—• — Lista de autores, por ordem de saída dos contos:
Pedro Paixão | João Tordo | Rui Zink | Luísa Costa Gomes | Eduardo Madeira | Inês Pedrosa Afonso Cruz | Gonçalo M. Tavares | Manuel Jorge Marmelo | Mário de Carvalho Dulce Maria Cardoso | Pedro Mexia | Fernando Alvim | Possidónio Cachapa | David Machado JP Simões | Rui Cardoso Martins | Nuno Markl | João Barreiros | Raquel Ochoa | João Bonifácio David Soares | Pedro Santo | Onésimo Teotónio Almeida | Mário Zambujal | Manuel João Vieira Patrícia Portela | Nuno Costa Santos | Ricardo Adolfo | Lídia Jorge | Sérgio Godinho
Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN
Contos Digitais DN A coleção Contos Digitais DN é-lhe oferecida pelo Diário de Notícias, através da Biblioteca Digital DN. Autor: Pedro Paixão Título: A Musa Irrequieta Ideia Original e Coordenação Editorial: Miguel Neto Design e conceção técnica de ebooks: Dania Afonso ESCRIT ÓRIO editora | www.escritorioeditora.com © 2012 os autores, DIÁRIO DE NOTÍCIAS, ESCRIT ’ORIO editora ISBN: 978-989-8507-09-9 Reservados todos os direitos. É proibida a reprodução desta obra por qualquer meio, sem o consentimento expresso dos autores, do Diário de Notícias e da Escritório editora, abrangendo esta proibição o texto e o arranjo gráfico. A violação destas regras será passível de procedimento judicial, de acordo com o estipulado no Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.
sobre o autor —• —
Pedro Paixão Nasceu em Lisboa, em 1956. Estudou Filosofia na Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica, onde se doutorou aos 29 anos de idade, apresentando uma tese sobre “o conceito de alma”. Lecionou na Universidade Nova de Lisboa durante alguns anos, tendo abandonado a carreira académica em 2004. Ajudou a fundar o jornal O Independente e, juntamente com Miguel Esteves Cardoso, criou a agência de publicidade Massa Cinzenta, da qual foi sócio-gerente até 1995. Estreou-se na literatura com A Noiva Judia (1992) e publicou até agora 21 livros e dois álbuns de fotografia. Escreveu ainda dois textos para teatro e uma ópera. Apesar de ter continuado a publicar desde então, destacamos, de entre a obra editada, o volume Do Mal o Menos (2000), por reunir toda a sua escrita ficcional até à data. Mais informações em www.pedropaixao.net
A Musa Irrequieta —• —
Pedro Paixão
Durante demasiados anos tentei ser professor. Ainda é relativamente fácil escolher uma entre múltiplas marcas de iogurte, mas não escolhemos a língua onde nascemos, nem a pessoa que nos assalta a vida. Eu tinha um doutoramento em literatura inglesa e não se tinha aberto outra possibilidade de emprego senão ensinar parte do que sabia. Foi uma profissão da qual nunca gostei, sobretudo porque ensinar literatura me retirava a capacidade de escrever literatura, ou pelo menos assim o julgava. Mas tinha as suas vantagens, em particular tempo livre para procurar viver a minha vida. Cedo descobri um estratagema que me aliviava o esforço e a ansiedade de falar para um conjunto de seres que me olhavam sem eu poder adivinhar o que lhes ia pela cabeça. No começo do semestre elegia uma aluna, ou por ela era eleito, para a qual passava a falar em exclusivo. Era uma privacidade que eu acreditava sustentar, e mesmo melhorar, a qualidade do meu discurso, o qual por vezes sentia ganhar asas. Se a eleita se atrasava uns minutos, eu esperava por ela para começar a aula percorrendo impacientemente o estrado de um lado para o outro com os olhos cravados num ponto invisível diante de mim. Se faltasse, a aula era uma pequena catástrofe, desculpando-me com uma súbita queda de tensão para a reduzir a metade. Também sabia que a condição indispensável para garantir aquela relação mágica era não ter qualquer contacto directo com a minha inspiradora musa. Evitava tanto quanto possível parar o meu olhar sobre ela, nunca lhe dirigia a palavra, não lhe dando qualquer indício de uma atenção privilegiada. E, assim como tinha começado, no final do semestre, por pura magia ela desaparecia de todas as minhas fantasias, regressando ao mundo de onde viera e do qual eu nada sabia, nem nada desejava saber. 6
A Eva foi a culpada de ter para sempre desequilibrado aquele frágil equilíbrio. Logo no primeiro dia de aulas, muito antes de saber o seu nome, destacava-se de tal modo que ocultava a presença de todos os outros espectadores. Era impossível não reparar nos seus cabelos de oiro, nos seus olhos grandes, na mancha muito vermelha da sua boca que a convertiam numa estrangeira exilada no nosso país. Mas era o seu comportamento que a tornava única e misteriosa, como o deve ser uma autêntica musa. No final da aula, em vez de se levantar e sair da sala com os colegas, ficava para trás, continuando imóvel sobre a cadeira, olhando em frente. A qualquer altura da lição interrompia-me com uma pergunta inteligente, mas era sobretudo a sua voz que me encantava, e ao tentar responder-lhe tinha de controlar a agitação que esta me provocava. Quando anunciava que não poderia dar a próxima aula por algum motivo real ou fictício, ela levantava-se e exigia, para consternação dos colegas, que se marcasse de imediato uma aula de substituição. Mas eu tencionava cumprir o meu contrato e nunca lhe dirigi a palavra em privado, nem lhe dei qualquer indício de ser ela, e só ela, para quem dolo rosamente escrevia as minhas aulas. Aconteceu mesmo encontrarmo-nos lado a lado dentro de um elevador, passando eu toda a viagem olhando fixamente a porta metálica diante de mim. Como se receasse que ao olhá-la nos olhos ela fosse a Medusa cuja terrível beleza para sempre me transformaria numa estátua de mármore. Foi na aula de encerramento do semestre que começou o descalabro e, simultaneamente, a maravilha. Quando arrumava os livros e apontamentos preparando-me para sair, sem que o notasse, a Eva aproximou-se do estrado e disse-me que precisava de falar comigo. Sem me dar tempo para responder esperou que todos os alunos deixassem a sala para fechar a porta do anfiteatro e ir buscar uma cadeira na qual se sentou diante de mim. Senti medo. O meu idealizado contrato estava a ser quebrado e eu já não sabia o que poderia acontecer. A Eva foi directa ao assunto: professor, peço-lhe que me dispense do exame e me dê a nota dez porque tenho pressa de partir para uma viagem na América do Sul. Passado algum tempo, que me pareceu árduo de percorrer, respondi-lhe que isso estava fora de questão, que para ter uma nota tinha de fazer o exame na data marcada para todos os colegas. Não insistiu, e, sem dizer palavra, levantou-se e saiu da sala batendo a porta atrás de si. Eu fiquei sentado, a cabeça a latejar pousada sobre as mãos, ouvindo o sangue a bater nas veias. A minha musa era uma rebelde e a sua beleza indomável. Em vez de se esvanecer, como era presumido, tinha-se metamorfoseado num supremo objecto de desejo que me punha a alma em alvoroço. Salvou-me a esperança. Como iria deixar para sempre de ser minha aluna, tornava-se possível vir a ter com ela uma relação apenas humana. Só que não tinha a menor ideia nem de que tipo, nem como proceder. Foi ela que fez o que eu não podia fazer por ela. Durante o mês e meio de intervalo 7
entre semestres chegaram ao meu cacifo da faculdade três cartas assinadas pela Eva, cada uma acompanhada por um postal ilustrado. A primeira vinha de Nova Iorque e contava que tinha apanhado um táxi do aeroporto para a cidade cujo motorista estava completamente pedrado, não parava de fumar marijuana, ameaçava raptá-la para um bairro violento, tendo terminado por ser ela a conduzir o táxi até Manhattan, com o motorista adormecido no banco detrás. A segunda carta provinha do México e falava exclusivamente de uma rapariga de olhos verdes pela qual se tinha apaixonado e um dia desapareceu levando, entre outras coisas, a sua máquina fotográfica. A última vinha da Patagónia, no sul da Argentina. No postal, uma paisagem deserta, escrevera a epígrafe do livro de Bruce Chatwin, um dos autores de que tinha falado durante o semestre: Já nada existe senão a Patagónia que convenha à minha imensa tristeza. E assinou com uma única e enigmática frase: tu já vives na minha vida, se não fosses tu seria outra. Era sempre com um arrepio que lia e relia aquelas missivas. Eu já ansiava pela hora em que a teria de novo à minha frente, ao mesmo tempo que fazia promessas de não a procurar em nenhum lado. Ela devia ter metade da minha idade e o que quer que pudesse acontecer-nos parecia-me inevitavelmente um caminho sem saída. Telefonei à mãe do meu filho, que continuava a ser a minha melhor amiga, procurando um conselho sensato que me aliviasse daquela aflição que crescia. A mãe do meu filho riu-se muito de mim, depois de eu lhe contar todos os detalhes daquela peculiar relação, e disse para eu não me preocupar com nada. Que deixasse a vida passar e tudo por si se resolveria. Não fiquei sossegado. Eu não sabia nada da Eva, muito menos o que poderia fazer com ela, mas por vezes o desejo por aquele fantasma era tão intenso que tinha de tomar comprimidos se quisesse dormir. Recomeçaram as aulas, passaram-se meses, as musas deixaram de existir e a Eva era já uma imagem que não podia por completo reaver, que fugia mal a desejava fixar como numa fotografia. Mas, como notou Aristóteles, é provável que coisas improváveis aconteçam. Estava eu a passear numa tarde de inverno na deserta praia quando vejo avançar para mim, saindo do nevoeiro, a minha adorada musa renascida. Julguei, por momentos, estar a alucinar. Ela abraçou-me com muita força e depois deixou de me abraçar e começámos a andar um ao lado do outro sem dizer uma única palavra. Eu não saberia por onde começar, todas as palavras estariam a mais e seriam insuficientes. Foi ela que disse: vamos embora daqui. Dentro do meu carro ela pôs um disco compacto que trazia consigo e me pareceu ser música árabe, pôs os pés descalços sobre o tablier e, passado um quarto de hora de olhar as ondas a castigarem a areia, disse: leva-me a casa. Foi o que fiz. Não nos tocámos, nem nos despedimos. Deixou um papelinho no assento e saiu sem se virar uma só vez. Eu continuei parado a ouvir a música que já não me parecia árabe, mas sim indiana ou persa. No papelinho estava escrito um número de telefone. 8
Aguentei uma e depois outra semana e depois bebi de seguida dois cálices de Vinho do Porto e telefonei. Eva, não sei o que te diga, vou passar estes dias da Páscoa a uma casa que a minha irmã tem no sul, gostava que viesses comigo, não sei o que te diga. Ela respondeu como se nos conhecêssemos há anos: só posso ir na sexta, tenho uma consulta antes, eu vou ter contigo. Como? Apanho um autocarro e tu vais-me esperar ao autocarro que chegue mais perto das cinco da tarde. Erradamente eu nunca supusera que as musas pudessem andar em transportes públicos, mas às quatro e trinta e cinco de sexta-feira, a Eva desceu do autocarro e dirigiu-se para mim com uma camisa branca impecavelmente passada a ferro, jeans muito justos, enrolada dentro de um casaco curto de lã quente e azul. Parecia ter saído do chuveiro um quarto de hora atrás e quando me abraçou a pele dela cheirava a Primavera, a flores, a bebé. Eu tinha feito e refeito planos para a entreter: construído imaginadas lições sobre a viagem de regresso de Ulisses aos braços de Penélope, escolhido e voltado a escolher poemas de Kavafis que lhe gostaria de ler, telefonado para quatro restaurantes sem me conseguir decidir por nenhum. Mas, como sempre, a vida é imprevisível. Primeiro ela quis ver o mar, depois quis tirar os sapatos para molhar os pés, depois veio uma onda mais forte que lhe molhou as calças arregaçadas. Eu não estava em mim. Mal chegámos à casa da minha irmã pediu para tomar um banho quente e trocar de roupa. Fui para a sala tentar ler, mas não conseguia sair da mesma linha. Quando reapareceu pareceu-me mais maravilhosa do que nunca. A Eva era uma deusa do mar, um ser anfíbio que não pertencia a ninguém nem a lugar nenhum, uma mulher inexplicável como o são todas as musas. O que eu mais queria era beijar os caracóis do seu cabelo, o pescoço alto, os seios escondidos por uma fina camisola de caxemira. Claro está que não ia fazer nada disso. Ela tinha a idade do meu filho e eu tinha a obrigação de ser responsável pelo que acontecia, nada iniciando que lhe pudesse fazer mal e de que eu me pudesse vir a culpar sem remissão dos pecados. De manhã tinha telefonado à mãe do meu filho para me lembrar e convencer de que continuava uma pessoa moral, enquanto do outro lado do aparelho só a ouvia rir, como se a minha vida se tivesse subitamente transformado numa comédia. O que eu receava era a tragédia desde sempre anunciada. Não me lembro do que comemos, de facto nem sequer me lembro de comer, preso aos movimentos lentos das suas mãos e dos seus lábios, petrificado face à inextinguível beleza. A noite estava magnífica mostrando todas as suas estrelas e, como não estava frio, resolvemos subir para o pátio superior da casa onde havia dois canapés nos quais nos deitámos olhando o brilho do mar e a imensidade do céu. Disse-lhe, depois de um demorado silêncio, sem saber bem o que dizia: Eva, tu és o céu da minha boca, a mais resplandecente das estrelas. Para ser perfeito só falta uma sinfonia de Mahler, disse ela como se fosse uma resposta. Senti-me tremer. No iPod que o meu filho me tinha 9
oferecido pelo Natal eu tinha gravadas as dez sinfonias de Gustav Mahler e eu tinha o iPod no bolso das minhas calças desde que a tinha ido esperar ao autocarro, para o caso de ela se atrasar ou, grande horror, não chegar a vir. Recomeçou a magia. Aproximei o meu canapé do dela, escolhi o adaggieto da quinta sinfonia e, como só tínhamos um par de auscultadores, eu fiquei com o da esquerda e ela com o da direita. A música, a noite, o suave vento entonteciam-me. Fechei com força os olhos pedindo que aqueles momentos ficassem para sempre e depois senti qualquer coisa terna, viva e quente a percorrer o meu pescoço até achar a minha boca. Era a boca dela. Assim começou um beijo que se prolongou durante muito tempo. Fazer amor com ela era uma cerimónia deliciosa e delicada, que já me julgava para sempre negada, e tudo era uma surpresa. Dar-lhe prazer de todas as maneiras, as mais subtis, e unicamente isso, parecia-me, em desvairadas horas, ser o meu destino por fim revelado. Durante alguns meses senti-me feliz se bem que, de quando em quando, me as- saltasse uma dúvida dolorosa. Eu tinha idade para saber que a paixão promete o que não pode: durar eternamente. Pelo contrário, consome-se, e quanto mais violenta mais célere. E depois vinha sempre a diferença de idade. Num restaurante perguntaram-me o que é que a minha filha desejava comer. Num concerto na Gulbenkian um antigo co- lega aproximou-se de nós e disse: imagina tu que julgava que tinhas um filho, não uma filha. Quando ela conheceu o meu filho ocorreu-me que eles pudessem ser namorados e nessa noite sonhei que fugiam juntos enquanto eu chorava. Senti culpa e vergonha. A minha relação com a minha adorada amante tinha qualquer coisa de incestuoso que eu não pretendia aprofundar, mas me fazia por vezes sofrer. Tinha receio de não ser eroticamente suficiente, de me faltar algo, do corpo me trair e, pior que tudo, que ela subitamente anunciasse que, sem querer, se tinha apaixonado por um jovem campeão em qualquer coisa. De qualquer modo era um escândalo e quando ela me começou a dizer que gostava que eu conhecesse o pai dela, eu arranjava desculpas para adiar a data. Era bem possível que o pai dela tivesse frequentado, ao mesmo tempo que eu, o Jardim-Escola João de Deus. A vida é cheia de reviravoltas e se uma história tem de fazer sentido para que se possa ler, o que de facto acontece escapa excessivas vezes a uma qualquer compreensão. Foi justamente isso que aconteceu. Depois de regressar da universidade de Austin nos Estados Unidos, onde durante seis semanas conduzi um seminário sobre a primeira poesia de W. H. Auden, a pessoa que me esperou no aeroporto com um ramo de rosas, beijos e algumas lágrimas, não era a mesma que eu tinha deixado adormecida no dia em que parti. Precisei de tempo para a reconhecer. Teria perdido talvez dez quilos. Debaixo da pele transparente da cara desenhavam-se veias azuis. E, mais chocante que tudo, o seu cabelo que eu idolatrava já não era o seu cabelo, mas sim o de uma peruca. De novo 10
todas as palavras me pareceram inúteis. Dentro do carro confessou-me que a doença já tinha sido detectada antes de nos conhecermos, e, de repente, alastrou como uma gota de veneno num copo de leite. Foi ela que usou esta imagem. Só então me lembrei de alguns indícios aos quais não tinha dado importância. O sangrar pelo nariz. Súbitos cansaços. Dias em que me dizia que precisava de estar sozinha e desaparecia. Sobretudo aquela vontade de viver tudo, aprender tudo, a constante inquietação de existir uma meta e um tempo marcados. De um momento para o outro era ela que se encontrava mais perto da morte do que eu, trocando de lugar na fila dos condenados à nascença. Foram só precisos dois meses para a minha amada musa desaparecer deste mundo que não a merecia. Morrer é ainda mais misterioso do que nascer e é de facto absolutamente incompreensível: estar vivo e depois deixar de viver, estar aqui e depois deixar de estar aqui, sem nunca chegarmos a saber o que é isso a que chamamos vida. Nas últimas semanas, que passou em casa, a Eva já não era a Eva, mas eu insistia em falar-lhe dos autores e dos livros que eu sabia serem os seus favoritos e lia-lhe poemas até desmaiar de cansaço sentado num cadeirão. Na missa do funeral a mãe pediu-me que lesse a passagem das escrituras que fala de amor e de morte. Demorei meses a recompor-me, se bem que nunca mais tenha vindo a ser quem quer que antes tenha sido. Para saber o que é a vida é preciso morrer. Deixei de dar aulas, desistindo de ensinar o que quer que seja a quem quer que seja, vim viver para o primeiro andar da casa da mãe do meu filho, comecei a escrever. Era a minha musa exigente e irrequieta que a isso me obrigava, ou pelo menos estava disso convencido, o que é o mesmo. Dedico-lhe todos os meus livros que têm tido sucesso embora ignore por completo porquê. Nunca me tinha passado pela cabeça que o que escrevo pudesse interessar alguém, muito menos que esse alguém desse dinheiro por um deles. Não sou feliz, nem infeliz. Aguardo as horas. Todas as primeiras terças-feiras de cada mês passeio pelo cemitério dos Prazeres e levo-lhe rosas. Um dia, em que já não haja dias nem horas, voltarei a sentir o abraço dos teus braços e perder-me-ei de novo no brilho dos teus olhos. O que vivi merece ser escrito, para me lembrar que vivi.
Este texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.
Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN
11
—• — Lista de autores, por ordem de saída dos contos:
Pedro Paixão | João Tordo | Rui Zink | Luísa Costa Gomes | Eduardo Madeira | Inês Pedrosa Afonso Cruz | Gonçalo M. Tavares | Manuel Jorge Marmelo | Mário de Carvalho Dulce Maria Cardoso | Pedro Mexia | Fernando Alvim | Possidónio Cachapa | David Machado JP Simões | Rui Cardoso Martins | Nuno Markl | João Barreiros | Raquel Ochoa | João Bonifácio David Soares | Pedro Santo | Onésimo Teotónio Almeida | Mário Zambujal | Manuel João Vieira Patrícia Portela | Nuno Costa Santos | Ricardo Adolfo | Lídia Jorge | Sérgio Godinho
Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN
Contos Digitais DN A coleção Contos Digitais DN é-lhe oferecida pelo Diário de Notícias, através da Biblioteca Digital DN. Autor: João Tordo Título: Cidade Líquida Ideia Original e Coordenação Editorial: Miguel Neto Design e conceção técnica de ebooks: Dania Afonso ESCRIT ÓRIO editora | www.escritorioeditora.com © 2012 os autores, DIÁRIO DE NOTÍCIAS, ESCRIT ’ORIO editora ISBN: 978-989-8507-06-8 Reservados todos os direitos. É proibida a reprodução desta obra por qualquer meio, sem o consentimento expresso dos autores, do Diário de Notícias e da Escritório editora, abrangendo esta proibição o texto e o arranjo gráfico. A violação destas regras será passível de procedimento judicial, de acordo com o estipulado no Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.
