Plaquete fome de noticia baixa

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FOME DE NOTÍCIA

CENTRO CULTURAL SÃO PAULO

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Prefeitura de S達o Paulo Secretaria de Cultura Centro Cultural S達o Paulo

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FOME DE NOTÍCIA Evaldo Mocarzel (escrita em processo colaborativo com o grupo V.A.G.A.)

Este texto veio à cena no dia 6 de setembro de 2013, na Sala Jardel Filho do Centro Cultural São Paulo, sob direção de Maurício Perussi e com o seguinte elenco: João Attuy, Marco Biglia e Sofia Boito.

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Apresentação

Fome de Notícia, de Evaldo Mocarzel, é texto teatral cuja aguda contemporaneidade temática dispensa apresentação como chave de acesso. Diversas são as portas de entrada e veredas para o percurso de todo e qualquer espectador/cidadão/ser humano afetado pelas novas dinâmicas de circulação da arte e do conhecimento neste início de século, tempo de mercantilização de ideais e de poderes difusos. Um deles, o chamado quarto poder, a mídia, ganha relevo nesta peça assim como os embates de um par amoroso, temas tratados num movimento poético expressionista e caro a Mocarzel: a criação de situações que levam ao desvelamento de zonas sombrias do humano. No primeiro gesto o autor levanta véus que encobrem a chamada cozinha do jornalismo para realizar uma contundente crítica à interferência de interesses comezinhos na produção de notícias. O segundo gesto promove o esgarçamento da superfície para deixar vir à tona as forças subterrâneas que controlam comportamentos e disputas de poder seja no vínculo conjugal, seja no ambiente corporativo, planos que por vezes se confundem na situação engendrada pelo autor. Interessante neste procedimento de aprofundar camadas não é o que esclarece, mas o enigma que toca: as pulsões, base da civilização e seu mal estar, que nos conduzem como um contrarregra silencioso e hostil.

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Cineasta premiado, criador de dezenas de documentários, muitos deles tendo como origem o registro de processos teatrais, Mocarzel acumulou diversos parceiros. Trabalha muito e sempre movido por uma crença de rara intensidade no poder da arte para ampliar conhecimento e percepção do mundo e das pessoas. Fé que investiu na criação de um projeto de jornalismo cultural ousado e consistente nos mais de vinte anos em que atuou na imprensa diária. Entre 1995 e 2003, trabalhamos juntos no Caderno 2, o suplemento cultural do jornal O Estado de S. Paulo, eu como repórter, ele como editor. Fui testemunha de seus embates. Só para não ficar na generalidade, Mocarzel era capaz de dar como matéria de capa uma longa entrevista com o diretor teatral inglês Peter Brook na mesma semana em que estreava um daqueles blockbusters do cinema americano. “Não vou me pautar pela indústria cultural”, bradou por diversas vezes, uma delas, por bizarra coincidência, ao lado de uma grande forca de madeira e seu inconfundível laço de corda deixada no auditório pela equipe de um desses famigerados programas “motivacionais”. Parecia um aviso, era um signo forte. Durante todo o período em que foi editor, Mocarzel enfrentou (seria mais exato dizer afrontou) diferentes resistências, entre elas as dos desencantados que ironizavam suas ideias como ilusão iluminista, a tal “razão cínica”, termo que o leitor/espectador reconhecerá na boca do Diretor de TV – convocado à cena por “Mulher”, nesta peça em que os personagens não ganham nomes, são apenas “Mulher” e “Homem”, o casal, e “Contrarregra”. Mas se há referências Fome de Notícia está longe de se configurar como transposição de experiência pessoal e/ou de retratar a queda de credibilidade da imprensa nestes tempos já chamados de virtualidade real. Nas palavras do próprio Evaldo, seu impulso inicial foi o de criar uma espécie de reality show macabro para tratar a um só tempo da crise de um casal de temperamentos opostos – ela, “tempo de brisa”, ele, “desafiador de vendavais” – e da voracidade com que se explora a curiosidade mórbida na mídia. Pretendia 5


ainda realizar um exercício de linguagem expressionista. Como é comum ocorrer, o gesto criador ultrapassou intenções, assim como o elemento forca, signo que reconheci como memória, abriu-se a múltiplos significados no contexto da cena. A primeiríssima versão – para Mocarzel, apenas um esboço – despertou o vivo interesse do crítico Sérgio Sálvia Coelho, que fez uma leitura cênica em novembro de 2009 na programação cultural do evento Satyrianas. Nesse mesmo ano Mocarzel havia escrito em processo colaborativo o texto de Kastelo, dirigido por Eliana Monteiro na fachada de um prédio na Avenida Paulista. No ano seguinte, o diretor Antônio Araújo pediu um texto para integrar um projeto de Leituras Encenadas por jovens diretores. Tive a oportunidade de assistir na sede do Teatro da Vertigem à leitura de Fome de Notícia dirigida por Mauricio Perussi, cuja sensibilidade levou a sublinhar nos elementos de cena e na movimentação dos atores a pulsão de morte que perpassa todo o texto. Não estou autorizada à leitura psicanalítica, mas, até onde sei, tanto curiosidade mórbida descontrolada e obsessiva quanto repulsão extrema às imagens de morte têm origem no medo da finitude ou, no seu oposto, no desejo de imortalidade. Em desequilíbrio, tais pulsões levam à covardia ou aos surtos de poder tirânico, comportamentos que podem ser detectados ora no discurso do diretor de TV, ora nas disputas do casal. Nada mais difícil que o tão buscado equilíbrio entre Eros e Thanatos, fertilidade e destruição, yin e yang, opostos que sacodem as figuras em cena e permitem ler o casal, se o espectador assim quiser, como um único ser dilacerado por pulsões de vida e morte ou, outra possibilidade, um ser e seu duplo. Se tal pulsação de opostos atraiu com sua força bruta os primeiros leitores deste texto, a versão agora publicada foi contaminada pelos demais criadores e alterada em consequência dos diálogos entre Mocarzel e Perussi, e ainda com os atores Sofia Boito e Marco

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Piglia Jr. (o casal) e Francisco Lauridsen, o criador do contrarregra no Teatro da Vertigem, agora substituído por João Attuy.

Fome de Notícia não é fruto de processo colaborativo, tampouco de criação isolada. A autoria aqui é de outra ordem, uma singularidade burilada na experiência cênica, o que deve ter ocorrido com muitas dramaturgias tidas como autorais, dos gregos a Shakespeare e Molière. Mas se a análise minuciosa das gêneses desmonta o mito do ato de criador como atributo do gênio solitário, também não se pode deixar de sublinhar a diferença entre um texto que amalgama inquietações de um coletivo daquele que surge da pulsão criadora de um indivíduo, da busca pela expressão singularizada da experiência de estar no mundo e em sociedade. Por fim, gostaria de saudar a iniciativa da Curadoria de Centro Cultural São Paulo de editar textos teatrais inéditos de autores brasileiros cuja montagem inaugural se dê em uma das salas da instituição. Ensaio Sobre a Queda, de Carlos Canhameiro, foi o primeiro da série que tem continuidade agora com Fome de Notícia e, espera-se, seja longeva, pois se trata de prática relevante para diversificar e ampliar o potencial de efeitos da proposta teatral. Em tempos de acesso virtual facilitado, a concretude da publicação em papel tem o poder do recorte, promovendo uma espécie de pausa no veloz fluxo virtual de informações para fruição mais detida. Os que receberam o presente volume após a apresentação podem revisitar a experiência vivida em sala de espetáculo que, certamente, será reconfigurada no percurso e no tempo singular da leitura. Mas seja qual for o horizonte de expectativas do leitor – termo da estética da recepção que define a soma de experiências, informação e conhecimentos que cada receptor investe sobre a obra –, a brochura que tem agora nas mãos lhe dá a oportunidade de conhecer uma versão muito próxima à montagem dirigida por Mauricio Perussi e de modificá-la em múltiplas interações.

Beth Néspoli 7


CENA 1 Sala de estar de apartamento de classe média. Homem e Mulher com os rostos cobertos por véus cinzentos estão parados diante do público como duas estátuas expressionistas. Da cintura para cima, os figurinos expressam certa formalidade, como se estivessem vestidos para uma noite de gala; da cintura para baixo, os trajes são informais, prosaicos, cotidianos, roupas puídas pela ação do tempo e muito confortáveis para se ficar em casa nos dias de folga. Os dois personagens encarnam estátuas expressionistas, mas há algo patético, por vezes cômico e ainda carinhoso, com a condição humana nessa primeira imagem cênica que vai deflagrar a ação e a rotina de vida dos dois personagens. Tempo. Pouco a pouco, escurecimento da cena, como um flash de uma máquina fotográfica que esmorece em desalento.

