Plaquete teatro mantenha fora do alcance do bebe

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Mantenha fora do alcance do bebĂŞ Silvia Gomez

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Mantenha fora do alcance do bebĂŞ Silvia Gomez

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apresentação

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NÃO HÁ NÍVEIS SEGUROS PARA O CONSUMO DESTAS PALAVRAS por Roberto Alvim

Conheci a dramaturga Silvia Gomez em 2006 quando ela ainda fazia parte do seleto Círculo de Dramaturgia do CPT – Centro de Pesquisa Teatral sob a coordenação de Antunes Filho. A atriz Juliana Galdino (que nesse período trabalhava com o Antunes) me mostrou o primeiro texto de Silvia: O CÉU CINCO MINUTOS ANTES DA TEMPESTADE.

“Preste atenção nessa menina”, me alertou Juliana; “Existe um talento genuíno – e perturbador – aqui...”. Li a peça e recordo de ter me sentido instantaneamente feliz pois é raro nos depararmos com dramaturgias que se inscrevem no campo da arte; pois é raro nos vermos imersos em uma escrita pulsiva, vertiginosa, desestabilizadora; pois é raro testemunharmos a eclosão de uma singularidade (e o que é a História da Arte senão a trajetória errática de eclosão imprevisível de singularidades?). O texto foi encenado logo depois e teve uma imensa reverberação de público e crítica além de indicações para diversos prêmios permanecendo por muitos meses em cartaz e excursionando pelo país. Algo foi percebido por todos os que dialogaram com aquela obra: uma nova/outra voz havia surgido na dramaturgia contemporânea brasileira; uma voz que instaurava um planeta estético desconhecido, insuspeitado – e absolutamente vigoroso. Em uma das cartas escritas por Vincent Van Gogh para seu irmão Theo o artista faz uma declaração luminosa: “Theo, eu estou começando a pensar como pintor...”. O que Van Gogh queria dizer é que, até então (e ele já havia pintado uma série de obras até aquele momento), ele pensava em termos literários: 5


suas obras eram narrativas. Finalmente percebera que era imprescindível conquistar uma instância de pensamento autônomo em pintura, isto é: que era preciso inventar/descobrir sua Pictórica. A declaração de Van Gogh se relaciona com uma característica que me chamou a atenção desde a leitura da primeira obra de Silvia: ela pensa como dramaturga. Não nos diz nada (haja vista que a arte não é a seara dos discursos diretos) mas nos proporciona experiências estéticas de infinitos e polissêmicos desdobramentos através de suas arquiteturas linguísticas. Escrita rigorosa, elaborada não apenas para significar (instância comunicacional) mas também para instaurar diferentes musicalidades e ritmos que nos atravessam sensivelmente com potência transfiguradora (instância poética). (Silvia Gomez escreve com os ouvidos, pois sabe que o teatro não é sobre as palavras, mas sobre a FALA humana.) ESCRITURA que se desenvolve não por escaletas baseadas em estratégias formais reconhecíveis mas sim por acoplamentos pulsivos do desejo na criação surpreendente de signos, articulações e fluxos de imaginário (não pensa – neuroticamente – no que ela, a autora, “fará com a obra”, mas sim no que “a obra fará com ela”); ESCRITURA que se entrelaça em múltiplos vetores não como representação simbólica de sentidos estabelecidos mas como USINA de sensações inomináveis (isto é: não-catalogadas pela cartografia da cultura-de-massa) nos permitindo vivências indizíveis e estranhamente constitutivas sobre as quais torna-se impossível discorrer depois. O presente livro contém a publicação do mais recente texto da autora: MANTENHA FORA DO ALCANCE DO BEBÊ. A peça principia com uma conversação de tom aparentemente prosaico o que entra em contraste com a terrível distopia que vai se desenhando inexoravelmente: estamos em um lugar no qual nossos piores medos (que são também nossos desejos mais inconfessáveis)

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se formalizam com assustadora naturalidade: um bebê é adotado/adquirido/comprado segundo especificações determinadas pela mãe/cliente que exige, inclusive, que a criança já venha com formação completa – eximindo-a da trabalhosa tarefa de educar uma criança em um mundo tão complexo quanto o nosso. A maternidade é problematizada cruelmente (no sentido Artaudiano) à medida que se apresenta não como desejo, mas como norma. Mesmo as emoções humanas mais nobres são encaradas como valores-agregados ao produto-bebê e é então que, repentinamente, nos percebemos afogados em um medonho comercial bancário de previdência privada... Tudo e todos: produtos na prateleira do hegemônico supermercado universal – nosso Vacuum Plaza. (Seria tão fácil julgar a mãe/cliente como “louca” e então defenestrá-la; mas a autora nos nega esse escapismo à medida que desenha nesta personagem um dos mais pungentes retratos do homem de nosso tempo já configurados pelo teatro neste século XXI.) Trata-se, este texto, de uma pergunta urgente acerca de uma PÓSHUMANIDADE que já se insinua em nosso modus vivendi contemporâneo: afinal, é nisso que estamos nos transformando? Podemos chamar de “progresso” a esta lógica-de-relações, a este estado-de-coisas? É possível encarar esse destino com naturalidade? E se a resposta for “não”, então porque a peça nos soa tão familiar, tão desagradavelmente próxima? A genialidade de Silvia Gomez é a de nos conduzir por estes descaminhos (que vão se desestruturando progressivamente e presentificando uma zona de instabilidade assustadora desde a entrada do personagem masculino até o inquietante desfecho catastrófico) não com um tom acusatório, mas sim com a compreensão profunda oriunda da compaixão que sente por suas personagens.

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MANTENHA FORA DO ALCANCE DO BEBÊ seria uma obra de dilacerante tristeza se não fosse um clamor terno e apaixonado pela transfiguração radical de toda e qualquer anodinia, conformismo e normatização; seria uma obra de um pessimismo sem saída se não fosse um convite para que habitemos a existência de modo liberto do circuito castrador que a cena nos desvela. Por fim, há que se louvar a coragem de problematizar de forma tão aguda todas as balizas que norteiam o senso-comum; pois esta peça – não se enganem! – é sobre cada um de nós. (Há um lobo no palco caminhando de um lado para o outro durante toda a ação. Pensem sobre ele porque aquele lobo está também aqui agora.)

(Roberto Alvim é dramaturgo, professor de Artes Cênicas e diretor da companhia Club Noir, sediada em São Paulo)

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Mantenha fora do alcance do bebĂŞ

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Personagens Uma Mulher (1). Ela é elegante em seu vestido vermelho de bolinhas. Está sempre se coçando. Outra Mulher (2). Usa um terninho sem personalidade. Parece mais velha do que de fato é. Rubens, marido da Mulher 1. Veste calça social e colete sobre camisa — sua roupa lembra modelos antigos de alfaiataria. Já passou dos 50 anos. É alguém exausto. Há um lobo amarrado em um dos cantos (ou um lobo holográfico circula pelo palco).

Cenário Uma espécie de escritório de uma repartição pública. Há uma mesa e três cadeiras, um telefone separado ao fundo. Vemos ainda um orelhão num plano paralelo (Rubens permanece de pé ao lado dele durante toda a Cena 1, como se esperasse seu momento de entrar em cena). Atrás da mesa, a Mulher 2 entrevista a Mulher 1. No início, a entrevistadora raramente desvia os olhos da papelada (sem prestar atenção na outra).