sobre o autor —• —
João Tordo Nasceu em Lisboa, em 1975. Em 2009, venceu o Prémio Literário José Saramago com o romance
As Três Vidas (2008), depois de, em 2001, ter vencido o Prémio Jovens Criadores na categoria de Literatura. Foi finalista do prémio Melhor Livro de Ficção Narrativa da Sociedade Portuguesa de Autores, bem como do Prémio Fernando Namora em 2011, com o romance O Bom Inverno (2010), e do Prémio Portugal Telecom 2011 com a edição brasileira de As Três Vidas. Publicou também O Livro dos Homens sem Luz (reeditado em 2011) e Hotel Memória (2007). Anatomia
dos Mártires (2011) é o seu mais recente romance. Está nomeado para o Prémio Literário Europeu 2012, pela edição francesa de O Bom Inverno. Mais informações em joaotordo.blogs.sapo.pt
Cidade Líquida —• —
João Tordo
Nos meus últimos dias em casa com a mulher que deixou de ser minha lembrei-me, em diversas ocasiões, de Roque dos Santos. Tínhamo-nos conhecido em Veneza, no princípio do Verão, num restaurante à beira da água. Eu apresentara-me descaradamente; ele, debruçado sobre esparguete com anchovas, respondera com educação. Depois passámos uma tarde inteira a beber e, no final, reflectindo nas coisas que com ele descobri, decidi separar-me. Essa história existe e está contada algures, num molho de papéis perdidos. Uma noite, deitado no sofá do escritório que eu improvisara no quarto desocupado que havíamos reservado para a chegada de um improvável filho, vi um longo documentário sobre os Beatles. O documentário durava quase oito horas; passei a noite acordado. Cheguei à conclusão de que Roque fazia-me lembrar George Harrison (ou talvez fosse George Harrison quem fizesse lembrar Roque, embora o músico tivesse uma bondade no olhar completamente ausente dos olhos do realiza- dor). Concluí, mais tarde, que era a maneira de falar que me recordava de Roque: a voz ligeiramente arrastada e depois rematando as palavras mais importantes; também o formato das sobrancelhas e a expressão de alguma ausência. Na verdade, não havia nada de especial em Roque. Mas o que haveria de especial em Harrison? Roque era baixo, despenteado, carrancudo, tinha a barba sempre por fazer; era igual a milhares de homens que todos os dias passavam na rua. E, contudo, eu via-o em toda a parte, destacado, como uma coisa iluminada no meio de um corredor escuro. Via-o na esquina e no café; via-o no metropolitano e na barbearia. Um dia acordei de manhã e vi-o no espelho da minha casa de banho. O meu coração saltou e disse 6
um palavrão. Depois tapei a boca para não acordar a minha mulher. No espelho estava apenas eu, ou a minha imagem, porém, durante a fracção de um momento, esta parecera estar sobreposta por outra, um rosto sobre um rosto, ou o meu rosto sobre uma sombra que habitava o espelho do outro lado. Roque tinha estado ali durante um fugaz momento e, depois, desaparecera deixando um rasto sinistro de si mesmo. Numa outra noite fui a uma loja e comprei o filme Cidade Líquida. Revio sozinho, depois de jantar em pé, ao balcão da cozinha. A minha mulher não estava em casa, mas preferi vê-lo no escritório, de porta fechada. Pensei, enquanto via as imagens a preto e branco saturadas que apareciam no pequeno ecrã de uma televisão antiga, que a memória sofre distorções incompreensíveis mesmo para aqueles que se consideram sãos (como eu me julgava então) e que essas distorções reforçam apenas o sentimento de que a vida é uma ficção escrita diariamente na qual tudo se torce e retorce de acordo com a vontade de alguém. Alguém que não somos nós; que não podemos ser nós. Se o homem busca a verdade e no interior do homem habita a verdade, então no interior do homem existe também uma cortina que a oculta. O filme era completamente diferente do que eu recordava. Agora tinha a certeza (mas teria?) de que era o primeiro filme que vira com a minha mulher, pois só a promessa de um amor pode alterar de forma tão significativa uma evocação. José Duchamp e Teresa Worthless — que, no filme, chamavam-se José e Teresa — eram, de facto amantes, embora a inundação progressiva da cidade não fosse provocada pelo amor, mas sim pelo desamor. Há poucos diálogos, quase nenhuns: é uma história de fugas e perseguições. José segue Teresa pela cidade, uma Veneza desabitada tão diferente daquela que eu conhecera, e via-a encontrar-se com outro homem. Num beco escuro, enquanto José observa, Teresa põe-se de joelhos e faz sexo oral a esse homem, um estrangeiro de pele escura e barba cerrada. O chão está coberto de água e ouvimos o chapinhar dos joelhos dela e a respiração pesada do homem. Noutro momento, entra numa igreja branca e cospe sobre as imagens dos santos; com as unhas arranha a talha dourada. José, aparentemente religioso, senta-se ao fundo da nau e persigna-se. Noutras vezes, Teresa persegue José, sem sabermos o porquê da mudança de perspectiva. José entra em vários bares e bebe desesperadamente, como se tentasse anular a realidade; não é claro que o actor não esteja, de facto, a beber. Depois deambula ao acaso, caindo às esquinas e para cima dos transeuntes. Teresa observa-o à distância e não intervém, mesmo quando um homem sentado num degrau, no qual José tropeça pela segunda vez, se levanta e o agride com um soco violento. Essa cena termina com o actor num beco escuro e inundado, em tijolo de pedra, onde cai redondo e adormece, a água tapando-o até ao pescoço. No plano seguinte, José está a correr por uma rua estreitíssima e ouvem-se as vozes iradas de um grupo que o persegue: roubou uma carteira a um de três homens de aparência 7
árabe. Teresa corre atrás do grupo, desesperada, como se fugisse de uma espécie de morte, mas as vozes evadem-se e desaparecem na noite aquática e perde-os de vista. Ficamos com ela, sozinha, no meio de uma praça deserta. José e Teresa: o único objectivo dos amantes parece ser magoarem-se e magoarem-se novamente, até o destino estar cumprido. E, novamente, a cortina que oculta a verdade. O final, ou destino, ou o único momento que parecem verdadeiramente partilhar, abraçados em torno do campanário de uma igreja enquanto a água toma a cidade, era também ele distinto da minha recordação. José e Teresa não se beijam. Ficam a olhar-se com alguma coisa parecida com desprezo, mas também com a dor demencial da perda: a perda do outro, a perda do tempo, a perda do tempo de vida. Deixei o genérico passar até ao final mas devo ter adormecido antes de terminar porque, de madrugada, despertei com a chuva e o restolho de um ecrã ligado sem qualquer sinal à Terra. Encontrei um apartamento na Baixa da cidade. Era um quinto andar na Rua dos Correeiros, umas águas-furtadas com cheiro a mofo e a gás canalizado. Quando disse à senhoria a minha profissão ela olhou-me com suspeita. Professor de quê? De Filosofia. E quer vir para aqui? Quero. Vai-se a ver e quer é estar sozinho com as suas filosofias. A preocupação da senhora, praticamente uma anciã, era compreensível. O prédio parecia quase desabitado; à noite, a Baixa variava entre um silêncio próprio dos túmulos e os gritos de dor existencial de um ou outro bêbedo desgovernado que rompiam o negrume das minhas noites pombalinas. A porta do prédio era gigante, quase desmesurada para a força de um homem: tinha uma chave enorme, grande como um badalo, como se guardasse a masmorra de um dragão, que fazia rodar uma pesada fechadura. A porta chiava e chiava. Não havia elevador, e as escadas eram bafientas e esburacadas. Havia muito tempo que aquele prédio morrera, mas era como um espírito ignorante da sua própria morte. Só tinha um vizinho. Ele vivia no andar por cima do meu e tomava vários banhos de imersão por dia. Ou, pelo menos, era isso que eu presumira. Ao final da tarde, quando a cidade escurecia de tristeza, a água começava a correr e corria durante uma ou duas horas, talvez mais. Depois escutava o gotejar incessante da água nos canos. Pingava a noite toda e penetrava-me os sonhos. Uma noite, depois de eu chegar a casa da escola, prestes a matar Espinoza e a amaldiçoar Kant, tocaram à porta. Levantei-me do sofá onde adormecia um sonho 8
proscrito e fui abrir. À porta estava um mensageiro que me entregou um telegrama cantado. Enquanto o homem dançava e batia palmas não pude deixar de imaginar o que seria ter aquela profissão; deu-me vontade de chorar. O recado era de Roque dos Santos, convidando-me para uma projecção em sua casa. Não fazia ideia de como saberia ele onde eu viva; também não o perguntei ao mensageiro, que parecia um rapaz à beira do abismo. A mensagem convidava-me para a projecção de um filme em casa do realizador. Cheguei mais cedo do que devia. Toquei à campainha. Roque abriu a porta em cuecas, coçando com a mão direita o peito encovado, o cabelo comprido todo despenteado. Harrison, pensei. Disse-me para entrar e desapareceu por um corredor escuro. Fui na direcção da luz. Embora fosse noite lá fora, a sala, iluminada por um ecrã gigante no qual passavam imagens desfocadas de ruas, imitava a claridade de uma manhã de Inverno. Havia uma mulher sentada num sofá. Apresentei-me e, depois, julguei reconhecê-la, embora somente os olhos me fossem familiares. Lembrei-me de uma praça deserta e do chapinhar da água: eram os olhos de Teresa Worthless. Contudo, tudo o resto mudara nela, como se o tempo fosse uma onda catastrófica de detritos que cortam e rasgam; o rosto, outrora belo, era agora uma máscara de crueldade, apertada por uma maquilhagem excessiva; os lábios gritavam vermelho, as comissuras gretadas; o nariz, como sempre sucede com a idade, tornara-se mais pequeno e frágil, a cartilagem parecendo querer furar a pele; o cabelo era palha negra e armada, sem sinal de movimento. Mas os olhos permaneciam os mesmos. Fiz umas quantas perguntas mas a mulher limitou-se a acender um cigarro atrás do outro, apagando as beatas manchadas de batom num cinzeiro que mantinha ao colo. Perguntei-me por Roque, mas não havia sinal dele. Cedo a casa começou a encher-se de gente. Ninguém abria a porta e também ninguém tocava: bastava empurrar, a porta encontrava-se aberta. Um homem gordo e calvo trouxe um projector e, depois de o montar, começou a passar um filme de Roque dos Santos que se chamava O Homem da Linha Eléctrica. O filme era a cores, mas as cores estavam desbotadas, quase mortas; folhas decadentes no Outono, sem futuro. Não tinha história. Limitava-se a seguir o diaa-dia de um homem que subia aos postes de electricidade e manipulava os fios com várias ferramentas. Depois ia para casa, jantava sozinho, dormia e, no dia seguinte, tornava a fazer o mesmo. Era difícil dizer se o filme era ficção ou um documentário. Ninguém parecia prestar atenção à projecção. A sala estava cheia, quase demasiado cheia, de gente mais nova do que eu, certamente mais nova do que Roque dos Santos. Ninguém parecia importar-se com a ausência do anfitrião: bebiam das garrafas e conversavam muito alto, abafando os sons minimalistas do filme. Procurei por Teresa Worthless no sofá e não a encontrei; presumi que, com a chegada dos convivas, tivesse decidido partir. Quando dei por mim estava encostado 9
à parede, espremido por corpos, procurando desesperadamente não entornar um copo de cerveja. As pessoas não paravam de chegar e, a certa altura, vi uma rapariga desmaiar do sufoco. Em redor dela abriu-se uma clareira e, depois, foi levada em ombros para a rua. Senti que não conseguia respirar: uma mulher muito grande, vestida de veludo púrpura, apertava-me como se eu não existisse ou fosse um pedaço de mobília. A muito custo atravessei a sala. Cheirei perfumes nauseabundos e o suor dos homens. No ecrã, a personagem da linha eléctrica despertava. Avancei na direcção do corredor. Quando entrei nele, o barulho ensurdecedor da sala pareceu desvanecer-se. A escuridão era completa. Tacteei as paredes frias; a sensação, na ponta dos dedos, foi reconfortante. Encontrei uma porta e abri-a. Dava para um quarto na penumbra; através de uma janela alta entrava a luz distante de um candeeiro de rua. Vi uma cama desarrumada e alguns livros espalhados pelo chão. Chamei: Roque. Estou aqui, respondeu ele. A voz surgiu da direcção do armário. Aproximei-me: as portas estavam fechadas. Dentro do armário? Sim, disse a voz. O que estás aí a fazer? Estou escondido, respondeu ele. A ver se me encontravam! Encontrei-te, disse-lhe, sentindo-me ridículo. E o filme?, perguntou ele. Uma linha de fumo emergiu do interstício das portas; Roque fumava lá dentro. Não consegui ver todo. Está muita gente. Canalhas, resmungou. Encontrei a Teresa, disse-lhe. Mas foi-se embora. Quem? Uma nova linha de fumo emergiu do interior do armário; aproximei-me e respirei-a. A actriz de Cidade Líquida. A Teresa Worthless, insisti. Uma batida forte e seca na madeira do armário fez-me dar um salto para trás. Idiota, disse ele. A Teresa morreu há mais de dez anos. Cancro do pulmão. Desculpa, lamentei. Era uma mulher muito parecida com ela. Estava sentada na sala quando cheguei. Não havia ninguém na sala quando chegaste. Então era um fantasma. Então era um fantasma, concordou ele. 10
A porta do armário abriu-se de repente e, do interior, surgiu a mão de Roque dos Santos. Levei um estalo com alguma força, uma chapada de mão aberta que me deixou atordoado durante uns segundos. A porta do armário fechou-se imediata- mente a seguir e, poucos segundos depois, Roque dos Santos ressonava no interior. De repente senti-me muito cansado, como se tivesse atravessado um deserto ou pernoitado num campo de batalha. Sentei-me no chão, de costas para o armário, observando a luz do candeeiro de rua que, lá fora, morria de intermitência. Pensei, sem saber porquê, na minha mulher. Pensei que, tal como Teresa, também ela era uma ilusão de realidade, uma inconsistência; um equívoco no frágil tecido das coisas. Os sons desapareceram todos e fez-se silêncio. Uma brisa entrou pela janela aberta e, pela primeira vez em muito tempo, senti frio. O Verão chegava ao fim. Fechei os olhos e adormeci. Quando acordei ainda era noite: pé ante pé, saí do quarto, escutando ainda o ressonar distante do outro, atravessei o corredor escuro, desembarquei na sala que estava vazia e cheirava a fumo, a álcool e a suor. O projector permanecia ligado, a brancura projectada na parede tremia. Quando saí para a rua começou a chover, uma chuva fria que anunciava uma estação de melancolia. Cidade Líquida, ocorreu-me, e sorri. Era a minha estação preferida.
Este texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.
Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN
11
—• — Lista de autores, por ordem de saída dos contos:
Pedro Paixão | João Tordo | Rui Zink | Luísa Costa Gomes | Eduardo Madeira | Inês Pedrosa Afonso Cruz | Gonçalo M. Tavares | Manuel Jorge Marmelo | Mário de Carvalho Dulce Maria Cardoso | Pedro Mexia | Fernando Alvim | Possidónio Cachapa | David Machado JP Simões | Rui Cardoso Martins | Nuno Markl | João Barreiros | Raquel Ochoa | João Bonifácio David Soares | Pedro Santo | Onésimo Teotónio Almeida | Mário Zambujal | Manuel João Vieira Patrícia Portela | Nuno Costa Santos | Ricardo Adolfo | Lídia Jorge | Sérgio Godinho
Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN
Contos Digitais DN A coleção Contos Digitais DN é-lhe oferecida pelo Diário de Notícias, através da Biblioteca Digital DN. Autor: Rui Zink Título: Um Romance Ideia Original e Coordenação Editorial: Miguel Neto Design e conceção técnica de ebooks: Dania Afonso ESCRIT ’ORIO editora | www.escritorioeditora.com © 2012 os autores, DIÁRIO DE NOTÍCIAS, ESCRIT ÓRIO editora ISBN: 978-989-8507-11-2 Reservados todos os direitos. É proibida a reprodução desta obra por qualquer meio, sem o consentimento expresso dos autores, do Diário de Notícias e da Escritório editora, abrangendo esta proibição o texto e o arranjo gráfico. A violação destas regras será passível de procedimento judicial, de acordo com o estipulado no Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.
sobre o autor —• —
Rui Zink Nasceu em Lisboa, em 1961. Escritor, tradutor e professor no Departamento de Estudos Portugueses da Universidade Nova de Lisboa, tem mais de duas dezenas de obras publicadas. Algumas delas traduzidas para inglês, alemão, hebraico, japonês, romeno, italiano, sérvio, croata e francês. Entre romances, novelas, livros de contos e novelas gráficas, podemos destacar Hotel Lusitano (1987 – novela de estreia), A Realidade Agora a Cores (1988), Homens-Aranhas (1994), Apocalipse Nau (1996), O Suplente (1999), Os Surfistas (2001), O Anibaleitor (2006), O Destino Turístico (2008 — Prémio Ciranda), A Arte Suprema (1997 — Prémio Melhor Livro Amadora BD) e Rei (2007; em coautoria com António Jorge Gonçalves). Recebeu o Prémio do P.E.N. Clube Português, pelo romance Dádiva Divina (2005) e, recentemente, viu um trecho de O Destino Turístico ser integrado na antologia Best European Fiction 2012. Os seus mais recentes títulos são O Amante é Sempre o Último a Saber (2011), Luto pela Felicidade dos Portugueses (2012) e A Instalação do Medo (2012).
Um Romance —• —
Rui Zink
O leitor tem um instantinho? Também perdeu o comboio, como eu, e agora está aqui a fazer horas? Então deixe-me contar-lhe uma história. Juro que vai valer a pena. Vai ser a mais linda história que alguma vez leu. Enfim, talvez não a mais linda. Talvez nem seja linda sequer. Mas o leitor achá-la-á linda, e levá-la-á consigo, junto ao coração, como eu a tenho trazido junto ao meu. Esta aventura foi antes dos telemóveis. Não muito antes, mas um antes algum antes. Nos anos 80, salvo erro. Num restaurante que ficava ao lado dum cinema, quarta ou quinta à noite, eu tinha ficado de jantar com o Aristides antes do filme, mas ele estava mais atrasado que de costume. Para fazer tempo pus-me a olhar à volta, e acabei por me interessar por um parzinho na mesa ao lado, nervositos pela adivinhação mútua do que, para mim, é o ponto de rebuçado dos encontros amorosos: a noite em que quase de certeza. A noite em que. De resto, nem seria preciso o meu olhar treinado para perceber que era um jantar romântico. Homem e mulher, nos trinta e poucos. Ela: bonita, ar enxuto. Ele: pãozinho meio-sal. As feromonas tinham sido inventadas há pouco mais de vinte anos, mas um escritor não precisa da ciência para saber o que vê.1 Tensão óbvia, romance anunciado. Aperaltados, sobretudo ela. Jantar romântico. O programa da época, decerto: jantar —> cinema —> beijo. O meu diagnóstico certeiro apenas admitia uma dúvida: se, por inaceitável incúria, adiariam a coisa para ainda mais um
1
Por Peter Karlson e Adolf Butednant (cf. Wikipédia)
6
assalto (mais uma corrida, mais um encontro) antes do apito final. Falavam baixo, como se faz nestes casos. Felizmente, além de olhos para ver e cabeça para matutar, o observador atento que eu sou foi sobredotado com orelhas de oiro. “Desculpa, Carolina”, disse ele. “Mas acho que não podemos...” Fiquei banzado. Ele disse isto com um ar seriíssimo, a garganta mais presa que numa cela da Pide. Daquelas vozes que uma pessoa faz quando tem algo de excéssivement grrrave para dizer.2 Carolina estremeceu. O que pode uma mulher fazer, quando escuta uma coisa destas? “Desculpa, acho que não podemos...” Não haveria outra forma de o imbecil dizer aquilo? Desculpa, filha, o que houve entre nós acabou. Nem outro local? Felizmente (as mulheres nisto são incríveis), se Carolina por um momento perdeu o equilíbrio, logo o recuperou: “O que queres dizer com isso, Artur?” Foi a vez de ele engolir em seco. Pigarrear. Coçar a cabeça. Etc. “Bem…” Este Artur (e tinha mesmo cara de Artur, o pobre) devia saber que ia ser difícil. E eu fiquei desapontado com o meu olhar treinado. Pensava que estavam ainda na tal noite e, afinal, pelos vistos, iam já no descerrar da cortina cinzenta que, mais cedo ou mais tarde, se abate sobre as coisas de amor. Mas logo me recompus, ao perceber o dilema de Artur: era evidente que ele não queria rejeitá-la, pelo contrário, amava-a (era visível a olho nu, ou mesmo vestido), desejava-a (oh, se a desejava), estava apanhadinho por ela (ai estava, estava). O problema era que. O problema... Enfim, qual era o problema? Artur foi salvo pelo gong, porque os pratos vieram. Para ela cannelloni. Para ele lasagna. Uma escolha apropriada, pareceu-me. “Carolina, não quero fazer isto pior do que já está…” E Artur tirou uma garfada da sua lasagna. Houve um lado bom e um lado mau nesta garfada. O lado bom é que era um truque eficaz para ganhar tempo, protelar a explicação obrigatória que, mal explicada, só o levaria a embrulhar-se mais. O lado mau é que aquela não era ocasião para ocupar a boca com outra coisa que não palavras. Palavras de preferência doces, carinhosas, compreensivas. E compreensíveis, já agora, se não fosse muito incómodo para o estimado cavalheiro. Palavras ou um beijo. Um beijo suave, nos lábios, dado por sobre mesa e copos e pratos. 2
O leitor não sabe o que era a Pide? Eu agora não tenho tempo para explicar, mas posso dizer
onde era: no sítio onde agora é aquele condomínio giro, na António Maria Cardoso, ao Chiado.
