sua franqueza e ímpeto, ele foi criticado por jovens discípulos mais à esquerda, como massacrado pelas alas mais conservadoras. Sua morte precoce não pode ser desvinculada da humilhação de se submeter a uma prova para titulação acadêmica na USP aos 69 anos de idade, apesar de uma veemente vocação de professor, dentro e fora da universidade. A aula pública do concurso foi seu canto do cisne.” Publicado em jan. 2002, em: http://www. vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/01.001/3258, por Hugo Segawa, sob o título: “Vilanova Artigas, renascer de um mestre”. Consulta em 21/10/2010.
São diversas as obras de João Batista Vilanova Artigas realizadas na cidade de São Paulo, aproximadamente setecentos projetos. Faremos, todavia, referência específica a duas delas, certamente já vistas pessoalmente ou pela televisão: o prédio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo/FAU, localizado no espaço da Universidade de São Paulo, e o estádio do Morumbi (o do São Paulo Futebol Clube), onde são realizados diversos jogos dos mais variados torneios do mundo do futebol. Em ambos, fez vasto uso do concreto armado – um dos elementos definidores dessas edificações e da escola paulista/brutalista. Mesmo que Artigas nunca tenha se assumido como um dos fundadores da escola de pensamento paulista/brutalista no campo da arquitetura, a ele foi atribuída a maior influência dessa vertente arquitetônica. Essa escola de arquitetura é conhecida por fazer uso expressivo do concreto armado em suas construções, como é o caso da Estação/Museu em Londrina. O que caracteriza a mencionada escola é o uso do concreto exposto visível e as formas simples no uso desse concreto, o emprego do tijolo aparente e das caixas expostas. 18
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Figura 1. Fotografia da autora, agosto de 2009. Imagem transversal do edifício da Estação / Museu.
Nesse exemplar, em Londrina, é visível a exposição do concreto. Se em muitas edificações o concreto exposto é agressivo, aqui a forma elimina essa aspereza. O fato de o concreto compor uma forma/desenho em cascata – as chamadas abóbadas – proporciona a sensação de que elas irão levantar voo, pois apresentam uma leveza que o concreto parece impossibilitar, por sua dureza.
Portanto, a poética da forma em Artigas descaracteriza a peculiar dureza do concreto. Como podemos ver no mencionado exemplar arquitetônico (um dos símbolos do passado da cidade de Londrina, a propósito), a forma apresenta leveza e a clareza defendidas por Artigas. Essa defesa das formas simples tinha o objetivo de popularizar a arquitetura modernista, para que todos tivessem acesso à compreensão de tais formas e para que todos pudessem ter moradias construídas com simplicidade, mas não desprovidas de formas suavizadas e de uma certa arte, mesmo que as condições das construções, na época, não permitissem, por exemplo, um acabamento refinado para as edificações populares. Se o concreto ficasse exposto e fosse aceito pelas elites em suas residências e em obras públicas, como a Estação/Museu em Londrina e o estádio do Morumbi em São Paulo, seria possível construir para as classes populares, sem que fosse necessário o acabamento (esconder o concreto), pois o concreto seria o próprio acabamento. Para isso, no entanto, era preciso que o concreto se tornasse arte. A causa de Artigas era ideológica e política, por isso ele defendia o uso direto e exposto do concreto: o rebuscamento na arquitetura encarecia a obra, e o Brasil era um país onde a pobreza imperava. Por outro lado, as formas “rudes” dessa arquitetura também expunham o país onde se vivia; expressar suas ideias, materializadas na arquitetura, era uma forma de posicionamento político frente à pobreza. Porém, Artigas era, antes de tudo, alguém que enfrentava 19
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conflitos em suas escolhas e posições políticas e humanas, em seu trabalho e nas demais relações que estabelecia. Assim, percebemos que não seria possível estudar as obras (edificações) de Artigas sem saber mais a respeito de sua vida, seus ideais e suas posições políticas. Não seria possível separar a obra do artista: um estava no outro, e ambos expressavam sua força imaginativa, sua arte criadora e vontade de construir uma cidade acessível a todos. Num futuro não muito distante, algumas de suas edificações (da vasta obra de sua vida) localizadas na cidade de Londrina tornar-seiam patrimônio arquitetônico. Conforme o site da Coordenadoria do Patrimônio Cultural da Secretaria de Estado da Cultura, a Estação/ Museu e o Cine Teatro Ouro verde já estão patrimonializados e constam dos bens tombados pelo estado do Paraná. http://www. patrimoniocultural.pr.gov.br/search.php?query=artigas&action=result s&mids%5B%5D=2. Portanto, embora não seja o objetivo nesse trabalho, tratar a respeito das duas edificações que passaremos a apresentar, o faremos, por entender que o leitor ao caminhar pela cidade, pode se reconhecer nesses espaços e distinguir as obras de Artigas, às quais nos referiremos. Nesse sentido, apresentaremos dentro dessa breve biografia do referido arquiteto, o Cine Teatro Ouro Verde e o edifício Autolon. O Cine Ouro Verde (hoje Cine Teatro Outro Verde) e o edifício Autolon compuseram também marcos urbanos durante muitos anos na cidade de Londrina. Ambos construídos, um ao lado do outro, ligados por uma edificação que se estendia do edifício Autolon em direção ao prédio do cinema, no qual foi instalado um restaurante. Foram construídos na Rua Paraná, hoje o Calçadão.
Figura 2. Fotografia 1 – Cine Ouro Verde: destaque para as colunas em cunha, com cobertura em pastilhas. Fotografia 2 – Vão entre o Cine Ouro Verde e o Edifício Autolon: no passado um restaurante, hoje, uma loja. Fotografia 3 –Edifício Autolon: destaque para as colunas elípticas e cobertura em pastilhas. (acervo da autora).
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O espaço funcionava como restaurante, era freqüentado pelos moradores da cidade em almoços e jantares antes e depois das sessões de cinema. Era também o ponto de encontro em final de tarde para os empresários, profissionais liberais e políticos locais. Entre o edifício do teatro e do Autolon, hoje funciona uma pequena loja de ponta de estoque, como é possível constar pela imagem da figura 2, fotografia 2. Esse conjunto arquitetônico foi pensado e proposto por um grupo de empresários locais: Celso Garcia Cid, proprietário da empresa de transporte rodoviário Viação Garcia, mas na época uma empresa regional; Ângelo Pesarini e Jordão Santoro, também sócios proprietários da Sociedade Auto Comercial de Londrina – Autolon, cujo produto consistia nos veículos da marca Chevrolet. Esse edifício foi construído sobre pilotis (nesse caso, coluna de forma elíptica e de extenso diâmetro) e o espaço de vãos era destinado ao estacionamento dos visitantes da loja de carros que era acessada pela Rua Paraná, ao passo que o estacionamento tinha acesso pela Rua Rio de Janeiro. No decorrer do tempo, esses espaços que eram abertos, foram fechados, passaram a ser ocupados por lojas, mas ainda assim, quando transitamos pela rua ou adentramos essas lojas, nos deparamos com as imensas colunas a impor, aos freqüentadores, a sua presença. O Cine Ouro Verde (Figura 2 – fotografia 1) foi construído para ter uma plasticidade eloquente, pois a ideia, segundo Suzuki (2003), era de que fosse o maior e o mais luxuoso cinema do interior do Brasil. Desde sua proposição em 1948, tornara-se orgulho para a cidade, em razão de sua grandeza, o que de certa forma também despertou a expectativa sobre sua inauguração, a qual foi amplamente noticiada pelo jornal A Folha de Londrina no ano de 1952. O jornal apresentou uma extensa e elogiosa reportagem sobre a inauguração e destacou a classificação do empreendimento, que nada deixaria a desejar aos cinemas dos grandes centros, “pois foi ele construído sob os mais modernos e extraordinários quesitos contemporâneos, admitida engenharia arquitetônica [sic] que foi sua classificação entre os maiores da América Latina – o Cine Marrocos, em São Paulo, e o São Luiz no Rio de Janeiro” (Folha de Londrina, 20 dez. 1952, Apud, Kamita, 2003). O jornal ainda defende a construção do edifício contra as críticas, que assinalavam a suposta inutilidade de um cinema daquelas 21
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proporções para uma cidade como Londrina, “plantada” no que chamavam de “boca do sertão”. Essa defesa sinaliza para o contraste da edificação com o universo citadino local, ou seja, para a existência de um estranhamento: a convivência sertão/arquitetura sofisticada. São essas impressões e sinais que se manifestaram à época e que sustentam a ideia de que esse conjunto de edifícios foi um dos mais destacados marcos urbanos para a cidade, pois até hoje o teatro ainda é referência no Calçadão de Londrina, onde está localizado. Percebemos, ao estudar sua vida, que Vilanova Artigas era um caminhante urbano, um observador das cidades e também apaixonado por elas. Durante sua existência, traçou seu próprio caminho: como bom comunista que era, burlava o poder disciplinador que o planejamento e a arquitetura impõem à cidade. Marcava os espaços urbanos com suas obras, ao criar lugares e, dessa forma, possibilitava novas identidades para esses espaços. Esses marcos eram ainda inovadores. As obras que realizou em Londrina mostram esse espírito: naquele momento, era o concreto vencendo a mata, vencendo o sertão. Era o concreto vencendo a resistência do País quanto ao seu uso como acabamento, sua brutalidade tornando-se digna de ser vista, conforme demonstra a imagem da Estação/Museu (figura 1), como o que havia de mais moderno na arquitetura brasileira. E mais: era o concreto compondo uma cidade nova numa expansão cafeicultora que urbanizava o sertão paranaense, sertão esse que ainda teimava em ocupar grande parte do País. Era o Brasil modernizando-se. O concreto, no período, era amplamente usado por arquitetos norte-americanos e europeus; era o que havia de mais moderno na construção civil. Sua obra, em meio a esse sertão, possuía harmonia, leveza e integração, ao ser aplicado na construção de um edifício que tinha como função ser um cartão de visita de Londrina. A Estação Rodoviária, “plantada” numa cidade que ainda era marcada pelo agreste, pela terra vermelha, pela fronteira em expansão, apresentava em sua forma, em sua plasticidade, o que havia de mais moderno para a época: o concreto. A imagem a seguir apresenta a integração e modernidade do edifício; a cada curva das abóbadas, observa-se um movimento de asas, como as asas dos pássaros que certamente circulavam pela região em 22
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bandos e de variedades diversas, muito mais presentes do que hoje, no ambiente urbano, onde o desequilibrio levou a eliminação de especies e superpopulações de outras.
Figura 3. Fotografia da autora, agosto de 2009.
Essa imagem retrata um corte no edifício, exatamente onde se observa o movimento em que é possível fazer a comparação com o das asas de uma ave. Não por acaso, foi pensado para essa região e para a função de estação rodoviária – porta de entrada e saída das pessoas que se dirigiam à cidade.
A Estação trazia na sua própria arquitetura a ideia de moderno, expressão que aparecia no concreto, sem excluir a da natureza brasileira, ao representar na curvatura das abóbadas o movimento das asas das aves. Em suma, a Rodoviária apresentava, em sua suas formas arquitetônicas, movimento, passagem, deslocamento. Tudo o que era a cidade de Londrina no período áureo do café na região. Além dessa edificação, Artigas “plantou” na cidade de Londrina edifícios que até hoje chamam a atenção, por todas as características que expusemos acima: o Cine/Teatro Ouro Verde e o Edifício Autolon, a seu lado; parte do edifício da Santa Casa de Misericórdia; o Londrina Country Clube e apenas uma residência, afora os já mencionados Estação/Museu e Casa da Criança. Esse rápido relato sobre o homem e o arquiteto João Batista Vilanova Artigas permite que se possa ter uma ideia de sua relevância para a história da arquitetura no Brasil. Para a arquitetura das cidades novas, mas sobretudo para Londrina (PR), que praticamente desconhece a importância histórica desse arquiteto para o Brasil, para a existência de sua própria arquitetura, para a formação da paisagem e da imagem que a cidade exibe hoje (visto que, depois de Artigas em Londrina, a arquitetura local assumiu outra dimensão).
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Cidade-usuário-patrimônio É preciso entender como a cidade desenvolve sua compreensão sobre o patrimônio local e como esse patrimônio foi eleito como tal, de que modo alcançou essa condição, e mais, como população local participa dessa eleição. Essa relação é complexa. Por mais que se busque simplificá-la, isso não é possível, quando tratamos do patrimônio urbano, pois a relação que temos com a cidade é a de usuários. O usuário, nesse caso, tem uma perspectiva de relação com a cidade que vai além da de ser apenas seu morador. Morar na cidade não significa dela usufruir, ser seu usuário, pelo contrário, há pessoas que se restringem ao espaço de seu bairro, ilhando-se nele. O usuário diferentemente usufrui dia a dia de todos os seus espaços e lugares. Usufrui em sua plenitude, se integra a ela, faz parte de sua paisagem desde seu lugar de moradia até as multidões nas ruas, na circulação urbana, leva e traz informações, sensações, percepções visualidade, enfim, é seu usuário. Essa relação não diz respeito apenas ao morador, mas a todos aqueles que dela usufruem, por uma razão ou outra.
Assim, nós, mesmo que não nos apercebamos desse movimento, produzimo-la; contudo, ela também nos produz... Então, como podemos entender de forma simples algo que é, em sua natureza, complexo? Tentaremos discutir um pouco essa relação entre cidade, usuário e patrimônio, para que, ao nos deparamos com as imagens da Estação/ Museu (figuras 1, 3, 4, 5, 6, 7) e da Casa da Criança (figura 4 – fotografia 3, figura 9 e 10), possamos entender por que há lugares na cidade que nos dizem coisas que outros não dizem. Por que nossas lembranças são constantemente ameaçadas por novas edificações e novos lugares, e como todo esse emaranhado toca nossa sensibilidade. Sobretudo, por que há edificações que são reconhecidas como patrimônio urbano e outras não. As imagens que até aqui apresentamos sobre a obra de Vilanova Artigas, foco deste trabalho, são contemporâneas, e todas as demais, neste texto, são do mesmo período. Há um propósito claro nesse uso. 24
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Qual? O de fazer o leitor relembrar sua relação com essas obras ao longo de sua ligação com a cidade, de sua convivência como usuário. Enfim, ao apresentarmos as mencionadas obras em imagens recentes, propomos a você, leitor, rememorar, lembrar e então somar tudo isso ao já dito neste texto, a fim de que possamos entender por que esses dois edifícios são históricos, e por que a Estação/Museu (figura 4 – fotografia 1 e 2 ) já compõe o patrimônio local e estadual (conforme registrado na Coordenadoria Cultural da Secretaria de Estado da Cultura), em detrimento de outras, como a Casa da Criança ( figura 4 – fotografia 3), também de autoria de Artigas e ainda não tombada.
Figura 4. fotografias 1e 2 – Estação/Museu, 2009; fotografia 3 – Casa da Criança em reforma, 2010. Acervo da autora.