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CENA 2 Contrarregra entra em cena com coreografia estilizada inspirada em filmes expressionistas do cinema alemão, mas matizada com momentos por vezes patéticos, até mesmo humorísticos, talvez buscando algum tipo de referência na combustão poética e na atmosfera agridoce dos últimos espetáculos de Pina Bausch, a última remanescente do expressionismo alemão nas artes cênicas e que enveredou por uma visceralidade mais leve, não menos poética e, por vezes cômica, em suas últimas obras, realizadas após residências artísticas em países como Cabo Verde e Brasil. Na peça Fome de Notícia, estamos no território de um cotidiano estranhado, em que as pulsões expressionistas estão capilarizadas no tédio e no patético da rotina de vida de um casal que vampiriza as tragédias da mídia para se sentir mais vivo e mais pulsante, o que é por vezes risível. Por tudo isso, a coreografia expressionista do personagem Contrarregra tem algo dolorido e, ao mesmo tempo, humorístico; um títere sendo manipulado nos bastidores pelas mãos de um encenador que tem carinho e compaixão por seus personagens, mas, ao mesmo tempo, os manipula como fantoches, e Contrarregra é justamente esse elo entre o diretor e o casal em cena. A gestualidade de Contrarregra talvez possa ter um parentesco com a do personagem Cesare, de O Gabinete do Dr. Caligari, o sonâmbulo que cometia os crimes orquestrados pelo personagem-título do filme de Robert Wiene, de 1919, 9


considerado por muitos críticos a obra mais expressionista da história do cinema. Na verdade, o filme inaugural do movimento na sétima arte. A composição de Contrarregra também pode buscar inspiração em outro título seminal da arte cinematográfica, O Vampiro de Dusseldorf, de Fritz Lang, de 1931, uma obra pós-expressionista, diga-se de passagem, o primeiro trabalho sonoro do mestre alemão. Na interpretação de Peter Lorre, encarnando o personagem-título, o assassino em série na corrupta Alemanha do período entre as duas grandes guerras, há algo trágico e, ao mesmo tempo, cômico, patético. Um matador de menininhas sendo manipulado como uma marionete pelo lado obscuro da própria alma. Outra fonte de inspiração são os filmes do cineasta Roy Andersson, com suas atmosferas de cotidiano estranhado, ora solitárias e por vezes sombrias, ora completamente hilariantes. Trágico, cômico, patético, oprimido, mas, ao mesmo tempo, cruel e opressor, títere e capataz do encenador fora de cena, Contrarregra vai lentamente se aproximando de Homem e Mulher, que permanecem como estátuas expressionistas no meio do palco. Tempo. Contrarregra tira o véu que encobre o rosto de Homem, que suspira aliviado, como se por fim voltasse a respirar mais uma vez. Contrarregra dá a Homem uma câmera fotográfica. Homem pega a câmera e Contrarregra sai de cena. Homem encara o público por alguns instantes e depois começa a fotografar os espectadores. Tempo. Homem se volta para Mulher, que continua imóvel como uma estátua expressionista e com o rosto coberto pelo véu cinzento. Homem: (falando diretamente ao público, mas dirigindo-se à Mulher) O princípio de tudo é um sentimento de saudade. Homem tira uma foto do rosto de Mulher coberto pelo véu cinzento. Homem: (falando diretamente ao público, mas dirigindo-se à Mulher) No brilho leitoso dos meus olhos fechados, vejo uma nesga de céu. Que se abre. É desbastada pelo pincel de um artista tomado pelo momento da criação.

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Homem tira nova foto de Mulher. Homem: (falando diretamente ao público, mas dirigindo-se à Mulher) O coração do pintor bate acelerado. A imagem é por fim esgarçada. Revela um vazio de luzes. Só que a ausência se transforma em abismo. E eu começo a despencar lá de cima. Homem tira várias fotos do corpo de Mulher. Barulho amplificado dos sucessivos disparos da câmera, com cadência de uma queda vertiginosa. Homem: (falando diretamente ao público, mas agora desviando os olhos para o rosto de Mulher, encarando-a com extremo carinho) Mentalizo a sua presença como parte de meu corpo. Você surge, então, na pontinha das lágrimas que deslizam. Homem tira várias fotos do rosto de Mulher. Barulho amplificado dos sucessivos disparos da câmera, mas agora com cadência mais lenta: no ritmo de pálpebras que piscam sem parar. Homem: (falando diretamente ao público, mas, de quando em quando, encarando Mulher com extremo carinho) No lusco-fusco do precipício de meus olhos que piscam. Homem tira mais e mais fotos do corpo de Mulher. Barulho amplificado dos disparos da câmera. Homem: (falando diretamente ao público, de quando em quando, encarando Mulher com extremo carinho e, ao mesmo tempo, tirando fotos) No topo da grande cachoeira da minha memória. Homem para de fotografar. Homem: (falando diretamente ao público, de quando em quando,encarando Mulher, só que agora com desalento impotência) No entanto, você irrompe turvada de sal. Osal de uma saudade em secreções vitais. (Esmorecendo ainda mais) Mas não consigo. Por algum motivo, não consigo. Sinto-me vazio de tudo. (Resignado) E tudo se dissipa numa manhã que não tem fim. 11


Contrarregra entra com uma cadeira e se aproxima de Homem, que se senta desalentado, impotente, resignado. Contrarregra se aproxima então de Mulher e lentamente tira o véu que encobre seu rosto. Contrarregra sai de cena. Mulher: (falando diretamente ao público, mas dirigindo-se a Homem; ela acaricia o próprio corpo) O princípio de tudo é uma necessidade de apego. Preciso me segurar. Acho que vou cair. Mas não tem mais volta. O abismo se abre debaixo de meus pés e eu começo a deslizar. Bem devagar. Mulher toca o próprio sexo e começa a se masturbar. Mulher: (falando diretamente ao público, mas dirigindo-se a Homem; masturbando-se) Um enjôo sobe à garganta. Sinto que chegou a hora de devolver tudo o que a natureza me deu. Começo a me esvair. Sumo de mim. Perco-me de vista. E me sinto mareada num barco que atravessa mares violentos. Masturbação de Mulher ganha ritmo e vai crescendo. Mulher: (falando diretamente ao público, mas dirigindo-se a Homem; masturbando-se) As ondas batem no casco do navio. Reviram as minhas entranhas. Sou uma única golfada. Que se espraia e me dissipa num vazio tépido. Masturbação de Mulher se intensifica ainda mais, como se ela tivesse encontrado o ritmo exato, o ponto exato, o caminho ideal e ilusório para levá-la ao orgasmo naquele momento. Mulher: (falando diretamente ao público, mas dirigindo-se a Homem; masturbando-se) Preciso desesperadamente reunir meus pedaços. Espalhados naquelas águas. (breve pausa) Um prazer de dominó invade o meu corpo. Reação em cadeia. O quebra- cabeça esboça então uma imagem. A minha imagem.

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Mulher atinge o orgasmo. Mulher: (falando diretamente ao público, mas dirigindo-se a Homem; masturbando-se) E eu finalmente gozo o vazio dos exilados. A ausência de todas as carícias que me prometeram em vida. E que me foram negadas. (breve pausa) Sou uma plenitude de cacos. Minha própria imagem estilhaçada. Um espelho de lunetas que avistam terra firme. Meu lar mais íntimo. Minha face mais gloriosa. Mulher goza e geme de prazer. Tempo. Suspira aliviada, como se tivesse tirado um peso dos próprios ombros. Luz muda completamente e invade o palco com a textura dos primeiros raios da manhã. Mulher se espreguiça. Trilha musical com cadência de bossa nova. Mulher: (a Homem, espreguiçando-se) Bom dia. Homem sai do torpor em que se encontra sentado na cadeira. Homem: (à Mulher, carinhoso) Bom dia, minha querida. Mulher: (ainda se espreguiçando) Já pegou os jornais? Homem: (apreensivo em dar a notícia à Mulher) Não vieram. (Tom confuso) Será que venceu a assinatura? Mulher: (irritada) Não pode ser. Logo hoje?! (Tom desesperado e, ao mesmo tempo, de necessitada) Não consigo mais viver sem minhas tragédias no café da manhã. Homem: (inseguro, com medo da reação de Mulher, mas solidário) Vou lá ver de novo. Mulher: (impaciente, agoniada e, ao mesmo tempo, ávida) Vai. Por favor. Vai.