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Cena 1

As duas estão sentadas, num silêncio constrangedor. A Mulher 2 analisa friamente o monte de papéis espalhados sobre a mesa. Nunca olha para a outra. Ouvimos longe uma gargalhada contagiante e gritinhos de bebê. A Mulher 1 se levanta de repente e vai até a porta de entrada para escutar (tenta descobrir de onde vem o som). Mulher 2 (sempre sem tirar os olhos da papelada): Por favor, senhora. Mulher 1: Está ouvindo? Mulher 2: Sente-se. Vamos começar. Mulher 1: Uma risadinha gorda. Mulher 2: Por favor. Mulher 1: Não te perturba? Mulher 2: Temos 45 minutos. Mulher 1 volta a se sentar. Silêncio e constrangimento. Tempo. Mulher 1 (tentando romper o silêncio, puxa qualquer assunto): Ele já vem com roupinhas? Mulher 2: Como? Mulher 1: Ele já vem com roupinhas? Mulher 2: Não. Mulher 1: Por que não? Mulher 2: Porque é um bebê. Mulher 1: Ah, sei. (pausa) Eu estava brincando, era para você rir, você não vai rir? Mulher 2 (sem prestar atenção ao que ela diz): Então, você é estilista, você faz roupas, é isso, a sua profissão? Mulher 1: Eu desenho, quer dizer, eu acho que eu desenhava as roupas para as pessoas, sabe, acho que é isso que eu fazia. 12


Mulher 2: Fazia? Mulher 1: É, eu estou dando um tempo. Mulher 2: Um tempo? Mulher 1: É, mas não se preocupe. Mulher 2: E qual é a sua fonte de renda, quero dizer, se você está dando um tempo, como você diz, então você está vivendo de quê? Mulher 1: Ah, isso... Não se preocupe, sabe, pode pesquisar meu nome, meu nome aí na ficha, pode pesquisar na internet se quiser também, você vai entender o que eu estou dizendo. Mulher 2 fica um tempo absorta, folheando a papelada sem dizer nada. Longo silêncio constrangedor. Outra risada de bebê ecoa. Mulher 1 faz menção de levantar-se, mas desiste. Mulher 1 (num impulso, tenta romper o silêncio e fala qualquer bobagem): Então, ele já deve vir com alguma roupa, eu imagino. Mulher 2 não responde. Outra risadinha de bebê. O som parece perturbar a Mulher 1, que começa a falar qualquer coisa por impulso. Mulher 1: Uma roupa qualquer, algo bem combinado... Não avisaram a ele? Mulher 2 (respondendo, enfim): Como é?

Longe, um bebê existe. Mulher 1 (perturbada pelo som): Ele já vem com roupinha? Mulher 2: Ah, sim, quero dizer, ele virá vestido com alguma coisa, você sabe, qualquer coisa que encontrarem. Mulher 1: Vai ser homem, não é? Mulher 2: Por favor, mal começamos. Mulher 1: Pode ser uma blusa listrada com uma calça lisa. Tons de caramelo.

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Mulher 2: Como? Mulher 1: A calça deve ter o mesmo tom das listras da blusa, fica bom assim. Se ele gostar, pode calçar tênis, eu não me importo. Mulher 2: Os bebês não se vestem sozinhos. Mulher 1: Ele não acompanha uma mala? Mulher 2: O sexo, isso ainda não está decidido.

Um bebê longe. O som confunde cada vez mais a Mulher 1. Mulher 1: Quero dizer, como nos kits prontos... Mulher 2: Kits? Mulher 1: ...você sabe, como nos pacotes completos que prometem a viagem, o café da manhã, a hospedagem ou o hambúrguer, o refrigerante 500ml e as batatas fritas. Mulher 2: Não vendemos pacotes turísticos. Mulher 1: Vocês não avisaram a ele? Mulher 2: Olha, não temos tempo para esse tipo de conversa, tudo bem?

Um bebê ri longe. Mulher 1 (cada vez mais perturbada pelo som): Não disseram a ele como as coisas acontecem por aqui? Mulher 2: Atendemos a uma média de 120 pessoas por mês... Mulher 1 (continua o raciocínio): ...Não avisaram a ele que aqui as pessoas precisam se vestir adequadamente, que precisam tomar banho e escovar os dentes ou mesmo dizer “bom dia”, “obrigado” e também “imagina, não foi nada” quando esbarram em você... Sabe... Espero que ele já venha com conhecimentos sobre esse tipo de coisa. Mulher 2: É que nós... Mulher 1: Porque se vocês não avisaram nem isso a ele, imagine quando ele souber do resto... Se vocês não costumam explicar o mínimo, não sou eu quem vai dizer sobre todo o resto. 14


Mulher 2 (interrompe, sempre sem dar muita atenção ao que a outra diz): Olha, nós providenciamos tudo adequadamente, é o nosso trabalho. Por que o seu marido não veio com você? (ela consulta sua papelada) Rubens Carvalho, RG 456789000, não fuma, não tem antecedentes criminais, faz caminhadas aos domingos... Mulher 1: Porque se ele não sabe nem que precisa se vestir adequadamente, não sou eu quem vai contar a ele sobre como as pessoas são ou sobre as ilusões que nos ocorrem todos os dias ou ainda sobre coisas como os falsos amigos, a questão da grana e o aquecimento global... Mulher 2 (não parece ouvir, está concentrada na papelada): ...Paga as contas em dia, nunca teve o nome registrado no cadastro do Serasa, declara o imposto de renda com pontualidade, CPF regular, gosta de plantas.

Longe, um bebê ri. Mulher 1: Também não vou dizer a ele sobre aquele momento na vida em que você percebe que não é muito diferente disso, sabe, a vida que você imaginava e a vida que acontece para você, imagina o que ele vai sentir quando souber de tudo, de tudo, imagine quando ele souber que existem lobos selvagens circulando por aí.

Silêncio. Mulher 2 olha pela primeira vez nos olhos da Mulher 1. Mulher 2: Também me preocupo com a superpopulação de lobos.

Silêncio. Mulher 2: Cheguei a trazer um deles para cá. Ele fica sempre quieto. Acho que gosto dele. Mulher 1: Não tem medo? Mulher 2: Não. Mulher 1: Eles deixaram? Mulher 2: Ah, isso não vem ao caso. Mulher 1: Você é corajosa.

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Mulher 2: Eles se comportam melhor quando são castrados. Mulher 1: Sei. Mulher 2: É. (pausa) Bom, não é isso que interessa aqui, então, é... Você... Mulher 1: É, como eu ia dizendo, você acha que pode me arranjar um tipo de boa índole? Mulher 2: Boa índole? Mulher 1: Ah, você sabe, um modelo que não dê muito trabalho; por exemplo, que tenha um nível médio de energia, que não faça muitas perguntas, que já venha com certos conhecimentos prévios, que não tenha tiques nervosos, etc., entende? Mulher 2: Não podemos garantir esse tipo de coisa. Mulher 1: Ah, claro que podem, é como nos filhotes, você estava falando dos lobos, por exemplo, os filhotes já nascem com propensões, há os mais ativos, os maiores, os mais gulosos, os supermedrosos, os carentes, você sabe, me dê um modelo padrão. Mulher 2 (fixando novamente os olhos na papelada): Olha, tem uma lista de pessoas esperando lá fora por uma ligação, não temos tempo disponível para esse tipo de requisição. Mulher 1: Ah, você entendeu muito bem o que eu quis dizer, não vai ficar ofendida.

Silêncio. Mulher 1: Olha... Me desculpe, sabe, não quero gastar o seu tempo, eu, eu estou a sério, é que às vezes me confundo um pouco.

Silêncio. Mulher 1: Às vezes fico confusa, você sabe...

Silêncio. Mulher 2: Tudo bem. (pausa) Eu também. Mulher 1: É? 16


Mulher 2 não responde. Mulher 1: Podemos continuar?

Silêncio. Mulher 1: Podemos? Mulher 2: Vai agir normalmente? Mulher 1: Por favor. Mulher 2: Está ficando um pouco estranho e... Mulher 1: Eu... Mulher 2: Sabe... Você precisa falar coisas normais, como a maior parte das pessoas que chegam aqui, eu vou fazer as perguntas e você responde com serenidade, sem gestos excessivos. Mulher 1: Tudo bem. Mulher 2: Estou aqui para te ajudar, é a minha profissão, preciso saber como você vive, o que espera, que tipo de estrutura tem em casa... Mulher 1: Obrigada.

Pausa. Mulher 2: Então... Como você vive? Mulher 1: Eu vivo bem, tenho uma rotina normal, faço três refeições diárias, compro legumes orgânicos, visito o dentista a cada seis meses, tomo café com moderação, me visto adequadamente. Você não acha que isso é importante? Mulher 2: De certa forma. Mulher 1: Não é suficiente para você? Mulher 2: Não. Mulher 1: É... Acho que gosto da minha vida, outro dia eu comecei a dormir porque eu não queria continuar, eu dormi 56 horas, eu contei,

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eu dormi porque eu não queria acordar, mas depois eu acordei e me lembrei que tinha de vir aqui e me senti bem novamente, eu acho que gosto da minha vida e me agrada passar em frente à casa das pessoas na hora do almoço e sentir cheiro de comida. Mulher 2 (ela ri): Também gosto.