7
Num ápice, não me pergunte como, que um mágico nunca revela os seus segredos, fiquei a saber tudo. Havia dois meses que se encontravam com crescente frequência. No caso dela isso implicava um grande esforço logístico, pois tinha dois filhos pequenos. Ainda não era o tempo dos computadores nem da internet nem do facebook, mas já então virara moda o divórcio com as crianças ainda pequenas. As teorias variavam: a crise dos dois anos, a crise dos cinco anos, a crise dos... Uma análise comezinha à realidade provaria, suponho, que a crise é permanente. Sempre foi mais fácil destruir do que construir. Criticar do que fazer. Ou falhar uma promessa — “amar-te-ei para sempre” — do que levar a bom porto essa ingénua jura. Um dos muitos encantos de Carolina era a franqueza. Um par de vezes tomara ela própria a iniciativa e convidara Artur a sair. Mostrando assim, com frontalidade, o seu interesse por ele. Mais frontal só esfregando o fio dental no focinho dele. Só que, à época, fio dental era apenas um cordão para limpar os dentes. Tinham já ido a um cinema. Dado um passeio. Jantado fora. Ido a outro cinema. De novo jantado fora. Ido ao teatro. Naquele tempo ia-se ao teatro, eu sei, é difícil de acreditar. O leitor sabe o que significava nos anos 80 um homem e uma mulher “jantarem fora”? Havia (não sei se ainda há, hoje saio pouco) toda uma diferença entre “almoçar” e “jantar”. Não se ia para um jantar de ânimo leve, não senhora! Um jantar a dois, sobretudo se repetido, era toda uma promessa. Aliás, pensando bem, quase sempre fora Carolina quem tomara a iniciativa. Mulher divorciada, ora aí está. Mulher fora de jogo que quer regressar ao jogo. Nada de mais justo. Ela queria voltar ao jogo, e o jogo também queria voltar a ela. E por que não? Tinha direito. Era jovem, bonita, inteligente. E mesmo que não fosse — teria direito à mesma. A jogar o jogo. O problema era que, pelos vistos, escolhera o parceiro errado para o jogo. Este Artur... Só à chapada. Tenho uma teoria: são sempre as mulheres que escolhem os homens. Tenho também outras teorias, e esta nem sequer estou seguro de que seja minha, mas o importante não é isso. O importante é que faz sentido. Os homens seduzem as mulheres? E desde quando? Confesso que nunca vi, nem na vida que vivi nem nas que li (e muito menos nas que escrevi), uma mulher “ser escolhida” por um homem. O contrário sim, e com assustadora frequência. Este caso é apenas mais um exemplo concreto. Mas eu, claro, sou suspeito. Não é só a beleza que está no olhar de quem vê, é também o sentido da vida. Carolina, embora estivesse uns furos acima daquele panhonhas, queria Artur. Escolhera-o. E, dava agora conta disso à minha frente enquanto eu esperava o Aristides, ela cometera o erro de pensar que também fora escolhida por ele. Erro de cálculo ou de apreciação? Os convites dela, por exemplo. É certo que uma vez Artur se esquivara. “Hum… 8
amanhã tenho uma reunião importante.” Mas não se esquivara por aí além. Ela pensara: é tímido ou está a fazer-se caro. E até achara graça: um homem feito a comportar-se como uma menina coquete. Tinha o seu lado querido. Tampouco ele podia argumentar inocência. Quem é que ainda a semana passada havia dito: “Carolina, bailado Gulbenkian amanhã? Tenho dois bilhetes.” 3 (Ela não pôde, tinha imensa pena porque queria imenso ir, mas dum dia para o outro não conseguia babysitter.) Ora bem. Caída a máscara do completo anjinho. Até porque... Ela era linda, de morrer. De morrer por ela. Então por que não morria o desgraçado? Qual era o problema dele? Calma, leitor, já lá vamos. Quem tem pressa vê televisão. Conheciam-se vagamente há muitos anos. Vagamente é a palavra. Já quando andavam na faculdade se sorriam — mas à distância. Timidez dele, que atingia níveis estratosféricos de incompetência quando ficava enlevado, timidez também dela, embora no Técnico as raparigas nunca fossem tão prejudicadas por esse óbice. Pertenciam ambos ao mesmo clube partidário, nos anos 70 tinham ido às mesmas festas, já então ele a achava “muito gira”. Mas era trinta cães a um osso, branca de neve e os setenta engenheiros informáticos. (Estou a brincar, ainda não havia Engenharia Informática naquele tempo.) Ainda Artur ponderava como sacar a arma do coldre, já o outro tinha puxado o gatilho. E dava para ver que, a menos que o namorado fosse parvo, aquilo ia durar até ao fim dos tempos. O namorado de Carolina era tudo menos parvo. A prova? Tinha-a catrapiscado, não tinha? Depois, seguiu-se o percurso clássico. Carolina e o namorado acabaram por ir viver juntos e o casamento lá surgiu. Casaram por portuguesíssimas razões: inércia e sentido prático. Por um lado a influência dos pais, que os subornaram com os habituais utensílios domésticos e prendas em dinheiro. E foram também incapazes de perceber que “dar uma alegria à família e às tias” não é razão para ir à igreja dizer disparates como “para o melhor e para o pior, na pobreza e na riqueza, até que a morte vos separe”. Mais ridículo só a do “amor para sempre”. Por amor de Deus! Quem quer amor para sempre compre um cão. As pessoas têm uma relação muito curiosa com os problemas: acreditam que, como as doenças, eles se curam a si próprios se dermos “tempo ao tempo”. O problema é que: nem sempre, nem sempre. 3
Sim, leitor, acredite se quiser, a Fundação Gulbenkian teve em tempos uma companhia de bailado (1965-2005).
9
Depois tiveram um filho, já com algumas histórias pelo meio. Do marido, sobretudo. O costume. Eu sei, leitor, é difícil acreditar, mas naqueles tempos era quase sempre o marido o primeiro a baixar a guarda. E, já em período de descontos, a bronca de alguidar estala. Um dia, o marido volta suspeitosamente tarde. Carolina está acordada e em furor alcoólico. Há discussão da grossa, o marido promete deixar a outra, Carolina dá-lhe um estalo, ele dá-lhe outro a ela e, estúpidos, fazem “as pazes” no sofá da sala. Oito meses depois, com Carolina gravidíssima, entra em cena nova namorada do marido, mais implacável e decidida que as anteriores. “A tua mulher ou eu, escolhe.” A namorada era mais jovem, Carolina parecia um pato a andar. O marido escolheu bem. Agora, o ex-marido há mais de dois anos fora de jogo, ali estava Artur no jantar íntimo a dois. E Carolina também no jantar íntimo a dois. Bonita e desejável, eu e o meu compincha Deus somos testemunhas. Tinham-se tropeçado na Rua Garrett, rido muito, nervosos e felizes, combinado voltar a encontrar-se. E, milagre, tinham-se encontrado. Para espanto de Artur finalmente ela reparava nele; ele que, no fundo, estivera sempre ali. Há muito tempo que estava ali, no banco de suplentes, como um candeeiro, um cinzeiro, um abajur. Ele agora parecia diferente. Mais sério, mudado, com bom ar. Parecia um gestor de empresas, embora (ele explicou) fosse apenas adjunto do adjunto de um presidente de um qualquer instituto criado especificamente para sugar a anunciada mina da CE.4 Subtilmente ela conseguiu saber que não, ele não estava “com ninguém”. Sim, também ele saíra de uma relação que correra mal e estava livre como um passarinho. Não um daqueles passarinhos que estão em gaiolas. Os outros. Também não dos que vão ao chão com uma fisga. Dos outros. O rosto dela quando ele disse que estava livre valia por dez cartazes à beira da estrada. Mas nem assim, em todas estas semanas de encontros, ele avançara alguma vez para o boca-a-boca que, segundo uma lenda milenar, salva vidas. E agora aqui estavam, neste pequeno restaurante italiano, falando em voz baixa (sotto voce) e sendo extremamente polidos e palermas um com o outro. Um restaurante sueco seria mais adequado à polidez dos dois, mas toda a gente sabe que a realidade nunca teve grande sentido estético. Que diabo, ela estava livre, disponível — e queria-o. Ele também a queria. Então cadê o problema? O problema era. Ai, o problema. O problema. Ai. “O que queres dizer, Artur?” “Desculpa. Mas... não pode haver nada entre nós.”
4
“Fundos Sociais Europeus”. Bons tempos. Só não fez dinheiro quem não quis.
10
E Carolina, desentendida ou esperta ou desesperada, fazendo-se desentendida: “O que queres dizer com isso, Artur?” O estremecer no lábio inferior indiciava que ela percebia, percebia muito bem o que ele queria dizer com aquilo. Artur fez um esgar. Olhou para a lasagna, mas a lasagna não o socorreu. Era difícil dizer o que tinha a dizer. É sempre difícil dizer uma coisa difícil de dizer. É que há, ou pelo menos havia, uma tabela na cadeia alimentar. As mulheres conhecem-na bem. As Mulheres Separadas são desclassificadas a) quando têm filhos, b) à medida que os anos passam. De certo modo, é um pouco como aqueles atletas de alta competição que brilham nos grandes clubes mas, depois, fazem 30 anos e perdem valor de mercado e acabam a jogar em equipas de terceira divisão — ou até mesmo no Sporting. Se der tempo ao tempo, qualquer homem pode dizer de uma mulher: “Ela está no papo.” (Eu por exemplo tenho a Angelina Jolie debaixo de olho. Só mais uns anos, a ver se não me cai direitinha nos braços. Aposto vinte euros consigo, leitor. Ah, prefere dólares. Para leitor, você até bastante sensato, caro leitor.) Tempo, os homens têm tempo — todo o tempo do mundo. Já as mulheres, que se cuidem: o tempo corre contra. Tempo & Filhos — piores para a classificação na geral que ser apanhado por doping para um ciclista. A treta da Música no Coração funciona porque quem tinha as sete crianças era o canastrão do capitão von Trapp! Fosse Julie Andrews a mãe viúva dos sete anões e nunca se safaria, nem com todos os dó ré mi sóis do mundo. Vá por mim, leitor, que eu sou viajado e a minha memória voa mais alto que o Dumbo. Artur: “Acho melhor para nós...” Petrificada, Carolina continuou a olhar para Artur. Ele quase ficou com raiva. Se ao menos desviasse os olhos, por um momento que fosse. Apeteceu-lhe gritar: “Olha, atrás de ti, um pássaro! Um avião! O super-homem!” Ou: Um homem que não se assusta com uma mulher linda e enamorada com dois filhos pequenos! Mas não gritou nada, Artur. Limitou-se a concluir a frase: “Sabes... Acho... Acho melhor sermos apenas bons amigos do que... maus amantes.” Pronto, disseste-a toda. Agora já podes sentar-te ao colo da titi, Artur, já podes pedir o gelado, já podes levar a taça para casa. Carolina poisou os talheres, e isso fez ruído — o embater do aço inoxidável na borda do prato de esmalte. Ele falara baixo, discreto, mas ela tinha a certeza absoluta de que estava toda a gente a olhar para eles. Toda a gente não sei, mas eu pelo menos estava. Ambos tinham as orelhas coradas. “Maus amantes? Que disparate está para 11
aí a dizer, Artur? Não seja ridículo. Quem é que falou em tal coisa? Estamos apenas a ter um jantar de amigos, é tudo. Não faça figuras tristes, Artur.” Ele temia que ela dissesse isto, tirar-lhe o tapete debaixo dos pés, fazer batota, fingir que não percebia que estavam a jogar, a jogar o jogo. Temia e, ao mesmo tempo, desejava. Porque, pensando bem, até seria o melhor se ela fizesse isso. Caso ela se fingisse desentendida, seria um golpe baixo e isso tornaria mais fácil a fuga. Caso ela se fizesse de parva Artur teria toda a legitimidade para se irritar (com a baixeza dela) e, destarte, a fuga punitiva ficaria Inteiramente Justificada. Só que, azar o dele, Carolina apenas se encolheu, dorida. Murmurando, certeira: “É por causa das crianças?” Artur ficou desarmado. Ná, como podia ela pensar isso dele? Não. Claro que não! “N-não. C-como podes dizer isso?” Quando estamos na berlinda, transformamo-nos todos em entrevistadores hábeis, clones de Maria Elisa e José Rodrigues dos Santos. Nada como passar a bola ao adversário para ganhar tempo. “C-como podes dizer isso, Carolina?” Carolina baixou a cabeça: “Quase parece que tenho lepra...” Lepra não, putos, pensou ele, sem querer. Ainda bem que não o disse, apenas o pensou. Puxou da calculadora e, sim, contabilizou as razões por que não se queria “envolver” com a mulher que tinha secretamente desejado durante mais de quinze anos. 1. Não se queria comprometer; 2. Não queria magoá-la/magoar-se; 3. Não queria apaixonar-se; 4. Estava “bem” como estava (flirts ocasionais q.b., mas não com uma pessoa que “respeitava” tanto); 5. não queria perdê-la, gostava demasiado dela, e uma história com ela seria meio caminho andado para a perder; 6. Não queria voltar a sentir ciúmes nem a passar por todos aqueles horrores que, pitorescos, enfeitam o Amor e a Paixão quando combustam juntos; 7. Não queria, não queria, não queria... A ordem das alíneas era arbitrária, mas o resultado sempre o mesmo. Não dava. Podia dar, podia ter dado noutra altura, noutro tempo, mas agora não dava. Não dava não dava não dava não dava. E este jantar devia ser, concluíra ele, isso. Uma forma elegante e simpática de pôr fim às coisas. Uma forma simpática e elegante de pôr fim às coisas antes que 12
fossem longe demais. “Mas sabes que gosto muito de ti, Carolina... Quero continuar a ser teu amigo... Se me deixares.” O que se diz nestas alturas? Se o leitor souber, ligue-me para a extensão 214, no horário de expediente normal. Dão-se alvíssaras ao mais avisado conselho. O jogo é muito bonito. Mas o jogo é também um jugo. Pensando estar a jogar em liberdade, estamos condenados a combinatórias limitadas. E quanto a eles, ao nosso casalinho? Bem, quanto a eles, nada. Carolina e Artur nunca chegaram a ser Carolina & Artur. Acabaram o jantar calma e friamente, enfim, o mais calma e friamente que as circunstâncias permitiam. Artur quis pagar (era o mínimo) mas Carolina insistiu em que fosse a meias. Nessa época ainda não havia telemóveis, mas já havia a noção de que o homem não tinha de “pagar o jantar”, sobretudo se sub-reptícia estivesse a sugestão de que isso compraria uns centíme- tros mais de proximidade de cama. Neste caso, da parte de Carolina talvez fosse o contrário. A noção de que, neste específico caso, deixar Artur pagar o jantar comprava ao burgesso a fuga cobarde da Cama Anunciada. Carolina bem que poderia ter dito: “Não te preocupes, idiota, não quero compromissos. Só gostava de dormir contigo por uma vez que fosse. Sabes há quanto tempo durmo sozinha?” Mas Artur sabia — e nisto dou-lhe inteirinha razão — que as mulheres mentem sempre. Começam por dizer que é apenas sexo casual e depois tramam-nos: “Camarada, selámos o acordo sagrado, agora somos um até prova em contrário.” Porque as mulheres sabem que, mesmo casual, o sexo é sempre de alguma forma o portal de um templo sagrado. O primeiro passo de uma peregrinação a meias. Algumas, embrutecidas, esqueceram isso. Mas ao menos isto Artur intuía bem, mesmo na sua santa ignorância: que, o mais das vezes, “queca duma noite só” não vale a pena. Nunca, sobretudo, quando o Potencial de Amor é grande. Digo isto sem grande alegria. Tomara eu que fosse ao contrário.5 Carolina e Artur despediram-se e ficaram de se ver “um dia destes”. Já lá vão mais de vinte anos. É triste mas, claro, não é letal. Nenhum deles morreu do desgosto. Carolina acabou por encontrar um bimbo qualquer e, depois desse bimbo, outro bimbo, outro bimbo. Com um deles, de quem se divorciou há uns
5 Sim, sim, os amigos perguntam-me: Rui, por que quando escreves histórias de amor só falas de casos mal resolvidos? E eu não respondo mas se calhar devia responder: porque é a história da minha vida. É o que tenho para contar, e uma pessoa, por mais histórias que invente, só tem a sua história para con- tar. As histórias servem para deitar contas à vida, e que outras contas pode uma pessoa fazer senão as suas? É bonito? Não, não é bonito. Mas é assim, tem de ser assim, não pode senão ser assim.
13
tempos, até teve outro filho, que qualquer dia está a entrar para a faculdade. Linda como era, não houve problema. Bastou baixar ainda mais o seu grau de exigência. Artur também acabaria por se perder por aí e ser feliz para sempre. É triste mas, de facto, não é letal. As histórias de amor são como as tartarugas-bebé, a maior parte morre na praia, nem chega a entrar na água. E esta tem até um pormenor cómico: é que nem um beijo sequer chegaram Artur e Carolina a dar.6
Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN
6 O leitor não está contente com a história? Queria sangue? Miséria, hoje todos querem sangue! Está bem, eu dou-lhe sangue. Lembra-se do Aristides, aquele amigo de quem eu estava à espera? Pois bem, ele afinal não se atrasou. Foi atropelado frente ao restaurante. E, salvo erro, por um leitor com pressa de chegar a tempo a um filme de porrada no cinema ao lado. Pronto, mais satisfeitinho?
14
—• — Lista de autores, por ordem de saída dos contos:
Pedro Paixão | João Tordo | Rui Zink | Luísa Costa Gomes | Eduardo Madeira | Inês Pedrosa Afonso Cruz | Gonçalo M. Tavares | Manuel Jorge Marmelo | Mário de Carvalho Dulce Maria Cardoso | Pedro Mexia | Fernando Alvim | Possidónio Cachapa | David Machado JP Simões | Rui Cardoso Martins | Nuno Markl | João Barreiros | Raquel Ochoa | João Bonifácio David Soares | Pedro Santo | Onésimo Teotónio Almeida | Mário Zambujal | Manuel João Vieira Patrícia Portela | Nuno Costa Santos | Ricardo Adolfo | Lídia Jorge | Sérgio Godinho
Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN
Contos Digitais DN A coleção Contos Digitais DN é-lhe oferecida pelo Diário de Notícias, através da Biblioteca Digital DN. Autor: Luísa Costa Gomes Título: Mania Ideia Original e Coordenação Editorial: Miguel Neto Design e conceção técnica de ebooks: Dania Afonso ESCRIT ÓRIO editora | www.escritorioeditora.com © 2012 os autores, DIÁRIO DE NOTÍCIAS, ESCRIT ’ORIO editora ISBN: 978-989-8507-10-5 Reservados todos os direitos. É proibida a reprodução desta obra por qualquer meio, sem o consentimento expresso dos autores, do Diário de Notícias e da Escritório editora, abrangendo esta proibição o texto e o arranjo gráfico. A violação destas regras será passível de procedimento judicial, de acordo com o estipulado no Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.
sobre a autora —• —
Luísa Costa Gomes Nasceu em Lisboa, em 1954. Licenciada em Filosofia, é professora, contista, romancista, dramaturga, argumentista, cronista, tradutora, guionista. Publicou 7 romances, 7 livros de contos, 2 librettos, 11 peças de teatro. Dirigiu, entre 2000 e 2009, a revista FICÇÕES (revista de contos), de que se publicaram vinte e dois números. Recebeu o Prémio D. Dinis da Casa de Mateus pelo romance O Pequeno Mundo em 1990, o Prémio Revista Máxima de Literatura pelo romance Olhos Verdes em 1994, o Prémio Eça de Queirós da Cidade de Lisboa pelo livro de peças Ubardo e a Minha Austrália em 1995, o Prémio Camilo Castelo Branco da Associação Portuguesa de Escritores por Contos Outra Vez em 1998, o Prémio Pen Club (Ficção) e o Prémio Fernando Namora com o romance Ilusão, ou o que quiserem em 2010.
Mania —• —
Luísa Costa Gomes
“O carvão gasto; o balde vazio; a pá sem sentido; o fogão respirando frio; o quarto embaciado de gelo; frente à janela, as árvores rígidas de geada; o céu um escudo de prata contra quem quiser a sua ajuda. Tenho de arranjar carvão; não posso morrer gelado; atrás de mim o fogão impiedoso, adiante o céu impiedoso, por isso tenho de cavalgar, cortante, entre ambos, e na viagem procurar a ajuda do carvoeiro.” KAFKA. “Der Kübelreiter”.