O geógrafo e arquiteto Kevin Lynch defende que nós, humanos, desenvolvemos quadros mentais para nos deslocarmos na cidade. Esses quadros mentais possibilitam a um usuário de Londrina se deslocar da Estação/Museu em direção à Casa da Criança, sem pedir orientação a ninguém; isso porque esse usuário teria um quadro mental referente ao espaço e ao tempo de deslocamento entre essas duas edificações. Tal mapa mental é formado pelo convívio cotidiano com e na cidade de Londrina; portanto, guiar-se por intermédio desse quadro, ou de outros quadros metais que tenha elaborado sobre a cidade, é o que sempre ocorre, mesmo que não se atente para tal fato. Assim formamos a imagem urbana. É comum, quando ficamos algum tempo sem ir a um lugar, ou a outra cidade, observarmos, quando novamente em contato com esses locais, que o quadro mental que tínhamos sobre o lugar em questão não mais corresponde ao que nos proporciona a nova visita. Nosso quadro mental, portanto, está desatualizado e nos deu uma informação que já se encontra no passado. Desse modo, num primeiro momento, tudo pode 25
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parecer estranho, mas não demorará para percebermos que temos uma lembrança sobre esses espaços. Ou seja, nossa memória e nosso quadro mental estão sempre em contato; ambos tocam nossas sensibilidades, principalmente quando a cidade está relacionada às nossas lembranças e até às nossas afetividades. Nesse sentido, é preciso pensar as imagens urbanas como uma das formas para refletir acerca da cidade, pois esta é constituída de um todo cujo interior apresenta uma sobreposição de imagens individuais. Imagens que são pensadas pelos planejadores de modo individual, mas também imagens que nós, quando nos remetemos ao nosso quadro mental, vemos individualmente. Porém, tanto quem planeja e projeta as edificações, quanto nós, não descolamos de seu contexto as imagens dessas construções. Em outras plavras, mesmo que sejam imagens individuais, referem-se também ao todo da cidade e cada um de nós elaborou mentalmente a sua Londrina. O exemplo que apresentamos acima, a respeito de nossas lembranças sobre um determinado lugar que muda, pode ser retomado aqui para que possamos entender essas sobreposições de imagens que formam as “camadas” da cidade, tanto para nós, seus usuários, como para seus planejadores e projetistas. Estes últimos fazem registros fotográficos para que, ao ser necessário alterar um lugar, seja possível ter informações sobre como ele era antes. Tudo isso forma as muitas camadas urbanas ou sobreposições de imagens. Tudo o que compõe uma espacialidade urbana procede da leitura visual de sua paisagem, feita por seus habitantes, planejadores – enfim, usuários –, por meio de seus olhares, percepções, definições, interpretações, representações e intervenções. A existência de uma cultura urbana é determinada pela imagem construída pelos moradores da cidade por intermédio de seus sentidos, lembranças, sentimentos e impressões, vividos diariamente nesse ambiente. É, contudo, igualmente resultado da percepção que a imagem urbana proporcionada ao usuário. Isso quer dizer que o usuário urbano promove a imagem urbana quando constrói e vivencia a cidade, mas também é promovido por ela no seu contexto, no seu desenho, na sua “textura” urbana e arquitetônica, por suas edificações e pela propria imagem individual que elaboru a respeito dela. Por conseguinte, vale olharmos novamente para a paisagem 26
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urbana, a fim de reconhecermos que há, em seu interior, um conjunto de objetos físicos (edifícios, residências, praças, ruas, avenidas, viadutos, pontes, lagos, placas, sinais etc.). A representação da imagem produzida por esses objetos pode ser do conjunto ou isolada, como já apontamos. Essas imagens, contudo, são significativas para os usuários urbanos e podem, dependendo de um conjunto de elementos que constroem essas imagens, conduzir à eleição, pelos sacralizadores, de qualquer objeto com vistas à sua patrimonialização. Lembramos que estamos tratando de edificações, mas qualquer coisa pode ser patrimonializada dentro do urbano, como um busto, uma luminária, uma árvore, o traçado de um bairro, entre outros. Um prédio, visto isoladamente, para efeitos de análise de sua identidade, nada mais é que um objeto físico no espaço que ajuda a compor a imagem da cidade. No entanto, a imagem que ele oferece tem de incluir a sua relação estrutural (a do próprio prédio) ou a espacial (o que significa aquele prédio naquele lugar) com os outros objetos (no conjunto da rua, da praça, de todos os prédios ao redor), com o observador/usuário. Afinal, a cidade não é vista em seus objetos tomados isoladamente; pelo contrário, ela é vista pelo todo, é composta pelo todo das edificações. O edifício não pode responder isoladamente por toda espacialidade urbana, mas pode “falar” por ela, pois a integra. É preciso que sejamos capazes de ler a cidade. Nessa leitura está implícito que possamos ser capazes também de imaginá-la, para que possamos fazer um diagnóstico da qualidade visual que ela possui. Esse conhecimento está em nós e o aprimoramos à medida que “usufruímos” do espaço urbano. É nesse uso da cidade que promovemos o reconhecimento dela e construímos uma imagem mental de que passamos também a usufruir quando queremos remetermo-nos a ela e em nossos deslocamentos. A partir dessa imagem e dos elementos que são significativos para quem dela usufrui (como os marcos, limites, vias, bairros...), é possível realizar a análise e descrição de qualquer espaço urbano, as quais possibilitam uma leitura sobre a cidade. É preciso compreender essa leitura da cidade como uma metodologia para entendermos a relação entre cidade e patrimônio arquitetônico, e como essa relação nos ajuda a compreender a ordenação urbana – em nosso caso, a da cidade de Londrina, pois é nesse complexo 27
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da composição do urbano que estão a Estação/Museu e a Casa da Criança. A imagem da Estação/Museu é, entre várias outras, um desses elementos de construção de uma identidade para Londrina, pois nos remete ao passado, a uma imagem construída a respeito da cidade. A cidade moderna e metrópole regional. Remete-nos às lembranças e rememorações desse passado de modo tal que nos sentimos ligados a sua existência e acabamos por estabelecer uma memória afetiva para com a cidade e com determinados lugares. Portanto, é preciso pensar como Londrina foi sendo constituída cotidianamente, a partir do seu próprio fazer-se, por meio de seus moradores. Mais: como se construiu sua arquitetura, como se registrou essa arquitetura na memória, na lembrança; como essa arquitetura se tornou símbolo no imaginário da população e, ao mesmo tempo, nos escritos e na imagem sobre a cidade. Aí incluímos as imagens/memórias que os historiadores locais produzem e aquelas que são transmitidas nas escolas de Ensino Fundamental e Médio. A construção à qual nos referimos anteriormente promove a eleição do que deve ser patrimonializado e, do mesmo modo, é promovida nessa eleição simbólica a respeito de sua própria história e de seu patrimônio arquitetônico. É preciso considerar, portanto, quando tratamos dos bens patrimoniais de Londrina, que tratamos também da sua natureza, em outras palavras, de como ela se construiu como cidade – consequentemente, também de entender a importância do patrimônio arquitetônico nesse contexto. Pois voltamos a lembrar: Londrina é uma cidade do século XX; assim, o patrimônio urbano do qual tratamos é entendido de modo muito diferente daquele que considera e vê o usuário da cidade de Ouro Preto, em Minas Gerais, por exemplo. Também difere o “olhar” dos próprios órgãos de proteção patrimonial, como o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), órgão orientador e gestor das políticas patrimoniais no Brasil, ao definir políticas, consequentemente verbas, destinadas à proteção do patrimônio das cidades antigas e das novas, no País. Talvez caiba perguntar: defender o patrimônio arquitetônico é uma preocupação de toda a população londrinense? Quem são os defensores desse patrimônio local? Essa defesa partiu da organização das 28
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vivências em grupos sociais? Quais os interesses acerca da preservação do patrimônio urbano na cidade e até onde seus cidadãos participam dessa defesa? E ainda: em que consiste o trabalho do historiador na construção da imagem urbana sobre a patrimonialização? Como participam dela os professores da formação básica? Eles, em seu fazer histórico no cotidiano da sala de aula, também são sacralizadores patrimoniais? De que maneira? Esses são questionamentos que precisam ser feitos, pois nos permitem pensar como a cidade de Londrina produziu uma imagem de progresso e desenvolvimento para si e em que medida a Estação/ Museu e a Casa da Criança participaram dessa construção, de que forma foram elevados à condição de bens patrimoniais urbanos. Se, em linhas gerais, a cidade pode ser estável durante algum tempo, por outro lado está sempre se modificando nos detalhes, pois cotidianamente nos deparamos com construções em todas as direções. Grandes e pequenas interferências, desde a construção de um novo edifício a uma reforma de residência ou de uma rua, como é o caso do Calçadão. Então, se por um lado a cidade é estável, por outro ela muda dia após dia. Só um controle parcial pode ser exercido sobre seu crescimento e sua forma. Não há resultado final, apenas uma contínua sucessão de fases de seu crescimento/transformação (CERTEAU, 1997, p. 2). Vemos, pois, a cidade sempre em transformação. Ela é, assim, um espaço indomável, porém está à mercê dos homens e mulheres; deles depende para a sua forma, seu traçado, sua existência, sua imagem (conforme vimos), mas principalmente para a escolha de seu patrimônio. Nesse caso, a imagem da Estação/Museu representada pela figura do seu criador, por sua arquitetura com múltiplo uso, o de Estação Rodoviária e Museu de Arte, por sua história de porta de entrada e saída da cidade durante anos, demonstra por que essa edificação tem todos os elementos necessários para compor o patrimônio urbano, histórico e cultural de Londrina. Igualmente, o próprio arquiteto João Batista Vilanova Artigas não deixa de ser também um dos símbolos de nosso patrimônio histórico, pois, com sua proposta de arquitetura, trouxe para o município de Londrina, na época, a arquitetura modernista, o que veio a mudar a imagem da urbe “plantada” no meio da floresta, para a de cidade que visava se modernizar. 29
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Sua arquitetura passou a ser a representação da modernidade na região norte do estado do Paraná na época em que foi construída. Foi também uma manifestação da arquitetura modernista no Brasil. A esta altura, acreditamos que o leitor tem as informações necessárias para entender por que essa obra, a Estação/Museu tem valor de patrimônio arquitetônico urbano para a cidade de Londrina; enfim, por que ela foi patrimonializada e tombada como patrimônio arquitetônico. Diante do exposto, passaremos a apresentar algumas imagens dessa edificação, com o objetivo de demonstrar a diferença desse exemplar arquitetônico em relação aos demais construídos na mesma época. Em outras palavras, suas características modernistas.
Figura 5. fotografias: 1 – caixote maior brise-soleil, 2 – Caixote sobre colunas, 3 – parcial das abóbadas, 2009. Acervo pessoal da autora.
Nesse conjunto de fotografias vemos a parte de trás do edifício da Estação Rodoviária, hoje Museu de Arte. Na imagem está em destaque o caixote principal; vemos que o concreto está exposto, e há um amplo uso do vidro e do ferro. Aparece também, do lado esquerdo, na primeira imagem, o conjunto de brise-soleil (quebra sol – uma espécie de proteção feita de fibrocimento), distribuído em várias faixas de lâminas com formas curvas e horizontais. Essas lâminas possuem uma certa mobilidade, promovida por meio do uso de manivelas planejadas especificamente para esse modelo e para esse fim. Trata-se de algo que correspondia ao mais apurado gosto modernista, na época, para essa edificação, e protege a parte norte do edifício. O uso do brise-soleil para proteção de janelas e paredes envidraçadas tem a função de equilibrar a temperatura. Essa tecnologia foi trazida ao Brasil pelo arquiteto Le Corbusier, que a empregou num de seus projetos, em 1933. (Artigas, como já dissemos, era admirador 30
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do mencionado arquiteto.) Mas não só por isso essa técnica foi aplicada na antiga Estação Rodoviária. O brise-soleil era um dos elementos da arquitetura moderna que emoldurava a fachada dos edifícios considerados pertencentes a essa vertente arquitetônica e viria a compor a plasticidade de vários dos imponentes prédios da arquitetura brasileira. Entre essas edificações, estão o edifício que abrigava o Ministério da Educação e Saúde (conhecido como Palácio Gustavo Capanema) e o Edifício Seguradoras, ambos localizados na cidade do Rio de Janeiro (RJ). O exemplar dessa arquitetura mais próximo de nós e amplamente conhecido está localizado em São Paulo (SP). Trata-se do edifício Copan, cuja espetacular arquitetura foi considerada, durante muito tempo, a obra máxima da produção do arquiteto Oscar Niemayer na cidade. A forma do mencionado prédio é a de um grande “S”, e sua fachada é toda em brise-soleil. Ainda hoje, o edifício Copan é tido como uma das mais importantes obras da arquitetura moderna brasileira. A parte interna da Estação/Museu apresenta um jogo de rampas e amplos espaços em composição com as paredes envidraçadas – algo inusitado para a Londrina de 1952.
Figura 6. fotografias: 1- rampa de acesso ao 1º andar; 2 – coluna pastilhada interligando as rampas; 3 – série de colunas cujo pé direito interliga os três andares; 4 – rampa de acesso ao 3º andar e paredes com uso de vidro e ferro. 2009, do acervo da autora.
O jogo de rampas é amplamente aplicado nas obras projetadas por Artigas. Elas se encontram no edifício da FAU/USP, em São Paulo; na Estação Rodoviária de Jaú (SP); na Casa da Criança, em Londrina; no edifício Louveira, em São Paulo; no edifício Autolon, em Londrina; no Anhembi Tênis Clube, em São Paulo, e em praticamente todas as 31
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residências e outras edificações projetadas por Artigas. As rampas não eram necessárias naquele período (pois não se pensava ainda nas necessidades especiais dos cadeirantes, por exemplo), mas suas criações já apresentavam esse melhoramento, embora não se fizesse alusão a essas estruturas nesse aspecto (o de benfeitoria).
Figura 7. fotografais: 1- visão da sala de exposição e térreo do 1º andar; 2 – visão de sala de exposição e ultimo andar com a proteção do quebra sol; 3 – vista do caixote principal e escadaria que da acesso ao estacionamento; 4- área coberta por abóbadas e antigamente denominado de gare (estacionamento de ônibus); 5 – pátio frontal do edifício; 6 e 7 – corredor com rampa de acesso a biblioteca; interior da biblioteca no subsolo. Acervo da autora, 2009.