As duas ficam rindo. Mulher 2: Especialmente cheiro de bife. Mulher 1: É como estar vivo, você não acha? Mulher 2 para de rir de repente. Fica séria, volta a mirar a papelada. Mulher 2: O que mais? Mulher 1 (enumera): Tenho medo de lobos e não gosto da palavra salsicha, sei cozinhar e aprendi a preparar papinhas, tenho uma vida estruturada e um apartamento com varanda, sou proativa e sei ser flexível, nunca darei salsichas ao bebê, me adapto a situações diferentes sem apego, não sinto inveja, eles dizem que as salsichas misturam todo tipo de carne, achava que sabia lidar com o estresse, os piores tipos de carne, mas agora, quero dizer... Mulher 2: O que mais? Mulher 1: Mais tudo aquilo que dizem os psicólogos de RH. Mulher 2: Você está debochando de mim? Mulher 1: Não é o que você queria ouvir? Que sou uma dessas pessoas socialmente ajustadas?... Mulher 2: Está debochando ou tem algum transtorno de personalidade ou quem sabe está passando por uma espécie de colapso passageiro, eu não sei, e...? Mulher 1: ...E assim você permitirá que eu o leve para casa, uma vez que sou socialmente ajustada e você poderá ter preenchido todos os quadradinhos do meio com um X. Mulher 2: ...Porque essas sim seriam restrições comprometedoras. (pausa) Como é?

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Mulher 1: ...E assim você permitirá que eu o leve para casa, uma vez que sou socialmente ajustada e você poderá ter preenchido todos os quadradinhos do meio com um X. Mulher 2: Você acha que é assim que funciona? Mulher 1: É, eu acho, como quando você vai cumprindo as tarefas de uma lista de tarefas. Adoro listas de tarefas. (pausa) Por que não me deixa levá-lo agora e acabamos com isso? Mulher 2: Não é assim que funciona. E o seu marido? Mulher 1: Não quero falar sobre ele. Mulher 2: Você disse que sua vida é estruturada, como é, como é que você falou...? Mulher 1: Não me lembro mais do que eu disse. Mulher 2: Uma pessoa socialmente ajustada, acho que foi isso que disse. Vamos chamá-lo aqui. O seu marido. O seu núcleo familiar socialmente ajustado. Mulher 1: Não precisa chamá-lo. Mulher 2: Ele te ajuda com as tarefas? Mulher 1: Gosto de escrever listas e riscar o que já foi feito. Mulher 2: Ele é participativo? Mulher 1: Por que você precisa dele aqui? O que eu digo deveria ser suficiente para você. Mulher 2: É o procedimento padrão. Mulher 1: Gosto de escrever para poder riscar e depois ver a folha enumerada e riscada do início ao fim da página e me contento pensando que todas as pessoas fazem a mesma coisa. Mulher 2: Que tipo de tarefas? Mulher 1: Ah, coisas que todo o mundo tem de fazer. Obrigações ordinárias.

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Mulher 2: Eu gostaria de saber. Mulher 1: São obrigações ordinárias, você sabe... Mulher 2: Tem alguma aí com você? Mulher 1: Nada que as outras pessoas não façam. Mulher 2: Por que não a lê para mim? Quero dizer... A lista desta semana? Mulher 1: Ele espirra demais, nunca conheci alguém que espirrasse tanto. Mulher 2: Quem? O seu marido? Mulher 1: É. Também costuma assoar o nariz. Às vezes preciso rezar para suportar. Mulher 2: Sei. Mulher 1: E também é um tipo de pessoa que nunca sabemos definir que cor de cabelo ela tem, sabe, ou mesmo o tom de pele. Mulher 2: O importante aqui é saber se vocês vivem em harmonia, se vão estar juntos nessa escolha. Mulher 1: Você diz para as pessoas “Sabe o Rubens, sou casada com o Rubens, Rubens o meu marido” e elas perguntam Rubens, quem é mesmo? E não se lembram porque não podem definir muito bem a cor de cabelo que ele tem, entende?

Tempo. ... Mulher 2: Olha, acho melhor a gente não continuar. Mulher 1: Alguém sobre quem não podemos dizer muita coisa. Mulher 2: Não posso continuar com você, está ouvindo? Mulher 1: Ora, por que isso de repente?

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Mulher 2: Não faz sentido algum, vamos encerrar.

Pausa. Mulher 1 (desafio): Sabe, eu também não sei muito bem definir a cor do seu cabelo, ou mesmo a cor da sua roupa... Mulher 2: Olha, se ainda está falando do seu marido, porque, se estiver falando dele, não está ajudando em nada o seu processo aqui, pelo contrário, você está afundando tudo, entende, afundando as suas chances... Mulher 1 (desafio): Não, agora estou falando de você. Mulher 2: De mim? Mulher 1: É. Há alguma falta de cor em você, exatamente como acontece com ele. Mas você acha que não. Mulher 2: Realmente vamos ter de encerrar, se não se importa. (levanta-se e aponta a porta para ela) Mulher 1 (sem se levantar): Você acha que não, você acorda de manhã e vai até o seu guarda-roupa e coloca todos esses conjuntos combinados e sóbrios, mas quando está quase chegando aqui, costuma pensar que exagerou no tom do tecido. Mulher 2 (ainda de pé, indicando a saída): Por favor. Mulher 1: Você também costuma sonhar que está voando, sabe, é um tipo de sonho recorrente, como eles chamam, um sonho recorrente, você está voando, a sensação é muito boa e você gosta de pensar que isso significa que você tem um espírito mais evoluído do que o das outras pessoas. Mulher 2: Eu... Mulher 1: E você nunca vomitou na vida, nunca, por isso admira as pessoas que conseguem fazê-lo e, quando chega aqui todos os dias, deixa sua bolsa na cadeira, vai até o banheiro e coloca o dedo na garganta, bem no fundo da sua garganta. Mas é inútil. Mulher 2 desiste e se senta de volta. Parece hipnotizada. Tempo e silêncio longos.

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Mulher 2 (volta a vasculhar a papelada): De qualquer jeito, nós vamos precisar ouvir o depoimento do seu marido, nós precisaremos ouvi-lo, é o procedimento padrão. Mulher 1: Ah, tudo bem, nesse caso... O que mais podemos conversar? Mulher 2 (sem saber o que dizer): Bom, é... Mulher 1: O que mais você precisa saber sobre a minha vida? Mulher 2: Eu não sei, eu... Mulher 1: O que mais? Mulher 2: Ah, sim, eu... Você ia se esquecendo, você ia ler a sua lista de tarefas para mim, acho que paramos aí, era isso, foi aí que paramos... Mulher 1: Ah, a lista... Sabe, eu acho melhor não, é tudo muito pessoal. Mulher 2: Justamente. Não deixa de ser um jeito de conhecer você, não acha? Mulher 1: Também é um procedimento padrão? Mulher 2: Não. ...... Mulher 2: Enfim, faça como quiser. Era só um jeito de te conhecer melhor. ...... Mulher 1: Tudo bem então.

Elas se olham em silêncio. Mulher 1 então tira da bolsa um papel amassado. Mulher 1 (lendo a lista): ...Fazer supermercado — fósforos, papel higiênico, desinfetante “festa das flores”. Ser uma pessoa adequada. Ter um bebê. Ter um bebê. Tirar carteira de motorista. Conseguir dar o cu. Comprar fósforos. (olha para ela) Ah, eu sabia... Tem umas coisas pessoais aqui no meio, sabe, eu acho que tinha me esquecido...