Sáurio levantou o auscultador e pousou-o no ombro. Desligou a máquina de escrever. Sou eu, disse a voz. Sáurio procurava os cigarros por baixo das folhas manuscritas, e depois os fósforos. A voz insistiu. — Sim, estou — respondeu, apontando ao bocal. — Amanhã, no Café Lisboa, às três. Eu vou de chapéu alto, ponha uma braçadeira azul. Sáurio apanhou o lápis e escreveu, desenhando, “três horas, Lisboa, braçadeira azul”, acendeu o cigarro, desligou. Telefonavam-lhe de um lugar público, era mais um engano. Se acontecia receber chamadas destas, ficava de auscultador suspenso, perplexo, desconfiando do acaso. Agora olha as chávenas vazias onde o açúcar em6
pedernira, os copos dispersos, com marcas roxas de vinho. A sala é grande demais, pensa. Não aqueço. Sentava-se à secretária de cachecol e blusão apertado até ao queixo, às vezes mesmo um cobertor sobre os joelhos. Alguém se quer encontrar com alguém, alguém leva um chapéu alto, alguém uma braçadeira azul. Vê-se reflectido no vidro da janela, acrescenta: — Ainda não tens trinta anos, já és quase extravagante. A sala não tem luz. Escreve de candeeiro aceso, aquecendo as mãos em concha no calor da lâmpada. Distrai-se a olhar o estore da única janela que ainda abre, encravado, de tabuinhas oblíquas. Concentra-se depois na história que não consegue escrever, percorrendo as personagens vagas, desfocadas, deambulando pelo enredo que não vislumbram. Sete dias de meias páginas para se enfurecer, para lamentar a improdução, a produção defeituosa, o alastrar das folhas inúteis. — Vamos ao terceiro café da tarde. — Ao passar pelo radiador trata-o com uma pancadinha para lhe avivar a chama, há uma baforada de cheiro a petróleo, Sáurio escolhe a chávena menos suja, esboroada, de meia asa. Deitado na cama inclinada (três pernas e um tijolo quase à medida), Sáurio volta ao telefonema e ao encontro marcado. A sua curiosidade é sonolenta, mas ainda é curiosidade. E há a questão das meias páginas e a perspectiva de caçar o real onde ele se mostra mais denso. Escolhe termos que sirvam a descrição da sala, velha, sórdida, lúgubre, húmida, como uma esquina, um canto no fundo de uma esquina, e ocorrem-lhe outros como fechamento, tristeza fria; como o tempo, de chuva sem intervalo, mudando só a qualidade e o brilho da pouca luz, em que os dias que não foram já propriamente dias acabam ainda por cima às cinco da tarde. Uma voz de homem marca um encontro. Sáurio tem mais frio: daí virá, talvez, um episódio para a escrita. Há-de ser um marginal, ou não se teria esquivado, marcado de raspão essa hora, de um lugar público e ele anónimo. Mas o chapéu alto, a braçadeira azul, apontam outra coisa, incomodativa, ostensiva, fora do protocolo. Sáurio já decidiu ir, vai adormecendo e acordando ao longo da noite, bebendo na insónia entrecortada; desenha na parede a sombra da mão esquerda. Uma cabeça vazia, a mão esquerda; o retrato de Letra, espantada na moldura, colada na parede amarela em que a fenda se interrompe acima do cabelo e retorna no peito, vertical, cortando-a em metades desiguais. Antes de sair, preparando-se ao espelho, Sáurio conclui que não se parece com ninguém e que, mesmo assim, é um rosto neutro. Talvez passe por estudante retardado, ainda na rotina das ausências e das presenças, fixo no prazer de faltar aos deveres. Passeia devagar, embora não vá com muito tempo. Quando vira à direita, para a Travessa do Cego, é colhido de surpresa pelos cânticos de uma congregação clamando intramuros com indiferença. Mistura-se com a gente, finge fazer parte 7
de grupos; pára para ver os cartazes dos cinemas, onde as filas são já desencorajantes. Entra finalmente no café, encosta-se ao balcão da tabacaria esfregando as mãos, sacudindo a chuva; viu logo o homem do chapéu na mesa de canto. — Magro, branco — o homem da cartola levanta os olhos; curvado sobre a chávena, erguera só um rosto translúcido, os olhos azuis carregados de kohl, pacientes. — Mau sinal — pensou Sáurio — sabe esperar. — Desdobrou o jornal e consultou a página dos cinemas. Depois enfiou a braçadeira e chegou-se à mesa, sentandose, deslizando para a frente do outro, estendendo-lhe a mão. Recebeu o envelope, tocou no bolso interior do casaco. O outro tirara o chapéu e passava o dedo no rebordo da aba enquanto Sáurio abria o envelope. — Os cinco mil. — Não trago tanto comigo. Só tenho dois. — Calaram-se, Sáurio embaraçado. — Interessa-te o relógio? O outro estendeu-lhe a cartola, Sáurio desapertou a correia, despejou o relógio de entre dois dedos. — O Boris e os relógios! — sorriu o outro. Sopesou-o, virou-o, bateu-lhe ao de leve no mostrador — é quase antigo! — disse Sáurio, para lhe acalmar a exploração, e ele sorriu com algum saber, brincando com a corda, esticando, experimentando a correia. Passou-a afinal entre a cava e o decote do colete, fixando o relógio sobre a clavícula. Levantava-se já, Sáurio apontou-lhe num gesto rápido a cadeira, ele voltou a sentar-se. — Talvez ainda precise de ti. Perdi o teu contacto. — Ficara sem o dinheiro, sem o relógio, e sem saber o que comprara. — Não há contacto — disse o outro. Agora parecia não querer ir-se embora. Acomodara-se, apoiando os braços em cruz nas costas da cadeira, estava para passar o resto da tarde. Sáurio, sentado na ponta da cadeira, remexe o envelope sem impaciência, mudando-o de bolso, e o silêncio instala-se. Sáurio disse que continuava a chover. — O melhor é esperar — respondeu Boris, como se lhe tivesse perguntado alguma coisa. — Bebemos? — e Boris concordou. Ainda não é a hora de as velhinhas encomendarem os seus garotos. De repente há um arrastar de cadeiras, duas mulheres levantam-se e esperam à porta que a chuva abrande. Sáurio anota tudo isto, obrigado a olhar. Mas já está à vontade com Boris, cumplicidade de se terem sentado à mesma mesa, com direito a todas as frases, indecididas, íntimas, todo o material das conversas. — Muito trabalho? — perguntou Sáurio, displicente. — Muito estudo. Dantes o Boris andava nuns sapatinhos de palerma, abreviava. Se lhe davam que fazer, era incómodo. Nessa altura tinha uns cabelos encarnados, 8
era um viquingue. Ainda não se mandara ao loiro-branco. — Agora estás muito mais apresentável... — adiantou Sáurio. — Agora olha, observa, estuda, verifica — Sáurio arma-se contra a atitude plácida e violenta de Boris, coloca vocabulário à medida nos seus gestos, estilizando-o em personagem, enquanto Boris fala em direcção ao outro canto da sala onde um ho- menzinho fascinado se obriga a ouvi-lo. Boris olha-o com força, passando ao largo da orelha esquerda de Sáurio (ele volta-se para trás constantemente) atingindo o homenzinho em cheio, que não distingue os sons mas se sente talvez no dever de os decifrar; Boris fala baixo, quase murmurando, e faz-se ouvir. Começa a cair um granizo forte, irrompe no café gente foragida, parando à porta e olhando, confusa, os habituais do escuro. — O Boris é uma obra de engenharia — Sáurio sente-se de repente ameaçado, o rapaz toma-se a sério, de tal modo que se impõe ao homem sentado do outro lado da sala, preso e alheio, bebendo aguardente, a mão tremendo na luz acinzentada. — O Boris achava-se um herói que ainda não tinha livro. Mas não andava para aí a ensaboar pastilhas, nem comeu o pão que o diabo amassou, nem esvoaçou para a salvação. Se morria, soltava a pomba, se não, matava gente. Sáurio encolhe os ombros. Matar é abstracto. Quer voltar para a máquina de escrever, adiantar a história, produzir palavragem. Aquela figura afinal não lhe serve, parecera-lhe que sim, a princípio, quando Boris segurara no guarda-chuva e na cartola como se fossem armas de ilusionista e quisera sair, porque se movera de uma forma inefável e mantivera uma ginástica de suspensões, lenta, como um caçador indígena, diria Sáurio, e era uma analogia imediata e também injusta. Sáurio luta com a literatura dentro de si. Olha para trás, para a porta. O homenzinho escapara-se, aproveitando uma distracção de Boris. Que agora se comportava fora das expectativas e não era mais interessante por isso. Es- forçava-se, como um personagem. Sáurio insistiu que era inútil para a história que escrevia, e que se imobilizara, e só ficou sentado porque não encontrou as palavras de saída e queria adiar os próximos passos, a leitura do envelope comprado e o que teria de seguir-se. Pergunta: — E como é, o crime? — surpreendido, porque tem mais medo do que curiosidade em saber, e Boris recosta-se amuado, de cabeça baixa. — Diz-me tu. Despe a braçadeira, este é um jogo para adolescentes; conclui que Boris é apenas um marginal menor, um exibicionista, um actor. Levanta-se, Boris continua a desenhar. Sáurio julga reconhecer um conhecimento à entrada do café, esconde-se por trás do arco. Abre o envelope e lê a carta pelo caminho. Em casa entala-a com cuidado sobre 9
o retrato de Letra, fungando e bebericando brandy. Já a sabe de cor: “querida Belle, estou em Lisboa por uma semana, estou no hotel Fénix, espero que não me tenhas esquecido, eu penso sempre em ti, queria tanto explicar-te, bacci, teu, Fabrizio”. Traz o carimbo dos Restauradores, um post scriptum em letras maiúsculas “NÃO ME TELEFONES NUNCA. ESCREVE-ME”. Um namoro antigo, sem dúvida. Mas cinco contos por uma carta? Procura na lista o número do hotel; agora passam-se as coisas com urgência, e Sáurio só se sente a perder tempo. Tem que escrever. Para quê esbanjar-se por histórias paralelas que não lhe dizem respeito? Do hotel respondem-lhe que não há Fabrizio nenhum, nenhum senhor italiano. Nem julgam que venha a estar no dia seguinte. Sáurio já o esperava, mas há demasiadas direcções nos factos para que se possam abarcar num só sentido — o mal-entendido primeiro, o encontro com o punk, a compra de uma carta, a carta de alguém que não estava onde dizia estar. Irrita-o não ter sabido interrogar Boris que se mostrara predisposto à conversação e à inconfidência. Sentado à máquina, olhando a folha entalada, revê as hipóteses habituais, chantagem, falsificação, roubo, crimes sobre a emoção, e decide procurar a mulher, Belle, vigiá-la, dar-lhe a carta? Se a morada que ela escreveu no envelope estiver certa, a casa não é longe. Esgueira-se pela janela da cozinha, e corre até à mercearia da frente para se abrigar da chuva. Decorre uma discussão teórica acerca do aumento dos preços. O merceeiro lamenta-se, perdeu há muito a fé no futuro do país. Sáurio espera vez, compra uma laranja, verifica-lhe o peso, são cento e setenta e cinco gramas, vai ser uma conta complicada. Parado à porta, olhando para baixo, para a direita, vê-se incluído no enfiamento dos candeeiros saídos das fachadas como sinos, projectados do perfil plano das casas. Pouco abrigo pelo caminho. Só alguma porta aberta, alguma ombreira, se continuar a chover assim a pique. Chegando à Rua dos Navegantes, procura a casa de Belle, e depois um nicho para esperar. A porta do prédio em frente da casa está entreaberta, Sáurio encaixa-se, rígido, dizendo: repara no passeio alto, de empedrado; repara na feia casa ao fundo da rua; sentindo ao mesmo tempo as outras coisas, inúmeras, em que não pode reparar. Vê uma mulher sair, com pressa. Aflige-o uma grande indecisão; há toda a estúpida futilidade, e a zanga de uma espera tão vaga. Retira a carta e volta a guardá-la no bolso; quer uma ideia súbita que o desembarace, ter a visão imediata da coisa certa, o sentimento da evidência, da justeza — o que deve fazer. Mas a igno- rância, a morte ignorando, a morte estúpida. Não saber ler factos. É quando Sáurio se revolta, envolvido pela rua, o amarelado das casas, o passeio de empedrado e os detalhes: o azulejo, a janela de forma única, a varanda de ferro. Estar assim rodeado 10
de coisas que apertam, na rua a ver a mulher sair. Ter que se mover em qualquer direcção. Agarrar a oportunidade em cheio, lúcido, senhor de si. E tudo lhe escapa, ao ignorante. Corre até ao fundo da rua, vê-a mandar parar um táxi, abrir a porta. Vai desaparecendo até deixar uma perna de fora, na meia escura, uma canela, a ponta do sapato. E depois é uma sombra dentro do carro. Volta ao mesmo sítio, para vigiar. Devem ser seis horas, começa a chegar gente. Relê a página dos anúncios de casas para alugar, reforçando o círculo negro das que já assinalara, agora que o jornal é uma massa empastelada, debotada. Quando Sáurio guarda a caneta, aproxima-se um homem do portão da casa. Relê o nome e a morada de Belle. Não sabe. Precipitar-se para o homem, ou esperar mais, até vir a resposta, ou subir a rua, correndo? O outro retirou as chaves, escolhe. É alto, anota Sáurio. Dirige-se-lhe num impulso, atravessa-se no caminho dele de olhos baixos, o envelope na mão estendida, estacando, curvado, tremendo de frio; repara na grade do portão, pensa, e olha de soslaio para o ferro forjado, sem distinguir as lanças que o rematam, porque não quer virar a cabeça. Repara, acrescenta, veste gabardina. O homem olha-o um instante, tem um murmúrio de surpresa indignada, empurra Sáurio ao de leve sem querer fazê-lo cair, um abanão de fúria contida. — Você é doido? O que está aqui a fazer? — Sáurio compreende que foi este o homem que quis comprar a carta, o primeiro telefonema era-lhe destinado. Com um sinal de cabeça, aponta-lhe a porta aberta onde Sáurio esperara e apressa-se, puxando-o pela manga com as pontas dos dedos. Recolhem-se no vão da escada, o homem espiara as janelas da rua uma por uma antes de entrar, parece mais calmo, numa ira mais serena, resmunga: — Imbecil, imbecil — Sáurio mantém-se muito quieto, respirando pouco, como morto, no escuro. Depois de uma pausa, o homem acende a luz da escada. — Quanto é? — Sete — murmura Sáurio. — Tinha-se falado em quatro mil. Sáurio calava-se. O outro abriu o envelope, chegou-se para a luz. Está satisfeito. Retira uma nota de cinco mil. — Ficamos assim? — Não — disse Sáurio, a voz baixa para se notar menos o tremor. — Sete mil. Deu-me muito trabalho. — Não me apareça mais aqui. O homem recua um pouco, depois puxa Sáurio para a luz pela gola do casaco (um colérico!) e olha-o de perto friamente, uma das mãos enluvada, a outra nua, agarrando-lhe a cara, voltando-a para a lâmpada, que se apaga. — Não aqueço — diz Sáurio na sala enorme. — O homem a repuxar-me, eu batia 11
os dentes de frio. Há um espaço em branco. Agora o Fabrizio. — Sáurio, novamente sentado na cama, aquecendo as mãos no copo de café. Ouve baterem em baixo à janela da cozinha, só Letra sabe que é por ali a entrada, Sáurio abre devagar a porta da sala, espreita à varanda de um dos quartos vazios. Vê de cima a querida cabeça de Letra (arbusto entre arbustos do bárbaro jardim), após tanto tempo de abandono. Mas recolhe-se com disciplina, diz para si: — Agora não, Letra, agora estou a brincar. Letra espera ainda, Sáurio senta-se à secretária, apaga a luz. Depois ouve-a abrir o portão e sair, fechando-o atrás de si. Querida Letra, sempre a fechar os portões com cuidado. Já anda na rua a gente da noite. Ao entrar, Sáurio nota que os hotéis costumam abafar os passos. Este não. Dirige-se à recepcionista, o porteiro olhava-o indeciso. Sáurio imagina-se vestido de porteiro, a ideia é desconfortável, mal-vinda. Respira fundo, começa: — Chamo-me Fabrizio Ciardi, queria pedir um favore à la signorina. A mulher debruça-se com solicitude. Tem no cabelo um ganchinho vermelho em forma de coração. — Io estou em Lisboa por uma semana, no? Fiquei em casa di amici, ma ho detto a outri amici que ficaria en este hotel. Se me procuran ou me escreven, no? Então eu pedia à signorina que me guardasse as cartas ou outras coisas para mi e me telefonasse a este número quando houvesse mensagem, si? Fabrizio é o meu nome. Este é o número. Sáurio parara sem fôlego, envergonhado e orgulhoso do espectáculo. A imitação fora miserável, mas não desagradara à rapariga que aceita o papel e o número; Sáurio acha-se com vitória fácil, o que lhe dá nervo para acrescentar à encenação um olhar lânguido, uma hesitação, e uma saída terna. — Grazie, ciao. Voltando para casa, vai apanhando no ar falas entrecortadas, tentando manter-se à distância das arestas dos guarda-chuvas; sente mesmo vergonha. E de cada vez que se lembra da cena, da arregalada ingenuidade da recepcionista, do seu papel de industrioso meio gigolò desenvolto, estremece, fecha os olhos para a afastar. Indigna-o ao mesmo tempo a facilidade da torpeza e a avidez com que a gente se deixa iludir. Deitado, vestido, em cima da cama, com febre, tem uma exaltação, há-de escrever isto tudo, a ficção coitada monstruosa devora o que a antecipa, o que a imita, pobre realidade. A recepcionista telefonou de manhã, tinham trazido uma carta para Fabrizio. — Tão cedo? — perguntou Sáurio. Doía-lhe o corpo todo da batalha do sono, tinha os olhos inchados. A sair do quarto tropeçou no alguidar entretanto cheio das gotas que pingavam do tecto. Parou a olhar a forma que o charco tomava, repara na 12
sombra da janela no chão, repara na sombra da janela no chão, e repetia-se pela rua abaixo ao ritmo dos passos que o levavam pelo caminho mais longo. A recepcionista apresentou-lhe a carta e um ar reservado, e Sáurio não queria enveredar pelo espectáculo indecente mais uma vez, mascarou-se de tímido, sorrindo a meia boca. A carta não tinha selo, nem carimbo. Sáurio teve medo, perguntou quem a entregara ali; a recepcionista descreveu uma mulher, displicentemente, apoiando dois dedos no telefone. Talvez nem fosse Belle. Sáurio só a vira de longe, e a rapariga descrevia olhos, boca, expressão, ar de pessoa bem criada, bem na vida, e Sáurio invejava-lhe o apetite pela exactidão. Tornou a fazer-lhe as recomendações e saiu, guardando a carta por baixo da camisa, onde ainda não estava molhado. Escolheu um caminho cheio de desvios, parando para ler a carta de Belle, emocionado, como se fossem para ele esses suspiros “não, Fabrizio, não te esqueci, penso em ti, vem buscar-me amanhã às duas horas, podemos passar a tarde juntos, tua, Belle”, vem buscar-me às duas horas, não te esqueci, passaremos a tarde juntos, Belle, amanhã, às duas horas, não te esqueci, temos a tarde, Belle. Vogando nos guarda-chuvas, rasando gente húmida. Letra nunca lhe escrevera, nunca se tinham separado até se separarem. O que lhe sugere o cartão de Belle é antes a imagem dos bilhetes passados entre carteiras no liceu, com comentários, combinações: vais ao jogo amanhã? Queres vir estudar matemática comigo? A carta de Belle dera-lhe uma disposição benigna, talvez estivesse um bocadinho apaixonado ou, pelo menos, com febre. Pede o nome do proprietário e o número de telefone pela morada, liga, esperando que seja o homem a responder, mas é Belle quem atende; Sáurio deseja falar com Leão Averal, o dono do telefone. Do outro lado a sala está muito silenciosa, Sáurio ouve-o pegar no auscultador, diz-lhe: — Ela escreveu. Na estação do Rossio, hoje, às sete? À porta principal? Ela pede que Fabrizio a vá buscar a casa, amanhã às duas, para passarem a tarde juntos. Desligam o telefone. — Estou inquieto — diz Sáurio para o bocal. Chega adiantado. Sacode-se da chuva, lê as parangonas dos jornais encostado à ombreira, no caminho de toda a gente. Tire-se daí, grita-lhe o ardina. Leão pára a alguns passos, faz-lhe sinal. Uma direcção determinada, observa Sáurio, olhando a gente que sobe a escada. Entram num café, Leão escolhe uma mesa discreta e senta-se de costas para a porta. Empurra um envelope para a frente de Sáurio, que o abre, desdobrando a carta. Fabrizio cancelava o encontro, tinha que sair de Lisboa por uns dias, voltaria em breve. — Se você me pudesse fabricar isso para amanhã, com data de hoje — disse Leão, sem grande ênfase. — Tem de ser entregue pela uma. Pediu café para ambos, e álcool, e deixou-se curvar sobre a mesa como se desaper13
tasse a gravata — talvez achasse inútil a pose digna — dizendo, numa voz em queda: — Belle desapareceu. Sáurio teve o seu calafrio. O desaparecimento de Belle implicava o seu próprio desaparecimento. Procurou o amparo de alguém conhecido no café — compreendendo, enfim, que procurava Boris. Leão olhava para ele, bebendo, pousando o balão. Sáurio procurava nos bolsos uma arma qualquer; encontrou apenas duas canetas de feltro e as chaves de casa, onde a ferrugem começava a pegar. Usara em tempos um canivete que deixara de abrir. Devia estar em casa, no copo dos lápis. Leão convocou-o para jantar. Estava impaciente, chegava-se para Sáurio como se quisesse empurrá-lo, apressá-lo, quase lhe tocava, mas afastava-se, para recomeçar logo. Fazia um marido abandonado pouco credível. Sáurio, esse, paralisara. Via as aproximações e recuos de Leão. Estava no centro da armadilha, seria de novo a morte ignorante, perplexo com essa rigidez, perguntando-se o que sentia, desejando perguntá-lo a Leão. Nessa noite, percorreram os bares e os cafés, os que um conhecia, os que outro conhecia. E quando já estavam bebidos, Leão equilibrando-se numa gravidade sem propósito, Sáurio encostou-se ao balcão e perguntou: — Quando olhas para a gente, o que vês? — Carne. Se sangra é porque tem recheio. — Sangue! — disse Sáurio, enjoado, para dentro do copo. — E quando é mulher, o que sentes? — A minha? — Sáurio reparou que ele ocupava agora mais espaço, os braços que usava aferrados ao corpo afastavam-se. — Nojo. Leão cabeceava moderadamente sem perder a dignidade, acotovelando múltiplos bebedores. Sáurio, mais sóbrio, lança-se à procura. Quer saber verdades. — E Fabrizio? — Amante dela. — Como se previa. Olhavam pela porta da copa entrevendo, quando instantaneamente aberta, um homem de branco que esfaqueava um alguidar. Enterrava e desenterrava a faca, torcendo, apunhalando. — É gelo — disse Leão. Saíram, amparando-se. Levantaram as golas ao mesmo tempo, tiveram o mesmo encolhimento, o de Sáurio, reflexo, o de Leão, castigado; e olharam para o céu. Ainda chovia muito, era a mesma noite. Curioso, pensou Sáurio pomposamente, repara que de dia a luz é a todas as horas diferente mas a noite é sempre da mesma escuridão. E, no entanto... — És tu então quem escreve as cartas de Fabrizio? — perguntou, afastando-se, 14