É significativo o lugar que a Estação/Museu ocupa na paisagem londrinense, uma vez que os estudos realizados a respeito da vida e da obra de Vilanova Artigas apontam seus trabalhos como inovadores na cidade de Londrina. Essa informação é citada por muitos arquitetos brasileiros e estrangeiros que estudam a obra de Artigas, além de ter sido confirmada por uma informação que o próprio deixou. Trata-se de uma das fotografias que documentam a construção da Estação/Museu, cujo foco na imagem, apresenta a última sequência de abóbadas com dois pilotis que a acompanham até finalizar em terra. Por sobre esta imagem Artigas escreveu: avisar Vasconcelos que não caiu”. Esta anotação referia-se à retirada das estacas e em deixar apenas as duas colunas como suporte ao final da sequência das abóbadas. Assim permaneceu até a década de 1970. Vasconcelos era o engenheiro chefe da obra em construção. Essa mensagem, registrada na fotografia, indica a preocupação da equipe a respeito do que estava sendo construído. A 32
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condição de laboratório que a cidade de Londrina teve para as obras de Artigas não pode, portanto, ser descartada. Contudo, é sabido que, durante a aplicação de projetos, também podem acontecer imprecisões ou situações nas quais é preciso repensar ideias, bem como determinar ajustes não planejados, materiais e técnicas. É preciso considerar, também, que não há, no projeto, certeza absoluta de precisão, antes que ele seja executado, por mais que tenhamos, no senso comum, desenvolvido a confiança de que há. Esse mesmo tema rendeu outros enfrentamentos ao longo da história do prédio da Estação/Museu. Anos mais tarde um engenheiro iria pôr duas estacas para dar suporte àquelas duas colunas (mencionadas por Artigas na mensagem a Vasconcelos) que pareciam suspensas no ar. As mesmas pilastras que foram projetas por Artigas para servir de âncora para as abóbadas que não caíram ao tirar as estacas. A imagem a seguir mostrará o acréscimo sofrido, o que lhe rendeu outra plasticidade. Pelo fato de as últimas colunas ficarem aparentemente distantes do final da última cascata, e alegando rachaduras na obra, a Secretaria de Obras do Município propôs, na década de 1970, a adição de duas colunas, inseridas pelo engenheiro José Augusto Queiroz. Figura 8. Fotografia do acervo da autora, 2009
As referidas colunas, que tinham o objetivo de evitar que a sequência de cascatas ruísse, tinham formas redondas em oposição às elípticas, portanto, diferentes daquelas que suportaram a Estação/ Museu desde a inauguração, em 1952. Em sua última visita a Londrina, em 1983, Artigas se referiu à mencionada interferência na obra. Segundo ele, sua obra, depois de concluída, se tornara autônoma e se misturara com o povo, se esfregando nele, adquirindo vida própria. Assim não caberia ao autor opinar sobre a vida independente da obra. 33
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Entretanto, em 2003, de acordo com entrevista concedida pelo engenheiro Queiroz a Juliana Suzuki, Artigas teria ficado enfurecido, mas nada manifestou a respeito para a imprensa. Comportou-se com elegância e não expôs sua raiva, que poderia ter sido pública, mas não o foi, pois não há registros. O que encontramos, em uma entrevista ao jornal Folha de Londrina (a que nos iremos referir, daqui em diante, como a Folha), diz respeito à autonomia da obra, não a seu desagrado com as intervenções. É interessante notar que nem mesmo o processo de tombamento menciona as tais colunas. E, ao realizar a patrimonialização, a Coordenadoria de Patrimônio Cultural da Secretaria de Estado da Cultura, agiu de forma a que o acréscimo não se tornasse um empecilho ao tombamento da obra de modo que segue o registro de tombamento.
ESTAÇÃO RODOVIÁRIA DE LONDRINA – PRAÇA ROCHA POMBO ANTIGA ESTAÇÃO RODOVIÁRIA Inscrição Tombo: 52 – II L ivro Tombo Histórico Processo Número 53/74 Data da Inscrição: 08 de dezembro de 1.974 Localização: Município de LONDRINA Praça Rocha Pombo Proprietário: Prefeitura Municipal de Londrina http://www.patrimoniocultural.pr.gov.br/modules/conteudo/ conteudo.php?conteudo=128
Em arquitetura, como em qualquer outra autoria, um acréscimo é uma violação praticada na obra. Trata-se de uma discussão que não enfocaremos, embora, muitas vezes, ela esteja no centro do debate sobre a patrimonialização, pois a questão é tombar ou não tombar, quando há uma interferência na obra. Para responder a essa questão tão relevante, passaremos agora a tratar da segunda obra de João Batista Vilanova Artigas: a Casa da Criança. E procuraremos mostrar por que a Estação/Museu já foi tombada e a Casa da Criança ainda não. Podemos adiantar que, no cerne do não tombamento, está a adição de um andar à obra, o que, conseqüentemente, a impediu de tornar-se patrimônio arquitetônico da cidade. Em 2010, uma reportagem da Folha, publicada em 01 de 34
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agosto e intitulada Patrimônio recuperado. Reforma vai devolver as características (quase) originais à antiga Casa da Criança, planejada por Vilanova Artigas, chamou nossa atenção, pois abordava a proposta de restauro/reforma da referida edificação. De acordo com a matéria jornalística, o secretário de Cultura do município de Londrina, Leonardo Ramos, vinha a público anunciar o que denominou de restauro do referido edifício. Esse restauro/reforma traz para o centro do problema levantado neste texto a questão da adição à obra. A intervenção que se faria na Casa da Criança tinha como um dos principais objetivos retirar um andar que havia sido acrescido logo após a sua inauguração, em 1952. Na entrevista concedida à Folha, o secretário de Cultura teria dito que a proposta era a de recuperar a ideia original da obra e remover dela tudo aquilo que havia sido acrescido durante sua a existência até aquele momento. Segundo o texto, o edifício em questão tinha se transformado em um “Frankenstein”; havia sido criada para ser uma creche, mas acabou por se tornar uma biblioteca e, depois, sede da Secretaria Municipal de Cultura. De acordo com a citada reportagem: “a proposta é recuperar a ideia original, fazendo as pazes, mesmo que postumamente, com Artigas. ‘Vamos mudar o revestimento de pastilhas e retirar os anexos construídos ao longo dos anos. Perdemos o segundo andar, o solarium volta a ser solarium, e os jardins ficarão integrados’ ’’. Chamamos a atenção para esse restauro/reforma, pois traz para nosso debate a questão da relevância da obra, de sua história e do reconhecimento feito por seu autor acerca dela, no momento da inauguração. O restauro/reforma, no entanto, aponta sobretudo para a negação da obra pelo autor, após a inserção das adições, que se avolumaram e tornaram a obra sem identidade. A patrimonialização e seu tombamento exigiam que ela apresentasse algo de inédito, para que se pude argumentar em favor de seu mérito, de um diferencial que viesse a justificar a patrimonialização. Com a perda de identidade, não haveria mais a originalidade da obra como argumento para seu tombamento. A perda da identidade da edificação por sua vez, levou-a a igualar-se a todas as edificações de seu período e cuja identidade não justificava o tombamento, desse modo, a Casa da Criança tornou-se apenas mais uma edificação na cidade, sua perda de identidade levou 35
Patrimônio Histórico e Cultural: cidade de Londrina-PR
consigo sua história, sua memória e a integrou às demais edificações urbanas de valor menor e que não justificam o tombamento, a não ser que se tombasse toda a cidade, pois todas suas edificações são históricas e oriunda de uma vivência recente data de 1930 em diante. Porém, esse não é um argumento relevante para a patrimonialização de um bem, como já vimos até aqui. Diante dessa situação, a Secretaria de Cultura do Município, por meio da Diretoria de Patrimônio, solicitou que se pensasse nessa edificação como obra de arte de um arquiteto de renome na arquitetura (ou seja, como obra de arte de João Batista Vilanova Artigas) e propusesse a “recuperação” do prédio em questão, a fim de que fosse possível solicitar à Coordenadoria de Patrimônio Cultural da Secretaria de Estado da Cultura sua patrimonialização. Esse processo teve início, segundo a Folha, com o restauro/reforma. Podemos concluir, desse modo, que, se a adição das colunas na Estação/Museu não alterou sua autoria ou sua história (ou seja, não impediu seu tombamento), o mesmo não se pode dizer a respeito da Casa da Criança, que exatamente pela existência de acréscimos não pode ser patrimonializada. O edifício da Casa da Criança, como bem disse o secretário de Cultura, tem em si uma série de adições, feitas ao longo de sua existência. Trata-se de um fato. No entanto, cabe dizer que esses acréscimos foram incorporados em razão de seu uso, embora prejudiquem sua originalidade. Mas, então, caberia retirar os acréscimos e fazer o edifício retornar à sua imagem original, dela apagando toda a história da obra? Essa questão é uma das principais no centro do debate para os restauradores; portanto, por mais que queiramos não tratar da questão da reforma (ou restauro) no momento (como o leitor pode notar), tornase impossível evitá-la, diante da existência e da importância das citadas adições. Não poderemos ignorar que foi feito um acréscimo, seja ele a retirada do solarium (que se transformaria em sala), ou um andar inteiro acrescido.
Solarium é uma varanda por sobre a casa, destinada a banhos de sol. Na arquitetura antiga, era denominada “terraço”. 36
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Seguimos apresentando ao leitor duas imagens, uma do início do processo de reforma/restauro e a outra do andamento. É uma imagem panorâmica, mas pode-se observar que houve a retirada da cobertura do solarium. Além disso, há uma demolição em curso do segundo andar da parte frontal. Figura 9. Fotografia panorâmica do alto: edifício Casa da Criança, hoje Secretaria da Cultura.
Na sequência, reproduzimos a segunda imagem, que mostra a reforma/restauro em processo avançado em relação à imagem da figura 9.
Figura 10. Fotografia panorâmica da edificação em restauro/reforma: edifício Casa da Criança, hoje Secretaria da Cultura.
A ideia defendida pela Secretaria de Cultura é a de que demolição dos agregados devolverá ao edifício sua feição primeira e a aparência projetada por Artigas o que possibilitará a solicitação do processo de patrimonialização. Essa obra sofreu outra interferência significativa:
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Patrimônio Histórico e Cultural: cidade de Londrina-PR
a inserção de um painel de azulejos, exposto na fachada principal do edifício e cujo tema é a força e a pujança do trabalho dos pioneiros locais (Figura 4 – fotografia 3). O mencionado painel retrata fragmentos da paisagem que se constituiu entre 1930 (década que marca o início da cidade) e 1960, quando foi instalado no edifício da Prefeitura Municipal. Um dos referenciais urbanos da cidade, o edifício que hoje abriga a Secretaria da Cultura compõe uma parte da Praça da Concha, como é conhecida a Praça Primeiro de Maio e seu entorno, espacialidade que orienta todo usuário no centro da cidade. O prédio em questão constitui também um dos marcos urbanos da cidade de Londrina, mas há outros de igual relevância e que servem de orientação para o usuário apressado, cuja preocupação é reduzir trajetos ao longo do dia e, assim, facilitar sua rotina diária. A relação dos usuários com a urbe é a de identidade, estabelecida ao longo d e sua vivência na cidade. Londrina, uma entre as muitas cidades novas brasileiras, trava sua “batalha” contra a corrosão do tempo. Qual o melhor caminho: deixar que suas edificações, seus monumentos, a despeito de sua pouca idade, sucumbam ao desgaste, ou restabelecer-lhes a imagem idealizada pelo projeto original? Enfrentar a relação com o tempo ou retornar ao “novo”, por meio do restauro/reforma? Ou ainda: se restaurar/ reformar, como fazê-lo? Essas questões aqui levantadas põem em evidência um lugar de práticas sociais e culturais em Londrina acerca de que história, memória e patrimônio são desejadas para a cidade, ou sinalizam para sua opção. Apresenta-se, pois, outro dos eixos condutores da patrimonialização: para quê e para quem? O edifício da Casa da Criança está localizado numa das extremidades da Praça Primeiro de Maio, para onde se voltam os olhos dos moradores e usuários do Centro, quando veem o prédio da Secretaria da Cultura cercado por tapumes e seu teto sendo “destruído”. Muitos que por ali circulam não sabem que prédio é aquele e quem o projetou. Desconhecem que é uma obra de Artigas e que sua história se mistura com a da cidade de Londrina, pois “nasceu” no decurso do fazer da urbe em suas primeiras décadas. No entanto, muitos conheceram a Casa da Criança e a 38
A Cidade de Londrina e a Imagem do Patrimônio Edificado...
frequentaram, pois ali funcionava um posto de atendimento médico destinado a crianças.Outros têm suas lembranças vinculadas ao edifício quando ele abrigava a antiga Biblioteca Municipal, onde provavelmente passaram horas de sua vida escolar em pesquisas, encontros com colegas e mesmo estudos e visitação com professores. Mais recente e presente é sua identificação com a Secretaria da Cultura; afinal, Londrina é conhecida no País por seus festivais de teatro e de música, durante os quais a cidade é “povoada” por visitantes. Nessas ocasiões, a circulação de pessoas nas proximidades do prédio em questão aumenta significativamente, e o morador do Centro está sempre disposto a dizer ao visitante onde está localizada a Secretaria da Cultura. Logo, causa estranhamento a demolição visível da rua e das cercanias dos edifícios vizinhos, do segundo andar do prédio e o retorno à sua imagem inicial, que data dos anos 1950. Acreditamos que fornecemos informações e questões pertinentes para que o leitor perceba o porquê da necessidade de reforma/restauro. Ela se faz mister para que possa ser solicitada a patrimonialização do edifício que abrigou a Casa da Criança. Por outro lado, é necessário perguntar: cabe deixar a arquitetura contemporânea sob tutela? Esse problema diz respeito a todas as cidades com arquitetura recente e que se deparam com mudanças constantes e impiedosas. A alteração da paisagem citadina, decorrente das muitas demolições/construções, ou então de restauros/reformas, tem sua plasticidade centrada na tentativa de preservar e na necessidade de implantar novas tendências arquitetônicas, o que não deixa de ser o cotidiano das espacialidades urbanas. Por outro lado, onde fica o reconhecimento do valor histórico? Afinal, em termos gerais, as construções têm temporalidades correspondentes às da própria cidade; elas também são alteradas, como vimos no exemplo da Casa da Criança. Se o “envelhecimento’ da obra não é permitido, se suas adições são retiradas para que ela possa ser patrimonializada, se sua história, até aquele momento, não foi preservada, estamos realmente preocupados com a história de nossas cidades, com seus patrimônios? Por outro lado, também importa indagar: os acréscimos feitos na Casa da Criança não fazem parte de sua história, não merecem ser incorporadas a essa história, como memória identitária da obra? Tudo é valido quando 39
Patrimônio Histórico e Cultural: cidade de Londrina-PR
propomos a patrimonialização de obras históricas como a Casa da Criança? Até mesmo apagar da lembrança dos usuários urbanos como o mencionado prédio foi um dia, em nome da sua identidade original? E a identidade construída pelo uso, pela história local, não conta? Não é história? É possível que você, leitor, se pergunte agora: qual a posição dessa historiadora, que parece não saber se defende ou não a obra original, se apoia ou não a patrimonialização da obra de Vilanova Artigas? Pois bem, eis minha posição acerca dos estudos urbanos, entre eles a patrimonialização das edificações históricas: temos, antes de qualquer atitude, informar a comunidade, ou melhor, o usuário urbano, por meio de todos os veículos possíveis. Saber, consultando-o, se esse usuário deseja ou não a patrimonilização; se quer ou não a reforma, pois é a ele que diz respeito a transformação da paisagem urbana. A ele pertencem as lembranças, a memória, e só por ele existe história. Portanto, as medidas de transformação urbana – , mesmo que medidas mais nobres, como a patrimonialização de um bem como uma obra de João Batista Vilanova Artigas – precisam levar em conta quem faz a cidade e quem dela faz uso. Nossos argumentos são formulados exatamente com base no fato de que as obras de Vilanova Artigas vieram a ocupar esse lugar simbólico, no que diz respeito à criação desses espaços/lugares sacralizados em Londrina. E já não é sem tempo que o usuário urbano dessa cidade venha a saber quem é João Batista Vilanova Artigas. A cidade de Londrina, em sua oficialidade, entra na corrida pela salvaguarda de seu passado recente, visto que pertence ao grupo de várias outras que compõem as cidades novas no Brasil e que reivindicam aos órgãos públicos atenção para com seus patrimônios. Contudo, tudo isso só terá sentido, se o uso dos edifícios e bens patrimonializados for posto em prática, assim como se deu com a Casa da Criança, que sediou a Biblioteca e, depois, a Secretaria da Cultura. Essa tendência de uso de um bem, ainda que tenha passado por restauro/reforma, é parte do processo e também e história. Mesmo quando ocorre a restauração de uma edificação, ela só tem sentido se houver o uso da obra restaurada. Seguindo essa linha de raciocínio, podemos dizer que a cidade é um lugar de polifonia urbana: nela se justapõem diferentes temporalidades 40
A Cidade de Londrina e a Imagem do Patrimônio Edificado...