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Homem sai. Mulher respira fundo e procura se acalmar. Ela se espreguiça mais um pouco. Contrarregra entra em cena com uma cadeira e a coloca no proscênio, não muito distante da cadeira em que Homem estava sentado. Mulher se senta. Contrarregra sai. Mulher espera ansiosa. Tempo. Homem volta. Homem: (chateado, impotente e resignado) Nada. Acho que não vem mais. Mulher: (inconformada) Pagamento em dia. (Tom desconfiado) Será que alguém roubou? Homem: (também desconfiado, mas confuso) Quem faria isso? Mulher: (ardilosa) Pega do vizinho. (necessitada) É a única solução. Homem: (Surpreso) Ficou maluca? Mulher: (ávida) Então vai à banca. Homem: (preguiçoso) Ah, não. Vai você. Mulher: (decepcionada) Pensei que pudesse contar com você. (falando com ela mesma, como se conversasse com uma amiga; exagerada, fazendo drama) Os jornais não chegam e eu descubro um estranho em minha cama... (Tom, desafiando Homem) Marido serve pra quê? Homem: (acuado, tentando dissuadi-la da ideia) Tá muito frio lá fora. Mulher: (tentando não perder a esperança) Será que não vem mesmo? Homem: (sem muita convicção) Às vezes atrasa. Final de semana... Mulher: (desconfiada) Tá dizendo isso pra me acalmar.

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Homem: (astuto, mudando de assunto) Nem te contei. Meu chefe entrou de licença. (instigando a curiosidade de Mulher) Sem data pra voltar. Mulher: (muito curiosa) Câncer? Homem: (mórbido) Metástase. Por todos os órgãos. Até mesmo no cérebro. (Tom piedoso) E ele não tava sentindo nada... Mulher: (apavorada e, ao mesmo tempo, excitada) Esse silêncio é que me tira o sono. Pode estar acontecendo agora... Uma célula começa a crescer... Crescer... Sem parar. E vai tomando conta de tudo. No mais completo silêncio. Sem pedir licença. Na calada da noite. Na surdina de uma brisa de verão. (Tom triste e resignado) E nossa chama de vida se apaga. Homem: (sincero e com medo) Nos últimos meses, o que mais me apavora tem endereço certo: diabetes. Mulher: (fazendo pouco caso) Não tá na minha lista. Homem: (apavorado) As feridas não cicatrizam. E a gente perde completamente o apetite sexual. Os membros vão gangrenando... (Tom professoral) Você já viu as fotos? Mulher mexe o corpo, arrepiada de horror e excitação. Homem: (deprimido) É muito triste a putrefação do nosso corpo. (Tom novamente professoral) E a cegueira é inevitável. (Tom solene) Silêncio e escuridão. Mulher: (segura) Mas dá pra controlar. Alimentação sadia. Atividade física. (Tom com medo) Diante de um câncer em estado de metástase, não tem solução. Todos os medicamentos são inofensivos. 15


Homem: (cético, discordando) Mais ou menos. Se for detectado no início, a quimioterapia é uma cura real. Mulher: (vaidosa) Você consegue me imaginar careca? Vomitando em cima de todo mundo? (Tom decidido) Melhor morrer. Homem:(ponderando) É uma questão de ponto de vista. Já morri de medo de enfarte. Pressão alta e colesterol. Mas agora eu tomo remédio. Mulher: (repreendendo e desmascarando Homem) Você nem mede sua pressão. Não faz check-up há um tempão. (Tom sádico) Como é que você sabe que uma veia sua não está se entupindo neste exato momento? A gordura de seus churrascos como um funil sufocando uma artéria e aí você começa a sufocar... Vai ficando roxo como aquelas flores de velório... Sua vista vai ficando escura e... tibum! Homem: (asfixiado) Tibum o quê? (Tom indignado) Você tá pensando que morrer é dar um mergulho no mar? Esse papo é sério. Você tá fazendo isso só pra me sacanear. Mulher: (desmascarada e carinhosa) Tô brincando, amor. Você não tem espírito esportivo. Homem: (chateado e arengando) Falta de respeito. Eu praticamente já tinha vencido meu medo de enfarte. (Tom indignado e vingativo) Tibum?! Você merecia levar um “caldo” na praia. Uma soca daquelas bem furiosas. Até ficar entalada de água salgada. No meio de uma ressaca. Mulher: (mudando o rumo da conversa, advertindo) Não brinque com coisa séria. (Tom sincero) Você sabe que eu quero morrer no mar. Nada de flores no meu caixão. Quero ser enterrada com uma trança de algas envolvendo meu corpo. Homem: (debochado) Ninguém vai aguentar o cheiro. 16


Mulher: (delirando) Há uma beleza na doçura de tudo que apodrece. (Tom veemente) As frutas, meu amor, são muito mais saborosas quando passam do ponto. Homem: (repugnado) Ai, que nojo. Mulher: (sensual) Adoro o cheio do teu corpo quando você chega exausto de um dia de trabalho. (Tom enfático) No verão. Homem: (carinhoso) Gosto de você cheirosinha. Saindo do banho. Com os perfumes de todos aqueles cremes contra o envelhecimento. Mulher: (orgulhosa) Eu me cuido, meu filho. Senão você vai perder o interesse em mim. Homem: (seguro) Nunca. Você é a mulher que eu escolhi pra envelhecer junto comigo. Mulher: (excitada) Vamos fazer uma loucura? Homem: (desviando a conversa, sem apetite sexual) Sua coleção de jornais. Vou pegar. Mulher: (decepcionada) Não demora. Homem sai. Contrarregra entra com papéis nas duas mãos. Ele vai até o meio do palco e, com sua coreografia expressionista estilizada, subitamente joga os papéis para o alto com as duas mãos. Iluminação muda. Homem entra com uma caixa com recortes de jornais e se senta novamente em sua cadeira. Contrarregra vai até o lado esquerdo do palco, senta-se numa cadeira e, com instrumentos rítmicos, cria uma espécie de partitura acelerada para a leitura das notícias que será feita por Homem, que pega um recorte de jornal. Homem: (sério, como um apresentador de televisão) América do Sul sofre mais de mil tremores em menos de 24 horas. Mulher: (fingindo estar curiosa e tentando entrar no jogo) Vítimas? 17


Homem: (sério) Tremores leves. Nenhum cadáver. Mulher: (tentando potencializar o jogo) Tornados? Tsunamis? Homem: (sem graça) O planeta tá calmo nas últimas semanas. Mulher: (necessitada) Encontra alguma coisa. Por favor. Homem: (sincero) Você sabe que não gosto. Fico impressionado com catástrofe. Mulher: (frustrada, interrompendo o jogo) Não vai dar certo. (Tom ainda com uma ponta de esperança) Tem mesmo certeza de que os jornais não chegaram? Homem: (seguro) Acabei de ver. Não quer ler na internet? Mulher: (irritada) Minha vista embaralha. Você sabe disso. (Tom de necessitada) Gosto de tocar a notícia. Espremer o sangue das páginas policiais. Homem pega outro recorte de jornal. Homem: (lendo) Prostitutas atacam executivos no centro da cidade. Mulher: (curiosa, tentando entrar no jogo novamente) Alguém morreu? Foi internado? Homem: (sem graça) Não. Só estão rodando bolsinha na hora do almoço. Mulher: (indignada) Coisa mais sem graça. Homem: (lendo outro recorte) Ladrões fuzilam motorista de ônibus. Mulher: (mais animada) Detalhes. Riqueza de detalhes. Homem: A polícia bloqueou o carro roubado via satélite. Mas conseguiram fugir com o dinheiro. 18


Mulher: (curiosa) E o defunto? Homem: (irônico) Presunto, meu amor. Esse é o típico. Um cara da periferia. Ninguém foi reclamar o corpo. Vala comum. Mulher: (desconfiada) Essa não é a minha coleção. Homem: (sem graça, pego em flagrante) É a minha. Mulher: (mimada) Ai, amor, pega a minha. Você guarda umas coisas que não fazem o menor sentido. Homem: (ofendido) Pra você. Gosto de histórias de perseguição. São espetaculares. Mulher: (séria) Cadê a minha coleção? Homem: (tenso) Não achei. Mulher: (firme) Tá dentro do armário. Homem: (impotente) Revirei tudo. (com medo da reação de Mulher) Acho que a empregada jogou fora. São umas desmioladas. Mulher: (furiosa) Não acredito. (breve pausa, tom desconfiado) Por que só a minha e não a sua? Barulho de pedaço de madeira se chocando contra o piso do palco. Luz mais forte sobre Contrarregra no canto esquerdo, que continua sentado em sua cadeira. Contrarregra bate com o pedaço de madeira no chão agressivamente, mudando o rumo da conversa do casal, os intimidando e ao mesmo tempo os obrigando a continuar a leitura dos recortes de jornais. Homem: (apreensivo e acuado, à Mulher) Vamos continuar? Mulher olha para Contrarregra com raiva, mas também intimidada e obediente. Ela logo desvia o olhar para Homem. Mulher: (resignada, mas sempre com olhar astuto) Manda outra. 19


Com seus instrumentos rítmicos, Contrarregra cria novamente uma partitura acelerada para a leitura das notícias. Homem: (lendo outro recorte) Menina de cinco anos é aprovada em curso de Direito. Mulher: (irritada) Tédio. Homem: (lendo) Rabino cleptomaníaco é acusado de assédio sexual. Mulher: (entediada) Besteirol. Homem: (lendo) Faxineiro homicida tatua nome da vítima no próprio pênis. Mulher: (mais animada) Tá começando a melhorar. Mas matou? Homem: (sem graça) A polícia descobriu a tempo. Mulher: (irritada) Tédio. Homem: (lendo com entusiasmo) O cara também tatuou um caixão na virilha. Mulher: (inconformada) Se não matou, não tem graça. (Tom veemente) Adoro crimes passionais. Mas tem que matar. Homem: (lendo) Cafetina brasileira derruba governador do Alaska. Mulher: (desconfiada) Você adora notícia com prostituta. (Tom ciumento) Tô de olho em você. Homem: (lendo e desconversando) Mulher dada como morta espirra dentro do caixão e ressuscita. Mulher: (jrônica) Acho melhor você ler o obituário.