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Mulher 2 (sem graça, mas interessada): Ah, sim... Eu... Eu acho que tudo bem... Mulher 1: ...Comprar um carro depois de tirar a carteira de habilitação. Estar habilitada. Comprar um bebê para levar no banco de trás do carro. Comprar um banquinho de segurança para o bebê no carro, virar à esquerda numa rua movimentada. Lembrar-se de dar seta e virar à esquerda acreditando que o carro de trás vai parar... (para a Mulher 2) São umas coisas mais para eu lembrar a mim mesma, sabe...? Mulher 2 (interessada): É, dá para notar. Mulher 1: ...Pagar o condomínio e ter estoques de fósforos. Colocar fogo em tudo aquilo. Comprar um bebê, não, melhor comprar um carro e fazer um bebê com o marido. Dar o cu. Ter senso de direção. Comprar um bebê, dar um bebê, adotar um bebê, comprar um assento para transportar com segurança o bebê no carro... (vacilante, ela para e olha para a outra, que parece interessada) ...... Mulher 1: ...Comprar um bebê de cabelo liso, chamar a assistência técnica do filtro, ter um bebê definitivo, não, melhor comprar um cachorro, eles duram menos tempo, mas os cachorros não choram. Dar o cu. Mas eles latem. Financiar uma geladeira com degelo automático... (olha para a outra) Frost free, você sabe. Mulher 2: Dá para entender. Mulher 1: ...Pesquisar nos anúncios de frost free. Cachorros não choram como bebês. Eles latem. Mas não choram como bebês. (ela começa a chorar) Conhecer o Egito e visitar as pirâmides, pesquisar os pacotes turísticos para outubro. Explodir tudo aquilo. Eles não têm as mãozinhas gordinhas e macias dos bebês. Comprar cilindros plásticos. Explodir todos eles. Consertar o telefone sem fio. Comprar pólvora e gasolina ou óleo diesel. Ligar para a assistente social. Achar 1m de pavio. Dar o cu para o marido. Peróxido de hidrogênio mais acetona, aí sim. Ligar para o bebê. Dar o cu para o bebê. Não, quero dizer, glicerina para o bumbum assado do bebê. Nitroglicerina. Marcar a entrevista. Misturar com movimentos lentos. Comprar um bebê, não, acho que anotei errado, alugar o bebê, não, quero dizer, adotar o bebê. Adotar o bebê, é isso mesmo, acho que me confundi. Comprar a cinta com suporte para os frascos e cilindros e adotar o bebê. Ligar para a carteira de habilitação, viajar para o apartamento, ficar grávida novamente,

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explodir todos eles, financiar o bebê, tornar-se uma pessoa habilitada. Esperar uma pirâmide do Egito. Acreditar. Encontrar algum fornecedor de peróxido de hidrogênio. Nitroglicerina. Ver a pirâmide do Egito crescer na sua barriga. Hipoglós mais glicerina. (para a Mulher 2) Ai, me desculpe, tem umas anotações tão confusas, eu... Às vezes eu me confundo um pouco. Mulher 2: Por favor. Mulher 1: ...Ligar para a assistente social. Explodir todos eles. Parecer socialmente adequada... (olha para a outra e ri, envergonhada) Ah, isso era para você...

Enquanto ela continua a ler, entretida, a Mulher 2 se levanta e vai até o telefone. Ela faz uma ligação sem que a outra perceba. O orelhão toca, mas Rubens não atende — permanece estático, de frente para a plateia. Mulher 2 fala coisas, que não ouvimos, ao telefone. Ela então desliga e fica esperando, olhando de longe a Mulher 1 que ainda lê a lista enorme. O orelhão para de tocar. Mulher 1 (entretida com a leitura): ...Hipoglós mais nitroglicerina. Explodir as pirâmides do Egito, ah, isso parece engraçado. Vestir a roupa adequada para o dia da entrevista. Ser adequada e apresentar a carteira de habilitação. Comer o bebê. Quero dizer, comprar o bebê. Explodir o bebê, não, alugar o bebê, não, adotar o bebê. Verificar se os fósforos acabaram, fazer escova definitiva, adquirir um bebê definitivo, de preferência de cabelo liso, consertar o telefone sem fio, ligar para o bebê de cabelo liso, deixar as venezianas abertas no inverno, melhor abrir as janelas e sentir o ar fresco, gostar de viver, habilitar-se, reciclar o lixo, acreditar, programar o despertador, lutar contra o aquecimento global, abrir a janela todos os dias e respirar o ar lá de fora, calcular as emissões de carbono, adequar-se, preparar a mistura, nitroglicerina, hipoglós mais glicerina, parecer adequada novamente, educar o bebê para ser sustentável e ecológico, hipoglós mais nitroglicerina. Explodir tudo aquilo. Adquirir um bebê definitivo... É, termina aqui por enquanto. Mulher 2 volta a se sentar. Silêncio e constrangimento. Ouvimos novamente a risada de uma criança. Mulher 1 se levanta correndo até a porta para tentar ouvir melhor. Mulher 2 vai até ela. Mulher 2: O que é? Mulher 1: Está ouvindo agora?

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Mulher 2: Não ouço nada. Mulher 1: Não é possível. Mulher 2: Por favor, não torne tudo mais difícil. Mulher 1: Xiii... Ouça. Mulher 2: Por favor.

As duas voltam a se sentar. Mulher 2 (irônica): Seus dias parecem bem ocupados. Mulher 1: Ah! Você está falando da lista. (esperançosa) Isso é bom? Mulher 2 (novamente burocrática e fria, olha a papelada): Afinal, por que quer um bebê? Mulher 1: Não te emociona o som que um bebê pode produzir?

Um bebê ri. Mulher 2: Por que um bebê? Por exemplo, poderia ser um cão ou um gato, muitas pessoas vivem bem sem filhos e tudo o mais, chegam a ser felizes e... Mulher 1: Bom, eu li numa revista que ter um deles é uma forma de se tornar menos egoísta e adquirir maior senso de foco e melhor capacidade de concentração. Mulher 2: Sim. Mulher 1: Achei que eram motivos suficientes. Mulher 2: Sim. Mulher 1: E que amamentar emagrece. Mulher 2 (levanta o olhar para ela, surpresa): Mas você não iria amamentar, quero dizer... Neste caso. Mulher 1 (perturbada): Ah, é mesmo. (pausa) Me desculpe.

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Pausa. Silêncio. Mulher 1: Você nunca fica inquieta ou, sabe como é... Inquieta ou perplexa quando pensa sobre o seu tempo, sobre a sua vida? Mulher 2 não responde. Mulher 1: Hoje quando eu estava me aprontando para vir aqui, ou melhor, quando eu acordei, porque quando você acorda, sabe, de manhã esse tipo de pensamento é mais frequente porque você se olha no espelho e a sua cara nunca é a mesma — um dia avança sobre o outro —, então eu pensei: sou tão velha que posso morrer, quer dizer, é muito fácil compreender por que uma pessoa é capaz de explodir tudo e a si mesma. (pausa) Posso levá-lo agora? ...... Mulher 2 (impessoal e distante): Esse tipo de pensamento não é adequado para o perfil que esperamos aqui. Mulher 1: Acha que não sou adequada? Mulher 2: Você está bem? Quero dizer, sua vida tem transcorrido normalmente nos últimos tempos? Porque não poderíamos dar um bebê a alguém com pensamentos suicidas ou com qualquer tipo de transtorno de personalidade. Mulher 1: Eu não tenho nada disso. Mulher 2: Ah, você acabou de ler a sua lista e aquelas não eram exatamente tarefas comuns, sabe, preocupações cotidianas. Mulher 1: Mas foi você quem pediu, eu disse que eram anotações pessoais. Mulher 2: É, mas aquilo era muito mais do que eu podia esperar para os padrões tradicionais e... Mulher 1: Então você trapaceou. Mulher 2: Não. É a minha função aqui: saber quem você é. Mulher 1: Você foi desonesta.

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Mulher 2: Eu não vejo assim. Mulher 1: Vaca. Mulher 2: Ora! Não pode ser assim, quero dizer, não pode falar assim... Mulher 1 (violenta): Você é o tipo de pessoa que acha que sabe o que é solidão, mas você não tem ideia do que é a solidão acontecendo de manhã todos os dias para você. Mulher 2 olha para ela. Não sabe o que dizer. Mulher 2: O que é que isso tem a ver? Mulher 1: Tem a ver que eu acho que a gente devia continuar sim.