em um mesmo lugar. As duas obras de Artigas aqui abordadas apresentam essas características, pois em ambas se sobrepõem camadas temporais históricas, seja em suas paredes, compartimentos e corredores, seja em outros de seus espaços. De suas janelas, emanam muitas lembranças, que retumbam na própria espacialidade onde estão localizadas e, certamente, na textura da própria cidade. Passado e presente se encontram nas citadas obras, exatamente porque são edificações reabilitadas e em processo; também porque possibilitam esse intercâmbio de lembranças e memórias de diferentes usuários no interior da cidade; porque possibilitam pormos em discussão a cidade e seu patrimônio – no caso em questão, seu patrimônio arquitetônico (DOSSE, 2004, p. 88). Para que essa dinâmica seja compreensível, no caso de Londrina, faz-se necessário pontuar os caminhos pelos quais as obras arquitetônicas que passaram a ocupar os lugares de patrimônio enfocados neste texto reivindicaram tal condição. Também é preciso determinar quem foram os responsáveis por essas reivindicações. Pois bem: a sacralização tem início no momento em que a autoria da obra é vinculada à do arquiteto (nesse caso, à do arquiteto Vilanova Artigas). As cidades novas, como aponta Yves Bruand (1981), reivindicam o direito de ter seu patrimônio preservado. Em 2008, foi organizado um evento, em Londrina, denominado Encontro Cidades Novas – A Construção de Políticas Patrimoniais, durante o qual se afirmou que essas cidades são merecedoras de análise no que diz respeito à possibilidade de patrimonialização de seus bens. Na organização desse mesmo evento estiveram envolvidos os seguintes sacralizadores: a Diretoria de Patrimônio da Secretaria de Cultura Municipal, o Centro de Documentação e Pesquisa Histórica da Universidade Estadual de Londrina, o Museu Histórico de Londrina Padre Carlos Weiss e Unifil. Na ocasião, estiveram presentes inúmeras representações de cidades do Paraná, com o forte compromisso de reivindicar a patrimonialização dos bens que constituem a paisagem das cidades novas desse estado, sua arquitetura inclusive. Essa é uma reivindicação que vem tomando corpo, mas está longe de atingir seus objetivos. Como vimos, com todas as controvérsias que envolvem a reforma/restauro da Casa da Criança, 41
Patrimônio Histórico e Cultural: cidade de Londrina-PR
a tentativa de solicitar sua patrimonialização faz parte de um processo que já se iniciou e que promete muitos debates, polêmicas, disputas e contestações.
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Casas de Madeira em Londrina Antonio Carlos Zani
O objetivo deste texto é apresentar um pequeno histórico das construções das casas de madeira em Londrina entre os anos 40 e 60. Foi exatamente neste período que se deu o boom deste tipo de construção. Pretende-se demonstrar a existência de uma cultura arquitetônica local, única, por meio dos ornamentos (frontões e varandas), tipos de madeiras usadas, técnica de carpintaria entre outras modalidades. Houve um recorte nesta temática em função do espaço disponível.1 O homem inicialmente se adapta ao meio para depois dominálo. A abundância de diversos tipos de madeira favoreceu a criação de variadas madeireiras na região, o que barateou o custo da peça da madeira e gerou muitos empregos. Assim, não se pode furtar de apresentar o importante papel deste setor da produção. Igualmente não se pode deixar de citar o papel do imigrante japonês na aplicação da técnica construtiva nativa, seus ornamentos etc., bem como sua adaptação às ferramentas e madeiras disponíveis. Com o decorrer do tempo as casas de madeira de Londrina têm sido demolidas para atender a demanda por moradia, ou seja, a construção de prédios de andares. A expansão imobiliária para o 1 Para maiores informações sobre as casas de madeira, ver outras obras do autor citadas nas referências bibliográficas.
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Patrimônio Histórico e Cultural: cidade de Londrina-PR
Marco Zero, região ainda possuidora de numerosas casas de madeira, leva-nos a pensar em uma nova onda demolitória. Outro fator da demolição desenfreada desse tipo de moradia é o alto valor da peroba rosa, principal madeira usada em tempos idos. Assim, dentro em breve, este importante componente de nossa história local será passado. Um patrimônio cultural que irá desaparecer.
Casa de madeira Os primeiros habitantes da região de Londrina encontraram uma imensa floresta cobrindo toda sua extensão. Para habitá-la era necessário desmatar para poder cultivar, seja para seu sustento imediato, seja para obter uma renda que pudesse pagar pela terra e demais demandas da vida (vestimenta, saúde, querosene para iluminação etc.). Assim, aliaram-se duas atividades com um objetivo: construir moradias e abrir espaço para o plantio com a derrubada da mata.
Desdobramento de madeira com a serra portuguesa. Foto: Theodor Preising, Museu Histórico de Londrina/ UEL
Corte de peroba rosa executado a machado na década de 30. Foto: José Juliani, Museu Histórico de Londrina/UEL
As primeiras moradias foram edificações precárias com o objetivo de atender a questão da moradia, pois não havia uma preocupação imediata com a qualidade da mesma e sua durabilidade. Além do que, havia um desconto de 50% sobre o valor do terreno para quem construísse, fato que estimulou ainda mais sua ocupação. 44
Casas de Madeira em Londrina
O primeiro lote urbano da cidade de Londrina foi adquirido pelo sr. Alberto Koch, em 28 de novembro de 1930, da Companhia de Terras Norte do Paraná (CTNP) e ficava localizado onde hoje seria a esquina da av. Duque de Caxias com Celso Garcia Cid. Sua primeira casa foi construída com paredes de palmito e cobertas de tabuinhas de cedro, substituindo-a, posteriormente, por uma edificação de madeira maciça serrada.
Rancho da Família Baum - década de 30. Parede de palmito e telhado de tabuinhas de cedro. Autor desconhecido. Acervo Museu Histórico de Londrina/UEL.
Casa de Sr. Alberto Koch, década de 30. Fotografia José Juliani. Acervo Museu Histórico de Londrina/UEL.
Assim como Alberto Koch, os primeiros habitantes e comerciantes construíram suas casas e lojas com tais materiais. Narciso Rodrigues, um carpinteiro pioneiro de Londrina, que chegou ao ano de 1932, comprou um lote e também construiu sua própria casa: “Meu primeiro rancho em 1932 era de palmito coberto com tabuinhas: cortei os palmitos, fiz caibros e vigas e amarrei-os com cipó. O telhado fiz em tabuinhas tiradas de um cedro que existia onde é a delegacia”. Tanto o palmito, como o cedro abundavam na região. Note-se que o material era amarrado com outro material da região, o cipó, pois era difícil o acesso ao prego. Muitos dos migrantes e imigrantes (japoneses, poloneses, alemães entre outros) que vieram para o Paraná tinham a profissão de carpinteiro e possuíam técnicas específicas de construção em madeira. Estas sofreram mudanças em função da disponibilidade do material e das madeiras existentes. Assim, uma técnica local foi surgindo. A ocorrência de muita peroba rosa, uma árvore grande e com madeira de boa qualidade, favoreceu o seu uso sistemático na construção das casas definitivas a partir, em especial, dos anos 40. Juntamente 45
Patrimônio Histórico e Cultural: cidade de Londrina-PR
com a abundância desta árvore típica, o surgimento de serrarias de grande porte e a vinda de carpinteiros para a região barateou o preço da madeira, favorecendo ainda mais sua expansão com o tempo. Como relata Zortéa: “A primeira casa de madeira de tábuas e mata-junta, serrada manualmente por dois portugueses, com a serra chamada portuguesa, foi construída pelo Sr. David Dequech […], na qual utilizouse da peroba rosa, que foi retirada do próprio local.” Mais uma vez vemos que a construção era no local ou próxima de onde se retirava a madeira. Das muitas casas de madeira lavradas (aplainadas) à machado feitas nas zonas rural e urbana, poucas restam. Na cidade de Londrina, nenhuma; na roça, ainda persistem algumas. A tabela abaixo nos ajuda a perceber como houve a predominância da construção em madeira entre os anos de 1940 e 1959. Se pensarmos em dados para a década de 30, o número de casas de madeira predominaria ainda mais. Os dados nos apontam que houve um crescimento de casas de alvenaria entre 1940 e 1959, mas as construções de casas em madeira permaneceu como predominante. Tabela 1. Construção de casas aprovadas pela Prefeitura Municipal de Londrina. Ano
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Madeira
Alvenaria
Mista
1940
189
56
--
1941
210
80
--
1942
135
48
--
1943
28
35
--
1944
95
91
--
1945
258
135
5
1946
304
101
10
1947
318
82
5
1948
400
130
14
1949
305
141
30
Total
2242
899
64
Casas de Madeira em Londrina
Ano
Madeira
Alvenaria
1950
402
131
Mista 35
1951
648
246
49
1952
723
232
38
1953
734
278
41
1954
667
218
12
1955
481
268
12
1956
431
247
7
1957
467
312
13
1958
561
302
19
1959
425
314
70
Total
5539
2466
298
Tipologias e ornamentos O inventário realizado revela que as casas de madeira construídas nas décadas de 40, 50 e 60 produziu um repertório arquitetônico com uma tipologia singular, ou seja, através das variações dos tipos volumétricos, proporcionado pelas diversas formas geométricas dos telhados, das varandas e dos detalhes figurativos. Pode se perceber, portanto, a possibilidade da existência de inúmeras formas construtivas, que dá uma dimensão das edificações como frutos de uma cultura local e regional. Não se pode pensar a cidade de Londrina do passado como um conjunto de casas de madeira em formato padrão, muito pelo contrário. É isto que pretende mostrar a seguir. Uma das riquezas das casas de madeira de Londrina é o ornamento dos frontões e dos emolduramentos das varandas. Era por meio destes que os carpinteiros mostravam suas habilidades manuais e criativas. Certamente, em razão disto, deveria haver uma saudável competição entre eles, favorecendo ainda mais a realização de um trabalho mais cuidadoso e esmerado. Tudo isto valorizando ainda mais a beleza plástica da habilitação, dando-lhe um aspecto peculiar, uma marca própria. As ilustrações abaixo apresenta uma diminuta amostra dos frontões que podíamos (e podemos ainda) encontrar nas residências de madeira da cidade de Londrina. 47
Patrimônio Histórico e Cultural: cidade de Londrina-PR
Os ornamentos dos frontões e varandas podem possuir um caráter de utilidade, como elemento construtivo (pingadeiras, testeiras, grades da varanda entre outras) ou não, isto é, poderiam possuir apenas função decorativa, tais como o rendilhado nos frontões e o emolduramento das varandas. Nas ilustrações abaixo uma variedade de grades das varandas das casas, dando um ar de distinção e valorizando o ambiente.
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Casas de Madeira em Londrina
Nas construções das casas de madeiras eram necessárias as estruturas complementares formadas por vedações verticais e horizontais e o enquadramento dos vãos. Uma das mais usadas nas casas construídas na região era a vedação vertical: tábua e mata-junta. Este sistema era composto por tábuas de 22 x 2,2 cm colocadas na vertical, pregadas perpendicularmente no quadro inferior e superior, tendo juntas entre elas de 1 cm, que posteriormente eram cobertas no lado interno e externo com réguas de 6 x 1,2 cm chamadas de mata-juntas. Outra característica das casas de madeira é o uso do xadrez ou ripado nas paredes e tetos. Trata-se de um painel composto por ripas de 5 X 1,5 cm (nas paredes) ou 10 por 1,5 cm (teto) pregadas umas sobre as outras no sentido diagonal ou ortogonal. Esse sistema ajuda a manter a privacidade (parede) e a circulação do ar (parede e teto, em especial na cozinha e áreas de serviço).
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Outro tipo de forro, que dá uma particularidade às edificações, principalmente quando do uso de formas geométricas, é o tipo macho e fêmea. Este é formado por painéis horizontais de madeiras medindo 10 por 1,2 cm, com o encaixa que leva seu nome: macho e fêmea. São pregadas no sentido diagonal ou ortogonal sob tarugamento de caibros no quadro superior. Abaixo temos uns modelos ilustrativos.