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Homem: (discordando) A história é ótima. Inusitada. E muito engraçada. (Tom agressivo) Seu problema é que você não tem humor. Mulher: (debochada) Pensei que você tivesse mais imaginação. (Tom carente) Onde foi parar o meu marido? Homem: (irritado, mas tentando ser carinhoso) Tô aqui. Tentando te agradar. Mulher: (puxando pelos brios de Homem) Então encontra alguma coisa mais forte. Mais passional. Homem: (lendo, sem muita convicção) Justiça manda soltar hackers, mas obriga leitura de textos clássicos. Mulher: (decepcionada, desanimada, mas tentando se mostrar curiosa) Quais? Homem: Crime e Castigo, de Dostoievski. Mulher: (indignada) Coisa mais sem graça. Homem: (lendo no piloto automático) Comerciário é encontrado morto em rave. Mulher: (irritada de tédio) Overdose. Todo mundo sabe. Homem: (impotente, mas agressivo) O que você quer que eu faça? Mulher: (tentando melhorar o astral do jogo) Surpresa. Ação. (sequiosa) Quero que você me dê um chacoalhão. Uma sacudidela bem forte. Homem: (implicante, mas amoroso) Vou te dar é um beliscão. Mulher: (arrependida, desabafando) Desculpe-me. Hoje acordei muito angustiada.

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Homem: (tentando animá-la) Acho que você vai gostar dessa aqui. (lendo) Tortura pode ser aplicada para impedir o assalto de inocentes. Mulher: (séria, argumentando) Não deixa de ser uma medida inteligente. (Tom de sincera, carente) Mas preciso de algo mais forte, tipo: Top model é trucidada por matilha de poodles. (Tom sádico) Adoro ver essas mulheres lindas envelhecendo. Caquéticas. Cheias de estrias e celulite. Homem: (surpreso, tentando animá-la) Hoje você acordou inspirada. Mulher: (ávida) Gosto de notícia de churrascaria. Espirrando sangue. (Tom autoritário) Leia mais. Homem: (lendo) Guia turístico oferece conversa com traficante em favela no Rio. Mulher: (aborrecida) Tédio. Homem: (lendo) Mortos na América Central chegam a 30 mil. Mulher: (desinteressada) Sei tudo sobre esse terremoto. Não tem mais novidade pra mim. Homem: (lendo) Policial é sequestrado e morto após visitar amigo em favela. Mulher: (debochada e cruel) Sujeito burro. Teve o fim que merecia. Homem: (lendo) Monstro da Sibéria, enfim, atrás das grades. Mulher: (entusiasmada) Essa história é incrível. Vai virar filme. Escuta o que estou dizendo. Homem: (lendo) Mais de 20 mil mortos, sendo 15 mil muçulmanos. E ainda se tornou líder de uma seita.

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Mulher se mostra muito mais animada, até mesmo eufórica. Homem olha para Mulher com muito carinho. Os dois ficam se olhando com cumplicidade. Tempo. Contrarregra bate com o pedaço de madeira no chão diversas vezes e, com seus instrumentos rítmicos, acelera ainda mais a partitura para a leitura das notícias, interrompendo a cumplicidade e a sintonia romântica que envolve o casal por um breve instante. Homem: (lendo) Maníaco confessa homicídios pelos quais 10 pessoas foram condenadas. Mulher: (exagerada) Adoro maníacos. Sou tarada. Louca. Alucinada. (Tom desinteressado) Mas essa reportagem é muito chata. O jornalista só fala do processo na justiça. Não detalhou os crimes. Homem: (lendo) Policiais fazem reconstituição de assassinatos em série. Mulher: (excitada) Será que a gente consegue acompanhar na televisão? Homem: (cauteloso) A apuração já acabou. Mulher expressa decepção. Homem: (lendo) Massacre anunciado na internet. Mulher: (curiosa) Mas e aí? Homem: Um estudante irlandês matou dez na Inglaterra. Mulher: Com requintes de crueldade? Homem: (sem graça) Metralhou todo mundo. Tudo muito rápido. Mulher: (frustrada, mas tentando não desanimar, agora mais educada e menos autoritária) Continue lendo. Por favor. Homem: (lendo) Juiz condena amante a indenizar marido traído. (com entusiasmo) Dessa eu gostei! 23


Mulher: (decepcionada) Chatice. Homem: (lendo) Ladrões vestidos de mulher assaltam joalheria na Inglaterra. Mulher: (grosseira) Esses ingleses são todos uns enrustidos. Homem: (debochado) Preconceituosa. Mulher: (impaciente) Procura aí alguma coisa politicamente incorreta. (Tom excitado) Adoro. Homem: (lendo) Fiscal do trânsito é suspeito de ser o “maníaco da marginal”. Mulher: (cruel e sádica) Morte a todos os marronzinhos. Tem que prender e colocar em cela com estuprador. Homem: (surpreso e assustado) Mas o que é isso? O trânsito de São Paulo é um caos. Pior sem eles. Mulher: (delirando, em tom de brincadeira) Pena capital. Prisão de segurança máxima. Tudo isso é pouco para as multas que eu levei. Homem: (implicante) Você não dirige nada bem. Mulher: (controlando-se, autoritária) Continua. Homem: (lendo) Dado como morto, bebê sobrevive. Mulher: (entediada) Lugar-comum. Homem: (lendo) Estudante é espancado durante trote. Mulher: (aborrecida) Clichê total. Homem: (lendo) Grávida é atacada por skinheads na Alemanha e aborta.

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Mulher: (curiosa) Brasileira? Homem: Não. Boliviana. Mulher: (cética) Isso tem cara de armação. Homem: (lendo) Índios canibais matam garimpeiros e comem seus órgãos. Mulher: (debochada) Tá vendo por que eu não gosto de índio. Homem: (lendo) Policiais militares esquartejam bandido em favela. Mulher: (convicta e veemente) Você é contra, mas eu sempre vou defender o esquadrão da morte. A pena máxima. É uma questão de segurança pra todos nós. Homem: (lendo com repugnância) O rapaz foi degolado e depois partiram o corpo em cinco pedaços. A machadadas. Mulher: (Curiosa e excitada) O que mais? Homem: (lendo) Os quatro membros e a cabeça foram atirados aos porcos. (Tom vingativo) Mas o cara mereceu. Além de traficante, também era estuprador. (Tom raivoso e levemente excitado) Estupro não tem perdão. (Tom voltando a ler) Essa é boa: político, e apresentador de televisão, encomendava assassinatos para garantir audiência. Mulher: (excitada) Parece filme de Hollywood. Homem: (lendo) Celebridade australiana vende sobrevida a reality show. Mulher: (aprovando, eufórica) Tá garantindo o futuro de toda a família. Homem: (cansado) Quer que eu leia mais? 25


Mulher: (mimada) Só mais um pouquinho. Homem: (lendo) Prefeitura promove palestra antirracismo a policiais. Mulher: (irritada) Não. Marketing social, não. Pelo amor de Deus! Homem: (lendo) Senador esconde mansão de R$10 milhões da Receita Federal. Mulher: (sádica) Pega, mata e come. Manda para os índios. Homem: (lendo) Novas tecnologias. Pombo-correio leva celular a presídio. Mulher faz careta, não se mostrando muito entusiasmada com a notícia, além de cansaço com a leitura dos recortes de jornais. Homem: (lendo) Mais tecnologia. Mulher morre em centro de tratamento para vício em internet. Mulher: (cansada do jogo) Acho que por hoje tá bom. Homem: O que vamos fazer agora? Mulher: (sensual e faminta) Essa leitura me deu fome. Homem: (animado) Vou preparar um café da manhã reforçado. Omelete? Mulher: (excitada) Daqui a pouco. Agora fica bem quietinho aí. Desconfiado, Homem permanece parado na cadeira em que está sentado. Mulher se levanta, aproxima-se de Homem e o pega pela mão direita, conduzindo-o ao centro do palco. Tempo. Mulher beija a boca de Homem e tenta excitá-lo, lambendo seu pescoço. Homem vai pouco a pouco se entregando às carícias de Mulher. Os dois começam a fazer amor. Tempo. Contrarregra entra em cena com um véu cinzento e se aproxima de Mulher. Contrarregra 26