As duas se olham, em silêncio. Mulher 2 (acuada, muda de opinião novamente): Veja bem, você tem de responder a uma coisa muito simples, é muito simples o que eu estou perguntando, veja se consegue entender: me diga por que, o que você espera para a sua vida, quero dizer, por que quer levar um deles com você, o que imagina, que tipo de expectativas possui, etc. Mulher 1 (como se tivesse decorado um texto pronto): O desejo de ser mãe é fundamental e sustenta toda uma vida. A maternidade nos confere uma potência criativa, dá sentido a nossa existência, cria um lugar valorizado, realiza o sonho de eternidade. Todo bebê oferece a possibilidade de mudar o mundo. Mulher 2: Está sendo sincera? Mulher 1 (ela começa a rir descontroladamente): Não. Mulher 2: O que foi? ...... Mulher 2: Por que está rindo? ...... Mulher 2 (grita, nervosa): Pare. ......

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Mulher 2 (gritando): Chega! ...... Mulher 2 (descontrolada, vai até ela e a sacode): O que é que te faz achar que eu não sei o que é estar sozinho? Mulher 1 para de rir abruptamente. Mulher 2: Ah, me desculpe, eu não devia ter feito isso, eu não sei o que está se passando, você está me deixando um pouco confusa.

Um bebê ri. Agora, as duas vão até a porta tentar escutar melhor. O som cessa. Mulher 1: Ouviu agora? ...... Mulher 1 (puxa a entrevistadora pelo braço): Venha, vamos nos sentar.

Pausa. Mulher 1: Pode continuar com as suas perguntas. Mulher 2: O que você estava dizendo mesmo? Mulher 1 (recita): Todo bebê oferece a possibilidade de mudar o mundo.

Silêncio. Mulher 2: Acha isso mesmo? Mulher 1: Não. Mulher 2: Não está sendo sincera ou não acha isso? Mulher 1: Nenhum dos dois. Apenas me ocorre levar um deles para casa, eu me sentiria menos sozinha. Olha, vamos ser mais práticas, eu vou te dizer o que eu imagino e você vai anotando aí para providenciar um modelo adequado e com a melhor configuração possível. Mulher 2: Configuração?

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Mulher 1: É. Isso. Eu me informei sobre a melhor configuração. Mulher 2: Configuração? Mulher 1: É... Quero dizer, um modelo sem defeitos, uma circunferência média de 35cm de cabeça, mas aceito até 37cm, cabelos claros, pescoço firme, pele lisa e olhos espertos com alguma coisa bem viva lá dentro. (pausa) Algo bem vivo, entende? ...... Mulher 1: Algo bem vivo, é tudo o que eu quero. ...... Mulher 1: Está ouvindo? Não vai dizer nada? É só. Não tenho mais nada para falar. Mulher 2: Sei. Mulher 1: Não tenho mais nada para dizer.

Um bebê gargalha. Silêncio. Mulher 2: Sabe, eu... Eu nunca consegui entender as pessoas que vêm até aqui, elas chegam e dizem: quero adotar uma criança, quero completar a minha vida, a minha vida tão preciosa, a minha vida isso, a minha vida aquilo. Elas abrem bem a boca e arregalam os olhos para dizer a minha vida. Você não imagina como é insuportável. Mulher 1: É, eu... Eu acho que eu imagino sim. Mulher 2: Elas abrem bem a boca e os casais nesse momento — nessa hora de dizer “a minha vida”, porque acontece sempre bem nesse momento —, então eles dizem juntos a nossa vida e ao mesmo tempo estreitam as mãos dadas e se olham. É nojento. ...... Mulher 2: Eu poderia cuspir na cara deles. ...... Mulher 2: Faz ideia de quantas vezes tive vontade de cuspir na cara deles? 29


Mulher 1: Não. Mulher 2: Além disso, são feios.

Silêncio longo. Mulher 2: Já reparou como a maior parte das pessoas se veste mal?

A Mulher 1 começa a rir. As duas riem muito. Mulher 2 (rindo): O que foi? Mulher 1 (também ri): Achei que isso não era importante para você.

As duas continuam rindo até que ficam cansadas e param. Silêncio. Mulher 1: Acho que não eram frases adequadas para se dizer, quero dizer, você, no seu cargo, você não deveria ter me dito nada disso. Mulher 2: A vida que você imagina e a vida que acontece para você. Isso era para mim? Mulher 1: Como é? Mulher 2: Você disse: a vida que você imagina e a vida que acontece para você. Mulher 1: Eu disse isso? Mulher 2: Estava se referindo a minha vida. Quero dizer, estava falando de mim? Mulher 1: Olha, eu não lembro mais o que eu disse, sabe, deve ter sido qualquer coisa por falta de assunto, eu nem te conhecia e você agora falando assim; para falar a verdade, eu não acho que você deveria estar me dizendo nada disso, você precisa ter uma postura ereta e modos equilibrados no seu cargo de assistente social ou sei lá o quê. Mulher 2: É, eu sei, me desculpe, é que você começou... Mulher 1 (interrompendo): É. Mulher 2: Você também não foi nada adequada até agora.

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Mulher 1: É? ...... Mulher 1: Espero que você entenda que eu preciso levá-lo. ...... Mulher 1: Uma criança com algo bem vivo lá dentro, entende? ...... Mulher 1: Algo bem vivo, é suficiente. ...... Mulher 1: Está ouvindo? ...... Mulher 1: Não vai dizer nada? É só do que eu preciso. Não tenho mais nada para falar. ...... Mulher 1: Pode ser agora? Mulher 2 (tenta se recompor): Eu não terminei. Mulher 1: É, mas eu não tenho mais nada para falar. Posso levá-lo agora?

Elas se olham. Mulher 2 (volta-se para a papelada, lê uma pergunta): Vamos ver... É... Ah, sim, e o que é que você sente que precisa fazer antes? Mulher 1: Antes? Mulher 2: É, isso, quero dizer, antes do bebê... Mulher 1: Nada. Estou pronta. Já tenho todos os produtos adequados e com aromas especiais, como sabonetes de lavanda e camomila próprios para bebês e um desinfetante antialérgico com aroma “festa das flores”, já experimentou?

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Mulher 2: Pronta para o bebê? Mulher 1: Você passa no piso e, de repente, é como cinco bebês que acabaram de tomar banho engatinhando pelo chão. Mulher 2: Pronta para o bebê? Mulher 1: Já experimentou? Aquele da embalagem rosa, (recita) perfume delicado, 500 mililitros de eficiência e perfume de longa duração, detergente de uso geral, conserve fora do alcance das crianças. ...... Mulher 1: Conserve fora do alcance dos bebês. ...... Mantenha fora do alcance do bebê. ...... Coisas que você compra nos supermercados. ...... Fora do alcance dos cinco bebês que acabaram de tomar banho engatinhando pelo chão. ...... Mulher 2: Não somos um supermercado. Mulher 1: Já preparei a casa, ajustei o controle de temperatura dos cômodos, enchi a geladeira de alimentos pré-congelados, posicionei o berço afastado das janelas e do ar-condicionado, comprei um tapete antiderrapante e macio, um trocador, um termostato, um umidificador, uma babá eletrônica, lenços umedecidos, cotonetes, pomada contra assaduras, um assento para automóvel, 60 fraldas e alfinetes de segurança, bomba de sucção, de quatro a seis mamadeiras de 120 mililitros, sutiãs próprios para amamentação... Mulher 2 (a interrompe): Você não vai amamentá-lo.

Pausa.

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Mulher 1: Ah, é.

Silêncio. Mulher 2 (levantando-se): Meu tempo acabou. Mulher 1: Não, por favor. Mulher 2: Não faz sentido continuar com isso, você está me deixando confusa e exausta, não sei por que cheguei até aqui. Meu tempo acabou. Mulher 1: O meu também. (pausa) Por favor. Espere.