Vejamos agora os pisos mais utilizados. O piso misto (lastro de tijolo comum sobre tábuas cruas) é composto de tábuas de 22 X 2,2 cm sobre barrotes e cobertas por lastro de tijolo maciço, com revestimento de argamassa tendo como acabamento cimento alisado, às vezes pigmentado com óxido de ferro, também conhecido como “vermelhão”. Esta solução era adotada para evitar umidade na cozinha, banheiro e área de serviço sobre porão (ver ilustração abaixo à esquerda). O piso assoalho, outra forma usada, era composto de tábuas de 10 X 2,2 cm com encaixe tipo macho e fêmea, as quais eram pregadas em barrotes de madeira com espaçamento de 50 cm, sendo utilizado nos quartos, salas e varandas, ou seja, área de pouco acesso à água, umidade (ver ilustração acima à direita) 50
Casas de Madeira em Londrina
Por fim, encerrando esta ligeira descrição construtiva das casas de madeira vejamos como eram os telhados. As construções em madeira estudadas, utilizaram-se da mesma técnica e sistema construtivos, ou seja, o mesmo material e os mesmos procedimentos. A única diferença está na composição estrutural dos telhados que variam de acordo com o uso ou a origem do carpinteiro e do proprietário. Tanto as casas urbanas como as rurais, utilizaram-se das tesouras romanas, com exceção das casas produzidas pelos carpinteiros alemães em Rolândia, que se utilizaram das tesouras atirantadas para usarem o espaço da cobertura para o sótão, as capelas na sua maioria, utilizaram-se de pórticos atirantados. Uma das características marcantes, nas casas em madeira, é a diversidade de soluções formais dos telhados adotados pelos carpinteiros. Estes surgem com as mais diversas soluções volumétricas que se originaram do quadro inferior da casa. Pelos levantamentos efetuados durante demolições de várias composições de telhados, constatamos que apesar de apresentarem uma diversidade de soluções formais, eles obedecem a uma única regra construtiva, isto é, adotam a mesma solução estrutural e o mesmo processo de montagem. A solução estrutural adotada pelos carpinteiros é formada a partir de tesouras romanas e sobre estas, a trama de terças, caibros e ripas. A tesoura adotada tem as mesmas características das tesouras de Paládio ou romanas, que chegaram até o Brasil através dos portugueses. Por este motivo, também são chamadas de “portuguesas”. Os cinco tipos mais utilizados foram: Telhado de quatro águas; Telhado de duas águas; Telhado de duas águas desencontradas; Telhado de seis águas; Telhado de oito águas. 51
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As serrarias Não pode pensar em expansão da habitação em madeira sem a presença de serrarias. O estado do Paraná tem história sobre este setor produtivo uma vez que foi um grande fornecedor de madeiras (extrativismo da madeira nativa) desde meados do século XIX até a década de 80 do século passado. No período aqui estudado nos anos 40 e 50, constam a existência na cidade de Londrina pelo menos três grandes serrarias e 10 de médio porte, que serravam cerca de 50 mil metros cúbicos ano. As três de grande porte seriam: Siam, Mortari e Curotto.. A serraria SIAM (Seleção Industrial de Artefatos de Madeira), foi instalada em 1937 pelos seus diretores Henry e Otto Blumenschein, que trouxeram parte de seu equipamento de Santo André (SP). Foi a primeira indústria da região de laminados para compensados, e em sua volta formou-se uma pequena vila formada por seus operários, 52
Casas de Madeira em Londrina
chamada de Vila Siam. Além dos laminados que era exportado, produzia tacos, assoalhos, forros e esquadrias, que eram vendidos nos grandes centros. Somente na década de 1950 é que começou a produzir peças padronizadas para construções de madeira na região. Sua produção anual girava em torno de 12 mil m3 (LUESDORF, 1987)
Serraria SIAM 1937. Acervo Museu Histórico de Londrina/UEL
Serraria Mortari 1941. Acervo Museu Histórico de Londrina/UEL
A serraria Mortari, de Amadeu Mortari, foi fundada no ano de sua chegada em Londrina, 1936, vindo de Matão (SP). Nesta cidade fabricava carroças e trabalhava de marceneiro, ofício que aprendera com o pai, que por sua vez o praticara em seu país de origem, a Itália. Trouxe consigo, além da família, todo o maquinário da serraria e seus funcionários especializados. Inicialmente trabalhava com a comercialização da madeira serrada padronizada para construção da região. Adquiria a maior parte da madeira dos proprietários dos lotes rurais, que tinham que destruir a mata para a formação da lavoura. Retirava toda a madeira de lei de boa qualidade e dava em troca a madeira serrada necessária para o proprietário de o lote construir sua casa e a estrutura de serviços, como a tulha e o paiol. Além de ser o responsável pela produção de uma grande quantidade de peças padronizadas para construções das casas de madeira da região, a serraria Mortari produzia janelas, portas, batentes, assoalhos e forros para comercialização com grandes centros, e também exportava madeiras em pranchões. O cedro, a peroba e o pinho eram exportados com mais frequência (SILVA, 1986). As serrarias Mortari e SIAM exportavam grandes quantidades de vigas 8 x 16 cm de peroba rosa para a Inglaterra, que a utilizava na construção naval, principalmente durante a segunda guerra mundial (1939-45), além de grande quantidade de cedro e pinho para móveis e esquadrias (SILVA, 1986). 53
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A serraria Curotto iniciou suas atividades de beneficiamento de madeira em 1945, com a Adolfo Curotto, que chegou em Londrina vindo de São Paulo em 1937, para comercializar toras, ou seja, comprava as toras na mata, extraía e mandava de trem em gôndolas para São Paulo. Seu maior cliente era a serraria Americana do sr, Salim Maluf (ZANI, 1987). Em 1945, o sr. Adolfo Curotto e os filhos instalaram a serraria e construíram um conjunto de casas e um escritório na antiga estrada dos pinoneiros, hoje Avenida Celso Garcia Cid, esquina com estrada dos japoneses, hoje Avenida Paul Harris. Ali funcionava a serraria e moradia do sr. Adolfo e dos filhos que ajudavam na atividade da serraria. As madeiras mais serradas pela Curotto foram peroba rosa e o cedro que adquiriam em pé na mata, ou após as queimadas para a formação das lavouras. A retirada e o transporte eram por conta da serraria. O cedro e a peroba de boa qualidade eram comercializadas em São Paulo, a maior parte para a serraria Americana. Em São Paulo os Curottos eram conhecidos como o “rei do cedro”, por venderem grande quantidade de cedro de boa qualidade, que era extraído na lua certa, ou seja, lua nova.2 A peroba rosa também era exportada para a Inglaterra e França, e parte destinada para consumo da região em peças padronizadas para construções de madeira, normalmente vendidos em lotes fechados. Os pedidos eram os mais variados: 20 casas para colonos, 3 tulhas e uma capela para as fazendas ou 1 casa, uma tulha e um paiol, ou ainda 5 casas 6x6m para casas de aluguel, e assim por diante. Consta que do final da década de 30 até o final de 50 atuaram na cidade cerca de 13 serrarias com produção média anual de 40 a 50 mil metros cúbicos de toras de madeira (ZANI, 2003). Abaixo uma lista das peças padronizadas produzidas pelas serrarias de Londrina que podemos encontrar ainda nas casas de madeira: • Vigas - 6 x 12 ou 6 x 16 cm • Caibros - 6 x 5 ou 6 x 7 cm • Tábuas - 2,2 x 22 cm • ½ Tábuas - 2,2 x 11 ou 2,2 x 16 cm Existe uma crença entre os madereiros lenhadores e agricultores que a madeira deva ser retirada na “lua certa”, para não “apodrecer”, não ser atacada pelo “cupim” e não “torcer”, ou seja, quando ela descansa na “lua nova” 2
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Casas de Madeira em Londrina
• • • • •
Ripas - 1,5 x 5 cm Mata-junta - 1,2 x 6 cm Assoalho - 2,0 x 10 cm Forro - 1,2 x 10 cm Esteio - 10 x 10 cm
A presença da imigração japonesa Os carpinteiros imigrantes tiveram uma atuação importante neste ramo na região de Londrina. Os alemães se destacaram na cidade de Rolândia, os japoneses em Cambé, Londrina, Uraí e Assaí. Vamos nos ater somente à Londrina, portanto, discutiremos a presença e a participação dos carpinteiros japoneses e seus descendentes a partir de agora. Os mestres carpinteiros japoneses (Daiku) deixaram sua marca em Londrina, em especial nas décadas de 30 a 60. Adaptando seu ofício à realidade e à cultura arquitetônica regional de construir em madeira, mantiveram alguns aspectos que ajudam a perceber suas marcas nas construções, em especial nas casas, tais detalhes veremos mais adiante. As sambladuras (encaixes de madeira em madeira) foram utilizadas por carpinteiros de diversas nacionalidades, com destaque para os carpinteiros japoneses que as utilizavam sem o uso do prego de metal, em seu lugar utilizavam cavilhas de madeira. As sambladuras foi usada em todas as casas de madeira construídas, em especial nas montagens dos telhados.
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As casas edificadas pelos mestres carpinteiros nipônicos possuíam traços que lhe davam uma identidade. Na zona urbana de Londrina puderam lançar mão de uma criatividade única sem romper com as tradições, mantendo particularidades no espaçamento interno e espaço da habitação. Um exemplo desta característica estão contidas na planta ao lado. A habitação é composta por quatro zonas básicas: estar, repouso, serviços e higiene do corpo. A primeira composta pela varanda e sala; a segunda pelos quartos; a terceira, pela cozinha, área de serviço e despensa; por fim, a última, é composta pelo banheiro e pelo espaço destinado ao ofuro (banheira japonesa). Com o decorrer do tempo, em especial a partir da década de 40, a técnica e o sistema construtivo dos mestres carpinteiros japoneses se aproximaram muito das técnicas usadas pelos carpinteiros locais. Entretanto, construções são marcadas pelo simbolismo no uso do espaço físico e na ornamentação das varandas, telhados e frontão. Esta última dava as casas japonesas um aspecto peculiar, própria da comunidade nipônica em Londrina.
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Casas de Madeira em Londrina
As qualidades plásticas das casas japonesas estão centradas nas riquezas de seus elementos, enriquecendo a volumetria com a colocação do telhado irimoya (treliça de madeira no frontão), guenkan (varanda) e ornamentos como onigawara e o ranma. Todos estes elementos conferem uma identidade nipônica à estas construções, diversa das demais casas de madeira da região.
Da Terra da Promissão ao fim do Eldorado O repertório arquitetônico dos edifícios em madeira do norte do Paraná, construído por carpinteiros de 1930 a 1970, apresenta uma série de elementos arquitetônicos que lhe conferem caráter próprio de um vocabulário regional. Dentre eles destacamos: a volumetria dos telhados; a textura do material madeira aplicado na vertical conjunto tábua mata-junta; os ornamentos; varandas; cor e o apoio dos edifícios sobre porão. A ocorrência deste tipo de arquitetura coincide com as representações históricas da região, ou seja, inicia-se em 1930 com a “Terra da promissão”, passa pelo “Eldorado” de meados da década de 1940 até final da década de 1960 e termina com o fim do “Eldorado” a partir da década de 1970. Comparamos o repertório arquitetônico de Londrina com os três períodos históricos da região, analisando-o do ponto de vista das qualidades plásticas, através da cronologia da ocorrência desta arquitetura no período acima citado, verificamos que, à medida que mudou o período histórico mudou também o vocabulário arquitetônico, ou seja, encontramos três momentos distintos no repertório da arquitetura das casas em madeira: o primeiro correspondente a da “Terra da promissão” inicia-se no final de 1929 e vai até meados da década de 1940. É caracterizado por uma volumetria pura, composta por telhados de quatro de duas águas, sem ornamentos nem cor, deixando claro seu caráter provisório pela despreocupação estética. O segundo, que corresponde ao “Eldorado”, marca o ápice da arquitetura em madeira na região tanto pela quantidade como ela qualidade, é caracterizado pela complexidade volumétrica, riqueza de ornamentos, textura e cores, deixando claro seu caráter permanente e preocupação no plano da estética e da qualidade construtiva. 57
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O terceiro momento correspondente ao “Fim do Eldorado” e inicia-se a partir de 1970. É caracterizado pela simplificação volumétrica, ausência dos porões, varandas e ornamentos, incorporação de novos elementos como telhado de fibrocimento com pouca declividade e esquadrias metálicas. A partir destas comparações do repertório arquitetônico com as representações históricas da região, apresentadas no trabalho de José Miguel Arias Neto (ARIAS NETO, 1993), podemos afirmar que a ocorrência da arquitetura em madeira na região refletiu através do seu vocabulário arquitetônico as duas representações histórica da região o da “Terra da Promissão” e do “Eldorado”. Com o fim do “Eldorado” diminui a ocorrência dessa arquitetura e seu repertório é marcado pela decadência estética e construtiva, sinalizando o fim de uma cultura arquitetônica de se construir em madeira com qualidade plástica e rigor construtivo.
Patrimônio Arquitetônico a ser preservado As casas de madeira mostraram uma resposta coerente ao meio físico no qual foram implantadas e deram suporte ao desenvolvimento da cidade. Apesar do grau de espontaneidade com que foram construídas, conseguiram resolver durante décadas o problema da moradia, sempre com estética e exatidão construtiva. Dos exemplares inventariados, muitos já foram demolidos e outros permanecem intactos compondo o patrimônio cultural arquitetônico da cidade. Estas casas testemunham o passado e ajudam a contar a história de Londrina e região. Mas aos poucos com as constantes demolições, perdem-se peças importantíssimas da memória urbana e rural. Caso não hajam mecanismos legais de controle pela preservação desta arquitetura ela estará fadada a desaparecimento. É necessário proteger legalmente a arquitetura de madeira da especulação imobiliária, através de leis municipais e estaduais de preservação, as quais devem sempre que possível estar relacionadas com o planejamento urbano e territorial. Carecemos da criação de zonas especiais de proteção no plano diretor a fim de garantir um tratamento diferenciado a esta arquitetura.
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Cemitério São Pedro: espaço de vida, espaço de memória1 Alberto Gawryszewski
Não é feio o nosso jazigo; podia ser um pouco mais simples, — a inscrição e uma cruz, — mas o que está é bem feito. Achei-o novo demais, isso sim. Rita fá-lo lavar todos os meses, e isto impede que envelheça. Ora, eu creio que um velho túmulo dá melhor impressão do ofício, se tem as negruras do tempo, que tudo consome. O contrário parece sempre da véspera. Memorial de Aires, Machado de Assis.
Machado de Assis publicou no ano de 1908, ano de sua morte, Memorial de Aires. A cena acima se passa no dia 10 de janeiro de 1888. Para Aires, principal personagem de seu romance, um diplomata aposentado, as negruras do tempo nos jazigos os enobrecem. Rita, entretanto, mantém o jazigo da família sempre limpo, dando uma aparência de novo. O cemitério São Pedro, no centro de Londrina, inaugurado em 1935, tem passado por reformas em função das ameaças da autarquia municipal, que controla os cemitérios municipais (ACESF), de se apropriar e vender os túmulos que aparentarem abandono. Assim, somando este aspecto ao cuidado de muitas famílias por seus entes falecidos, o cemitério São Pedro possui um aspecto bom de conservação. Quando se coloca esta ideia, está se pensando na 1 Este texto faz parte da pesquisa “Imagens e narrativas em cemitérios paranaenses: estudos de casos (séculos XIX e XX)”, ora desenvolvida no pós-doutoramento junto ao Departamento de História da UFF, sob supervisão da Profa. Dra. Ana Mauad.
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manutenção dos antigos jazigos no seu estado primitivo, de construção de época. Muitas imagens apresentadas no decorrer deste trabalho nos dará uma demonstração do estado desses jazigos. Uma outra boa parte sofreu a ação do homem no sentido de sua “modernização”, isto é, sua ampliação para comportar um número maior de corpos, a utilização de novos materiais e a substituição de antigas imagens, estatuária e epitáfios. Talvez Aires considerasse o cemitério São Pedro sem as negruras do tempo, mas uma observação mais atenta poderia encontrar tais negruras em muitos jazigos e, em outros, muitas histórias de outros tempos, muitas memórias de um tempo passado. Um espaço privilegiado para a guarda do patrimônio histórico/cultural/religioso da cidade de Londrina. O cemitério como espaço de memória, de visitação turística já é uma realidade em cidades importantes do mundo (Paris, Buenos Aires entre outras). Os cemitérios alcançaram status de museu a céu aberto. As sepulturas de pessoas outrora importantes ou famosas, a estatuária presente e mausoléus imponentes projetados e construídos por grandes mestres em seu ofício tornaram estas visitas um grande ato de apreciar a arte e lembrar aquele que marcou a vida de muitos. No Brasil, vários cemitérios têm sido protegidos pela legislação do tombamento, em especial nacional, como no caso do cemitério de Belém, estado do Pará. Localizado em área nobre da cidade, encontra-se em estado de decadência muito grande, de abandono. Lá está enterrada a famosa negra Anastácia, além de outros nomes lendários da região. Outro caso é o de Joinville (cemitério protestante), no estado de Santa Catarina, que possui um rico acervo de peças em ferro fundido e que igualmente ficara muitos anos abandonado. Por fim, mais um caso seria o cemitério típico japonês da cidade paulista de Álvares Penteado, que funcionou de 1918 a 1943, tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do estado de São Paulo (Condephat). Muitas pesquisas acadêmicas discutem o cemitério como importante componente na história. Ora, não poderia ser diferente uma vez que a morte se faz presente em todo o tempo. As formas de se lidar com ela, as dores sentidas, as formas de morrer, velar e enterrar, bem como o local dentro dos muros da igreja ou dos cemitérios, variaram com tempo, possuem história própria. Entretanto, a maioria dos estudos realizados até então se voltaram para a estatuária, os impotentes mausoléus, aos signos existentes nos sepulcros. 60
Cemitério São Pedro: espaço de vida, espaço de memória
Neste trabalho, voltamo-nos para vários aspectos do cemitério São Pedro: o uso da fotografia e dos epitáfios nas sepulturas, a estatuária, ornamentos e outros signos. Se existe a cidade dos vivos, existirá uma cidade dos mortos? Apesar do muro que separa o cemitério das ruas abertas da cidade, não seria este muro ilusório? É possível pensar os vivos sem os mortos, a cidade dos vivos sem a cidade dos mortos? Pensando também nestas perguntas e em suas respostas que este texto foi pensado. O cemitério pode ser imaginado como local pedagógico, de memória. A escrita tem seu tempo, o uso de metáforas e eufemismo nos epitáfios ajudam no ensino da língua portuguesa, mas também a compreender a visão de vida e morte para os que ficaram; o uso da fotografia cemiterial ajuda a compreender a sua própria história (técnica entre outras), a entender a vestimenta, costumes, valorização da família, do trabalho, forma de representação etc. O próprio uso do cemitério no ensino das religiões é fundamental. Provavelmente é um dos espaços mais democráticos que existem, pois é lá que encontraremos a junção de diversas religiões (cristã, hindu, muçulmana, judaica, budista entre outras) e mesmo a ausência de religião (jazigo laico) cada qual expressando seus valores sobre a vida e a morte. Este texto está dividido em três tópicos2. No primeiro trataremos de discutir os epitáfios. O uso de metáforas e eufemismos que ajudam a enfrentar a morte, ou melhor, manter a vida. Nos epitáfios não apenas encontramos nomes e datas, mas expressões poéticas, formas de valorização do falecido, sua forma de viver, suas qualidades morais e profissionais entre outras. Não cabe interpretar verdades pessoais ou coletivas, mas perceber a representação desejada pela família, amigo etc. No segundo tópico, vamos tratar do uso da fotografia cemiterial como forma de memória do falecido. Este será subdividido em três partes: casais, “personalidades” e retratos pintados. O terceiro tópico é sobre os túmulos, ornamentos e estatuária. Outras opções de análise cemiterial existem, mas o espaço destinado a este texto nos obriga a escolhas. As apresentadas neste texto são as mais visíveis ao passante, ao visitante que se dispõe a um passeio no cemitério São Pedro. 2
Em razão do espaço disponível foi subtraído o tópico “A presença japonesa”.