passa suavemente o véu por várias partes do corpo de Mulher, seu rosto, braços e costas, instigando o seu apetite sexual. Conforme Contrarregra passa o véu pelo corpo de Mulher, ela vai acariciando Homem cada vez mais forte, beija-lhe a boca com ainda mais volúpia, Homem vai se entregando mais e mais à sua sedução. Contrarregra se aproxima então de Homem com seu véu cinzento e o deposita sobre sua cabeça, como se o sufocasse. Contrarregra sai de cena. O apetite sexual de Homem vai esmorecendo, esmorecendo, até que ele não mais corresponde às carícias de Mulher. Ela insiste, tenta reanimá-lo, beija-o mais uma vez com volúpia, voracidade e agora também com desespero, mas tudo é em vão. Homem desaba sobre o corpo de Mulher, completamente impotente, como um menino indefeso. Contrarregra entra novamente em cena com expressão cínica, até mesmo sádica, com cartelas com frases e perguntas curtas. Homem e Mulher permanecem imóveis no centro do palco. Contrarregra se aproxima dos dois e exibe diretamente para o público a seguinte cartela: “Curtiu?”. Em seguida, Contrarregra exibe uma outra cartela diretamente para os espectadores: “Ela curtiu?”. E mais: “Ele curtiu?”; “Vocês curtiram?”. Contrarregra insiste com a cartela “Vocês curtiram?”, exibindo-a diretamente para todos os lados da plateia, para diferentes espectadores. Barulho de dedos digitando sobre teclas de computador. Contrarregra exibe nova cartela diretamente para o público: “Autonotícias”. Em seguida, uma outra: “Fui ao restaurante japonês e o sushi estava uma delícia”. Contrarregra exibe a cartela para diferentes pontos da plateia. E mais uma: “Adorei a festa surpresa. Amo os meus amigos”. Outra: “Parei de fumar há um mês. Comentários são bem-vindos”. Contrarregra guarda as cartelas e se aproxima de Homem. Retira lentamente o véu que encobre sua cabeça. Assim que Contrarregra termina de tirar o véu, Homem respira fundo e começa a tossir, como se estivesse sufocado, como se voltasse à vida após um prolongado afogamento. Mulher se espreguiça entediada. Contrarregra sai de cena. Homem: (à Mulher) Você quer sucrilhos? Mulher: (a Homem, gulosa) Vai à horta e pega umas ervinhas pra gente colocar no omelete. 27


Até então grudados no centro do palco, Homem e Mulher finalmente se descolam. Homem: (carinhoso) Já volto. Mulher: (afetada) Não demora. Homem sai de cena. Contrarregra entra com uma câmera num tripé e a coloca no centro do palco, apontada para Mulher. Iluminação muda e a atmosfera sugere agora um estúdio de televisão. Contrarregra pega uma cadeira e acomoda Mulher diante da câmera. Sentada, Mulher encara câmera como se tentasse decifrá-la. Contrarregra sai de cena. Entra Diretor de TV. Diretor de TV: (à Mulher, profissional) Pronta? Mulher movimenta a cabeça em sinal afirmativo. Diretor de TV: (didático, mas delirando) Em primeiro lugar, você vai passar por uma alcateia de editores- executivos. São falsos reis. Sem equipe. Sem verba. Sem orçamento. Sem a nobreza de um reinado de quem realmente manda. Mulher concorda com a cabeça. Diretor de TV: (didático, mas delirando) Todos vão rosnar pra você, mas não se deixe intimidar. A baba em todas aquelas bocarras não é mera ironia. Mas razão cínica em seu estado mais puro. Fruto da impotência e da ilusão de um poder que eles não têm. No fundo, sabem disso. Explosões no Oriente Médio convivem diariamente com essas abomináveis matérias de comportamento que infestam o jornalismo contemporâneo. É preciso aprender a fazer humor com cabeças de criancinhas sendo chutadas como bolas de futebol em atentados terroristas. O antro de razão cínica vai continuar espumando à sua volta. Sempre e sempre. Mas você precisa aprender a 28


proteger o seu idealismo mais sincero. Blindá-lo do desprezo dos covardes. De todos aqueles que têm medo de perder o emprego. Esses são os mais perigosos. Nefastos para quem tem algo a dizer ao mundo. Não se deixe abater. Siga em frente. Sempre em frente. Aprenda a driblar os interesses privados e também governamentais das empresas de comunicação. Há sempre, lá no fundo de você mesma, uma chama de idealismo na crença de que você pode, sim, derrubar um presidente corrupto. Denunciar uma falcatrua. Fustigar, moralizando, as maracutaias de um político filho da puta. Siga em frente. Você será explorada. Não terá mais finais de semana. Nem Natal, nem feriado. A ciranda frenética da mídia vai girar nos seus olhos... Nos seus neurônios... E o estresse talvez possa se tornar um câncer... Uma úlcera perfurada... Uma implicância crônica com toda a sua família, quando você toma um uísque depois de um exaustivo dia de trabalho, tentando relaxar um pouco. Mas o jornalismo se repete. É uma verdade que sempre atenua essa nossa sofreguidão que não tem fim. Seja esperta: também ouça a fala do mercado. Deixe que seus tentáculos se ramifiquem pelas áreas mais escondidas do seu idealismo, que também tem sede de glória. Você acabará colhendo frutos com essa lógica gananciosa. Você é você, mas você é também o próprio sistema. Você está no epicentro do poder... Do quarto poder... E tem que tirar proveito disso fazendo um bom trabalho. Contrarregra entra em cena e desvia a câmera para o público. Luz se acende na plateia. Mantendo a câmera no tripé, Contrarregra faz movimentos com a lente na direção dos espectadores, com uma coreografia que parece querer roubar a alma das pessoas. Diretor de TV: (didático, mas delirando, só que agora mais raivoso; à Mulher, mas dirigindo-se ao público, apontando para os espectadores) Repare bem esse horizonte de expectativas. Entenda a 29


curiosidade das pessoas. Suas mesquinharias. Volúpia por fofocas. Sacie essa necessidade com notícias embaladas com uma pitada de sensacionalismo. As pessoas precisam disso. Logicamente sem comprometer a qualidade da informação. Veja todas essas pessoas como árvores sendo tragadas pelas rotativas dos grandes jornais. Equipes de televisão espalhando plástico e poluição nos santuários ambientais de nosso planeta. (Tom professoral) As pessoas querem se ver, mas também precisam se rejeitar nas manchetes da mídia impressa e nas chamadas das reportagens televisivas. É preciso buscar alguma coisa macabra, mas sempre muito comezinha... Trivial... Banal... Para que as pessoas possam se identificar... Se sentir parte da notícia. No fundo, uma experiência vazia de vivência. Nosso trabalho é inflá-la de sangue, catástrofes e tragédias cotidianas. Em duas palavras: horror e identificação. Precisamos fazer cócegas no que está escondido no fundo da alma de todos esses infelizes sempre tão curiosos. A informação precisa entrar pelos poros, até provocar repulsa. Você é uma espécie de mascate numa feira de banalidades sangrentas. Olhe bem para essas pessoas: uma clientela faminta de palavras... Manchetes... Headlines de impacto. Preencha as hesitações e, principalmente, os temores mais inconfessáveis de todas essas pessoas. O pânico absoluto diante dos próprios pensamentos. Arrebate a atenção de todos. Conquiste elevados índices de audiência. Ouça os ecos do acaso. Na mídia, o destino não tem nada de cego. É uma besta com mil olhos. Um oráculo pontilhado de monitores de vigilância... Seduzindo nossa vaidade... Potencializando nosso narcisismo... Mas depois nos atirando na vala comum da alienação. Por tudo isso, construa signos. Matérias exclusivas. De preferência, assinadas por grandes nomes. O mundo quer