As duas se olham. Mulher 2: Toda essa conversa... Não faz sentido. Somos uma instituição pública, não somos um supermercado. Não podemos te dar cinco bebês que engatinham pelo chão. Mulher 1: Por que não? Sei que tem uma lista de um monte deles aí com você. Mulher 2: As coisas que você diz, você nem ao menos tenta parecer fazer algum sentido, entende? Não acho que esteja pronta — ou você se sente pronta? Se sente pronta para um bebê? Mulher 1: Eu não sei. Mulher 2: Não é assim que funciona, você sabe... Tem de haver certeza. Mulher 1: Mas esse tipo de certeza que você quer, por exemplo, eu tenho de fazer o supermercado, não tenho certeza se há fósforos na despensa e isso me apavora, já imaginou ficar sem fósforos e velas durante uma tempestade que destrua os postes elétricos? Mulher 2: Não uso fósforos. Mulher 1: Nunca? Mulher 2: Não. Mulher 1: Que estranho. Mulher 2 (volta por um instante o olhar para ela): Acha?

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Mulher 1: Essa certeza que você diz... Você a tem? Mulher 2: Não preciso deles, sou higienista. Mulher 1: Acha que posso comprar o bebê mesmo assim? Mulher 2: Comemos coisas cruas. É uma dieta saudável, seria bom para você. Mulher 1: Acha que posso comprar o bebê mesmo assim? Mulher 2: Comprar? Mulher 1: É, sem fósforos na despensa, por exemplo. Mulher 2: Você disse mesmo comprar? Mulher 1: Eu disse comprar o bebê? Mulher 2: É. Mulher 1: Não, eu disse adotar, eu quis dizer adotar um bebê, acha que posso comprá-lo mesmo assim? Mulher 2: E o seu marido?

Ouve-se outra risadinha de bebê. Mulher 1: Não é adorável? Mulher 2: O quê? Mulher 1: O som que um bebê pode produzir? Mulher 2: Ah... Mulher 1: Não gosta de bebês? Mulher 2: Eu... Mulher 1: Você tem filhos? Mulher 2: Não.

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Mulher 1: Não quis tê-los? Mulher 2: Não sei. Mulher 1: Não sabe? Mulher 2: Quero dizer, sinto que cada um precisa saber que possui apenas a si mesmo e que não há nada além disso e que é ingênuo pensar o contrário. Mulher 1: Ah, não vai me dizer que acredita mesmo nessa bobagem. Mulher 2: Não acho que essa conversa seja relevante. Mulher 1: Sabe, você deve ter ouvido isso em algum comercial de cartão de crédito. Mulher 2: Não é isso, você não entendeu. Mulher 1: Ah, eu entendi sim, eu queria saber, você tem um marido? (puxa a mão dela) Me deixe ver se usa aliança... Mulher 2 (sem graça, sem saber o que dizer): Não, eu... Eu sou higienista.

Constrangimento. Mulher 2 (sem saber o que dizer): Seria bom para você. Mulher 1: O quê? Mulher 2: A dieta higienista. Mulher 1: Não, eu não, eu gosto das coisas bem cozidas, sabe, fritas, assadas, grelhadas, levadas ao fogo. Mulher 2: Mesmo assim, eu tenho gastrite. (pausa) Mas você não pode contar isso para ninguém porque os higienistas, sabe, os higienistas não podem ter gastrite. Mulher 1: Todo o mundo tem gastrite. Mulher 2: É um trabalho de muita responsabilidade, você sabe, lidar com a expectativa de pessoas como você, esse tipo de pressão, acho

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que é o que dá gastrite em você, entende, ter de corresponder às expectativas e sustentar os seus olhos cheios de perguntas, os seus olhos bem abertos dizendo: “Ei! Vamos lá, estamos esperando a sua resposta”. Tudo isso, todos os dias... É alguma coisa que... Algo que corrompe o seu estômago, entende? Mulher 1: Olha, me desculpe, eu não queria, quer dizer, não era minha intenção piorar a sua gastrite e... Mulher 2: Não... Não estou falando de você, é outra coisa, maior do que você ou do que eu, entende? Algo que corrompe o seu estômago.

Pausa. Mulher 1: É, eu imagino... Quero dizer... Se você chegou até aqui e viveu — é, se você viveu —, isso de viver, essa coisa de viver e estar vivo, existir todos os dias, principalmente quando amanhece e não faz tanto barulho nas ruas... Mulher 2: ...É, é isso. Mulher 1: ...Essa coisa toda de existir é que corrompe. É como você disse, isso corrompe o estômago de qualquer um.

Pausa. Mulher 2: É.

Pausa. Elas ficam sem saber o que dizer por um tempo. Mulher 1: Olha, tem uma coisa que eu queria te pedir, sabe... Você poderia levar esse lobo para outro lugar? Mulher 2: Ah, ele. Mulher 1: Não pode levá-lo daqui, para um canto lá fora, eu não sei? Mulher 2: Não, não posso. Por quê? Ele te incomoda? Mulher 1: É. Mulher 2: É, mas eu não vou tirá-lo daí só porque você não pode suportar. Você também está me incomodando bastante desde que chegou e nem por isso eu pedi que você saísse ou chamei o apoio operacional...

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Mulher 1: Você já pediu sim... Mulher 2 (a interrompe): ...E eu nem sei bem por que eu não fiz isso ainda porque, se você quer saber, a verdade é que você já deu um monte de motivos para isso. Mulher 1 vai até o lobo e tenta passar a mão nele, mas recua com medo, como se ele tivesse reagido. Mulher 2: Pensando bem, já fui longe demais com você. Mulher 1: Eu poderia te denunciar por esse tipo de coisa. Mulher 2: Ah, é? Mulher 1: É, coisas como expor suas opiniões próprias sobre casais malvestidos e manter um lobo dentro de uma repartição pública. Mulher 2: É, mas você não faria isso. Mulher 1: Está me ameaçando?

As duas podem dizer ao mesmo tempo. Mulher 2: Está me ameaçando? ...... Mulher 2: Achei que você quisesse o bebê. Vamos esperar o seu marido, estamos esperando o seu marido. Mulher 1: Posso levá-lo agora? Mulher 2: Como assim, agora? ...... Mulher 2: Agora? Mulher 1 (ela grita): É. Agora. Posso levá-lo agora? Mulher 2: Um instante, por favor.

A Mulher 2 vai até o telefone de novo. Ela liga para alguém e conversa,

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mas não entendemos o que diz. O orelhão fica tocando, mas Rubens não atende. Som de bebê. Mulher 1 tenta saber de onde vem, anda pelo local. Mulher 2 (voltando): Pronto. Sente-se. Mulher 1 (sentando-se): É... Tem uma coisa que eu me esqueci de dizer, sabe? Da minha lista de tarefas. Mulher 2: Ah, é? Mulher 1: É. Você chamou o meu marido, não é? O meu marido Rubens? Foi isso que você foi fazer, não é? Mulher 2: É. Já faz um tempo. Foi isso. Mulher 1: E ele vai vir? Mulher 2: Vai. Mulher 1: Sei. ...... Mulher 1: Sabe, ele vai querer me levar e vai estragar tudo porque ele costuma estragar tudo. Mulher 2: É o propósito — alguém que consiga te tirar daqui. Mulher 1: Ele acha que devíamos tentar esquecer. Mulher 2: Esquecer? Mulher 1: É, esquecer o que aconteceu. Ele não te falou? Mulher 2: Sobre o bebê? Mulher 1: É, você sabe, eu sei.