mas Leão já seguia o seu caminho, subitamente sóbrio em direcção a casa. — Talvez já lá esteja... — disse para trás, e Sáurio voltou-se para a rua e leu ovos frangos perus patos codornizes no dorso de uma camioneta que passava devagar. Espantou-se por ser já tão tarde — ouvira algures o carro do lixo roncar — e tinha de escrever, andava a perder tempo e afinal seguia Leão que dobrava esquinas e se metia por ruelas como se quisesse perdê-lo. Em casa, Leão desfalecia ao piano, gritava Belle de vez em quando. Sáurio vai abrindo portas até encontrar a cozinha, meio limão no frigorífico e garrafas vazias. No corredor, tropeça na mesinha do telefone, dobra-se para apanhar uma agenda que caíra, guarda-a no bolso. Ao fundo do corredor, pelo vitral, aparece a primeira luz da manhã, a primeira chuva. Ouve grande comoção na sala, Leão tenta desemaranhar-se do piano e caminha quase a direito sobre Sáurio, de braços estendidos, entornando vasinhos e bibelots. — Encontra-ma, Boris, só tu ma podes encontrar. — É absurda — repete Sáurio — esta noite em claro. — Afasta Leão, senta-o no sofá. — Sabes onde encontrar Fabrizio. Foi ele quem ma levou. — Fabrizio? — rindo-se, tendo que se rir. Subiu as escadas, entrou nos quartos, à procura do de Belle, mas nada lhe permitia identificá-lo. Esperava porventura um cor-de-rosa, com cama de dossel e cortinas de renda; acabou por se deitar num canapé de veludo, desconfortável, que lhe abrandava as tonturas. Dura-lhe pouco o sono, ao acordar procura Leão, talvez adormecido ao piano; a meio das escadas esquece-se inexplicavelmente dele, tem urgência em sair, em chegar a casa, para pôr a cabeça em ordem e arrumar-se; sente a familiaridade da ressaca, que é considerar a vaidade de todo o movimento. Boris esperava-o à porta de casa, a gabardina curta manchada pela chuva nos ombros — ao longe parecia uma sobrecapa. Sáurio demorou a reconhecê-lo, de cara lavada, depois percebeu que chegara o momento de confissões e de admitir não só o que Boris já descobrira — o nome, a casa, talvez mais — , mas o que o assustava, as hipóteses que faziam de Leão um matador, primeiro na intenção, agora na acção, ideias que lhe sugeriam confusamente, mas com grande energia, o perigo certo, uma cilada. — Corre-te bem o negócio, mas isto não é pelo dinheiro — disse Boris. O tom era terno. — Aproveitamo-nos de um erro humano para uma aventura? Bom material para a mania de o escrever? Entram pela janela da cozinha; na sala, Sáurio passa-lhe um copo para a mão, deita café aquecido, contente da inteligência de Boris, da sua vigilância, da suspeita finalmente fundada, e da oportunidade de fazer dele um aliado contra Leão. Ainda bem, diz Sáurio, e sorri, apontando a gabardina de Boris onde, à altura do peito, ele pregou a bandeira dos piratas. 15
Sentam-se como para uma grande conversa; Sáurio, cansado, quer dizer verdades e justamente a Boris, que ali está para as ouvir: — Parece que me telefonaste por engano de propósito. Boris sorri, mas pouco, abomina os diálogos que escorregam nessa vertente, antecipava que lhe perguntassem se tivera uma infância feliz quando ele era, feliz- mente, ainda a mesma criança. Mas Sáurio desiste logo, chegou a fazer um gesto de apaziguamento, como se soubesse dos desagrados de Boris. Curvou-se sobre o café para esfregar algum vapor na cara. — Belle respondeu à carta de Fabrizio. Se a primeira carta era “verdadeira”, escrita por “Fabrizio”… és tu? Ou ela? Ou o marido dela? Diz que Belle desapareceu. Diz que ele a levou. Pede-me que a descubra, e ao mesmo tempo, que escrevas mais esta carta de Fabrizio. Eu acho que ele a matou. — Primeiro ele deu-me a carta de “Fabrizio”. Depois disse que Belle tinha desaparecido, continuámos a beber. Acabámos em casa dele, tocou piano, chorou, quis que lhe trouxesse a mulher. Se ele a matou, uma carta de Fabrizio é capaz de lhe ser útil. Boris ouvia. Sáurio adormecia. Sentados, separados pela máquina de escrever; o candeeiro iluminava as mãos de Boris sobre a mesa, a cabeça de Sáurio apoiada nos braços, sobre a máquina. — A menos que... — disse Boris, e Sáurio soçobrou definitivamente em cima do teclado. Dormiu uma hora agitada. Quando acordou, Boris mantinha-se na mesma atitude, olhando, sonhador, a parede onde as fendas abriam caminho. Disse: — Belle escreve um postal ilustrado. — Do Algarve, a dizer que está em casa de uns amigos, que volta daqui a cinco, dez dias. Estou bem, não te preocupes, quis estar sozinha por uns tempos. Amo-te... — Belle — concluiu Boris. — Tens a letra dela? — lembrou-se da agenda, Boris procurava papel branco, uma caneta. Sáurio vigiava-o, retirava-lhe das mãos folhas meio escritas, protector. Afastou a máquina de escrever, pôs à frente de Boris a agenda aberta, onde Belle escrevera notas dispersas, gastos, afazeres, e, em Janeiro, duas frases — “amanhã é um novo dia” — e, mais adiante, no dia vinte — “no fim, veremos”. Boris folheava quase sem tocar o papel, parecia interessado por tudo, pelo formato e pelo peso da agenda, e Sáurio disse: é de 1980, não é estranho? E o mês de Fevereiro está riscado. — O Boris faz um de Albufeira. De Barcelona... De Antuérpia, afastando-se. — Barcelona já é longe demais. Chega um postal. — Olha o método de escrever: movimentos incertos, mas a desigualdade regular, a comoção que se prevê; nervosismo, sensibilidade, instabilidade; repentino aprumo, 16
cá está, susceptibilidade. — A letra é a mulher — disse Sáurio. Em três saltos, Boris está junto à porta; desce a correr, por cima dos caixotes e espalhando lixo que se acumulou nas escadas, na luz amarela a sombra é a de um espião de filme animado, a calça curta, riscada pelos fios de chuva que deslizam no vidro. Ó grafólogo, grita Sáurio, do patamar, isto não fica assim! Ouve-o abrir a janela da cozinha, saltar e, pela clarabóia, vê-o dar um encontrão num vizinho, virar para a Travessa do Cego. Sáurio ri-se sozinho da cumplicidade com Boris; são todos criminosos, ele, Boris, Leão, mas daqui em diante há mais em jogo: Sáurio e Boris estão do mesmo lado. Boris vem de tarde com o postal de Belle, uma vista de Albufeira, o carimbo com data quase indistinguível. — Quanto tempo demora um postal a chegar? — perguntou Sáurio. Sáurio mergulha na penumbra da sala enorme, acordando a meio da noite para beber, e pensar, ou jogar “solitárias”, tentando adivinhar a sua sorte, o azar, dispondo as cartas de acordo com as regras. Dormia durante a tarde, e acordava depois para escrever, para desesperar de escrever. Quando finalmente Boris aparece, saem ambos abrigados no mesmo guardachuva, divergindo no meio da gente, Sáurio eufórico, liberto da casa, e Boris, todo imagem, silencioso. Sobre o rio entreabre-se a nuvem e a luz raia, batendo na água. Separam-se antes de chegarem a casa de Leão, escreve, diz Boris, telefona mais, diz Sáurio. Boris acena com o guarda-chuva, parado num charco junto ao passeio. Sem saber se Boris o ouviu, Sáurio afasta-se, subindo e chega à Rua dos Navegantes esperando que a chuva não passe de poeira. Quando dobra a esquina, sai um velho pequenino e magro carregando um saco fora de proporção, da porta em frente. Sáurio deixa-o desaparecer ao fundo da rua, aproxima-se e deixa o postal na caixa, olhando as janelas fechadas, as portadas verde-escuras, depois a imobilidade momentânea da rua, no intervalo — um instante de absoluta fixidez, em que nada sucede. Sáurio tivera o cuidado de espreitar a caixa do correio que estava ainda cheia. Quando chega, Boris espera-o à porta. — Já está — diz Sáurio. — Talvez telefone para o hotel, pode haver mensagens para Fabrizio. Boris senta-se à secretária a ler as semifolhas de Sáurio, que marca o número do hotel, ouve tocar e desiste quando ninguém responde. Imita a letra de Sáurio, escreve disciplinadamente, firme, desviando os olhos só para o original, até ter meia página. Mistura-a com as outras folhas e arruma-as junto à máquina: está disposto a conversar quando toca a campainha do telefone. Sáurio levanta o auscultador, contrariado: 17
— Belle escreveu — diz Leão. — Parece que está bem. A carta já está pronta? Queria tê-la cá quando ela voltar. — Ainda não. Tem pressa? Leão cala-se um instante e parece a Sáurio um tom de suspeita quando ele diz: — Estranho que ela esteja em Albufeira. Ou será Quarteira? Fala-me de uns amigos que não conheço. E desapareceu a agenda. Não a viu? — Já está a falar sozinho — disse Sáurio, para Boris. Respondeu: — Não, não vi. Aliás, eu nem sequer entrei no quarto dela... não sabia... — Eu não disse que estava no quarto, estava no corredor, na mesa do telefone... era uma destas agendas que... — Conversa — disse Boris. — Não tenho ideia — repetiu Sáurio. — Amanhã passo a entregar a carta de Fabrizio. — Sim, à noite. Deite-a na caixa. — Se ele matou, sabe que o postal é falso. Isso põe-me numa situação ridícula. — Atenção — acentuou Boris — Fabrizio és tu. Vide, a recepcionista. Sim, reconhece Sáurio. A recepcionista, o seu número de telefone, a carta, Belle fugiu com ele, Fabrizio. — Mas não — lembra Sáurio — se Fabrizio diz na carta que está fora de Lisboa. Boris sentou-se na cama. Nem um nem outro queriam falar mais de cartas falsas. Sáurio esperava que as coisas se resolvessem por si. Falava da história que escrevia, deixada a meio; Boris ouvia-o de cabeça baixa, as mãos escondidas nos bolsos da gabardina molhada, até que teve um arrepio e Sáurio ofereceu-lhe um cobertor. — E quem és tu? — perguntou Boris, a manta pelos ombros, metido na cama. — Eu não entro nesta história. — É tramada, essa tua constante prospecção de analogias. Para o Boris é muito cansativo. — Estranho — disse Sáurio. — Parecias-me um tipo com queda para a criação. — Não, não. Ele estuda. E, num movimento, virou-se para a parede, acomodou melhor a cabeça na almofada, fechou os olhos. Sáurio dá-se o tempo de arrumar a secretária e senta-se para escrever. Na escuridão, escreve sobre a luz. Uma página de nomes. A história que escrevia já se diluiu na palavragem. E Leão, o enredo, Sáurio vagamente na expectativa, como se estivesse no recreio, a viver entre episódios. — Já estarei morto? Devia tremer, preparam-me ciladas. Devia sentir-me em perigo e só me ocorrem nomes. — Levanta-se e aproxima-se de Boris. Põe-lhe a mão no ombro, está quente, agita-se quase, nota a linha de contacto entre a cara e 18
o lençol, da mesma cor, escondendo a boca. É uma forma de a conhecer, à minha morte. De a criar, para que venha com uma cara conhecida. Boris acordou, veio sentar-se do outro lado da secretária. Fumaram. Dormimos por turnos, como na selva, nas expedições, mas Sáurio não o disse, já conhecia a aversão de Boris pelas frases. Acompanhou-o ao patamar, esperou até o ouvir na rua. Voltou a sentar-se, releu a folha, colocou-a junto das outras. Esvaziara a garrafa. — Não aqueço. Tinham concluído que era melhor não levarem a carta de Fabrizio a Leão, pelo menos enquanto Belle não aparecesse. Sáurio deitou-se, estava disposto a dormir dias seguidos. Saiu no outro dia para comprar o jornal e enlatados; passeou, admirando-se da capacidade que o tempo tem de se distender e de encher os ócios. Assim perdeu a tarde, a vaguear. De volta a casa leu a página dos cinemas, deliberando, sabendo já que qualquer deslocação seria um esforço. Janta das latas aquecidas despejadas no prato único, e recosta-se na cama a beber, abre o jornal. Primeiro, os crimes. Menor violada em Odivelas. Casal desavindo alvoroça vizinhança. Morte misteriosa na Lapa. “O doutor Leão Averal, médico, casado, de trinta e três anos de idade, residente na Rua dos Navegantes, foi encontrado morto dentro do seu automóvel, na garagem de sua casa. Ao que foi apurado, a morte ocorreu por asfixia devida a monóxido de carbono, desconhecendo-se ainda as razões do sucedido. O doutor Averal foi colaborador do nosso jornal entre Agosto de 1980 e Março de 1982, publicando artigos de divulgação científica.” Sáurio volta ao princípio. Leão Averal suicidado? Por Belle? Por Boris? Veste-se, o blusão ainda húmido da última chuvada, não sabe onde encontrar Boris mais sai como se soubesse, desce até ao rio, caminha junto à linha do eléctrico. Aproximam-se três homens que falam alto, Sáurio espera que eles estejam mais perto para tentar reconhecê-los, um deles esmurra-lhe a cara, outro agarra-o pelas costas. Tiram-lhe a carteira, despejam-lhe os bolsos do casaco, entre puxões, em silêncio. Afastam-se gingando, Sáurio senta-se na borda de um canteiro, amparando-se aos arbustos; retoma o caminho de casa coxeando embora não sinta dores, ou outra coisa, excepto talvez espanto. Vai rente às paredes, contornando caixotes do lixo, obstinando-se em não olhar para trás. Como é que eles eram? — pergunta-se — eram três — responde-se — sim, eram três, mas como eram? — Não sei, não reparei. Sáurio estaca, indignado, não reparei, repete. — Não pude ver. Terei de inventar uma coisa que me aconteceu! — Agora fala-se como a uma criança, para não chorar, nem os vi, não reparei neles, estava demasiado 19
ocupado a sobreviver. Senta-se de novo à secretária, arrasta o telefone para junto da máquina de escrever, vai marcando dígitos sem levantar o auscultador. Carrega devagar nas teclas da máquina, sentindo o lábio inchar, palpando o rosto à procura de sangue ou outro sinal, mas é só a boca que se desloca progressivamente, presa de grande secura. A sala parece-lhe o único lugar do mundo isento de ameaça. Letra também pode confortá-lo. Mas esqueceu-se do número, e para o reconstruir seria precisa uma teimosia que o ultrapassa. Demora-se a escrever combinações de números sem qualquer esperança de acertar no telefone de Letra, sem qualquer esperança. Quando lhe parece ouvir passos no jardim, avança até ao patamar e espreita. Não vê ninguém. Entra na sala e fecha-se à chave, a mão no peito, a acalmá-lo. Junto à janela, curva-se para olhar a rua. Amanheceu. Para o lado do rio, o nevoeiro espesso. Chove uma poalha esbranquiçada, bloqueando a luz. Ouve o telefone tocar várias vezes antes de se mexer. — Sáurio? É Belle. Vem esta tarde a minha casa? Às quatro? Este é mesmo para mim, pensa. — Não me sinto. — Mas tremia quando pousou o auscultador na mesa. — Eu não queria nada disto. Senta-se na cama a beber, ouve a água nos canos e os passinhos dos ratos no sótão, de vez em quando um motor esforçado a subir a rua. O frigorífico roncando e parando. Depois adormece. Resolvera que afinal não iria ao encontro de Belle, aquele assunto não lhe dizia respeito, era uma história que se podia ter passado sem ele, desde o início. Passar-se-ia sem ele, daí em diante. Boris substituí-lo-ia a responder à convocação de Belle. Boris a quem nada podia perturbar, muito menos um renascimento encenado como este, de surpresa previsível; Boris saberia movimentar-se de suspeita em suspeita, flexível, evadindose das mãos dos outros jogadores. — Que grande falta de jeito para a vida real — diz Sáurio, e agarra-se à frase-de-salvação, inseguro, sorri porque se sabe ao contrário homem de sentido prático, desfazendo-se do que o atravanca, buscando do que precisa. Puxa a campainha, tem as mãos molhadas. Passa-as pelo cabelo que escorre chuva. Belle é uma aparição vestida de negro, o cabelo loiro solto, liso. A Sáurio aparece distorcida, como o corredor pulsante, e as paredes que recuam, onduladas. Na sala, a mesa respira, bojuda, engordada, e o armário de portas de vidro vibra, oscilando, até se harmonizar num movimento redondo. Depois abranda-se um pouco a agitação. Belle faz-lhe um gesto amável para que se sente e Sáurio deixa-se cair no sofá, esforçando-se por se manter social, sóbrio; sente que vai entrar mais uma vez na zona obrigatória da verdade, mas que agora a aposta é maior, há que tomar precauções das quais se sente, no momento, incapaz. 20
Afunda-se no sofá de couro, estudando a melhor posição dos braços — a melhor posição defensiva — mas o cadeirão é, já de si, uma fortaleza. Sáurio acende o cigarro, firme, como se fosse fruto de uma decisão muito pensada. Belle compõe-se e começa suavemente, Sáurio recorda as profecias de Boris, sorri, está tudo certo, ele tinha razão. Esta mulher é capaz de grandes coisas com razão de ser. — O que dirá Boris da minha letra? — é capaz de o revelar pusilânime, enredado, lento, pesado. Sáurio tem um súbito desgosto pela sua caligrafia que o pode revelar assim, tal como ele se vê naquele momento, e medo de tudo o que o desvende aos outros, a começar pelos olhos. Por isso fecha-os, mas abre-os logo sentindo-se ridículo, pior que fraco. — Sei que conhecia Leão — vai dizendo Belle — ele contou-me que eram colegas, amigos? O que aconteceu ao seu lábio? Está muito magoado? Sáurio esforça-se agora por manter os olhos bem abertos, abanando a cabeça sim e não, para responder às sucessivas perguntas de Belle, que reforça: — Quer beber alguma coisa? — Obrigado. Ela levanta-se, rodopia — mas que devagar! pensou Sáurio, como é que se pode rodopiar tão lentamente? — e apresentou a Sáurio um copo cheio de conhaque. — Já agradeci — disse ele, estupidamente. Belle sentava-se; Sáurio reparou que ela não se deixava cair, mas que se sentava com rigor, calculando o ângulo e a força necessária a cada fracção de movimento. Depois, estranhando o silêncio, Sáurio perguntou: — O quê? — Eu ainda não disse nada — respondeu Belle, e continuou: — Posso dizer-lhe o que penso? Acha que Leão se suicidou? Também não me parece. Era mais de matar que morrer, não era? Disto é que eu lhe queria falar. Sáurio juntava os joelhos, imitando Belle, e reparou que as suas posições eram quase imagens especulares uma da outra. Pensou em dizê-lo, mas Belle, ainda indecisa, antecipou-se: — Teria ele inimigos? Sáurio começou a rir, do nervoso, mas também da pergunta, e Belle juntou-se-lhe num risinho contrariado primeiro, depois estendendo-se francamente cada vez mais largo, acabando numa espécie de gemido. Ficaram a olhar-se, a medir-se. Sáurio avançou: — Eu acho que tu o mataste. O homem não se ia suicidar na garagem. Deste-lhe uma droga e meteste-o no carro, e par causa de Fabrizio ainda por cima. — Fabrizio? — perguntou Belle. — Se calhar até te ajudou a transportá-lo. 21
Belle calou-se. Parecia, na verdade, apanhada em falso. Depois lembrou-se, estendeu o braço para pousar o copo: — Mas eu nem sequer estava. É verdade que Fabrizio me escreveu, e que eu lhe respondi, mas arrependi-me logo. Fui para casa de uns amigos, em Albufeira, queria estar sozinha. Não acredita? Posso provar-lho? Para Sáurio, a sala rodava lentamente. Suspeitava. Era como se estivesse quase a lembrar-se de uma palavra adequada. — Isso é falso, é inventado! Belle saíra da sala, voltava agora, estendendo a Sáurio o postal que ele e Boris tinham escrito, imitando a caligrafia dela. — Tem a data do dia da morte de Leão. Quer ver? Corrigira a data no carimbo, grosseiramente. — Não prova nada. Belle recolheu o postal, releu. — Foi você, não foi? Fez-se passar por Fabrizio, não sei porquê, talvez para fazer chantagem comigo, ou com ele? Ou então meteram-se num negócio qualquer, Leão não resistia à clandestinidade. No me quer dizer o que se passou? Mas não espera resposta nenhuma, Sáurio cala-se, as mãos pousadas nos joelhos, os pés juntos, caricato, como um boneco de cera, pronto a ser levado em bloco para o asilo, ou à cadeia. Belle aprecia a vitória sobre Leão, contemplando mais um troféu: Sáurio derrocado. — Leão gostava muito de jogos. Lembro-me de um, por exemplo, eu ainda o conhecia mal; reunia amigos e fazia-me falar. Eu nessa altura ainda gostava de falar, achava-me inteligente. E ele deixava-me dizer idiotices, encorajava-me, todos se divertiam muito. — Não finja que está a fingir — disse Sáurio. — Eu sei. — Você tem a mania que é escritor, tem uma visão evasiva das coisas. Para si, o principal é o “como se”. Eu vivi com Leão dez anos. Para mim o principal era co- nhecer-lhe exactamente as brincadeiras, para me poder defender. Educou-me numa grande severidade. Com ele tudo era falso, como estar sempre sentada ao tabuleiro — tudo o que se fazia era estratégico. Isso deu-me uma grande disciplina. — Como é que isto vai acabar? — Belle dobrou a manga do vestido, estendeu-lhe o braço com a palma da mão voltada para cima. Sáurio olhou-o, descobrindo uma cicatriz quase invisível do pulso ao cotovelo. — Já não se vê? Isto também foi ele, uma pequena experiência que fez comigo. Comi tantas pastilhas para dormir que acabei por entrar toda inteira pelo vidro da varanda. Sáurio lança-se para a porta. Atravessa o corredor a olhar para trás. Belle deixa-o ir. Cá fora continua a chover. O que prova um postal ilustrado? Sáurio afasta-se 22
depressa, imaginando o olhar do acusador dirigido à sua ânsia de dizer: a verdade é esta, e admitir, confessar. Para depois escrever em paz, livre dos enredos. No passeio, agarrado ao candeeiro, o rosto erguido, fechando os olhos, deixa-se molhar. Parece-lhe o vulto de Boris a passar ao fundo da rua, Sáurio chama-o, segue-o, estaca no cruzamento à procura. Nas várias multidões, é impossível encontrá-lo. — Tanto tempo perdido! — diz Sáurio. E caminha de novo para a porta de vigia, em frente da casa de Belle.
in O Gémeo Diferente, contos, Difel, 1984. (Texto rescrito)
Este texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.
Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN
23
—• — Lista de autores, por ordem de saída dos contos:
Pedro Paixão | João Tordo | Rui Zink | Luísa Costa Gomes | Eduardo Madeira | Inês Pedrosa Afonso Cruz | Gonçalo M. Tavares | Manuel Jorge Marmelo | Mário de Carvalho Dulce Maria Cardoso | Pedro Mexia | Fernando Alvim | Possidónio Cachapa | David Machado JP Simões | Rui Cardoso Martins | Nuno Markl | João Barreiros | Raquel Ochoa | João Bonifácio David Soares | Pedro Santo | Onésimo Teotónio Almeida | Mário Zambujal | Manuel João Vieira Patrícia Portela | Nuno Costa Santos | Ricardo Adolfo | Lídia Jorge | Sérgio Godinho
Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN
Contos Digitais DN A coleção Contos Digitais DN é-lhe oferecida pelo Diário de Notícias, através da Biblioteca Digital DN. Autor: Eduardo Madeira Título: Um Rio Chamado Angústia Ideia Original e Coordenação Editorial: Miguel Neto Design e conceção técnica de ebooks: Dania Afonso ESCRIT ÓRIO editora | www.escritorioeditora.com © 2012 os autores, DIÁRIO DE NOTÍCIAS, ESCRIT ’ORIO editora ISBN: 978-989-8507-07-5 Reservados todos os direitos. É proibida a reprodução desta obra por qualquer meio, sem o consentimento expresso dos autores, do Diário de Notícias e da Escritório editora, abrangendo esta proibição o texto e o arranjo gráfico. A violação destas regras será passível de procedimento judicial, de acordo com o estipulado no Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.
sobre o autor —• —
Eduardo Madeira Humorista, ator e argumentista, nasceu em Bissau, em 1972, e vive em Cascais. Começou a escrever humor para as Produções Fictícias, sendo coautor de programas como Herman Enciclopédia, Contra-Informação, Conversa da Treta e Os Contemporâneos. Escreveu ainda peças de teatro, telefilmes, filmes e vários livros, entre os quais destacamos Nove Estórias (2005). O seu conto Um Tigre não Bebe Tisanas está presente na Antologia do Humor Português (2008).