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grifes. Sinal dos novos tempos. Cegas serão todas essas pessoas que não souberem decifrar suas mensagens de desespero... De impotência... Mas também de um idealismo que não pode morrer jamais. É isso que nos move. Contrarregra entra em cena com um bife sangrento e o coloca sobre o rosto de Diretor de TV, como uma venda em seus olhos. Dois filetes de sangue escorrem pelo rosto de Diretor de TV, que, perplexo, tenta encarar novamente o público em sua cegueira sanguinolenta. Em vão. Tempo. Contrarregra conduz Diretor de TV para fora de cena, que caminha como um cego. Tempo. Contrarregra e Diretor de TV desaparecem. Mulher encara o público. Mulher: (ao público, fazendo uma espécie de confissão) Acordo. Finalmente acordo. Você sempre me desperta com seu hálito de alho. Eu me levanto e contemplo minha glória no espelho do banheiro. Penso em me maquiar, mas ainda é muito cedo. Vou ficar me sentindo com cara de múmia. Tenho certeza disso. A água da torneira espuma como as ondas do mar. Sempre gostei de praia. Preciso do sol pra me sentir viva. Sinto-me bela e feliz bronzeada. Por que uma simples peixada no litoral é um programa tão menor pra você? Por que a vida e a morte não podem ser apenas um paninho de crochê sendo desfiado pelas brisas do tempo? Meu tempo é brisa. Não vim ao mundo pra desafiar vendavais. Homem entra em cena com um punhado de ervas colhidas na horta. Mulher: (ao público, dirigindo-se a Homem, fazendo uma espécie de confissão) Leveza. Isso não te pertence. Não faz parte da sua natureza. Da sua prepotência intelectual. No fundo, a verdadeira máscara da sua impotência. Lembro de tantos sorrisos... Bocas de machos que me estenderam tapetes vermelhos com seus desejos sinceros... Desejos explodindo de tanta virilidade... Uma potência 31


de um lado que me falta... Sou fêmea até o fundo da alma... E atirei tudo isso ao mar por respeito a você. Ao nosso projeto de vida. Sem a menor esperança de que todas essas mensagens um dia retornariam para mim. (Tom amargo) Nunca ninguém apareceu pra me socorrer da sua presença. Homem ouve o depoimento de mulher com tristeza e impotência. Mulher: (ao público, dirigindo-se a Homem e fazendo uma espécie de confissão) Sua rejeição a mim... Toda vez que o seu estresse se deixa inflamar pelo álcool... E eu tentando conciliar as coisas... Engolindo a amargura em pílulas de medicamentos que jamais irão me acalmar. Minha natureza é simples. Não tenho nada a ver com você. Contrarregra entra em cena e exibe cinicamente duas cartelas para o público: “Ninguém curtiu” e “Audiência zero”. Contrarregra sai de cena. Homem: (à Mulher, preocupado) Tá precisando de alguma coisa? Perdeu o apetite? (Tom exagerado, tentando animá-la) Tô faminto. Mulher suspira fundo, engole a tristeza e tenta se reanimar. Tempo. Subitamente, Mulher desvia a câmera na direção do próprio rosto e a encara. Mulher: (irritada, à câmera) Por que um final de semana no litoral não pode ser notícia? Mulher coloca a mão esquerda na orelha esquerda, ouvindo uma resposta de um ponto eletrônico. Mulher: (encarando a câmera, mas falando com um ponto eletrônico, com a mão na orelha) Por que não pode? (Breve pausa, raivosa) Dane-se a audiência! (Breve pausa) Por que as coisas não podem ser mais simples? (Breve pausa) Por que você quer agora transmitir a previsão do tempo? (Breve pausa, furiosa) 32


Fodam-se todos os engarrafamentos! Fodam-se todas as marginais! Fodam-se as enchentes! Fodase a poluição! Foda-se o ar seco! Fodam-se todas as ressacas... Os assaltos... Os assassinatos... (Tom irônico, desviando os olhos da câmera para Homem, mas falando com o ponto eletrônico) Só preservem os crimes passionais. Esses têm raízes profundas. Contrarregra entra em cena com uma mesa. Sobre ela, uma imensa faca e um bife sobre uma tábua de carne. Contrarregra começa a picotar o bife com uma coreografia exata e ameaçadora, mas ao mesmo tempo debochada. Tempo. Homem se aproxima de Mulher e começa a passar suavemente as ervas sobre o seu rosto. Mulher sente o perfume dos temperos e agarra um punhado verde com necessidade, como se aquele aroma pudesse tirá-la do delírio em que se encontra. Mulher leva as folhinhas para bem perto do próprio nariz e cheira profundamente, com volúpia e prazer. Tempo. Homem deposita delicadamente o que restou das ervas sobre o corpo de Mulher e vai pouco a pouco se aproximando da câmera. Homem aponta a lente para o próprio rosto. Contrarregra sai de cena e Mulher continua cheirando as ervas com deleite e necessidade. Homem então desvia os olhos para o público. Homem: (encarando o público, mas dirigindo-se à Mulher, fazendo uma espécie de confissão, machista) A manhã persiste num tesão de mijo que faz com que eu me sinta mais uma vez adolescente. Somos sempre jovens ao despertar, mas não tenho vontade de oferecer essa potência a você. Prefiro me masturbar, como um menino, no banho. Sonhar com a puta que mora escondida debaixo da pia. E que me faz o boquete da maneira que eu gosto. Só ela consegue me relaxar debaixo do chuveiro. (Tom, filosofando, ao público, mas dirigindo-se à Mulher) Virilidade é posse. É conquista. É entrar rasgando. Sem pedir licença. É egoísmo. Prazer solitário. Sem nenhum tipo de preocupação com o seu orgasmo múltiplo. Foda-se seu ponto G! Meu desejo é uma glande exposta. Um totem de superioridade. A mais

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fiel tradução do que todas vocês chamam de símbolo fálico. Meu pau, um ser que me habita. Convive comigo. Na alegria e na tristeza. E me faz flutuar com fantasias em carne viva. (Tom repulsivo, ao público, mas dirigindo-se à Mulher) Te conquistar pra quê? Não se conquista o que já está sepultado no tédio e na acomodação. Carinho e amizade. Ainda sobrevivem. Mas isso não me move. Papai e mamãe. E aí a puta vem em meu socorro. Com suas carícias de saunas e cremes escorregadios. E não me pede nada em troca. Somos somente eu e a fantasia da vez. Posse, potência e putaria. É o tripé da minha prepotência mais sincera. E ela geme. Geme dissimulada. Sua mentira é explícita. Uma gema de falsidade. Escondida nas partes íntimas de todas as prostitutas que sempre me acolheram com tanta boa vontade. Contrarregra entra em cena com mais uma cartela: “Broxou ou não broxou?” Ele a exibe para o público. Tempo. Homem desvia os olhos do público e olha novamente a câmera. Mulher o observa e, de quando em quando, cheira as ervas. Homem coloca a mão esquerda na orelha esquerda, agora também falando com um ponto eletrônico. Homem: (à Câmera, mas falando com o ponto eletrônico) Não gostaram?! Como não gostaram?! (Breve pausa) A audiência caiu?! (Tom, concordando) Tudo bem. Não vai acontecer mais. (Breve pausa) Não, não posso aceitar. Não é uma questão de grana. (Breve pausa) Já deu o que tinha que dar. Por favor, não insista! (Breve pausa) Não tem mais volta para mim. Homem encara a câmera como se contemplasse a própria imagem na lente do equipamento. Tempo. Contrarregra pega a câmera e o tripé, e tira da frente de Homem, que fica encarando o vazio. Contrarregra sai de cena com a câmera e o tripé. Mulher: (simpática e graciosa, a Homem) Vamos fazer com alecrim? Homem: (surpreso, à Mulher) Será que fica bom?

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Mulher: (conciliadora) A gente pode experimentar. Se você quiser, eu posso cozinhar. Homem: (carinhoso) Vou preparar um café da manhã maravilhoso pra você. Deixa comigo. Mulher: (cúmplice) Vamos fazer um brunch? Com tudo o que a gente tem direito? Homem: Uma vez, na França, comi ovos com caviar. Uma delícia. Era o charme do hotel: salgar os ovos com caviar de esturjão do mar Cáspio. Inesquecível. Mulher: (afetada) Ai, amor, tô ficando com água na boca. Vamos fazer waffle? Ou você prefere panqueca? Tem corn syrup na despensa. Luzes se apagam.

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CENA 3 Barulho de televisão e rádio ligados. Locutor narra notícias quase sempre ininteligíveis, como um mantra de manchetes e reportagens invadindo a cena. Projeção de imagens extraídas de páginas de sítios jornalísticos na internet. Tempo. Luzes vão se acendendo pouco a pouco e vemos Homem e Mulher na cozinha da casa, preparando um banquete. Homem está fritando ovos no fogão e Mulher corta temperos sobre uma tábua de madeira com um imenso facão. Tempo. O barulho de televisão e de rádio esmorece, permanecendo bem baixinho no fundo da cena, e as projeções de imagens extraídas da internet desaparecem. Mulher para de cortar os temperos, ergue o facão e encara a lâmina afiada. Mulher: (transmitindo uma notícia, raivosa e debochada) Extra! Extra! Parem as máquinas! Mulher traída decepagenitália do marido com um serrote. Homem: (transmitindo uma notícia, provocando Mulher respondendo à altura; cozinhando) Ninfomaníaca assassina agia como “viúva negra” de maridos milionários. Mulher volta a cortar os temperos como se decepasse o membro de Homem. Mulher: (transmitindo uma notícia, provocando Homem e cortando temperos) Diretor de redação é demitido por justa causa. (Tom debochado) Um escândalo. Fritaram o pobre coitado sem piedade. Homem olha para a frigideira e depois encara Mulher com raiva. Homem: (interrompendo o jogo, aborrecido e raivoso) Não gosto desse tipo de brincadeira. Mulher para de cortar os temperos, larga o facão e se aproxima de Homem, que continua cozinhando. Mulher começa a acariciar Homem.