As duas se olham em silêncio. Mulher 2: Imagino que não deve ter sido nada fácil, mas não pode tentar trocar uma coisa por outra. Não são como vasos que quebram e você vai até a esquina comprar outro. ...... 38


Mulher 1: Por que não pode me ajudar? Mulher 2: Não é como comprar um estoque novo de caixas de fósforo. Mulher 1 (feroz): Então você acha que sabe como é? Mulher 2 (deixa de olhar para ela, torna-se novamente burocrática): Você tem de superar. Quando estiver melhor, você volta e tentamos novamente. Mulher 1: Por favor. Mulher 2 (olhando seus papéis): Quando detectamos que a motivação não é adequada, somos obrigados a negar. Não podemos inscrever seu nome no banco de adoção antes que reverta esse quadro de transtorno, é como tirar carteira de motorista. Se os seus óculos estão desatualizados, você tem de acertar o grau das lentes e tentar novamente. Não vamos negar para sempre, ora. A vida é dinâmica, o casal pode remover aquele obstáculo e voltar e se candidatar um dia. Mulher 1: Você não pode fazer isso, sabe? Depois que tudo acabou eu tive vontade de explodir aquilo... De explodir aquele lugar, aquele estabelecimento de saúde, mas eu não sabia como, eu estava muito confusa porque eu imaginava que seria fácil, hoje em dia qualquer um explode um restaurante inteiro, um shopping, qualquer sujeito sem grande inteligência é capaz de explodir uma loja de departamentos, uma estação de metrô. Por que eu não poderia explodir aquele estabelecimento, aquela casa de saúde de gente feia e doente, por que eu não poderia mandá-los pelos ares depois de tudo aquilo? Mulher 2 (sem tirar os olhos dos papéis, não presta atenção, responde automaticamente): Posso imaginar. Mulher 1 (continua): ...Mas quando você começa a pesquisar o assunto — “a melhor forma de explodir um estabelecimento de saúde” —, você descobre que não é nada fácil essa coisa das explosões, eu quero dizer... Não é um serviço para amadores, entende? Mulher 2 (não está prestando atenção, olha os papéis): Sim, claro, compreendo. Mulher 1: Então posso levá-lo agora? Mulher 2: O que você estava dizendo?

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Um bebê ri. Mulher 1: Posso levá-lo agora? Mulher 2: Não é possível. Você não entendeu ainda? Mulher 1: Posso levá-lo agora? Mulher 2 (insiste): O que estava dizendo mesmo? Mulher 1: Que agora sei como explodir qualquer tipo de estabelecimento. Mulher 2: Como é? Mulher 1: Posso mandar um cômodo inteiro de até 50 metros quadrados pelos ares — cilindro plástico, pólvora, gasolina ou óleo diesel, 30cm de pavio. Você acha tudo em qualquer esquina. Mulher 2: Não estou entendendo. Mulher 1: Ou melhor: peróxido de hidrogênio mais acetona. Ou nitroglicerina. Mas ainda não sou tão profissional. (pausa) Posso levá-lo agora? Mulher 2: Seu marido está vindo. Mulher 1: Quantos metros quadrados tem este cômodo, por exemplo? Mulher 2: Deve estar chegando. Mulher 1: É amador, mas funciona, misture a pólvora com óleo ou gasolina até obter uma pasta uniforme. Enfie o pavio até o fim do cilindro, no fundo coloque a pasta de pólvora, faça o acabamento com fita adesiva. Mulher 2: Deve chegar a qualquer momento. Mulher 1: Quantos metros quadrados tem este cômodo, por exemplo?

Um bebê ri. Elas ficam se olhando em silêncio durante algum tempo. Há qualquer coisa de ameaçador nisso.

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Cena 2

Rubens sai de perto do orelhão e entra na cena da repartição. Rubens (para Mulher 2): É... Como vai? ...... Mulher 2: Não quer se sentar? Rubens: É, não, eu... Acho melhor a gente ir. Vamos, querida. Mulher 1: Como assim? Mulher 2: Não, não precisa ser assim, sente-se um minuto. Rubens: Não quero incomodar mais. Mulher 2: Não, tudo bem, tudo bem.

Ele se senta. Rubens: Eu vim o mais rápido que pude. (vago) Você me pegou de surpresa, eu estava regando as plantas, você sabe, temos um fícus, duas nandinas, kaizukas, quatro camélias e muitas echevérias, e mesmo que não seja preciso regar as suculentas como as echevérias porque elas vivem no deserto e estão habituadas a condições extremas, mesmo assim, eu estava... Mulher 1 (o interrompe): Ele se dá bem com as plantas. Rubens: Eu vim o mais rápido que pude. O trânsito... As linhas de trem estavam interditadas. ...... Rubens: Todas. (para Mulher 1) Acredita, querida?

Ela continua sem responder. Rubens: Qualquer coisa a ver com lobos selvagens, não sei, uma superpopulação de lobos, diziam nos alto-falantes. Mulher 2: É alarmante.

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Rubens: Andam nas linhas férreas, não sabem que vão ser atropelados. Mulher 1 (olha para ele): Foram atropelados? Rubens: É, seus corpos interditam as linhas. Mulher 1: Seus corpos? Rubens: É.

Ela então olha para ele. Mulher 1: Estão mortos? Rubens: É, foi como eles disseram. Mulher 1: A sua roupa está amassada.

Ela arruma a roupa do marido, o colarinho da camisa, o colete, etc. Rubens: Foi como eles disseram. Mulher 1 (ainda arrumando a roupa dele): Você viu algum deles? Mulher 2: Você viu algum deles? Mulher 1: Algum de seus corpos? Rubens: Sim. Mulher 1: Não ficou triste? (ajeitando a roupa dele) Veja o estado desta calça! ..... Rubens: Eu não tive tempo, eu... Mulher 1: E este colarinho! Não ficou triste de ver os corpos... Sabe... De novo? Mulher 2 (interrompendo): Ainda bem que o senhor chegou. Mulher 1 (aflita, para a Mulher 2): Podemos levá-lo agora?

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Mulher 2: O senhor não sabia da entrevista? Mulher 1 (para ele): Eu não fui suficiente para ela. Rubens: Não, ela não me disse nada. Mulher 1 (para o marido): Lembrou de comprar os fósforos? Rubens: Fósforos? Mulher 1 (irônica): Eu disse a ela que tínhamos sempre estoques de fósforos na despensa e isso foi bom. Acho que contou pontos a nosso favor, (olha para a Mulher 2) não é? Um casal estruturado com estoque de fósforos em caso de emergência. Mulher 2: Ela já falou sobre explodir qualquer coisa com o senhor? Rubens: Ah, foi por isso? Mulher 2: Acha que é verdade? Ela é capaz de manejar explosivos? Eu poderia chamar a polícia. Mulher 1: Você não faria isso. Rubens: Não vai nos deixar levá-lo, não é?

Silêncio. Pausa. Rubens: Não vai nos deixar levá-lo, não é? Mulher 2: Olha... Rubens: Não é? Mulher 2: Olha, eu sei que vocês apresentaram tudo corretamente, o cadastro estava perfeito, aptidão física, certidões de antecedentes, documentos, todos os requisitos objetivos, mas não posso encaminhar um laudo adequado sobre a sua esposa, você sabe, o enfoque da vara da infância é egoísta, queremos achar pai e mãe para uma criança e não crianças para casais com problemas. A motivação tem de ser outra, algo mais saudável. Rubens: Eu entendo.

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Pausa. Mulher 1: Sabe, eu poderia explodir você e essa sua conversa sobre motivação. Mulher 2: Olha, eu estou começando a achar que isso é sério, eu vou ter de chamar a polícia. Rubens: Não, não. Não é preciso, nós já estamos indo, é tudo um malentendido. (puxa a esposa pelo braço) Vamos embora.

Longe, ouvimos uma risada de bebê. Tempo. Mulher 1: Espere.

Ela o ignora e volta a se sentar. Pausa. Os três ficam em silêncio um tempo. Rubens (para a esposa): Vamos deixar isso para lá. Mulher 1 (para a Mulher 2): Sabe, você está agindo exatamente como eles; eles dizem: pode nos acompanhar, por favor, você precisa vê-lo, você precisa estar motivada, é um procedimento obrigatório. (pausa, ela grita) Podemos levá-lo agora? Rubens (ele grita): Querida, por favor, chega. Mulher 2: É, por favor, se retirem. Rubens: Eu entendo. Não se preocupe. (puxa a esposa pelo braço) Mulher 1: Eu não disse que ele estragaria tudo? Que diferença faz qual é a motivação, hein? Rubens (para a esposa): Você já foi longe demais. Mulher 1 (para a Mulher 2): Acha que eu tenho a motivação de que você precisa?

Ela abre o vestido. Veste uma cinta com tubos cilíndricos amarrados ao corpo, como uma mulher-bomba. Risada de bebê. Ela então se distrai procurando o som, tenta saber de onde vem. Mulher 2 está assustada, mas Rubens não.