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Epitáfios: formas escrita de expressar valores Propomo-nos nesta parte do texto apresentar alguns epitáfios, mostrando as informações em si contidas como importantes para a história e o patrimônio da cultura londrinense. A palavra epitáfio vem do grego epi (sobre) e taphos (tumba), ou seja, escrito que se coloca sobre a sepultura. Enfim, são frases, curtas ou longas, na forma simples ou poética, supostamente produzida pelo próprio morto, por representante da família (pai, mãe entre outros) ou amigo(s). São expressões léxicas que exprimem sentimentos que ajudam a atenuar o fato da morte e traz ao passante (o familiar ou visitante do cemitério) uma mensagem/memória sobre o falecido. Sua base é o eufemismo, ou seja, é uma figura de estilo que procura esconder ideias desagradáveis, que tem um significado diverso. No caso específico, a existência ou a ocorrência da morte. A metáfora aparece como a mais importante forma de eufemismo nos epitáfios. Esta deve ser entendida como uma forma de perceber a realidade, pensar e agir sob um olhar conceitual diferenciado, mais familiar, mais concreto. Se a morte é uma realidade, pois como diz o ditado popular “a única coisa certa na vida é a morte”, todos querem dela distância. Os epitáfios, com suas metáforas eufemísticas, são um importante componente nesta relação. A palavra cemitério quer dizer dormitório, ou seja, um lugar em que o finado está em repouso. Então lá se jaz, descansa ou dorme. A palavra finado, também ajuda a compor este quadro, pois significa que uma pessoa teve fim, morreu. Outra palavra que nos remete à morte é faleceu, que vem do latim fallere, ou seja, faltar. Os epitáfios podem associar a morte a um fato positivo ou negativo, sendo o primeiro caso o mais comum. Como já vimos acima, a morte pode ser vista como um repouso. Em um dos mais antigos localizados no cemitério São Pedro apenas diz: “Aqui jaz Harue Gotto. Fal – 20-11-1934. Saudades dos seus.” O corpo está deitado, sepultado, descansando. Mas o ato imóvel causa a saudade em quem “ficou de pé”, que continua “em ação”. Então não morreram, apenas descansam. Depois de muito trabalhar, de doar, de rezar, ao defunto é dada a oportunidade de 62
Cemitério São Pedro: espaço de vida, espaço de memória
descansar. “Descansa na paz do Senhor”, como na ilustração 1, em que fica patente um repouso espiritual. Ou descansa enquanto “aguarda a ressurreição”, como diz a religião do morto e/ou sua família na ilustração 2. Esta trata bem da questão, pois o casal, falecido em anos diferentes, aguarda a ressurreição dos justos e injustos. Aguardam o julgamento final.
Ilustração 1
Ilustração 2
Se o defunto descansa, como vimos, também pode partir, deixa o mundo terreno e segue para uma “viagem”. Neste caso, encontra-se em movimento, pois subiu aos céus, partiu e foi se encontrar com Deus. Isto quando Deus não vem buscá-lo. É a ideia Ilustração 3 maior, o sonho desejado por todo cristão de alcançar o reino de Deus. A morte se transforma em uma expressão hiperbólica, é a vida pós-morte, é a morte da própria morte. Na ilustração 3, o falecido “partiu sorrindo às regiões celestiais [...]”. Os epitáfios funcionam como um instrumento para atenuar a morte, é a luta da vida contra a morte, a presença do ausente. Assim, a memória, a saudade, as lições e o amor vencem a morte. Na ilustração 4 mais uma vez é apresentado alguém que partiu. Mas, muito bem lembra que ele não morreu: “A palavra morrer não faz sentido naquele que viveu como cristão. Viveu e viverá eternamente na noiva, nos pais, Ilustração 4 nos irmãos e parentes que o tem no coração.” 63
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O ato de não esquecer é mútuo, tanto do falecido (que não esquecerá quem amou na terra), quanto os amigos e parentes. Vejamos o exemplo da ilustração 5. São dois momentos, com duas frases. Uma da família em que diz que “Jesus veio à porta de nosso lar e chamou para sua divina companhia nosso inesquecível”. E outro, a mensagem do morto, uma frase comum: “Eu vou Ilustração 5 para Deus, mas não esquecerei aqueles que amei na terra.” O ato de não esquecer é uma vitória contra a morte. Comum a frase em epitáfios com o sentido de que “quem vive na memória não morre”. A ilustração 6 traz uma frase muito interessante, pois, deixa em branco as razões da permanência do morto. Não apenas levou, não apenas deixou, simplesmente marcou e permaneceu. A ilustração 7 vai no mesmo sentido.
Ilustração 6
Ilustração 7
Em relação à vitória, mais uma vez deslocando o sentido da morte, temos o contraponto mundo real e mundo espiritual. Enquanto que este é o reino de Deus, o fim da caminhada, a recompensa pelo exemplo, pela luta, o outro é muito sofrimento e angústia. As ilustrações abaixo muito bem mostram isto. De um lado vida, alegria, paz e esplendor; de outro iniquidades.
Ilustração 8
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Ilustração 9
Cemitério São Pedro: espaço de vida, espaço de memória
Nesse mesmo sentido, podemos lembrar a separação carne/ espírito. Na ilustração 10 pode-se ler que sob a lage fria está o corpo do falecido, “mas seu espírito, liberto dos lhames [sic] da matéria, continua animando aqueles que gozaram do seu convívio, em um mundo de provações” (mais uma vez o contraponto da felicidade espiritual e a tristeza terrena). A ilustração 11 segue a mesma lógica: ficou a carne, o envólucro carnal.
Ilustração 11
Ilustração 10
A morte pode ser contestada e ficar registrada na lápide, no epitáfio. Mas ao lado da contestação há também a consolação. Neste espaço, a metáfora pode ser muito usada, tal qual o eufemismo. Duas expressões são muito usadas ao se referir à criança ou ao jovem: anjo e flor. Nas ilustrações abaixo (12 e 13) podemos ver dois exemplos.
Ilustração 13
Ilustração 12
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Dina tinha 4 anos quando faleceu. Ela foi “arrancada tão bruscamente”, mas os seus estão consolados pois sabem que ela foi “mais uma rosa colhida para o jardim do Criador”. Em outro caso, Deus deu, mas também tirou. Mas a devolução, apesar de dolorosa, deixando o coração dilacerado, foi feita com o mesmo amor da chegada. Entre outros tantos motivos e eufemismos, veremos mais dois exemplos: um com a mensagem do próprio morto; outro o falecido como exemplo a ser seguido com seus valores morais. No primeiro caso, ao dar vida ao finado, a morte perde espaço mais uma vez. Rafael (o finado) não partiu, apenas voltou de onde veio. Disse ele: “Foi bom ser materializado, mas Deus me chamou, valeu!” Em outra mensagem encontramos: “Passei pela vida muito rapidamente somente para trazer a grande mensagem de alegria e beleza que foi a minha curta existência terrena. Deixo com você todo o carinho daquele sorriso o que só eu sabia dar e volto contente para a casa do Pai. Porque terminei a minha tarefa”. Teoricamente Maria, que viveu 56 anos, teria escrito tal mensagem. Por seu conteúdo, tal frase foi elaborada por membros da família. O importante é que ela teria cumprido seu papel na Terra para poder voltar para a casa do Pai. Por fim, outro exemplo interessante de mensagem do falecido é o de Arquimedes que deixa claro os valores importantes para um homem em sua existência terrena. Quais seriam eles? Resposta: respeito pelo trabalho realizado; a amizade de uma verdadeira legião de amigos; o amor da esposa e companheira e, por fim, os filhos.
Ilustração 14
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Cemitério São Pedro: espaço de vida, espaço de memória
Se pensarmos na questão do falecido como modelo, a própria Maria serviria, pois, só trouxe alegria. O mesmo poderia ser dito de Arquimedes, porque foi bom marido, pai, trabalhador e amigo sincero. Mas citemos outro exemplo, o de Deolinda, falecida aos 92 anos, com uma frase simples e sincera: “Aqui descansa uma grande mulher”. Dentro dos padrões morais e comportamentais da época entende-se que ela era uma mulher honesta, boa mãe, avó, vizinha, companheira, trabalhadora (no lar e/ou fora dele). Uma conclusão a que se pode chegar sobre os epitáfios é que estes buscam atenuar a morte sob a forma de eufemismos. As frases dos epitáfios fazem parte da formação cultural e mental de uma época que, somados à religiosa, dão um caráter menos pesado ao fato da existência da morte, tabu em quase todos os meios. A palavra morte, como nos exemplos aqui apresentados, é pouco usual nos epitáfios. Mais comum o “JAZ”, “DORME”, “DESCANSA”, “PARTE”, “VAI COM DEUS”, entre outras expressões de esperança e leveza. Os epitáfios nos dão, ao longo do tempo, informações culturais e religiosas importantes frente ao conceito de morte e de sua superação. Formas de expressar e vivenciar sentimentos.
Fotografia A escolha da fotografia a ser colocada na sepultura não é gratuita. Ela traz afetividade que comove. No entanto, não é só uma forma de amenizar a dor, mas também manter a memória do falecido viva para os próximos e distantes. A escolha pode ser feita por este ainda em vida ou por algum parente ou amigo sobrevivente. A fotografia constitui importante ferramenta nas mãos dos historiadores, uma vez que está impregnada de valores e ideias sobre aparência, padrões de beleza, saúde, valorização do ofício entre outros. A fotografia possui uma marca cultural, a do seu tempo. A própria fotografia cemiterial tem sua história. Seu formato, seu suporte, a técnica usada etc. estão sofrendo mudanças no decorrer do tempo. Por que o uso da fotografia em sepulturas? Com certeza busca-se a construção de uma perenidade pelo uso de uma imagem. Ao passante 67
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do cemitério fica mais fácil lembrar-se de um conhecido falecido por meio de uma fotografia do que de um nome na lápide. Ela ajuda a emocionar, a dar maior sentimento ao fato da morte. A mensagem contida no epitáfio pode ser diferentemente entendida ou ter seu conteúdo reforçado pelo uso da fotografia. Vamos dividir esta parte em subtópicos para facilitar o desenvolvimento das ideias. Trataremos do amor dos casais, das “personalidades” e dos retratos pintados. Casais A presença de fotos de casais é comum nas sepulturas. O uso de epitáfios na forma de um livro aberto possibilita o uso de cada “página” para um membro do casal. Outra forma é o uso de foto-pintura ou fotomontagem, em que os membros, mesmo tendo morrido em épocas diferentes, ficam juntos no post-mortem. Neste caso, é um parente que se encarrega de colocar a nova foto, independente do suporte. Esse tipo de uso de fotografia busca mostrar a união do casal. As consequências sobre o passante podem ser variadas. Apresentaremos um Ilustração 15 pouco disto a seguir. A ilustração 15 choca e traz tristeza: um casal jovem morreu no mesmo dia. Talvez um acidente de automóvel. A visitação ao cemitério nos apresenta este tipo de informação: a morte de muitos jovens por arma de fogo e acidente automobilístico. Um traço recente da vida moderna. O epitáfio que está na sepultura, utilizando-se da metáfora, ajuda a atenuar a tristeza, pois eram como “gotas de orvalho nas manhãs de sol”, tiveram vida efêmera. Por fim, a resignação: “assim seja”: “Antônio e Aparecida. Vocês vieram, vocês foram embora. Assim como as gotas de orvalho nas manhãs de sol. Nós gostaríamos que vocês ficassem para sempre, mais [sic] isto não pode ser. Que assim seja. Saudade da família”. Um exemplo do uso de “livro aberto” é do casal Nagafuti. Embora encontremos outros semelhantes, a escolha recaiu sobre este em função
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das diversas possibilidades de análise e por mostrar a “aculturação” dos japoneses no Brasil. Ele se encontra jovem, faleceu em 1943. Ela, uma idosa, faleceu 29 anos depois, em 1977. Aqui as fotografias estão separadas, optou-se em colocar uma em cada página. Talvez já fosse uma realidade o uso dos “livros em mármore” em 1943. O falecido espera por sua companheira de viagem. Poderia ser a esposa, um filho, irmão ou outro parente qualquer.
Ilustração 17 Ilustração 16
Outro exemplo de casal é dos também japonêses Kayamori. Com uma das maiores diferenças entre as mortes que encontramos no cemitério São Pedro (41 anos), a fotografia chama a atenção para a diferença visual entre ambos. Ele muito jovem faleceu com 45 anos, e ela bem idosa com 84 anos. Percebe-se que neste último caso houve a opção de juntar os dois, formando uma só fotografia. Quando retratamos um casal, estamos nos referindo à família, um dos pilares da sociedade. E se pensarmos no início da colonização de Londrina e região, a família passa a ter um caráter mais importante ainda, pois a união da família, então bem numerosa, foi fator de crescimento econômico não só da região como da própria família. Além do que ao verificarmos, em ambos os casos acima, foi a matriarca quem se manteve viva. Passou a ser responsável pela família, por sua união. Foram décadas de viuvice. Uma opção de solidão matrimonial, de lealdade à memória do morto. Outro caso de longevidade de viuvez, agora acrescida de uma fotografia que traz um marco na família, – uma passagem importante na vida de ambos –, fotografia retirada do álbum de família, é a do casal Bessa. Aqui, no caso, ela faleceu primeiro em 1968 com 53 anos. Ele depois, em 1987, com 72 anos. Foram 19 anos na viuvez. A 69
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fotografia escolhida para o casal foi a do casamento. Ambos bem jovens, elegantes e formalmente vestidos para a ocasião e compenetrados na pose. O local talvez seja o estúdio fotográfico ou o interior da sacristia. Na mão o buquê de flores, que será jogado para Ilustração 18 as outras moças casadouras. Caso semelhante ao anterior, no que se refere à escolha da fotografia, é do casal Mendes. Ele faleceu primeiro, com 77 anos, ela depois com 82 anos. A fotografia escolhida também foge ao padrão. Mais uma retirada do álbum de família: jovens posando para a máquina com olhares vivos. Bem vestidos, ela de saia, ele de paletó e gravata. Ela bem penteada, com brincos e de batom, ele com seu bigodinho charmoso de então e com o cabelo com brilhantina. Para reforçar este encontro de amor e felicidade, a sepultura contém um poema. Na realidade, trata-se de um trecho da letra da música “Eu gostava tanto de você”, de Tim Maia. Com a retirada de algumas estrofes, concluindo com a frase própria: “Porque o amor não conhece a barreira da morte”. A escolha busca retratar a saudade e a vida de ambos, e demonstrar, mais uma vez, que a morte não venceu.