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Mulher: (bolinando Homem, irônica e, ao mesmo tempo, sensual) Meu menininho não gosta de fritura. Tem medo de fazer pipi na cama? Carente e necessitada, Mulher começa a acariciar o pênis de Homem, tentando excitá-lo. Homem: (cozinhando e tentando se esquivar, sério) Para com isso. Não é o momento. Mulher se afasta furiosa e volta a cortar temperos com o facão. Mulher: (sádica) Mundo cão. Qual é a manchete do dia? O que você tem a me oferecer pra chamada de capa? Homem: (debochado e também sádico) Envelhecimento precoce atinge a maioria das mulheres. Esclerose múltipla. Lúpus. Reumatismo crônico. Arteriosclerose. Mal de Alzheimer. Numa única palavra: velhice. Mulher pega um imenso pepino, coloca sobre a tábua de madeira e faz uma espécie de coreografia com o facão, como se fosse um sushi-man, com uma cadência quase que masturbatória. Mulher: (cortando o pepino, sensual e debochada) Ponto G. Clitóris. Grelo. Vulva. Trompas de falópio. Ovário. Endometriose. (Breve pausa) Pau. Glande. Saco escrotal. E, principalmente, uma consulta urgente ao proctologista. O teste do dedo gigante. Mulher provoca um estrondo com o facão sobre a tábua de madeira. Homem se encolhe como se tivesse levado uma dedada no ânus. Subitamente, para de cozinhar. Homem: (irritado e incomodado) Ai! Para com isso! Mulher larga o facão e se aproxima de Homem. Mulher: (arrependida e carinhosa) Vamos parar com isso? Homem: (chateado, como um menino) Você que começou. 37


Contrarregra entra em cena com sua coreografia expressionista estilizada e pendura uma forca na cozinha. Homem e Mulher olham assustados para a forca. Contrarregra sai de cena. Mulher: (lúdica, tentando aliviar o clima pesado que se instaurou na cozinha) Vamos fazer a nossa reunião de pauta? Homem: (brincando) Mas eu sou o chefe de reportagem. Mulher: (contrariada) E eu vou ser o quê? Estagiária? Vou ter que fazer rádio-escuta? (Tom, reclamando) Você é sempre o chefe e eu, repórter Z. Não é justo. (Tom veemente) Hoje sou eu que vou fazer a edição. Quero escolher as fotos. Fazer a diagramação. Os títulos. As chamadas de capa. Homem: (carinhoso) Tá bom. Eu deixo. (Tom professoral, advertindo) Mas só hoje. Você ainda não tem experiência suficiente pra assumir cargo de chefia. Mulher: (ofendida) Não precisa humilhar. (Tom seguro) Sempre tive faro pra notícia. Tenho animalidade jornalística. Já fiz muito plantão de sequestro. Sei tudo sobre todas as principais chacinas de nosso País. É a minha especialidade. Mundo cão. Vida real. (Tom, gabando-se) E tenho os meus contatos na polícia. Um bom jornalista jamais revela as suas fontes. Homem: (altivo) Você aprendeu muito comigo. Tem que admitir. Mulher: (desconversando) Vamos ao trabalho! Homem: (entrando no jogo, autoritário) O deadline tá próximo. Pra ontem. Tá me entendendo? Aqui tudo é pra ontem. Homem e Mulher pegam panelas, tigelas, temperos, legumes, ovos, linguiças, salsichas, apetrechos de cozinha, abrem a geladeira e começam a preparar diferentes pratos e iguarias. Mulher: (cozinhando, autoritária) Você agora é meu subordinado. Vai lá na publicidade e vê o que tem de anúncio. 38


Homem: (cozinhando) Já vi. Tá fraco. Só anúncio da casa. Se você quiser, a gente pode derrubar. Mulher: (entusiasmada, cozinhando) Então derruba tudo. Capa limpa. Vamos rasgar uma manchete de cabo a rabo na página. Homem: (advertindo, cozinhando) São os anúncios que pagam o seu salário. Não devia comemorar. Mulher: (entusiasmada, desconversando e cozinhando) Como vamos abrir a edição? Homem: (cozinhando) Você é que está editando. Mulher: (séria e decidida, cozinhando) Não tem saída. As pessoas gostam de histórias trágicas. Isso vende. Atrai os anunciantes. Homem: (ponderando, cozinhando) Você não prefere abrir com uma matéria de comportamento? As pessoas também gostam de se ver na mídia. É uma questão de identificação. Mulher: (indecisa e irônica, cozinhando) Não acha meio sem graça? Abrir a nossa edição com gente civilizada recolhendo cocô de cachorro com saco plástico? O politicamente correto está acabando com o jornalismo. Uma praga. A mídia é o alarme da sociedade. Precisa ser explosiva. Homem: (professoral, cozinhando) O jornalismo é uma reserva moral desse mundo corrupto em que vivemos. Mulher: (carinhosa, cozinhando e rompendo o jogo por instantes) Amor, adoro quando esse seu idealismo vem à tona. Você fica tão macho. Tão charmoso. Você tem tanto talento.

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Homem: (sério, altivo, professoral, não querendo quebrar o jogo, cozinhando) O jornalismo não é um só. São muitos. Por um lado, uma maravilhosa escola da vida. Por outro, um antro de oportunistas vaidosos. Idealismo e arrivismo. Convivem lado a lado. Mas, com toda certeza, um território moral regido pela ética. Mulher: (pouco se lixando, cozinhando) Amor da minha vida, tudo é marketing. Principalmente na mídia. Você acabou de dizer: quem paga o nosso salário é a publicidade. Tá tudo misturado. (Tom autoritário) E hoje aqui quem manda sou eu. Não quero nenhuma matéria de comportamento na minha edição. Quero jogar fora todos os chavões do marketing social, do marketing ambiental... (Tom delirante) Quero editar a vida nua e crua. Em carne viva. Como uma mulher menstruada escorrendo como fonte de vida. Uma vida interrompida que precisa ser noticiada. Vou abortar todos esses cronistas... Todas essas grifes e todos esses especialistas que infestam as páginas dos nossos jornais. Quero a notícia em seu estado mais puro. (Tom: transmitindo uma notícia, delirando e provocando Homem novamente) Extra! Extra! Mulher degola o marido que a trocou por uma punheta no banheiro da suíte do casal. Homem para de cozinhar. Homem: (assustado, mas tentando se controlar) Pega leve. Você é quem manda, mas pega leve. (Tom irônico e ardiloso) Humilha, mas com carinho. Mulher para de cozinhar e pega punhados de sal com as duas mãos. Ela ergue os braços e deixa o sal cair lentamente por entre os dedos. Mulher: (delirando, cruel) O sangue é a essência da vida. É o sangue que bombeia as fantasias do teu pau. É o sangue que te mata de pressão alta. Enfarte. Derrame.

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Contrarregra entra em cena com uma guilhotina. Homem olha assustado para a guilhotina, enquanto Mulher, em seu delírio, pela primeira vez, sente-se atraída por Contrarregra. Mulher se aproxima de Contrarregra e tenta seduzi-lo. Homem observa a cena com medo e perplexidade. Contrarregra observa Mulher com frieza. Mulher: (sensual, a Contrarregra) Nós já vamos fechar a edição. Não precisa se preocupar. Somos profissionais. Contrarregra não esboça nenhuma reação. Homem continua observando a cena com medo e perplexidade. Mullher: (sensual, a Contrarregra) Já fizemos a diagramação. Já escolhemos as fotos. Só estávamos discutindo como abrir a edição. Debate saudável. Breve pausa. Mulher olha para Contrarregra como se o filmasse em detalhes. Mulher: (carinhosa, carente, a Contrarregra) Seja você quem for, preciso da sua companhia. Em tantos momentos, meu único parceiro na solidão. Homem: (interrompendo, profissional, à Mulher) Pra ontem. Não temos mais tempo. Mulher vai lentamente saindo do delírio e do torpor com que encara Contrarregra e volta a cozinhar. Contrarregra sai de cena. Homem pega um copo d’água, coloca um pouquinho de açúcar e mexe com a colher. Mulher continua cozinhando, desolada, mas o observa com o canto dos olhos. Homem se aproxima e oferece o copo d’água açucarada à Mulher. Homem: (carinhoso, oferecendo o copo d’água à Mulher) Toma. Tudo vai dar certo. Vamos conseguir fechar a edição a tempo. Mulher para de cozinhar e pega o copo. Quando ela quase começa a beber, Homem grita, interrompendo-a.