Um Rio Chamado Angústia —• —
Eduardo Madeira
I — Introdução Como se dá o nome a um rio? Quem o escolhe? Com que autoridade alguém um dia diz a partir de agora este rio vai perder os vários nomes com que ao longo dos tempos o foram baptizando; vai ver-se livre das alcunhas maliciosas dos poetas libertinos que nas suas margens se rebolaram com damas roliças (como Alphonso Gaspacho de Vega, que chamou Rio Regaço ao actual Rio Nérida, na Andaluzia); vai deixar de ter os apelidos de imperadores que o atravessaram a cavalo para não molharem a roupagem interior (o caso de Libório I, o Seboso, que deu nome ao rio Seboso, na Baviera); vai libertar-se dos cognomes ridículos dos reis que nas suas margens construíram palacetes de férias (tal como Dom Firmino III — O Bizarro, fez nas margens do Rio Bizarro, na Flandres) e passar-se-á a chamar apenas o nome que eu escolhi para ele, e, pumba, assim acontece por vontade desse indivíduo?! Que documento legal outorga ou institui o nome de um rio? Que documentação é necessária? A quem se deve assacar responsabilidades se a coisa correr para o torto? E, talvez a pergunta mais importante de todas, como se assume o pesado fardo 6
de se ser o criativo que um dia deu a este ou àquele rio um nome que ficará para sempre e que pode, de uma certa forma, ou mesmo de várias formas, ser totalmente inadequado? São questões que afligem e sempre afligiram uma grande parte da sociedade e a maioria dos intelectuais ao longo de séculos. Wittgenstein, Jung, Marshall McLuhan, Sartre, Skinner, Chomsky, Wilhelm Reich, todos eles conheceram o incómodo de não conseguirem penetrar neste mistério. Embora um ou outro, não vale a pena agora referir nomes, tenha tido dificuldade em penetrar no que quer que fosse. Serve isto para chegarmos ao rio que nos interessa. Um rio que é um enigma total. Estou a falar, claro, do Rio Gião. No entanto, sobre o Gião há sete tratados e onze enciclopédias, uma delas com 23 tomos, que o decifram, explicam e tornam um rio exposto, sem privacidade, nu. Uma espécie de socialite dos rios. Vamos por isso ficar-nos pelo seu afluente, o silencioso, poderoso, pantanoso e, aqui e além, algo peneirento Angústia.
II — Geografia e Clima O Angústia é um dos cinco grandes afluentes do Gião, juntamente com o La Toya, o Jermaine, o Janet e o Michael. Situa-se a norte da Cordilheira das Marmotas e a nordeste do Vale dos Esquilinhos Doentes, serpenteando e bamboleando-se pelos refegos como um réptil libidinoso com o cio. O seu leito rasga a região dos bosques da Farénia e atravessa depois, mais à frente, toda a região do baixo Tora. Esse percurso, considerado pretensioso pela maioria dos geólogos, e rotulado de ridículo por simples, mas sinceros, visitantes, deve-se ao Vulcão Bossa, que durante vários anos estremeceu e deitou lava de uma forma sistemática fazendo lembrar os períodos menstruais dos camelos fêmeas. No Inverno, o Angústia possui caudais generosos que permitem a navegação de barcos de médio e grande portes (pelo menos até Baldtown) e, no Verão, forma baixios que proporcionam as desovas da truta e da carpa, facto natural muito apreciado pelos habitantes da zona, pelos turistas e por um urso que tem compor- tamentos estranhamente contemplativos e existencialistas para o tipo de mamífero que é e para a quantidade de pêlo que ostenta. Três grandes cidades são banhadas pelo Angústia. Baldtown, a maior de todas, fica na República Central da Lambónia e é um importante “porto-mar” que possui aproximadamente oitocentos mil habitantes, segundo os sensos de 1996. Bikafefe, que fica no Nimambe e que terá na melhor das hipóteses duzentas e cinquenta mil almas, é outra dessas cidades. E, por fim, Reikabjorklund, que fica na Fiorávia e que, por ser uma afamada estância turística com praia, tem uma população flutuante na 7
ordem dos cento e oitenta mil habitantes no Verão e apenas onze idosos no Inverno. Depois há também cidades mais pequenas que não merecem que se diga nada sobre elas.
III — A História O Angústia foi sempre, por culpa da sua personalidade, um rio de respeito. Com o tal caudal largo na época das chuvas permite a navegação de navios de grande porte, um factor de desenvolvimento que se confirma na prosperidade ostensiva e despudorada da longínqua Baldtown. Tal como o Angústia, Baldtown possui também uma denominação algo estranha, mas de muito mais fácil explicação, que se baseia nos imponentes e antiaderentes cocurutos glabros dos irmãos Liszt, dois jacobinos pedantes que a fundaram em 1611, abandonandoa logo em 1613. Refundaram-na depois em 1615 e tentaram abandoná-la de novo um ano depois, até que Hernani VII, o resoluto e impiedoso monarca da Lambónia, os condenou a parar com as constantes fundações de cidades (vício que há muito assombrava a brasonada e secular família Liszt), e a fixar-se em Baldtown para todo sempre. O que é certo é que quando os Liszt chegaram ao território onde hoje é Baldtown já alguém os tinha avisado, durante a viagem, de que aquele rio, que até ali os levara em três fragatas da marinha, era o Angústia. Esquecendo-se de perguntar a origem desse nome, acabaram por ter de o aceitar e dar como oficial, visto serem ambos muito honestos nessas coisas. Mas, se quisermos recuar, o que é certo é que durante anos as populações das margens discutiram com uma intensidade exacerbada a origem do nome. As teorias seriam, no início do século XX, umas duzentas e trinta e oito, segundo defendeu no seu livro: “Tantas São as Doces Noites nas Margens do Angústia”, o antropólogo germânico Josef Zweig. Uma obra que nunca ninguém percebeu bem se é uma antologia de poemas, uma fotobiografia com poses escabrosas, ou um estudo preciso, mas algo envergonhado, sobre mecânica aeronáutica. Uma coisa é certa, Zweig era um mentiroso patológico e acabaria preso em Veneza depois de lançar um livro de História intitulado “As Quatro Cleópatras”, e de ter utilizado estranhas teorias acerca de certos comportamentos tribais na Ilha da Páscoa para casar com uma condessa herdeira de uma fortuna em frescos de Tintoretto, ovos Fabergé e pregadeiras de diamantes da família Van Cleef. Todavia, Zweig seria apenas um protagonista entre tantos outros. Em 1921 é publicada uma das mais sustentadas e lógicas fundamentações para o nome do rio. Foi defendida em Tull, uma cidadezinha insignificante e mortiça, mas com um importante centro académico. O líder da Teoria Tulliana era o professor de Ciência Política e História Vazili Guido Olavo. Os seus discípulos seguiam-no de forma 8
cega. De tal forma que alguns foram, a certa altura, atropelados numa rua paralela à universidade quando caminhavam no seu encalço de olhos fechados e aos tropeções. Vazili sustentava que o nome Angústia remontava aos primeiros ocupantes da região, os Enfadonhos, um povo que vinha do Leste dos Balcãs e que se fixou ali por preguiça e por não possuir nenhuma vontade de chegar ao seu verdadeiro destino, as ilhas gregas, onde iria fazer férias. Escavações posteriores revelaram que os En- fadonhos tentaram por diversas vezes fazer reuniões para atribuírem um nome ao rio, mas acabaram por se dividir em dois grupos que se digladiaram, levando à sua extinção total. Não deixaram invenções, utensílios ou escritos de relevo. São por isso considerados o povo mais inútil e esmagadoramente imbecil de toda a história, mesmo contando com os séculos XX e XXI, tão profícuos em estupidez e alarvidade. Mas a teoria de 1921 é posteriormente suplantada em aceitação nos sectores mais esclarecidos por outra tese. Trata-se da Teoria Alexandrina. Segundo essa corrente o nome do rio deveu-se a uma gigantesca batalha travada no século III antes de Cristo por Alexandre, o Vesgo (que se pensa ainda ter sido da família de Alexandre, o Grande, por causa de um sinal igual que ambos possuíam no testículo esquerdo). A fúria expansionista de Alex, como lhe chamavam os amigos, leva-o às margens do Angústia, que na altura se presume tivesse vários nomes, como Rio Palhacinho, Rio Comodoro ou Rio dos Pudins. Na margem, Alexandre pede ao homem da barca, de- licadamente e com a promessa de justa recompensa, que atravesse para o outro lado o seu exército de noventa mil homens, novecentas e cinquenta mulheres, cento e vinte mil cavalos e um vidente. O homem recusa-se, dizendo que com a sua barcaça, que levava apenas sete pessoas, demoraria trezentos e onze anos a fazer o serviço. E isso era-lhe impossível, visto que nessa mesma tarde tinha de recolher um rebanho de ovelhas de um tio e ir buscar os filhos à escola. Alexandre, que não aceitava um não, ficou furibundo e mandou atacar, matar e saquear tudo e todos na cidade mais próxima, que ficava a setenta quilómetros dali. Ao homem da barcaça, no entanto, não tocou com um dedo. Mas deixou-o ali, nas margens, com o coração apertado e cheio de angústia por ter sido o carrasco dos vinte mil habitantes da cidade de Neziria que, em virtude desse gesto irreflectido, se eclipsou. Esta versão histórica dos acontecimentos é, actualmente, e como já foi referido, a mais aceite, mas continua a haver grupos académicos defensores de outras doutrinas (os tullianos, os vandetis, os gansos molhados, etc) que se encontram frequente- mente com os alexandrinos em congressos anuais que chegam a juntar setecentos homens e mulheres vindos de todo o mundo para discutirem a matéria a fundo e depois, à noite, fazerem jantares onde bebem demais e acabam nos quartos uns dos outros a satisfazerem-se sexualmente até à exaustão. Esse acto é aceite e considerado saudável, no sentido em que possibilita a libertação da pesada e sufocante angústia 9
que afecta a esmagadora maioria da população nos nossos tempos. Lá está, ainda e sempre, a angústia.
IV — Mil E Uma Elegias, Prosas, Canções e Poesias Se até aqui a história do Angústia tem aspectos perturbantes, mas comuns a qualquer outro rio do globo, a partir daqui tudo passa a ser de uma normalidade total, embora aqui e ali um nadinha inquietante. Ou seja, tudo fica na mesma. E isso deve-se ao simples facto de a origem do seu nome ainda ser, bem lá no fundo, uma questão em aberto. Mas foi essa mesma questão que levou a que em todas as zonas adjacentes ao percurso do Angústia tenham proliferado artistas que sobre ele se ocuparam. Na pintura destacaram-se os mestres Nisetto (1721-1802) e Bonaggio (1811-1878), e o génio absoluto que foi Detlef Cantinflas (1902-1983). Na música temos a obra colossal de Wolfgang Nitratus Holden (1690-1743), que dedicou ao Angústia mais de 90% da sua produção, da qual é de destacar a “Fantasie in C Minor” (Lento Assai — Allegro Energico — Andante Sostenuto — Allegro Energico — Andante Sostenuto — Lento Assai), as sinfonias nº4, nº7, e nº9 e meio, bem como as óperas “O Imperador, a Odalisca e o Angústia” e “A Profana e Divina Boda dos Lobos e das Odaliscas nas Impassíveis Margens do Angústia”, ou ainda a pungente opereta “Fidelio Morre de Indigestão nas Águas do Angústia para se Fazer de Herói perante uma Odalisca”. Também na Lambónia, mais precisamente em Baldtown, surge uma obra capaz de competir em importância com a de Holden. Trata-se dos concertos para cravo e piano de Giordano Gorgonzola (1780-1791), que maravilharam as cortes quando aos onze anos o pai de Gio o levou, doente com papeira, sarampo, peste bubónica e um resfriado ligeiro, a viajar mostrando o seu virtuosismo ao cravo e sua tez baça e doentia por vários países. No campo da escrita é o poeta e dramaturgo Basilis Fórceps-Gaton (1891-1959), de origem Nimambiense, que pontifica. Prémio Nobel em 1957 (ex aequo com Camus), recebeu ainda a Grã Medalha de Mérito Literário, Desportivo e Estético do Nimambe (Basilis era um homem bonito e um atleta muito razoável), A Real Gravata de Ouro da Academia de Artes e Letras da Fiorávia, e o Prémio Doutor Binoculi Sirocco, o mais alto galardão das letras da Lambónia. As sua obras “Garfadas e Garfadas de Areia”, “Bucho” e “Guinchinhos Histéricos” foram consideradas obras-primas da literatura, embora as duas primeiras fossem absolutamente ilegíveis e a terceira fosse apenas um livrinho de banda desenhada com uns poemas atrevidos no fim. No século XX temos ainda que destacar o sucesso internacional do actor Dieter Luhngm (protagonista de “Assassinos de Esferovite” e “O Rochedo Medonho”, 10
onde contracena com Greta Garbo), a carreira apoteótica da cantora lírica Panoplia Biscosi, e o esmagador sucesso da banda de pop-rock The Bastards, que nos anos sessenta e setenta ombreou com as maiores bandas da época e vendeu cinquenta e três milhões de discos. O álbum conceptual sobre o Rio Angústia gravado em 1969, intitulado “The King Bizarr”, é hoje considerado por muitos uma Bíblia da escrita pop, um Alcorão da escrita de letras para canções pop e uma Cabala da escrita em conjunto de letras e canções pop. Um disco seminal, embora tenha uma capa meio apatetada, com os elementos da banda a tocarem guitarras enquanto pisam uvas num tanque com as calças arregaçadas.
V — Conclusão Muito mais haveria para dizer sobre um rio cuja origem do nome permanece um mistério e que, ainda assim, foi refúgio de musas inspiradoras, de poetas e músicos, de pintores e escultores, mas também de batalhas sangrentas, de momentos trágicos e de alguns momentos que, bem vistas as coisas, têm o seu quê de comédia. Principalmente se tivermos em conta os bigodes e as suíças de alguns estadistas que marcaram a história geopolítica do rio e dos países circundantes. Mas o Angústia foi, segundo alguns, definitivamente descrito nas palavras inspiradas e inspiradoras de Tobias G. Morbidus, um dos maiores estadistas da Lambónia, no final de um discurso perante o Parlamento de Baldtown, quando disse, com a sua voz segura, mas num ligeiro falsete: O Angústia É Uma Força da Natureza Arrebatadora e Voraz Como Nenhuma Outra. Só Este Ano Já Me Levou Duas Bezerras e Um Cão! Creio que, com isto, o essencial está dito.
Este texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.
Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN
11
—• — Lista de autores, por ordem de saída dos contos:
Pedro Paixão | João Tordo | Rui Zink | Luísa Costa Gomes | Eduardo Madeira | Inês Pedrosa Afonso Cruz | Gonçalo M. Tavares | Manuel Jorge Marmelo | Mário de Carvalho Dulce Maria Cardoso | Pedro Mexia | Fernando Alvim | Possidónio Cachapa | David Machado JP Simões | Rui Cardoso Martins | Nuno Markl | João Barreiros | Raquel Ochoa | João Bonifácio David Soares | Pedro Santo | Onésimo Teotónio Almeida | Mário Zambujal | Manuel João Vieira Patrícia Portela | Nuno Costa Santos | Ricardo Adolfo | Lídia Jorge | Sérgio Godinho
Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN
Contos Digitais DN A coleção Contos Digitais DN é-lhe oferecida pelo Diário de Notícias, através da Biblioteca Digital DN. Autor: Inês Pedrosa Título: Quartos de Hotel Ideia Original e Coordenação Editorial: Miguel Neto Design e conceção técnica de ebooks: Dania Afonso ESCRIT ÓRIO editora | www.escritorioeditora.com © 2012 os autores, DIÁRIO DE NOTÍCIAS, ESCRIT ’ORIO editora ISBN: 978-989-8507-08-2 Reservados todos os direitos. É proibida a reprodução desta obra por qualquer meio, sem o consentimento expresso dos autores, do Diário de Notícias e da Escritório editora, abrangendo esta proibição o texto e o arranjo gráfico. A violação destas regras será passível de procedimento judicial, de acordo com o estipulado no Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.
sobre a autora —• —
Inês Pedrosa Nasceu em Coimbra, em 1962. Jornalista e escritora, é também diretora da Casa Fernando Pessoa desde 2008. Passou pelas redações de O Jornal, JL — Jornal de Letras, Artes e Ideias, O Independente (integrou a equipe fundadora), foi redatora da revista LER e do semanário Expresso, diretora da revista Marie Claire portuguesa, e é, atualmente, cronista do semanário Sol, onde assina a coluna Fora de Órbita. Na literatura, estreou-se com uma história infantil, Mais Ninguém Tem (1991), à qual se seguiu o seu primeiro romance, A Instrução dos Amantes (1992). De entre mais de uma quinzena de obras de ficção e “não ficção”, algumas publicadas no Brasil, Espanha, Itália e Alemanha, pode-se destacar Nas Tuas Mãos (1997 — Prémio Máxima de Literatura), Fazes-me Falta (2003), Fica Comigo esta Noite (2003), 20 Mulheres para o século XX (2000) e o seu mais recente romance Os Íntimos (2010 — Prémio Máxima de Literatura).