Ilustração 19
Outro caso inovador, que se soma a todos os apresentados, é do casal Busnardo. Em uma sepultura que destaca a lápide onde está escrito o nome do casal e que suporta a fotografia, nada passa desapercebido. 70
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Vestidos para o casamento, com o buquê nas mãos, jovens, posam para a fotografia de um importante acontecimento, o dia mais importante na vida deles. Ela faleceu ainda jovem, com 54 anos, ele bem idoso com 98 anos. Foram 37 anos de viuvez. Mais dois detalhes foram colocados na fotografia original. Ao lado de cada um, na altura das cabeças, um círculo contendo a fotografia em idade mais avançada. Ela provavelmente com seus 50 anos, próxima da morte e ele, bem idoso, talvez com 80 anos.
Ilustração 20
Estas representações do casamento, de felicidade, fidelidade, mesmo com a separação da morte, traz exatamente a ideia dos epitáfios vistos anteriormente, pois a morte não vence o amor. A mensagem sepulcral é de alegria, esperança e não de tristeza. “Personalidades” Outra temática em relação às fotografias cemiteriais refere-se às personalidades que habitam o cemitério São Pedro. São os chamados “pioneiros”. Estes, segundo a Associação Pró-Memória, foram aqueles que chegaram ao Norte do Paraná até 1939, com pelo menos 15 anos de idade. As “personalidades” também são algumas pessoas que possuem nome de rua, empresários reconhecidos, personagens que realizaram atos destacados em vida, e os chamados “intercessores” ou “milagreiros”. Comecemos pelos “intercessores”, ou seja, aqueles que possuem o poder de interceder perante a Deus pelo pedinte. Em geral, quase todos 71
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os cemitérios possuem tal personagem. São crianças, jovens que morreram defendendo sua honra, ex-escravos, entre outros personagens. O principal intercessor, uma das sepulturas mais visitadas, é o jovem José Oswaldo Schietti, morto por atropelamento em 1950, aos 9 anos de idade, em frente à Catedral Metropolitana após fazer a primeira Ilustração 21 comunhão, conforme depoimentos colhidos no local. Até a reforma recente de seu túmulo, era conhecido como o “túmulo que chora”. Hoje não há mais “lágrimas” no lugar, mas muitas pessoas visitam diariamente o túmulo do menino intercessor. No dia de finados, 2 de novembro, seu túmulo fica repleto de flores, velas acesas e são colocadas imagens (fotografias) de crianças, em especial, e de adultos, que dizem ter alcançado a graça pedida. Outra importante intercessora, que já fora mais conhecida, é a jovem Lecy Suzana Garcia, falecida em 1962, com 22 anos de idade. Em seu túmulo, tal qual o do menino, podemos encontrar ex-votos. Estes seriam manifestações de devotos por meio de fotografias e outras formas de agradecimento, ou seja, que tiveram seus pedidos (saúde, amor, riqueza etc.) atendidos. A parada do passante, visitante do cemitério para uma oração, mostra ainda sua vitalidade no imaginário popular londrinense. O caso da jovem Lecy ficou famoso nacionalmente, inclusive com grande repercussão na imprensa3. A revista O Cruzeiro, a mais importante e popular do Brasil da época, publicou uma reportagem intitulada “A Bela Adormecida do Paraná”, em março de 1960, quando já haviam passados três anos que Lecy estava em sono profundo. Sua tragédia começa aos 17 anos, em 1957, quando aparecem os primeiros sintomas da doença (dormência e perda dos sentidos). Até então era muito alegre e bonita, estava noiva e feliz com a vida. Nenhum médico, nacional ou estrangeiro, nenhum religioso ou paranormal conseguiu reverter a situação de Lecy. A dedicação dos pais, por cinco anos, emocionou ainda mais a cidade de Londrina. Seu sepultamento
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Ver link http://www.memoriaviva.com.br/ocruzeiro/26031960/260360_2.htm.
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Cemitério São Pedro: espaço de vida, espaço de memória
deve ter mobilizado toda a cidade. Em sua sepultura a alcunha (Bela Adormecida) e uma fotografia de uma bela jovem em traje especial.
Ilustração 23
Ilustração 24
Ilustração 22
Um terceiro personagem que chama a atenção no dia de finados é do primeiro falecido sepultado no cemitério. Não há nome, nem data. Apenas um epitáfio tão apagado que foi necessário fazer outro, intitulado “Justa Homenagem”, no qual está escrito: “Morto estendido no chão, com seus braços abertos em forma de cruz. Jaz neste humilde túmulo o número 1 deste cemitério. Os que passarem por aqui rezem por sua alma.” Não bastava ser o primeiro sepultado, também morreu estendido na rua, talvez só, abandonado pela família, um errante, mas o principal, seu corpo inerte formava uma cruz, um sinal sagrado, que a todos chamou a atenção. Junto ao túmulo, muitas velas, flores e placas de agradecimento. Mais um intercessor. Saindo dos “milagreiros”, voltemo-nos para a categoria “pioneiros”. Estes são homenageados de diversas formas na cidade de Londrina, dentro de um conceito estipulado e aceito pela história oficial. Estão nos museus da cidade, nos nomes das ruas e praças e monumentos específicos etc. São sempre referenciados e lembrados. Mas, para alguns, a marca de uma vida dedicada à história da cidade também se faz necessária dentro dos muros do cemitério. Vejamos três exemplos, dentre outros semelhantes. O primeiro, a família Romagnollo. Em sua capela-sepultura há um altar onde se pode ver o porta-retratos dos irmãos Guerino e Eventuil e duas miniplacas de rua, portando cada uma o nome de cada 73
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irmão. Lembra ao passante curioso que ali há não só um pioneiro, mas um homenageado que deu seu nome à via pública (Ilustração 25). Outro caso seria a de Assumpta Bonini Campanhã. Sua família colocou em seu túmulo, uma placa em porcelana que reproduz o diploma recebido pela falecida, ofertado pelos poderes municipais por ocasião do cinquentenário da emancipação de Londrina, em 1984. Neste está escrito: “O Município de Londrina, estado do Paraná, outorga a Assumpta Bonini Campanhã o título de Pioneiro de Londrina, nos termos da Lei n. 3.738 de 9 de novembro de 1984, ao ensejo das comemorações do Cinquentenário de Emancipação Política do Município. Ao pioneiro, o tributo de gratidão dos Poderes Públicos e do povo de Londrina.” A imagem da placa traz a mensagem do progresso pelo qual a cidade passou. Em uma ampulheta, símbolo do tempo e da história, a cidade das casas de madeira, com destaque para a velha catedral, na parte superior, simbolizando o passado, e a cidade de hoje, com seus edifícios altos em concreto e, mais uma vez, a catedral ao centro, agora mais majestosa, simbolizando a modernidade (Ilustração 27). Por fim, em uma sepultura reformada, vemos um “pergaminho” com palavras respeitosas ao pioneiro Alberto Loureiro (Ilustração 26). Este, junto com o inglês Craig Smith, o agrimensor russo Alexandre Razgulaeff e outros peões, participou da primeira caravana da Companhia de Terras do Norte do Paraná, fincando o primeiro marco da cidade (hoje conhecido como Marco Zero) no dia 21 de agosto de 1929. Em sua placa os dizeres: “Aqui repousa ALBERTO LOUREIRO pioneiro londrinense da primeira caravana de desbravadores, que deixa um legado de honradez, austeridade, justiça e generosidade. Homenagem de seus filhos e netos”. Em sua fotografia, a presença de uma figura madura, tranquila. Ao fundo a casa de madeira, uma marca da cidade.
Ilustração 25
Ilustração 27 Ilustração 26
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Cemitério São Pedro: espaço de vida, espaço de memória
Uma mulher que chama a atenção entre tantas é a senhora Lindalva Milhomem Campos. Além da sepultura comportar uma arquitetura diferenciada, possivelmente dos anos 1970, em função das cores e do material utilizado (ver adiante), sua fotografia é expressiva. A placa menciona uma senhora falecida aos 78 anos, mas a fotografia nos apresenta uma jovem com uma Ilustração 28 proteção na cabeça (de corrida de automóvel ou de aviação), usando um batom de cor forte, meio de perfil. Enfim, uma pose para a posteridade. Uma pesquisa na internet nos dá as informações necessárias. Segundo a Folha de Londrina, de 28 de novembro de 2004, Lindalva foi a segunda aviadora brasileira e escolheu Londrina para morar no ano de 1951. Mais uma busca na internet e encontramos o Diário Oficial da União, de 12 de abril de 1944, com a aprovação do requerimento de carta piloto de recreio ou desporto de Lindalva. Ela foi homenageada com o nome em logradouro público na cidade. A família Campos optou por uma marca própria de Lindalva: aviadora. Assim foi com muitas famílias que têm seus parentes enterrados no cemitério São Pedro. Passar pela vida e deixar um legado, como vimos escrito acima, ter contribuído com o desenvolvimento da cidade e manter-se vivo, lembrado, e um exemplo a ser seguido. Outra sepultura que chama a atenção é da família Ermel. Lá encontramos um tabuleiro de xadrez. O jogo está encerrado, as peças brancas venceram com um xeque-mate. As peças formam uma cruz, símbolo cristão. Abaixo um trecho de Eclesiastes 3:5, “Tempo de espalhar pedras, e tempo de ajuntar pedras”. Ilustração 29 Mais uma busca na internet e encontramos a explicação desta marca no túmulo. Hercilio Ermel, cirurgião dentista e agropecuarista, fixou residência em Londrina a partir de 1957, vindo a falecer nesta cidade em 1998, aos 72 anos. Em sua biografia se acrescenta que fora um brilhante enxadrista, conquistando diversos títulos estaduais. Hoje existe um torneio com seu nome “Memorial Hercílio Ermel”, realizado em Londrina. 75
Patrimônio Histórico e Cultural: cidade de Londrina-PR
Ilustração 30
Bem no fundo, perto ao muro, pode-se encontrar um túmulo rente ao chão. Sobre ela abre-se um enorme livro. Diferentemente dos livros abertos vistos nos cemitérios, como já apresentado, tratase realmente de um livro publicado. É a apresentação da autora/ falecida por um texto escrito pelo professor Francisco Iglésia para a obra História da Educação no Brasil (1930-73). Produzida em 1973, por Otaíza de Oliveira Romanelli, é uma obra ainda atual, referência no estudo da educação no Brasil. Falecida em 1978, aos 34 anos, seu túmulo sintetiza sua vida: educadora e pesquisadora. Por fim, não poderia ficar de fora deste trabalho a sepultura de Avelino Antonio Galante. Este faleceu recentemente, em 2009, aos 86 anos. Foi um dos mais antigos fotógrafos da cidade de Londrina, atuando como “lambelambe” na praça até se estabelecer com Ilustração 31 um estúdio/laboratório, passando por outras empresas como fotógrafo. A família escolheu uma das últimas fotografias em que Galante posou ao lado de seu instrumento de trabalho. Uma profissão que não só marcou a cidade, mas a registrou. Seu acervo imagético está calculado em 50 mil negativos. O uso dos retratos pintados Uma das presenças mais marcantes nos cemitérios, sem dúvida, é a do retrato pintado. Técnica antiga que resistiu ao tempo, deixando de ser produzido recentemente em Londrina, mas ainda viva no nordeste brasileiro. Comum era um profissional passar pelas fazendas e sítios para 76
Cemitério São Pedro: espaço de vida, espaço de memória
fotografar ou recolher fotografias em preto e branco das famílias para ser executado na cidade, por outro profissional, o retrato pintado. Uma visita aos parentes ou moradores mais antigos e se poderá encontrar pendurado na parede da sala ou quarto uma moldura, em geral oval, com uma fotografia pintada. Na Ilustração 32 ilustração 32 temos um exemplo. A imagem foi feita e colorida à mão tendo por base uma (do casal) ou duas fotografias (isoladas), em geral no formato 3X4, feita em “lambe-lambe” da via pública. No caso, parece-nos que houve uma montagem para formar o casal. Esta fotografia, que antes adornava uma residência, hoje habita uma capela-sepultura. Esta última questão é de fundamental importância, pois este fragmento da vida, de um ornamento familiar continua vivo e presente para que todos, familiares ou não, possam admirar. Um exemplo em preto e branco do processo de junção de um casal pode ser encontrado em um jazigo simples do cemitério São Pedro. A primeira e segunda fotografias (Ilustrações 33 e 34) acompanhavam as placas com os nomes e datas de nascimento e falecimento dos retratados. A terceira fotografia (Ilustração 35), que nos interessa aqui, foi o processo de retrato pintura. Percebe-se uma melhora na qualidade da imagem frente aos originais: mais vivacidade facial. Da mesma forma, como na ilustração original, foi desenhada uma vestimenta mais distinta no cavalheiro, paletó e gravata, arrumada a camisa e colocado brincos na senhora. Em geral também se acrescentava o colar.
Ilustração 33
Ilustração 34
Ilustração 35
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Patrimônio Histórico e Cultural: cidade de Londrina-PR
Outro exemplo que podemos encontrar dentro de uma capelasepultura é o da ilustração 36. Composta por cinco porta-retratos, um vaso com flores e uma representação da crucificação de Cristo, a imagem nos traz importantes informações. Apesar da parede estar descascando, as fotografias ainda apresentam boa qualidade visual, cores bem vivas (as fotografias centrais) mesmo recebendo o sol diário. Duas delas são retratos pintura. Tanto a camisa com flores quanto o paletó e a gravata (segunda e quarta retratos pintura da esquerda para direita) são pintadas, ou seja, não necessariamente vestiam tal roupa. A primeira fotografia pode ser pintada ou não, a posição e o seu estado de conservação dificultam confirmar. A terceira e a última são fotografias originais em preto e branco. Todos são aparentemente jovens ou estão na meia idade. As três molduras centrais parecem recentes, ou seja, a família adotou a foto antiga, mas a colocou em moldura nova. As outras duas molduras devem ser as originais da fotografia. Portanto, além da variedade técnica da fotografia, temos uma variedade de molduras. O importante é perceber também que o jazigo, em especial a capelasepultura, transforma-se em extensão do lar, seu complemento. Não se trata de um depósito de fotografias velhas, pois estas continuam a rondar as casas em caixas e álbuns de famílias dentro dos armários, nas gavetas e, mesmo, ainda nas paredes e sobre móveis.