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Homem: Espera. Quase ia esquecendo. Homem pega uma garrafa de groselha e derrama um pouquinho dentro do copo. Mulher bebe a água avermelhada com uma volúpia vampiresca. Mulher: (aliviada, saindo do delírio) Ai, que delícia! Já tô mais calma. Pode ficar tranquilo. Homem: (entrando no jogo novamente) Pronta pra manchete principal? Mulher: (mais animada, brincando) Demorou. Homem: (animado) Decidiu? Mulher: (profissional, séria) Já verificou se morreu alguém importante? Não quero editar com o maior carinho e depois ter que mudar tudo em cima da hora. Homem: (surpreso) Necrológio? É isso que você quer? Mulher: (autoritária) Mandei você verificar. Homem: (debochado) Minha querida, eu sempre te disse: o jornalista só é solidário na morte. (Tom profissional) Não posso fugir das minhas obrigações. Já volto. Homem sai de cena. Mulher se aproxima dos espectadores e se dirige diretamente a eles. Mulher: (melancólica e, ao mesmo tempo, profissional, ao público) Por fim, a despedida. Agora só me resta o adeus. Por uma boa causa. Mulher se afasta e caminha pela cozinha, retirando as iguarias já prontas de diferentes compartimentos: um bolo macabro, um peru assado em sangue, panquecas que mais parecem pedaços de peles enrugadas, pavês de pelos que transbordam de seus recipientes. 42


Mulher: (ao público, oferecendo as iguarias) Meu banquete de notícias pra saciar o apetite de todos vocês. Mesmo que seja pelo caminho da fatalidade, a glória atenua a fisgada da dor. Tudo isso aqui é o meu alento de luz. Um trampolim de glamour final. A última chama. O derradeiro olhar de empáfia. Que só se completa no olhar de todos vocês. (Breve pausa) Vejam esse meu gesto, não como uma atitude desesperada, mas como uma doação. Um impulso de generosidade. Eu me entrego plena, como oferenda, à curiosidade de todos vocês. Matem-me. Julguem-me. Falem mal, mas falem de mim. Dilacerem o meu corpo com o sorriso metálico de todas essas câmeras ocultas. E bebam a seiva da minha vida que se apaga. Contrarregra entra em cena empurrando Homem. Mulher se assusta. Contrarregra ensaia para Homem uma coreografia cruel e opressiva. Homem se encolhe amedrontado diante dos golpes estilizados de Contrarregra. Decepcionada, Mulher caminha pela cozinha e retira de um compartimento um rolo de amassar macarrão. Mulher aponta e ameaça Homem com o utensílio de cozinha. Homem se encolhe mais ainda e desaba no chão. Contrarregra sai de cena. Mulher: (decepcionada e cruel, a Homem) Você ia fugir? Não posso acreditar. A sua covardia não tem limites. A sua impotência é esse medo que congela as suas partes baixas. E turva a sua visão, te afastando dos seus compromissos de marido. (Devastada e furiosa) Mais uma vez, você não cumpriu o nosso trato. Mulher caminha pela cozinha e encontra o facão com o qual cortava temperos. Pega o facão e se aproxima de Homem, que continua caído no chão assustado. Homem: (assustado e humilhado) Não precisamos fazer necrológio de ninguém importante. O espaço da notícia é todo nosso. Sem concorrência. A divulgação será imensa. Nada vai ofuscar o nosso brilho. 43


Mulher: (confusa e furiosa) Não posso mais confiar em você. Homem se ergue e subitamente se apruma, mostrando-se novamente altivo e decidido. Encara Mulher e oferece os pulsos a ela. Homem: (desafiando Mulher) Acaba logo com isso. Mulher corta os dois pulsos de Homem com o facão e duas imensas fitas vermelhas caem do teto do teatro, cada uma de um dos lados do palco. Iluminação muda completamente. Homem se contorce de dor. Tempo. Mulher larga o facão no chão, ao mesmo tempo, horrorizada e fascinada. Contrarregra entra em cena com duas outras fitas vermelhas, só que bem menores, costuradas a dois elásticos também vermelhos, e os coloca ao redor dos punhos de Homem. Homem vai lentamente deixando de se contorcer de dor e pouco a pouco se apruma furioso. Luz muda e se acende na plateia. Homem encara os espectadores ao mesmo tempo em que chicoteia o chão com as duas fitas vermelhas acopladas aos seus punhos, como um domador diante de feras selvagens no picadeiro de um circo. Homem chicoteia várias vezes o chão, sempre encarando o público com fúria, desprezo e indignação. Assustada, Mulher cai desmaiada no chão. Homem: (ao público, de quando em quando, chicoteando o chão) Eu deploro a curiosidade de todos vocês. Deploro esse olhar pornográfico, sempre ávido por “barracos” e baixarias. Vocês são a verdadeira favela do mundo em que vivemos. A indigência moral. A miséria ética. A espiadela covarde. A torcida pelas picuinhasue fustigam e destroçam nossas maiores virtudes. (Breve pausa) Mesquinharias e frivolidades. É disso que vocês gostam? Quanto mais baixo, maior a audiência? É isso? (Breve pausa) Deploro a vilania dessa passividade fútil. Deploro todo esse interesse momentâneo pela vida alheia. O que restou dos sonhos de todos vocês? Homem encara o público com raiva e desprezo. Homem: (ao público, como um mestre de cerimônias num circo, debochado) Sorriam, vocês estão sendo filmados! 44


Homem desvia o olhar para o corpo de Mulher caído no chão. Tempo. Volta a encarar o público. Homem: (ao público, apontando o corpo de Mulher, carinhoso e numa espécie de lamento) Ali jaz um corpo que um dia amei com todas as minhas forças. Amei essa mulher como uma parte de mim. Só que ela se perdeu em mensagens. Com limitação de caracteres. Uma escola de desatenção pro nosso amor. Homem se aproxima de Mulher, ajoelha-se ao lado do corpo e cobre o seu rosto com as fitas vermelhas acopladas aos próprios braços. Mulher vai, pouco a pouco, despertando. Os dois se abraçam e se deitam no chão. Mulher se acomoda sobre corpo de Homem. Começam a fazer amor. Tempo. Contrarregra entra em cena com dois véus pretos e os coloca sobre os rostos de Homem e de Mulher, sufocando-os lentamente. Contrarregra sai de cena. Os movimentos do ato sexual de Homem e Mulher vão pouco a pouco esmorecendo como gestos involuntários dos dois corpos, que mais parecem espasmos, até que os dois morrem, como num orgasmo final compartilhado. Iluminação muda. Começamos a ouvir tambores marciais, como num fuzilamento. O som dos tambores vai crescendo, crescendo, e Contrarregra entra pela última vez em cena, com uma câmera na mão, como se fosse uma metralhadora, apontada para o público. Contrarregra faz uma panorâmica (em movimento horizontal) bem lenta dos espectadores. Tempo. Palco em trevas. Barulho de metralhadoras disparando, diversas vezes, rajadas e mais rajadas de tiros. Tempo. Os disparos vão esmorecendo e começamos então a ouvir edição de som com ruídos extraídos de computadores, sonoridades da internet, locuções radiofônicas e televisivas, além de barulho de rotativas de grandes jornais e revistas. Edição de som com ruidagens de veículos de comunicação vai crescendo, crescendo, até chegar a um paroxismo que culmina num tiro, um estrondo, a explosão de uma bomba. Fim. 45


Prefeitura de São Paulo Fernando Haddad Secretaria de Cultura Juca Ferreira Centro Cultural São Paulo | Direção Geral Ricardo Resende Divisão Administrativa Gilberto Labor e equipe Divisão de Curadoria e Programação Giuliano Tierno de Siqueira e equipe Divisão de Acervo, Documentação e Conservação Heloisa M. P. de Abreu Meirelles e equipe Divisão de Bibliotecas Waltemir Jango Belli Nalles e equipe Divisão de Produção e Apoio a Eventos Luciana Mantovani e equipe Divisão de Informação e Comunicação Gustavo Wanderley e equipe Divisão de Ação Cultural e Educativa Giuliano Tierno de Siqueira e equipe Coordenação Técnica de Projetos Priscilla Maranhão e equipe Fome de Notícia | Espetáculo | Autor Evaldo Mocarzel Diretor Maurício Perussi Elenco João Attuy, Marco Biglia e Sofia Boito Cenógrafo Amanda Antunes Figurinista Bárbara Wada Iluminação Grissel Piguillem Sonoplastia Maurício Perussi e Miguel Caldas Fome de Notícia | Publicação | Curadoria de Teatro Kil Abreu Diretor da Divisão de Informação e Comunicação Gustavo Wanderley Revisão Paulo Vinício de Brito Projeto Gráfico Solange Azevedo Impressão Gráfica do CCSP Assessoria de Imprensa do Centro Cultural São Paulo Juliana Lazarim, Nelson de Souza Lima, Zaira Hayek e Alvaro Olyntho (estagiário) (imprensaccsp@prefeitura. sp.gov.br) distribuição: gratuita, no CCSP tiragem: 2000 exemplares São Paulo, 2013

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