Quartos De Hotel —• —
Inês Pedrosa
Miguel entrou no quarto, pousou a mala sobre a cama extra encostada à parede, abriu as portadas da varanda e debruçou-se sobre o mar. A conversa carnal entre o vento e as ondas prosseguia, exactamente como naquela noite de há catorze anos, a coberto da escuridão. O frio cortava-lhe a pele. Quando a língua de Carmen lhe percorria o corpo, nessa outra noite de Fevereiro, o frio sumira-se no negrume do céu. — Te quiero dizia-lhe ela. Ele queria-a tanto que todas as palavras lhe pareciam falsas. Disse-lhe — Contigo tenho de me entregar sem sequer pensar no que dizia. Naquela varanda compreendera que já dissera tudo demasiadas vezes, palavras que iam e vinham, desfazendo-se em espuma. Carmen exigia-lhe as palavras que escondera num silêncio que se habituara a ignorar. A palavra entrega era a primeira e a última porta desse silêncio. Sabia que Carmen estava já no hotel. Aproveitara a distracção dos abraços de chegada para perguntar o número do quarto dela. “Maria Luísa, querida, peço-te só um favor: dá-me o quarto 810. Não me leves a mal, não? Um escritor entradote tem direito às suas manias”. Maria Luísa respondera com a gentileza e o humor de sempre, dizendo que estava demasiado atarefada para elaborar o piropo que Miguel queria pescar, mas que ele teria oportunidade de ver que o tempo transcorrera também, e nalguns casos com maior impiedade, para os outros participantes. Discou o número do quarto de Carmen mas desligou de imediato. Que lhe diria? Não podia perguntar-lhe 6
— Posso subir? assim sem mais, catorze anos depois. Ou antes: podia, mas arriscava-se a uma negativa. Provavelmente, até, uma negativa ofendida. Carmen nunca fora mansa com as palavras: o excesso de mansos era o verdadeiro drama do mundo, dizia. De- fendia-se atacando, sempre. Miguel demorara anos a perder o medo das palavras de Carmen. A ternura é a mais lenta das ciências, e a mais essencial. Isso, já o sabia ele no tempo em que se apaixonara por Carmen. Demorara, sim, a acreditar na paixão, na sua capacidade de sobrevivência. Abriu a cama e lembrou-se do cabelo de Carmen espalhado sobre a almofada, iluminando a noite. Lembrou-se dos olhos de Carmen debaixo dos seus, do modo como se semicerravam no instante do êxtase sem deixarem de o fixar. Fora assim do primeiro ao último minuto, quando ele saltou da cama e lhe disse que já não dormiria ali na noite seguinte. Se demorasse mais um segundo teria caído nos braços dela. Na época, estava convencido de que isso seria um desastre para os dois. Se agora lhe perguntasse se podia subir arriscava-se a ouvir das boas. Ou a ouvir um — Não sucinto como um tiro. E se fosse um homem a responder, do quarto dela? Carmen era capaz de tudo. Até de o ter esquecido. Sentou-se na cama e viu o brilho dos dois corpos juntos. Não, nem toda a fúria de Carmen podia tê-la feito esquecer semelhante esplendor. Sara entrou no quarto, pousou a mala no chão e sentou-se na secretária, diante do espelho. Mário fazia-a sentar-se ali, ajoelhava-se atrás dela, abraçava-a pelas costas e dizia-lhe — Não vês como és bonita? Se não acreditas nos meus olhos, acredita pelo menos na imparcialidade do espelho. Não era a beleza, ou a falta dela, a causa da insegurança de Sara. Nem sequer a admiração pela vistosa inteligência de Mário. Tão inteligente, de facto — e no entanto fora arrastado na armadilha de uma ladra perversa, entendida nos segredos da informática. Meia dúzia de emails enviados por essa mulher em nome dele, outra meia dúzia enviada em nome dela bastara para matar o romance deles e deixar Mário embevecido por essa peste. Quando se reencontraram naquele mesmo hotel, um ano depois, já Mário percebera o seu erro terrível. Estava muito doente: magro, pele cinzenta, covas escuras no lugar dos olhos — Achas que ainda consegues gostar de mim? Há muitos anos que Mário já não existia. Quase ninguém falava dele. Os jovens escritores que ele lançara tinham cabelos brancos, viajavam continuamente para 7
promover novas traduções e já não referiam o seu nome. Muito doente, Mário recebia um telefonema de alguém pedindo um empenho, um texto num jornal, uma opinião sobre a última obra. Dizia sempre que sim. — Gosto de gostar respondia, quando Sara insistia para que ele dissesse não, e descansasse. Gostava que gostassem dele, essa era a fragilidade de Mário. — E agora fiquei aqui eu a gostar de ti para nada. A gostar de ti sozinha repetia Sara ao espelho, com o sorriso de Mário em fundo. Um sorriso dezasseis anos mais novo do que ela era agora. Alba e Xavier entraram no quarto, largaram as malas diante da porta, abraçaram-se, beijaram-se, caíram na cama um sobre o outro, rindo. Lembravam-se do embaraço da primeira noite, há vinte anos — o fecho do vestido dela encravara, ele acabara por lho rasgar, depois ele sentira-se mal, ajoelhara-se, nu, a vomitar na sanita, e ela dissera — Estou aqui contigo, tudo vai correr bem. Nunca mais se separaram. Xavier fora a Barcelona buscar as suas coisas. Quase nada — roupa, um saco de livros e discos. Largou a casa com o recheio todo: mulher, móveis, aparelhagens, bicicleta, a sua preciosa colecção de troféus jornalísticos e literários. E o carro à porta. Depois a vida em Paris tornara-se insuportavelmente cara, Alba encontrou um lugar de professora e mudaram-se para Lisboa. Xavier passou anos sem conseguir mais do que uns trabalhos esporádicos como correspondente estrangeiro, começou a beber. Entre aulas e explicações, Alba não encontrava tempo para escrever o seu próximo romance. Revoltava-se contra Xavier que tinha todo o tempo do mundo e não descortinava um tema sobre o qual escrever. Estiveram duas ou três vezes a ponto de se separar. Acontecia-lhes afogarem as suas frustrações em corpos de ocasião. Voltavam para casa desejando-se, se tal fosse possível, ainda mais. — Escritor com escritor não tem hipótese de dar certo, garantiam os amigos e as amigas dele, com o sentido protector que a inveja tende a despertar. — Viver com um concorrente? És doida. Acabarás a passar-lhe as camisas e a rever-lhe os textos profetizavam as amigas e os amigos dela, com o conhecimento da desgraça que a felicidade alheia tende a apurar. Só Maria Luísa brindara, desde o primeiro minuto, àquele amor. — Vê-se-vos na cara que vocês serão felizes, haja o que houver. Maria Luísa tinha o dom de radiografar caras. Crescera na aldeia, onde os
8
negócios se fechavam com um olhar e um aperto de mão, sem papéis nem pensa- mentos sobre as palavras que sobram ou faltam. Saíra da aldeia porque se apaixonara pelas caras que os livros lhe mostravam, pelos corpos infinitos que as palavras construíam. Tivera uma vida suficientemente difícil para saber reconhecer a felicidade quando a encontrava e para se tornar de imediato parte dela. — A ti dá-te jeito, claro, um romance de amor internacional é uma excelente promoção para o teu festival. Sempre existiriam editores assim: cáusticos como garotos de rua, omniscientes como vencedores do Nobel e coscuvilheiros como beatas de aldeia. Sem o seu contributo a literatura perderia mote, chispa, glosa e distância crítica. Maria Luísa sorria-lhes, dizia que sim, mandava-os apagar os cigarros e pastoreava-os para o autocarro, no meio do vendaval contínuo daquele mês de Fevereiro. Todavia, ali estavam Xavier e Alba, vinte anos depois, deitados, com os braços e as pernas misturados, destruindo, pedra a pedra, a estátua do deus da descrença à qual os seus contemporâneos prestavam honras quotidianas. Maria Pascoal entrou no quarto e pediu ao empregado que lhe pusesse a mala na cama extra — E já agora abra-ma, por favor. O fecho é uma maçada, está mais perro do que eu depois pôs-lhe uma nota na mão, deu-lhe um piropo, disse-lhe que fechasse bem a porta, descalçou-se e estendeu-se na cama a saborear os bombons que sempre pedia que lhe deixassem na mesa de cabeceira, uns quadrados de chocolate recheados de massapão, geleia de maçã e pasta de alperce. Pensou no que diria o seu médico, se a visse alambazar-se assim, quadradinho a quadradinho, um bombardeamento para a sua diabetes. Completaria cem anos dentro de poucos meses, e se era certo que teria prazer em atingir os cento e cinco, não era menos certo que não gostaria de chegar a essa nobre idade de qualquer maneira. Suspirou, pensando que tinha de tirar os vestidos e as écharpes da mala, pendurá-los no varão da banheira e abrir a torneira da água quente para que o vapor desfizesse as rugas dos tecidos. Talvez fosse boa ideia chamar outra vez o rapazinho. Ultimamente cansava-se com mais facilidade, mas não podia deixar de estar presente nesta homenagem que lhe era dedicada. Depois da sua última participação, há catorze anos, sofrera um acidente vascular cerebral que a aproximara da morte. Volvido um par de anos ressuscitara, com um vigor acrescido, que a levava a produzir uma média anual de dois romances. O marido morrera entretanto de ataque cardíaco, o que lhe pareceu um modo simpático e elegante de desaparecer. Tinha saudades dele mas não perdia tempo a pensar nisso; vingava-se da tristeza, da solidão e da mortalidade como sempre se vingara de todos os desgostos: enchendo 9
páginas e páginas com a decifração das histórias codificadas que a vida lhe oferecera. Metia nessas histórias amigos e amores transviados, mágoas, euforias, sonhos interrompidos. Os intelectuais diziam que os seus livros eram complexos. Maria alegrava-se porque quem melhor a entendia eram os jovens e os simples. Isso provava-lhe que os seus livros durariam mais do que ela e mudariam a vida de algumas pessoas. No fim de contas, é para isso que se escreve. Abraçara Carmen à chegada e a força daquele abraço consolara-a: um dos problemas da velhice, pensava, é que as pessoas têm medo de nos tocar — ou asco, seria? Não queria pensar nisso. Carmen abraçara-a como se fossem da mesma idade e possuíssem a mesma energia erótica. — Pascoalita! Mi querida Pascoalita! — Cármen, bonita, desta feita levas o teu amor para casa. Estou cá para te assegurar isso, e sabes que nestas coisas eu sou melhor que a de Delfos. E menos complicada, graças a Deus. — Ay, no me hables, no me digas nada, que me muero. — Morrerás um dia sim, guapa, mas primeiro ainda tens de ser feliz, que mando eu. O ofício do bruxedo dá que fazer. As futurações românticas de Maria Pascoal tinham por base informações sólidas. Averiguara que, depois dos filhos crescerem e saírem de casa, a mulher de Miguel Foz desenvolvera a doença do ciúme e dera em persegui-lo com tal afinco que encontrara o que procurava, isto é: Miguel na cama de uma jornalista, num colóquio literário no Algarve. E fora tal o escândalo e a berraria que aquilo que não passaria de um episódio sem rasto acabou por transformar-se no funeral daquele casamento. As coisas que têm de acontecer lá se organizam para os seus desenlaces, em geral por ínvios meandros que nenhuma ficção suportaria, sob pena de parecer inverosímil. Assim meditava Maria Pascoal, enternecida com a conclusão da história que vira nascer e extraviar-se, naquele mesmo hotel à beiramar, catorze anos antes. Lembrava-se das lágrimas de Carmen, da bebedeira de Miguel, do desejo que circulava em redor deles como um halo de luz, tão intenso e cego, tão infantil e desavisado, incapaz de ver o seu caminho. Essa aura invadia agora o hotel inteiro, infiltrava-se nos quartos dos congressistas, tinha uma existência física. A marca distintiva do amor é a de uma terceira entidade, atmosférica e concreta, que faz com que os amantes se transfigurem na presença um do outro. O amor empurra dois corpos um para o outro, como se dançassem, ainda que em lados opostos da sala ou do mundo. Maria Luísa entrou no quarto, pousou as pastas na mesa, começou a despir-se e foi preparar um banho quente. Tinha uma hora livre, esta noite, luxo que não teria nos cinco dias seguintes. Vinte e cinco anos. Ainda ontem começara — aquele quarto de século voara sobre ela: entre telefonemas, contas, ofícios, listas de nomes, marcações
10
de viagens, não dera pelo tempo. Conseguira escalar os mais altos picos da burocracia e da crise, mês após mês, sem esmorecer. Ou quase: vezes houve em que esteve a ponto de desistir — ou fez de conta que estava, para não dar em doida. Nos minutos limite acudia-lhe uma frase de um jornal, a voz de um amigo, a imagem das salas, no primeiro ano quase vazias, depois cada vez mais cheias, esgotadas, gente de pé, gente sentada no chão, gente a marcar férias de propósito para vir de França, do Brasil, assistir a essa festa das palavras que ela, com uma equipa minúscula, tinha conseguido inventar. Cada ovação a uma mesa de escritores a acariciava, como se ela estivesse dentro de cada um deles — ou antes, como se ela mesma fosse agora um compacto de heterónimos, uma pessoa desdobrável, infinita. Aquela reunião anual de escritores de várias partes do mundo era a obra dela, o seu livro — um romance clássico e cubista, uma saga em vários volumes, de contornos descabeladamente modernistas. Quase tudo o que aprendera vinha dali, daquela corrente desenhada por si, ano a ano. Fizera amigos, confiara e fora confiada. As desilusões, inevitáveis, eram muito menores do que as alegrias. Provocara encontros que tinham alterado vidas. Criara multidões de novos leitores. Continuaria a fazê-lo — acontecesse o que acontecesse na sua vida. Pensou em Maria Pascoal. Em Alba e Xavier. Em Mário, na falta que ele fazia. Em Sara, ainda sozinha com Mário. Pensou na partilha de cervejas e confidências com Ricardo, que se tornara o seu maior amigo e o mais fiel participante do festival. Pensou em Miguel, na forma quase inconsciente como seduzia indiscriminadamente as mulheres, e na faísca visível do seu encontro com Carmen. Pensou na coragem que em várias madrugadas fora buscar às palavras de Carmen. Pensou em Vicente e na facilidade que tinha em encher de gargalhadas qualquer espaço com a sua imparável maratona de anedotas. Pensou em Sandra e na potente voz de fadista que a sua timidez velava. Pensou em vários que morreriam estatelados caso se lançassem a saltar do alto dos seus egos para o chão. Riu-se quando pensou nisto. Carmen entrou no quarto, pousou a mala na cama extra e ficou a olhar para ela, sem vontade de a abrir. Miguel ainda não chegara, perguntara na recepção. — Quer que deixe recado? Não valia a pena. Não tinha recados para Miguel. Nunca mais fora capaz de se deitar com outro homem; sentir-se-ia violada. Uma noite ou outra, com um copo a mais, considerara experimentar — fecharia os olhos, imaginaria que era Miguel quem a entregava a outro e desse modo alcançaria um simulacro do prazer que só ele sabia extrair do seu corpo. Mas mesmo que o conseguisse. Mesmo que pusesse de lado, por umas horas, a sua moral de mulher justa, e se permitisse usar um corpo de homem como os homens se permitem usar os das mulheres. E depois? Quando 11
abrisse os olhos e Miguel não estivesse ali para lhe dizer que o sacrifício tinha acabado? Que raio de fantasia erótica era esta, tão, enfim, pouco feminista — para dizer o mínimo? O que tinha para dizer a Miguel era que o seu desejo estava exactamente no mesmo sítio. Que agora que os filhos já eram adultos a poupasse ao discurso da família construída. Que os filhos não pedem nem merecem o peso da culpa dos sonhos cancelados dos pais. Que não lhe dissesse que era feliz com a mãe dos seus filhos, porque não se pode ser absolutamente feliz em duas existências paralelas. Que ela sabia que tinham sido absolutamente felizes desde o primeiro momento em que se encontraram até à derradeira e desesperada noite. Que ela não podia senão entregar-se-lhe. Que abandonaria o seu outro país e a sua vida por ele. Que o faria mesmo sabendo que ele não acreditava no amor e que por isso não resistiria a seduzir outras mulheres. Que por favor não lhe contasse quando não resistisse a outro corpo de mulher. Que de nada valeria contar-lhe, porque ela jamais perceberia como conseguia ele deitar-se com alguém depois de se terem deitado os dois. Dir-lhe-ia, finalmente, que confiasse nela. Que confiasse na sua capacidade de se transformar em todas as mulheres que ele pudesse vir a fantasiar. Bateram à porta. Carmen abriu. Não disse nada. A conversa entre o vento e as ondas prosseguiu nessa noite, como em todas as noites de todos os Fevereiros que vieram depois, já Miguel e Carmen e Sara e Alba e Xavier e Maria Luísa e Ricardo e Sandra e Vicente e Maria Pascoal e os restantes congressistas reunidos naquele hotel em Fevereiro de 2024 haviam há muito desaparecido deste mundo.
in Revista Correntes d’Escritas 2012 (Texto rescrito)
Este texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.
Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN
12
—• — Lista de autores, por ordem de saída dos contos:
Pedro Paixão | João Tordo | Rui Zink | Luísa Costa Gomes | Eduardo Madeira | Inês Pedrosa Afonso Cruz | Gonçalo M. Tavares | Manuel Jorge Marmelo | Mário de Carvalho Dulce Maria Cardoso | Pedro Mexia | Fernando Alvim | Possidónio Cachapa | David Machado JP Simões | Rui Cardoso Martins | Nuno Markl | João Barreiros | Raquel Ochoa | João Bonifácio David Soares | Pedro Santo | Onésimo Teotónio Almeida | Mário Zambujal | Manuel João Vieira Patrícia Portela | Nuno Costa Santos | Ricardo Adolfo | Lídia Jorge | Sérgio Godinho
Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN
Contos Digitais DN A coleção Contos Digitais DN é-lhe oferecida pelo Diário de Notícias, através da Biblioteca Digital DN. Autor: Afonso Cruz Título: A Queda De Um Anjo Ideia Original e Coordenação Editorial: Miguel Neto Design e conceção técnica de ebooks: Dania Afonso ESCRIT ’ORIO editora | www.escritorioeditora.com © 2012 os autores, DIÁRIO DE NOTÍCIAS, ESCRIT ÓRIO editora ISBN: 978-989-8507-15-0 Reservados todos os direitos. É proibida a reprodução desta obra por qualquer meio, sem o consentimento expresso dos autores, do Diário de Notícias e da Escritório editora, abrangendo esta proibição o texto e o arranjo gráfico. A violação destas regras será passível de procedimento judicial, de acordo com o estipulado no Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.
sobre o autor —• —
Afonso Cruz Escritor, ilustrador, músico (The Soaked Lamb) e cineasta, nasceu em 1971, na Figueira da Foz. É autor dos livros A Carne de Deus (2008), Enciclopédia da Estória Universal (2009 — Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco 2010), Os Livros Que Devoraram o Meu Pai (2010 — Prémio Literário Maria Rosa Colaço 2009), A Contradição Humana (2010 — Prémio Autores 2011 SPA/RTP; seleção White Ravens 2011; Menção Especial do Prémio Nacional de Ilustração 2011; Lista de Honra do IBBY — International Board on Books for Young People; Prémio Ler/Booktailors — categoria Melhor Ilustração Original 2011), A Boneca de Kokoschka (2010 — Prémio da União Europeia de Literatura 2012), O Pintor Debaixo do Lava-Loiças (2011), Enciclopédia da Estória Universal — Recolha de Alexandri (2012) e Jesus Cristo Bebia Cerveja (2012). Vive no campo e gosta de cerveja. Mais informações em afonso-cruz.blogspot.pt
A Queda De Um Anjo —• —
Afonso Cruz
7º A luz é intensa aqui no sétimo círculo. Ponho o chapéu de palhinha com abas, com uma fita preta, que me foi fornecido à entrada. Agora vejo melhor a paisagem, as espreguiçadeiras, os anjos, Deus, os outros habitantes da Eternidade. Nunca pensei que houvesse espreguiçadeiras no Paraíso, um móvel tão amigo de um dos pecados mortais. Tapo os olhos por causa da luz. É demais, é muita luz, e deveria haver um botão para baixar, para dar penumbra, como quando baixo os estores nas tardes de agosto. Imaginava o Paraíso com estores. Espero que haja uma noite para aliviar este dia tão luminoso. As grades parecem seguras, pintadas de azul, que vai bem com o céu. Mas tenho de reclamar. Onde é que está o meu marido? À minha frente surge um anjo, todo vestido de branco. Quase que ergo a mão para lhe tocar a face, tão jovem, tão bonita, tão cheia de luz. Em vez disso, sai-me uma pergunta seca: onde é que está o meu marido? O anjo fica sem saber o que dizer. Digo-lhe que não me interessa que possam ter achado que o meu marido não era uma boa pessoa, que ele não era pessoa de vir para o Céu. A verdade é que se eu vou para o Paraíso, se o mereço, tenho de ter o meu marido comigo. Que raio de coisa é esta em que passamos a eternidade separados das pessoas que amamos? O anjo diz para me acalmar, mas eu não posso aceitar uma coisa destas. Têm muita luz, mas esquecem-se de quem amamos! O meu marido podia ser mau, mas se amamos pessoas assim o que é que devemos fazer? Viver eternamente sem elas? Que porcaria de paraíso é este? O anjo 6
encolhe os ombros. Nunca pensei que os anjos os encolhessem, aliás, nunca pensei que tivessem ombros. As camas brancas sucedem-se. A brancura agrada-me, é sinal de higiene. Há um homem a olhar para mim e tem bigode. Esta é outra coisa que eu não esperava encontrar. Para quê estes pelos? Será que temos de os cortar ou ficam sempre do mesmo tamanho? É difícil dizer. Acho que ainda não passou um dia, mas quem é que pode garantir tal coisa? O tempo deve passar de maneira diferente por aqui. Se calhar passou uma eternidade. O tempo é muito relativo e eu sei muito bem o que isso é. Tive um tio que quando abria a boca para falar, parecia que nunca mais se iria calar, parecia uma eternidade. Há uma jarra em cima da mesa e vários anjos. Digo-lhes que se o meu marido não está aqui, que se não é bom o suficiente para estar aqui, então eu prefiro ir para o Inferno. Pelo menos estaremos juntos. Tentam dissuadir-me, mas eu não vou desistir. Agarram em mim e levam-me para um quarto. Sentam-me na cama e falam-me com voz doce. Fazem com que me deite, trazem-me um copo de água e eu, passados minutos, sinto vontade de dormir. Acordo de noite (afinal há noites no Paraíso) e tento acender um candeeiro, mas só dá escuro. Tenho de chegar ao Inferno, penso, tenho de chegar ao Inferno.
6º Estou no sexto círculo e iniciei a minha viagem para o Inferno. Começo a lembrar-me de coisas, recordações, idas à praia. Como eu gostava de ir à praia, da areia, do sol a derreter-me o corpo. O meu marido não gostava. Ficava deitado na toalha a beber cerveja e a ler o jornal desportivo, enquanto eu caminhava até à beira de água. Então — porque nunca aprendi a nadar, a única coisa que sabia era ir ao fundo — baixava-me, sentava-me na areia, para que as ondas me molhassem o peito, a cara, o cabelo. Depois levantava-me e via tudo desfocado, esfregava os olhos com as mãos, ficava com eles a arder e cheios de areia, e voltava-me para ver se o meu marido estava a olhar para mim. Parecia que jamais o fazia, mas nunca tive a certeza, pois apesar de ele, quando me voltava, estar sempre a olhar para outro lado qualquer, nada me garante que, quando estava de costas, a banhar-me, ele não estivesse a olhar para mim. Aliás, tenho a certeza de que estava a olhar para mim. Provavelmente disfarçava por vergonha. Lembro-me dos meus dedos todos enrugados de estar dentro de água, pareciam ameixas secas, e eu gostava de os mostrar ao meu marido. Corria para ele com as mãos esticadas e mostrava a polpa dos dedos, todos encarquilhados. O meu marido encolhia os ombros e dizia para eu o deixar em paz. Tinha razão, sempre fui muito infantil. Não é fácil serse uma criança tão velha 7
como eu sou. Muitas vezes quero dançar e as minhas pernas apenas tremem, não concordam com o que eu quero e isso deixa-me triste. Insulto as minhas pernas e digo-lhes que ficaram velhas e já não sabem viver a vida, por isso, para lhes mostrar como se pode ser feliz, danço realmente, mas sem mexer as pernas, só balançando os braços. E quando estes se cansam, danço só com a imaginação e então dou pulos muito grandes e, nessa altura, ninguém me repreende, nem sequer o meu marido que continua a ler o jornal desportivo.
5º Tenho comichão nas costas. Que coisa estranha, pois como é que se coça as costas? No Paraíso não deveria haver costas se não chegamos lá com as mãos. Começo a ter demasiadas reclamações a fazer. Que o mundo não fosse perfeito, compreende-se, mas um paraíso assim é inaceitável. Talvez deva pedir aos anjos que me cocem as costas, mas não vejo nenhum. Dizem que os anjos não têm costas, o que faz todo o sentido. Se calhar eu também não tenho e a comichão que sinto é como a daqueles sujeitos amputados, soldados e isso, que continuam a sentir dor na perna que lhes foi serrada para impedir que a gangrena alastrasse. É um inferno muito grande ter comichão numa zona do corpo que já não possuímos. É o mesmo que ir às compras sem levar a carteira. Pois é, tenho a certeza de que não tenho costas. Se alguém chegasse ao pé de mim e me tocasse, não me acertava no corpo, mas sim na alma. Se me dessem uma palmada no ombro, acertavam-me no coração. É tudo profundo, não há coisas superficiais, como montras e centros comerciais. Quando tento coçar a garganta, começo a coçar as palavras e fico com a voz rouca. Os meus pés estão engelhados. Deve ser apenas uma impressão. É como se tivesse ficado muito tempo no banho, como quando ia à praia e o meu marido fingia não olhar para mim. Tenho sempre muito medo de sair da banheira, escorregar e partir a cabeça do fémur e ter de ficar estendida numa cama a recuperar, e ficar meses assim, sem poder espirrar, senão o osso não recupera. E eu que sou alérgica, especialmente na primavera. Os pólenes baralham-me o nariz. Que coisa: por causa das flores não vou conseguir recuperar o osso da perna. Paciência, também não devo precisar dele, deve haver maneira de andar a voar. Tinha um amigo que dizia que viajava com a imaginação. A minha imaginação está um bocadinho velha, como se tivesse ficado demasiado tempo no banho, mas acho que ainda dá para viagens curtas, voar de um pensamento para outro. Sim, a cabeça funciona bem. Passo por lugares do meu passado com muita 8
rapidez, como se corresse num campo verde. Vejo o meu gato Van Gogh, que é muito peludo, e eu sou alérgica aos animais, não é só aos pólenes, por isso, não lhe mexo, mas passo os olhos por cima dele, que tem o mesmo efeito que passar as mãos, e ele ronrona e sente o meu olhar como se fossem os meus dedos. Gosto muito do Van Gogh, que é um gato de pernas curtas e cauda comprida. Não tem uma orelha por causa de um cão. Caça ratos e pombos e por vezes ficamos com o alpendre cheio de penas e de animais mortos. É muito bom caçador e eu digo-lhe isso mesmo, pois é muito triste quando fazemos alguma coisa bem e ninguém repara. Eu sempre fui boa a recortar palavras, mas a minha mãe e o meu pai nunca repararam nisso, e diziam que eu tinha de aprender a cozinhar e a ser uma mulher e a ser trabalhadeira. Foi o que eu fiz, mas era melhor com as palavras do que a ser mulher ou a estrelar ovos. Raramente saíam da frigideira com a gema inteira. Por vezes o meu marido pedia-me ovos estrelados e eu cozia arroz de ervilhas. Ele ficava aborrecido, mas era melhor assim do que rebentar a gema.
4º A primeira vez que eu e o meu marido fizemos amor foi numa caravana que ele tinha comprado em segunda mão, toda branca com gaivotas azuis. Não eram gaivotas verdadeiras, eram autocolantes e não voavam, apesar de terem as asas abertas. A caravana tinha uma mesa que fazia de sala e tecidos azuis e vermelhos. O meu marido — que na altura em que tinha comprado a caravana com gaivotas azuis ainda não era meu marido — deu-me um estalo porque eu não queria fazer umas coisas com a boca. Foi bem feito, eu era muito burra, era como uma criança e ele era uma pessoa muito sábia e experimentada que tinha andado embarcada e tinha visto o mundo. Fiquei muito mais mulher depois daquela tarde. Sonhei com flores que haviam sido usadas nos cabelos de bailarinas e com vestidos compridos por estrear. Sonhei com raparigas descalças que corriam para dentro delas mesmas e desapareciam para sempre. Nessa altura, sonhava muitas coisas e, nos meus sonhos, havia sempre animais a correrem pelas flores como se fossem abelhas, e havia alfaiates que morriam de febre-amarela, e havia arquitetos de pirâmides egípcias que eram construídas com pedra-sabão. Uma vez vesti-me de branco, como a caravana, e acabei por sujar o vestido, pois o branco atrai muitas nódoas. Foi no dia em que me casei. O branco também atrai maridos e as nódoas são como os pássaros, andam a voar à nossa volta e poisam em roupas lavadas. Estou a descer rapidamente para o Inferno. Consigo sentir o calor a encher-me 9
as bochechas, a cara toda. Dantes sabia ver as horas sem olhar para o relógio e nunca falhava por mais de um ou dois minutos.