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Rubens (lamenta): Ah, agora isso... Mulher 2: Não há bebês aqui. Mulher 1 (andando pelo palco): Como não? Mulher 2: Eles não ficam aqui.

Risada de bebê. Ela corre pelo palco, entra nas portas, some na coxia, vasculha o lugar procurando. Mulher 1 (grita): Posso levá-lo agora? Mulher 2 (ela tem medo, mas também grita): Não há bebês aqui. Rubens: Não há bebês aqui, foi o que ela disse. (tenta pegar a mão da Mulher e levá-la) Mulher 1 (para o marido): Por que não para de estragar tudo sempre? (para ela) O que mais que ele te disse pelo telefone. Por acaso ele também te disse que nós tivemos de enfrentar tudo aquilo, que nós não podíamos fugir ou simplesmente sair andando e que ele concordou com eles, que ele aceitou que nós precisávamos comprovar? Hein? Ele te disse isso? ...... Mulher 1: Veja você, um bebê! Como é que um bebê que ainda não sabe nada sobre a vida pôde fazer isso conosco, eu achei que o conhecia, o meu marido-Rubens-sem-cor-de-cabelo-definida, ora... O que é que eu sabia? Rubens e Mulher 2 escutam em silêncio. Mulher 2 está assustada, sem reação. Mulher 1: Então você está lá e eles querem que você o veja, é um procedimento padrão. Você não sabe o que responder e eles perguntam o que foi, pode nos acompanhar? Estão eretos esperando uma resposta, não seja mal-educada, você pensa, estão parados com seus olhos cheios de perguntas esperando uma resposta, querem ouvir alguma coisa, diga qualquer coisa para lhes agradar, você pensa, diga qualquer coisa para que fiquem satisfeitos... Mulher 2 (tenta interrompê-la): Tudo bem, eu sinto muito, mas...

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Mulher 1 (progressivamente exaltada): Tudo o que sabem dizer é sinto muito, você deve se acostumar com a ideia, então você tem mais uma coisa para anotar na sua lista de tarefas, mais uma coisa para fazer: “se acostumar com a ideia” e continuar com os seus afazeres, as suas tarefas. (tira o papel amassado da bolsa) “Emagrecer os 15 quilos ganhos por causa do bebê, se acostumar, comprar fósforos, doar as roupinhas, se acostumar, tirar férias, desfazer o quarto, se acostumar, comprar um novo bebê o mais rápido possível, não perder o controle, se acostumar, se acostumar com a ideia, chamar um despachante para a compra do bebê, se acostumar com tudo, chamar um despachante para se acostumar com a ideia, perguntar ao nutricionista sobre a alergia ao glúten, olhar no dicionário o que é glúten, se acostumar com a ideia, pedir ao despachante que dê entrada no processo legal de como se acostumar com a ideia, pedir ao nutricionista uma dieta para como se acostumar com a ideia”... Mulher 2 (a interrompe, grita): Eu já disse que sinto muito. Rubens (tenta arrastá-la com violência): Vamos.

Ela não sai do lugar. Rubens (feroz, pela primeira vez): Ah, é? Então o que é que você quer? Quer explodir tudo, é isso?

Ela se assusta com a reação dele e não responde. Está paralisada. Rubens: É isso? Pois não, vamos lá então. Exploda. Mulher 2: É, eu vou ter de chamar a polícia. Rubens: Não vai não, ela quer explodir tudo, que exploda, deixe que exploda, que diferença faz então? Ela não sabe como fazer isso de verdade, ela está imaginando, não é verdade, nada é verdade, ela está blefando, pode ficar. Mulher 2: Não, não é bem assim, eu... Rubens: Vamos lá, vai nos fazer um favor, termine logo com isso, não há como continuar, vamos lá, chega. ......

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Rubens: Vamos. (para a Mulher 2) Você não acha que ela vai nos fazer um favor? Mulher 2: Eu... Rubens: Ou vai me dizer agora que está tudo bem, que adora esse escritório, esse lobo, tudo isso? Vai abrir bem a boca e dizer o quanto adora tudo isso? (ela não responde) Vai? Mulher 2 não responde. Rubens (para a esposa): Vamos, o que está esperando para explodir? Mulher 1 continua sem responder, está paralisada, sem ação. Mulher 2 não sabe o que fazer, não reage. Rubens (feroz): Quer que a gente conte até dez ou não acha que é capaz? ...... Você é capaz? ...... Quer que a gente cante uma música para ficar mais fácil?

Uma música começa a tocar: “Ain’t Got No/I Got Life”, de Nina Simone. Risadas de bebê sobrepostas. Rubens: Hein, que música quer que a gente cante?

Débil, Mulher 2 ensaia algum movimento de fuga. Música vai ficando mais alta. Rubens (imponente, para Mulher 2): Pode ir, se quiser, vai, saia. (ele pode gritar) Vai! Saia. Saia. Fuja, saia. Mulher 2 não sabe por que, mas não reage. Rubens (para a esposa): Vamos? Ande logo com isso. Podemos dar as mãos, se ficar mais fácil para você. Podemos dar as mãos e contar. O que você acha se a gente contar então? Fica melhor para você?

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Ele agarra a mão da esposa e se vira de costas para a plateia, começa a contar (1, 2, 3...). Mulher 2 os observa e, depois de um tempo hesitante, se aproxima devagar e oferece voluntariamente sua mão a Rubens. Os três agora estão de mãos dadas. Podem contar alto, juntos. Vemos o contorno de seus corpos contra a luz, em destaque os cilindros explosivos em volta do corpo da Mulher 1.

Rubens: 1, 2, 3, 4...

A música vai ficando mais alta. Pacto de incêndio contra o tempo que passa. Eles se olham e, de repente, sorriem uns para os outros e podemos ver isso. Rubens (as duas também podem contar): 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30...

Ele continua contando indefinidamente enquanto a luz cai aos poucos, até apagar completamente. Quando a música termina, a luz acende de novo. A cena agora está vazia. Só o lobo persiste. FIM Silvia Gomez

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Prefeitura de São Paulo Fernando Haddad Secretaria de Cultura Nabil Bonduki Centro Cultural São Paulo | Direção Geral Pena Schmidt Divisão Administrativa Diogo Lima Oliveira e equipe Divisão de Curadoria e Programação Branca López Ruiz e equipe Divisão de Acervo, Documentação e Conservação Aloysio Lazzarini de Almeida Nogueira Divisão de Bibliotecas Waltemir Jango Belli Nalles e equipe Divisão de Produção e Apoio a Eventos Luciana Mantovani e equipe Divisão de Informação e Comunicação Marcio Yonamine e equipe Divisão de Ação Cultural e Educativa Alexandre Araujo Bispo e equipe Coordenação Técnica de Projetos Priscilla Maranhão e equipe Mantenha fora do alcance do bebê estreou no Centro Cultural São Paulo em 12 de junho de 2015 | Texto Silvia Gomez Direção Eric Lenate Elenco Debora Falabella, Jorge Emil e Diego Dac Figurinos e Adereços Rosângela Ribeiro Cenografia e Adereços Eric Lenate Iluminação Aline Santini Trilha Sonora, Sonoplastia e Engenharia de Som L. P. Daniel Assistência de Iluminação e Operação de Luz Guilherme Trindade Direção de Palco e Cenotécnica Saulo Santos Direção de Produção Ricardo Grasson Produção Executiva Cícero de Andrade e Ricardo Grasson Assistência de Produção Felipe Costa Idealização Sociedade Líquida Produção e Realização Gelatina Cultural Produções Artísticas Ilustração Adriana Komura CCSP | Curadoria de Teatro Kil Abreu Projeto Gráfico Solange de Azevedo Impressão Gráfica do CCSP Texto vencedor do Edital I Mostra de dramaturgia em pequenos formatos cênicos do Centro Cultural São Paulo 2014 distribuição: gratuita, no CCSP tiragem: 2000 exemplares São Paulo, 2015

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WWW.CeNTRoCUlTURal.SP.Gov.BR R. vergueiro, 1000 / CeP 01504-000 Paraíso / São Paulo SP / metrô vergueiro 11 3397 4002 ccsp@prefeitura.sp.gov.br

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