Ilustração 36
Para concluirmos esta etapa do texto, observa-se que as ilustrações 37, 38 e 39 possuem semelhanças e particularidades com as anteriores. A primeira e a última encontravam-se em capela-sepultura. A primeira é um suporte antigo, não mais existente, que era comum nas 78
Cemitério São Pedro: espaço de vida, espaço de memória
primeiras décadas do século XX, mas ao que parece deve ter continuado a existir em Londrina até os anos 1950. A fotografia ficava presa em um suporte protegida por um plástico grosso, com quatro cantoneiras nas extremidades. Percebe-se que, mesmo com a proteção, a fotografia sofreu a ação da umidade, pois está machada. A ilustração central é de uma fotografia em porcelana, em um jazigo comum. Trata-se de um desenho de um senhor japonês trajando seu kimono. Neste jazigo todos estão retratados assim. Por fim, a última ilustração refere-se a um casal japonês. Está na tradicional moldura oval e é um retrato pintura. A vestimenta é bem ocidental e o casal na meia idade. A mulher está de frente, olhando diretamente para a câmera. O homem, meio de lado, olhando para um horizonte. Diga-se, de passagem que fotografias de perfil são raras, considerando o conjunto total das fotografias cemiteriais no São Pedro. Vemos que a tradicional forma de fotografia foi incorporada pela comunidade nipônica de Londrina.
Ilustração 37
Ilustração 38
Ilustração 39
Túmulos, Ornamentos e Estatuária Sem a pretensão de esgotar a discussão sobre os ornamentos, signos e a estatuária existente no cemitério São Pedro, propomo-nos a apresentar algumas imagens que mostram as representações religiosas e o imaginário social e cultural da cidade de Londrina, bem como do material usado nos jazigos como prova de um tempo passado. É curioso como símbolos da cidade são transpostos para o cemitério, vinculados à religiosidade ou a profissão do falecido. Nas ilustrações 40 e 41, temos dois casos sobre esta questão. O primeiro que 79
Patrimônio Histórico e Cultural: cidade de Londrina-PR
vamos discutir é o da concha acústica, construída na década de 1950 no centro de Londrina, e que foi palco de grandes manifestações políticas e culturais (Ilustração 40). No cemitério encontramos uma concha, abaixo e bem à sua frente, uma placa com um desenho de um saxofone, e mais abaixo uma lira, símbolos da música (Ilustração 41). O falecido, ou sua família, deixou claro o seu vínculo com a música por meio do instrumento.
Ilustração 40
Ilustração 42
Ilustração 41
Ilustração 43
Ilustração 44
Outro exemplo é o uso da arquitetura da catedral de Londrina (Ilustração 44)4. Esta foi iniciada no ano de 1968 e concluída e inaugurada em 17 de dezembro de 1972. Possui um projeto considerado “moderno”. Construída em local elevado, no centro da cidade, destaca-se por sua imponência. Trata-se, portanto, de uma referência arquitetônica e religiosa na cidade. Podemos encontrar dois tipos de reprodução da catedral: uma em formato miniatura, sobre um túmulo, onde a família Imagem da catedral atual retirada de: http://www.google.com.br/search?q=cated ral+de+londrina&hl=pt-BR&prmd=imvns&source=lnms&tbm=isch&ei=C_ffTuD 2IMfj0QHPstjNBw&sa=X&oi=mode_link&ct=mode&cd=2&sqi=2&ved=0CBoQ_ AUoAQ&biw=1170&bih=566
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Cemitério São Pedro: espaço de vida, espaço de memória
colocou em seu pequeno interior imagens de santos e dos falecidos da família (Ilustração 43), outro, em formato maior ocupando o espaço de dois jazigos comuns, é uma capela-sepultura (Ilustração 42). Assim, comporta em seu interior não apenas as fotografias, ornamentos e dados dos falecidos, mas os próprios restos mortais. A primeira revestida de cerâmica (azulejos) e a segunda por pastilhas verdes, comuns nos anos 1960 e 1970. Parece-nos, por isto, que a segunda seria a mais antiga. Por ser um cemitério com mais de 70 anos, sofreu a ação do homem em todo este período. Os espaços que eram de enterramento, propriamente ditos, dos primeiros tempos foram ocupados por jazigos perpétuos. A necessidade de mais espaço para o enterro fez com que a administração do cemitério autorizasse a construção de jazigos em pleno caminho de deslocamento interno, bem como em outros espaços ainda livres. Jazigos antigos foram reformados, ampliados ou modificados. Assim, o material empregado nestas construções também variam com o tempo, deixando sua marca. O uso de revestimentos de pastilhas e azulejos, como já vimos, é marcante. Outros exemplos de “modernidade” dos anos 1960 e 1970 seriam as ilustrações seguintes.
Ilustração 45
Ilustração 46
A ilustração 45 traz um jazigo em tijolo vazado, sem teto. Em seu interior existe um pequeno jardim. Defronte à porta, os dados dos falecidos e suas fotografias. Um ambiente transparente para quem “está” dentro e para quem está fora. A ilustração 46 traz um jazigo em material típico de sua época, com duas cercas que separam os dois ambientes, tem um fundo em azulejo vazado, trata-se do local onde está sepultada uma mulher aventureira: Lindalva Milhomem Campos. 81
Patrimônio Histórico e Cultural: cidade de Londrina-PR
Por várias vezes citamos a existência das capelas-sepulturas no cemitério São Pedro, que são um destaque a parte na paisagem cemiterial. Muitas mantidas com esmero pelos familiares, com cores vivas e floridas. Infelizmente ainda não catalogamos este material, mas vamos apresentar exemplos de sua arquitetura construtiva e o uso das cores para realçá-las. As ilustrações 47 e 48 trazem variadas formas das capelassepulturas. Com colunas grego-romanas, com varanda, lisas, com janelões, com janelinhas, umas maltratadas e outras cuidadas pelos proprietários. Todas, entretanto, possuem a cruz no local mais alto. Algumas possuem anjinhos, outras não. Podemos ver também outras formas de sepultura, mais antigas, como, por exemplo, a da ilustração da direita, bem à frente na esquerda. Sua cor é azul e foi pintada recentemente. É baixa, com uma pequena mureta. Ao seu lado, um jazigo mais atual, em mármore, com a gaveta acima do nível da rua. Assim são grande parte das sepulturas novas e reformadas do cemitério.
Ilustração 47
Ilustração 48
As variedades das formas das cruzes existentes também são ricas em detalhes. Um estudo aprofundado daria uma visão exata de sua datação. Muitas, provavelmente, como os anjinhos, devem datar dos primeiros anos do cemitério. Aparentemente a maioria foi construída em cimento, mas também existem produzidas em ferro e em outros tipos de pedra (coloração, superfície, qualidade etc.) Abaixo, as ilustrações apresentam diversos tipos. Na ilustração 49 uma cruz localizada no alto de uma capela-sepultura e em seu centro as iniciais INRI. Na ilustração 50 um dos formatos em ferro e, por fim, a ilustração 51 uma variedade das cruzes que ornamentam as sepulturas. Estes modelos predominam e atestam sua época. 82
Cemitério São Pedro: espaço de vida, espaço de memória
Ilustração 49
Ilustração 50
Ilustração 51
Quanto aos anjinhos, já citados em muitos momentos deste trabalho, sua presença é constante. Aparentemente seguem um padrão de tamanho e de forma (aqui com pequena variação). Eles se situam, em geral, nos telhados das capelas-sepulturas e nas extremidades dos jazigos térreos. Geralmente suas mãos estão juntas, como se estivessem orando, de humildade, ou uma das mãos apontando para o céu. Muitos são retirados das sepulturas e por isso ficam abandonados pelos cantos do cemitério em função das reformas/demolições que ocorrem e/ou em razão de adoção de uma religião que não adote tal ornamento.
Ilustração 52
Ilustração 53
Ilustração 54
A figura do anjinho também está associada a da criança falecida. Hoje há placas específicas para adornar sepulturas de crianças. Nestas aparece o rosto de um anjo alado e ao lado a data de nascimento e morte da criança. A colocação de imagens de anjos para enfeitar sepulturas de crianças é uma tradição brasileira. Vejamos dois exemplos. A ilustração 55 é de porcelana ou resina, de porte pequeno, uns quinze centímetros, está colocada sobre o jazigo da família. Vê-se que está ajoelhada, em posição misericordiosa. Em suas mãos uma pequena pulseira com um crucifixo. Já a ilustração 56 ornamenta um túmulo de uma criança falecida com 01 ano, em 1951. O anjo, com o sexo coberto, está sobre um livro aberto jogando flores. Foi feito de mármore e no epitáfio, abaixo do livro, está escrito: “Candura, graça e inocência refugiaram aqui: Terra não peses sobre ela pois não pesou sobre ti.” 83
Patrimônio Histórico e Cultural: cidade de Londrina-PR Ilustração 55
Ilustração 56
Uma atenção especial ao piso em volta dos túmulos que nos revelam um material muito usado nas calçadas, em locais mais movimentados da casa, como varandas e hall de entrada das residências. Estas peças encontram-se fora de linha e de difícil acesso, isto é, por não serem mais produzidas seu valor cultural e histórico é inestimável. Pelas ilustrações abaixo, percebe-se que foram mosaicos, em geral com peças coloridas, tornando os jazigos mais leves e alegres. A ação do tempo e do homem está agindo sobre eles, um pela ação da natureza via chuva, vento e seres vivos (bactérias etc); outra pela ação demolidora e de descarte do homem.
Ilustração 57
Ilustração 58
Quanto à estatuária, o cemitério São Pedro não é muito rico, comparado às capitais de São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Talvez pela decadência deste tipo de ornamento cemiterial, pela falta de mão de obra especializada ou pelo seu alto custo. Muitas destas imagens são de fundição, segundo um molde padrão, de pouco valor artístico. Em alguns aspectos mantém o tradicional, ou seja, a desoladora, a piedosa, o Sagrado Coração, e a figura de Cristo (caído, carregando a cruz). Vejamos algumas destas obras. Na ilustração 59 visualizamos duas sepulturas, a da esquerda a tradicional Pietá, com o Cristo morto em seu colo; a da direita, Cristo carregando a cruz. Em sua cabeça a coroa de espinhos e o suor 84
Cemitério São Pedro: espaço de vida, espaço de memória
escorrendo, aos seus pés os pregos que fixaram Cristo à cruz. Uma feita em material escuro brilhante e outra na cor bronze. Ambas em tamanho quase natural, destacam-se no visual cemiterial.
Ilustração 59
Outra figura presente em vários jazigos é da desoladora. A figura feminina que lamenta a morte dos que estão na sepultura (ilustrações 60 e 61). Tal como esta figura, outras imagens obrigatoriamente se apresentam, como Nossa Senhora Aparecida, Santo Antônio (figura apresentadas em todos os cemitérios pelo número de devotos no Brasil), São José, entre outros.
Ilustração 60
Ilustração 61
A existência de muitas placas alusivas aos fabricantes dos jazigos com sua estatuária, ajuda-nos a definir datas de sua fabricação e origem. Em conversa com descendentes de japoneses que visitavam os túmulos de seus parentes, foi afirmado que estes foram encomendados na cidade 85
Patrimônio Histórico e Cultural: cidade de Londrina-PR
de Marília, estado de São Paulo (Ilustração 62). Lá, portanto, havia serviço especializado em língua japonesa, essencial para tal. Mas se para este grupo a cidade de Marília foi importante, firmas de outras cidades foram contratadas, inclusive da própria Londrina, para a comunidade não nipônica, como podemos ver nas ilustração 63 e 64.
Ilustração 62
Ilustração 63
Ilustração 64
Considerações Finais Ao passar os olhos atentamente sobre as ilustrações aqui mostradas, muitas outras observações podem ser feitas, tais como: corte de cabelo, forma de pentear, uso de bigodes e brilhantina nos cabelos, vestimenta variando no decorrer do tempo, surgimento do sorriso nas fotografias cemiteriais, entre outros temas possíveis. Muitos na busca da valorização da pessoa, expressar a condição social e o respeito por sua profissão (traje especial, uniforme, farda que usa etc.). O combate entre a vida e a morte, a permanência do ausente, as formas de encarar a morte e a vida post-mortem, a importância do uso de eufemismos, como foi mostrado em algumas frases escolhidas de epitáfios, no uso da fotografia para marcar presenças, como no caso da fotografia do casal para expressar uma união que transpôs o tempo, um amor que a morte não venceu, ou melhor, que venceu a morte. O retrato pintura, muito usual em tempos idos, hoje resiste em alguns lares, mas se faz presente de forma viva e permanente nas fotografias cemiteriais e no interior das capelas-sepulturas. Sua técnica, somada ao uso das molduras ovais, enfeitam, mantém presente o(s) ausente(s) aos familiares e passantes, uma forma de fazer e ver, rememorar. Por meio da estatuária, ornamentos e da arquitetura cemiterial, percebeu-se as representações religiosas e o imaginário social e cultural da cidade de Londrina no passado e na atualidade. A presença de jazigo 86
Cemitério São Pedro: espaço de vida, espaço de memória
assemelhando-se a símbolos arquitetônicos, a variedade de estátuas de anjos, de formas das cruzes, com muitos detalhes, das estatuárias com seus personagens naturais (Cristo, Maria, Sagrado Coração etc.), os selos dos fabricantes destas, bem como o material usado na construção dos túmulos (com suas substituições no decorrer do tempo), dão uma ideia das transformações em especial, e a permanência de um tempo passado no presente. Como espaço de memória, o cemitério São Pedro possui uma importância ímpar para o estudo da história cultural e religiosa da cidade de Londrina. Seu uso pedagógico, sua compreensão como um museu a céu aberto, como local privilegiado de perceber a vida e a morte (ou a post-mortem), obriga-nos a pensá-lo com outro olhar, com a necessidade de preservá-lo como ponto de referência de nossa da histórica local. No início foram expressas algumas questões que cabe agora responder. Somos frutos de um passado, dos mortos. Não se pode separar os vivos dos mortos. O muro existente entre a “cidade dos vivos” (agora colocamos aspas) da “cidade dos mortos” é imaginário. O cemitério é um local privilegiado para a construção dos monumentos/ documentos, onde uma história familiar, particular, é também uma história coletiva. Um lugar privilegiado para se encontrar o nosso patrimônio cultural material e imaterial: os modos de fazer, as celebrações, os rituais, tradições de nossa ancestralidade e de nossa atualidade, o material empregado nos jazigos, a estatuária religiosa, nossos costumes, lendas entre outras expressões culturais. Não se pode pensar, assim, o cemitério como um espaço morto, pelo contrário, os roubos das peças de bronze, de estatuária, as desapropriações pela prefeitura municipal, a venda de jazigos “perpétuos” pelas ordens terceiras etc., mostram seu valor comercial. As reformas nos jazigos pelos familiares e pelos novos proprietários demonstram também que é um espaço ainda passível de grandes transformações, isto em grande sentido, ou seja, estatuária, arquitetônica, cultural e religiosa. Portanto, faz-se necessário pensar o espaço cemiterial como passível de perda de uma memória histórica, cultural e religiosa 87
Patrimônio Histórico e Cultural: cidade de Londrina-PR
importante para a cidade de Londrina. Tal qual o acervo de um museu, no caso do Museu Histórico de Londrina, pertencente à Universidade Estadual de Londrina, o cemitério municipal São Pedro é um museu a céu aberto, passível de ser admirado e estudado, portanto, objeto de resguardo de memória a ser preservado.
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