3º O meu marido foi um homem que, a certa altura da vida, começou a juntar anos. Em vez de os viver, juntava-os. Viveu muito tempo, mas sem noção disso. O meu marido já estava tão velho que já não envelhecia, apenas apodrecia. Eu gostava muito dele e não sou capaz de viver eternamente sem o ter a meu lado eternamente. Os desenhos recortam-se com tesouras. A alma recorta-se com palavras. Eu sempre fiz isso muito bem, é como cortar as unhas. Sempre fui muito boa nisso. Há pessoas que sabem saltar ao eixo muito bem e outras que sabem mexer o café com as duas mãos — às vezes com a esquerda, outras vezes com a direita — e outras que sabem fazer contas e dançar ao mesmo tempo. Eu sou boa a recortar palavras. Cada um é para o que nasce e eu com as palavras é como cortar as unhas, mesmo rente à carne. Quando era nova usava sandálias e as unhas pintadas. Quando somos novos somos eternos e, em vez de envelhecermos, crescemos. Depois é que começamos a, em vez de crescer, envelhecer. Então deixamos de durar para sempre e começamos a ser avós e a gostar de flores e a andar muito devagarinho e a ter dificuldade em dobrar as costas. O que é uma pena, pois como gostamos mais de flores, temos uma grande tendência para as apanhar e pô-las em jarras com água em cima da cómoda e na mesa da sala. Fica tudo perfumado, tudo florido e cheio de cores. As visitas gostam muito e elogiam. Eu agradeço os elogios e digo: mas olhe que, senhora Guzman, faz mal às costas.
2º O cabelo não cai só aos homens, e às árvores no outono, também cai às mulheres, e eu já não tenho muito. Ultimamente, sempre que me vejo ao espelho consigo ver a curva da cabeça. Quando esfrego os olhos são muitos séculos de olhar que estou a esfregar. Porque uma pessoa não tem só o seu passado, tem também os passados de todos os seus familiares, dos seus amigos, das histórias que leu ou que ouviu. Não é? Quando esfregamos os olhos, esfregamos muitos séculos. Um dia, o meu marido acordou sem conseguir pronunciar palavras, apenas o sinal de interrompido do telefone. Abria a boca e saía um som de máquina. Dei-lhe 10
um beijo e aquilo passou-lhe, mas foi muito esquisito e eu quando tinha saudades dele, quando ele estava fora muitos dias, levantava o auscultador e esperava até ouvir o sinal de interrompido. Eu costumava dizer ao meu marido que as minhas palavras ficavam mesmo rente à carne. Dizia-lhe que era como cortar as unhas. Às vezes apontava para algumas palavras que via à minha volta. Ele ficava muito irritado quando eu fazia isso. É que eu sempre consegui ver e ouvir certas palavras que ficam nas salas e nos quartos das casas. Entro numa assoalhada e ouço palavras antigas que foram pronunciadas há um ano ou há uma semana ou há menos tempo. Há palavras que se dizem que nunca mais se apagam.
1º Quando era nova pensei que deveria substituir os fins por recomeços para não ter muita coisa para enterrar. Depois, quando envelheci, pensei que talvez devesse passar mais tempo a enterrar coisas. Funciona com as dálias e com as margaridas. Enterramos sementes e aquilo cresce em direção ao sol. Os corpos sem luz têm vontade de se exibir e de crescerem pelo céu acima como se subissem escadas. Enter- ramos coisas e elas crescem, aparecem, engordam, ficam verdes. É um bom exercício e foi algo que fiz com frequência: enterrar-me no jardim. O meu marido detestava que o fizesse, mas aquilo dava-me vontade de viver e eu saía da terra como as dálias e as margaridas, cheia de pétalas e cheia de cores. Enfiavame a preto e branco e saía como se fosse felicidade. Depois passava muito tempo a limpar a roupa e, por três vezes, apanhei carraças. Tive de as tirar com um jornal a arder e eu detesto queimar as notícias. Dizem que não prestam, mas eu sinto que são importantes e informam-nos que a nossa vida está sempre a caminhar para o abismo e que não há nada a fazer senão continuar a votar nas pessoas erradas, que é para isso que serve a democracia, segundo me é dado perceber. Estou toda nua e sinto-me mais nova. A proximidade ao Inferno tem efeitos benéficos na pele. Ouço barulho de automóveis e isso diz-nos alguma coisa sobre...
Nota final — ou R/C. A minha prima, Ema de Jesus, atirou-se da janela do lar Paraíso — que ocupava o sétimo andar de um prédio do centro —, para onde se havia mudado recentemente, logo a seguir à morte do marido. Todos sentimos algum alívio quando ele morreu 11
após doença prolongada. É um sentimento triste, mas não há que ser hipócrita a respeito disso. Sempre ouvi dizer que o tempo é muito relativo. Lembro-me de um tio que, quando abria a boca, parecia que nunca mais se iria calar, eram discursos que pareciam durar eternidades. Espero que a queda da minha prima lhe tenha permitido, tal como tenho ouvido dizer que acontece nestas ocasiões, rever a sua vida toda em segundos como se a estivesse a viver de novo. Ou pelo menos relembrar algumas das coisas que lhe foram mais queridas. Acho que oitenta e dois anos cabem perfeitamente dentro de uma queda de sete andares. O lar Paraíso foi alvo de um processo judicial.
Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN
12
—• — Lista de autores, por ordem de saída dos contos:
Pedro Paixão | João Tordo | Rui Zink | Luísa Costa Gomes | Eduardo Madeir | Inês Pedrosa Afonso Cruz | Gonçalo M. Tavares | Manuel Jorge Marmelo | Mário de Carvalho Dulce Maria Cardoso | Pedro Mexia | Fernando Alvim | Possidónio Cachapa | David Machado JP Simões | Rui Cardoso Martins | Nuno Markl | João Barreiros | Raquel Ochoa | João Bonifácio David Soares | Pedro Santo | Onésimo Teotónio Almeida | Mário Zambujal | Manuel João Vieira Patrícia Portela | Nuno Costa Santos | Ricardo Adolfo | Lídia Jorge | Sérgio Godinho
Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN
Contos Digitais DN A coleção Contos Digitais DN é-lhe oferecida pelo Diário de Notícias, através da Biblioteca Digital DN. Autor: Gonçalo M. Tavares Título: A Moeda Ideia Original e Coordenação Editorial: Miguel Neto Design e conceção técnica de ebooks: Dania Afonso ESCRIT ’ORIO editora | www.escritorioeditora.com © 2012 os autores, DIÁRIO DE NOTÍCIAS, ESCRIT ’ORIO editora ISBN: 978-989-8507-05-1 Reservados todos os direitos. É proibida a reprodução desta obra por qualquer meio, sem o consentimento expresso dos autores, do Diário de Notícias e da Escrit’orio editora, abrangendo esta proibição o texto e o arranjo gráfico. A violação destas regras será passível de procedimento judicial, de acordo com o estipulado no Código do Direito de Autor e dos Direito Conexos.
sobre o autor —• —
Gonçalo M. Tavares Nasceu em Luanda, em 1970, mas vive em Portugal desde os 3 anos de idade. A sua estreia literária deu-se em 2001, com O Livro da Dança, e desde aí não tem parado de publicar, de granjear leitores e reconhecimento nacional e internacional: 30 livros numa década, do romance à poesia, passando pelos contos, o ensaio e o teatro; variadíssimos prémios; edições em mais de 40 países. Recebeu, entre outros, o Prémio José Saramago 2005, o Prémio LER/Millennium bcp 2004 e o Prémio Portugal Telecom de Literatura 2007 (Brasil) pelo romance Jerusalém (2004); o Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco com água, cão, cavalo, cabeça (2006); o Prémio Branquinho da Fonseca da Fundação Calouste Gulbenkian e do jornal Expresso com o livro O Senhor Valéry (2002); o Prémio Revelação de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores com Investigações. Novalis (2002). Mais recentemente, pelo romance Aprender a Rezar na Era da Técnica (2007) recebeu o Prémio de Melhor Livro Estrangeiro publicado em França em 2010, e com Uma Viagem à Índia (2010) o Grande Prémio Romance e Novela da Associação Portuguesa de Autores 2011. Em termos internacionais, podemos ainda destacar o Prémio Internacional Trieste 2008 (Itália) e o Prémio Belgrado Poesia 2009 (Sérvia). Um pouco por todo o mundo, os seus livros têm dado origem a variadíssimos projetos artísticos, arquitetónicos e académicos.
A Moeda —• —
Gonçalo M. Tavares
Vass Kartopeck dobrou-se pela segunda vez para pegar na moedinha. De novo! — exclamou. A rapariga riu-se. Num certo sentido, Vass Kartopeck estava doente. Manchas incómodas espalhavam-se por baixo dos olhos e ao nível do pescoço, obrigando-o a pequenos gestos para acalmar aquilo que designava como sendo “um espantoso fervor no rosto”. Numa noite já afastada no tempo — há alguns meses — a rapariga, depois do amor, e com uma certa perversidade controlada, começou a contar as pequenas manchas escuras: um, dois, três, quatro... Está rico, senhor! — troçara — Mais de catorze manchas! Kartopeck não parava agora de esfregar com a mão direita, sobretudo as manchas debaixo dos olhos. Na presença da sua mãe, na consulta anterior, o médico dissera: São manchas, simplesmente, que quer que faça? Se considerar que a boa apresentação física é sintoma de saúde, então vossa excelência estará doente. Se não, esqueça: as manchas são feias, é claro, mas há quem, sem elas, esteja mais marcado. Nessa altura, saiu do consultório ajudando a mãe; esta nada compreendera: há muito havia perdido as capacidades mínimas que permitem a uma existência ser autónoma. Um homem de rosto deformado ajuda uma velha — pensou, instintivamente, Vass Kartopeck, tentando abstrair-se do olhar dos senhores da cidade com que se iam cruzando. Dias depois começara o tal fervor na pele: as manchas ardiam calmamente, em lume 6
brando, dizia Kartopeck. A rapariga, no entanto, não parara de troçar. Depois de mais uma oferta generosa, ainda no quarto, ela experimentara os limites da paciência do senhor Kartopeck. Primeiro contara as moedas recebidas em voz alta, colocando-as num pequeno monte: um, dois, três, quatro, cinco... Quando o monte desmoronava — o que aconteceu várias vezes — a rapariga retomava a contagem: um, dois, três, quatro... Eram catorze moedas. Esta contagem seguira-se — com um pequeno intervalo — à contagem das manchas no rosto, daí o sorriso obsceno da rapariga. Onze manchas — disse ela, primeiro. E segundos mais tarde, disse: 14 moedinhas! — E sorriu para o senhor Vass Kartopeck. Kartopeck trajava de um modo rude e era evidente que não permitia influências excessivas da cidade no seu modo de vestir. Tudo o resto poderia ser visto como causa ou efeito deste pormenor. Kartopeck raramente descia ao centro, e quando o fazia não deixava de se sentir indisposto, prolongando acidamente um discurso negativo sobre os movimentos e os hábitos que a turbulência do centro exigia aos cidadãos. Algumas pessoas com quem se cruzava multiplicavam-se em gestos de uma rapidez quieta e não produtiva que espantava o seu olhar observador. Aqueles homens tentavam resistir à desordem e ao facto de não dominarem o tempo — nem o seu século, nem aquele dia em particular — afundando-se num conjunto de rituais que envolviam braços levantados, dedos esticados a chamar a atenção de um meio de transporte mais rápido, tanto burburinho, mas no fundo tudo aquilo não passava de uma espécie de exibição de possibilidades, vindas de corpos claramente habituados a aceitar, e não a exigir. Assim pensava Vass Kartopeck, que no seu pequeno mundo — insignificante para aquela gente, é certo — se habituara a mandar. Pela segunda vez estava em frente do médico. Tinham passado apenas seis meses e entretanto ocorrera um facto absolutamente relevante: o falecimento da sua mãe. Kartopeck entrou no consultório com a rapariga e os dois sentaram-se à espera. A empregada reconheceu-o e, depois de um rápido olhar, perguntou: Está pior? Sim, murmurou Kartopeck. As manchas haviam aumentado de tamanho e uma cor acinzentada — sem paralelo no mundo da saúde — surgia desde o ponto central de cada mancha. Por estar treinada a ver o que assusta, a funcionária do consultório disfarçou perfeitamente o esgar de rejeição que todos, por instinto, faziam, quando, pela primeira vez, e de surpresa, contactavam com aquele rosto. A desordem de há meses ganhara uma forma, digamos, monstruosa. Como se o desarranjo da pele, após uma hesitação inicial, tivesse finalmente avançado para uma outra forma de expressão, que já não era humanamente educada. O rosto de 7
Kartopeck tornara-se horrendo, impróprio, como se de facto ele cometesse uma indelicadeza em relação às outras pessoas. Se estivesse nu, em plena sala de espera, Kartopeck não causaria maior rejeição moral. A fealdade do seu rosto entrara já no campo do pecado, abandonara o das falhas físicas. Claro que a rapariga que o acompanhava também não passou despercebida. O modo de vestir evidenciava duas coisas: não era da cidade e era uma prostituta. Mesmo sentada ela não parava de se mexer, de compor a saia, num gesto perfeitamente despropositado de pudor, gesto que cheirava a falso, pois era sincronizado com um olhar excitado que varria toda a sala de espera; e todos os que ali se encontravam eram envolvidos por esse olhar. Ela sentia-se radiante por estar ali. O desconforto que aquele casal provocava nas outras pessoas ganhou em pouco tempo uma dimensão significativa. Com uma desculpa de última hora, uma das senhoras que esperava consulta levantou-se e saiu. A sua mãe? Morreu — respondeu Kartopeck, que estava já em pé, preparado para entrar. — Há dois meses — acrescentou. A funcionária baixou os olhos, por inabilidade cometera uma indiscrição. Mas de dentro chamaram. Chegara a vez de Vass Kartopeck. A rapariga ficou à espera na sala, por ordem do médico. Ela sorria. O médico ter-se dirigido a si, especificamente, causara-lhe um enorme impacto — mesmo que proibindo-a de entrar. Esse rosto está pior! — disse, de imediato, lá dentro, o especialista. E sentaram-se. Mas tenho aqui as suas análises — continuou. — Não há qualquer problema de saúde. O senhor Kartopeck não está doente. Isso é claramente um problema exterior que não veio de dentro do organismo, nem há qualquer motivo para suspeitar que caminhe para lá. É desagradável estar a ficar com o rosto deformado, mas da parte da medicina só lhe podemos recomendar alguns produtos para acalmar a irritação da pele, e só o podemos tranquilizar: não morrerá um minuto mais cedo por ter assim o rosto. Kartopeck estava aliviado: nas últimas semanas construíra um cenário mental onde a degradação do seu exterior correspondia a uma sentença de morte. Tinha mesmo ensaiado o modo corajoso de reagir à frase que previa ouvir: Tem apenas seis meses de vida! Os comentários apaziguadores do médico foram assim recebidos como quem recebe uma grande notícia. Uma vitória! A consulta foi rápida. À saída, antes de o médico abrir a porta, Vass Kartopeck, tentando mostrar a sua gratidão, enfiou a mão direita no bolso e tirou uma moeda que estendeu na direcção do médico. Este recusou, com um afastamento delicado do braço, e, controlando a vontade de soltar uma gargalhada, sorriu. 8
Na cidade não se oferecem moedas aos médicos — disse. — Guarde-a para si. Vass Kartopeck, envergonhado, escondeu logo a moeda na sua própria mão fechada: era um labrego, absolutamente um labrego!, e mais uma vez isso ficara à vista de todos. Sou um imbecil, murmurou para si próprio. Felicidades — disse o médico, para os dois. Foi depois já em plena rua, a menos de duzentos metros do ponto onde, no chão, estava assinalado o centro da cidade, que Kartopeck deixou cair pela segunda vez a moeda que trazia na mão. De novo! — exclamou Kartopeck, irritado consigo próprio. E a rapariga riu-se.
fim
in Best European Fiction 2011 ( Dalkey Archive Press — Versão traduzida para Inglês)
Este texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.
Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN
9
—• — Lista de autores, por ordem de saída dos contos:
Pedro Paixão | João Tordo | Rui Zink | Luísa Costa Gomes | Eduardo Madeira | Inês Pedrosa Afonso Cruz | Gonçalo M. Tavares | Manuel Jorge Marmelo | Mário de Carvalho Dulce Maria Cardoso | Pedro Mexia | Fernando Alvim | Possidónio Cachapa | David Machado JP Simões | Rui Cardoso Martins | Nuno Markl | João Barreiros | Raquel Ochoa | João Bonifácio David Soares | Pedro Santo | Onésimo Teotónio Almeida | Mário Zambujal | Manuel João Vieira Patrícia Portela | Nuno Costa Santos | Ricardo Adolfo | Lídia Jorge | Sérgio Godinho
Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN
Contos Digitais DN A coleção Contos Digitais DN é-lhe oferecida pelo Diário de Notícias, através da Biblioteca Digital DN. Autor: Manuel Jorge Marmelo Título: As Saudades Que Tenho De Inácia Ideia Original e Coordenação Editorial: Miguel Neto Design e conceção técnica de ebooks: Dania Afonso ESCRIT ’ORIO editora | www.escritorioeditora.com © 2012 os autores, DIÁRIO DE NOTÍCIAS, ESCRIT ’ORIO editora ISBN: 978-989-8507-04-4 Reservados todos os direitos. É proibida a reprodução desta obra por qualquer meio, sem o consentimento expresso dos autores, do Diário de Notícias e da Escrit’orio editora, abrangendo esta proibição o texto e o arranjo gráfico. A violação destas regras será passível de procedimento judicial, de acordo com o estipulado no Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.
sobre o autor —• —
Manuel Jorge Marmelo Manuel Jorge Marmelo nasceu no Porto, em 1971. Tem publicados mais de vinte títulos, entre romances, contos, crónicas e livros infantis, tendo publicado recentemente os romances Uma Mentira Mil Vezes Repetida e Somos Todos Um Bocado Ciganos. Venceu, em 2005, o Grande Prémio do Conto Camilo Castelo Branco com o livro O Silêncio de Um Homem Só. Mais informações aqui.
As Saudades Que Tenho De Inácia —• —
Manuel Jorge Marmelo
Não me lembro se já falei de nha Nácia. Mas, se já disse, repito: não há mulher mais gostosa nesse mundo todo. Nha Nácia é fiambre da perna. Pxa bem é com ela só, mesmo que mais ninguém seja suficientemente insensato para afirmar uma coisa assim. Nha Nácia é fêmea só para homem que não tenha medo de cara feia, pois também não deve haver criatura mais desagradável à vista. Horrível mesmo. Desdentada, engelhada, porca e com mais bigode do que muito bazófio que anda por aí a presumir nos bares. Fuma cachimbo de lata e cheira mal das partes, mas faz um amorzinho sab como mais ninguém. É por isso que, vai-não-vai, dou por mim a suspirar e a pensar nela. Ah!, nha Nácia, nha Nácia… Já não sei bem como foi que a conheci. A idade é assim mesmo — um fulano recorda-se de certas coisas como se tivessem sido trás-anteontem e esquece as outras todas como se nunca tivessem acontecido. Devo tê-la visto por aí na lida, naquilo que era a lida do antigamente, e ter-lhe falado ou dito alguma coisa desagradável. Os rapazes sempre tiveram esta forma de lidar com as mulheres feias. Escarnecem e humilham. No meu tempo, eu não era diferente de qualquer um. Derramava mel nos calcanhares das crioulinhas bonitas, todo manhas e gracejos, e troçava das que o não fossem. T’arrenego, temporal. Malparida. Vesga. Noite escura. Bode. Cara de atum. Eu sei lá. Chamava-lhes o que calhasse e, por isso, também devo ter dito das boas a Inácia quando ela passava. Quando somos moços, e mesmo depois disso, avaliamos tudo pela superfície e precipitadamente. Os olhos cobiçam coisas que não dão conta de satisfazer o corpo e só muito mais tarde se vem a entender o engano. Quando se entende. O equívoco, às vezes, dura a vida toda e nunca se chega a perceber os enredos completos do assunto; que uma coisa é uma coisa, e que a outra coisa é bem diversa. Bem sei. Mas Inácia tinha cara de homem 6
escarrado e cuspido antes mesmo de ter passado a tragar cachimbo e quando o bigode dela era ainda só um buço farto. Não se podia imaginar, só de olhar para ela, os segredos que tinha. Era preciso experimentar. Mas isso ninguém desejava. Ninguém a queria. Nem eu. O que me aconteceu com ela foi uma espécie de acidente, um imprevisto. Agora não a procuro mais. Vejo-a apenas quando passa nas ruas de pó e é uma coisa tremenda: continua feia, mais feia ainda do que sempre foi, se isso for possível, e tem um ar consumido, com as chuchas descaídas e as costas curvadas. O lenço claro em volta da cabeça. O cachimbo de lata fumegando na boca arrepanhada e quase sem dentes. Os olhos sem luz e rodeados de rugas fundas. A grande verruga peluda no queixo. E um bigode que seria mais farfalhudo do que o meu, se o usasse. Mas não uso. Não corro o risco de ficar mal visto perto de nha Nácia. Ensaboo a cara todas as manhãs e raspo-a com a lâmina. Lavo as orelhas, o pescoço, o cabelo, e penteio-me com brilhantina. Fui sempre um homem de certas vaidades e até um pouco galanteador. Não me faltaram mulheres nesta vida, quero dizer. Mas não o digo para me gabar. As coisas são como são e, não sendo muito velho nem muito feio, um homem lavado e penteado, e com dinheiro no bolso, sempre consegue desenrascar-se. Fêmea é coisa que o mundo tem mais abundantemente. Só que nem todas prestam e não há mais nenhuma como Inácia, disso tenho certeza. Olho, pois, para ela quando passa, e baixo a cabeça, em parte para não ter de encará-la, em parte por ter dó e vergonha de ela ser como é, ou de ser o mundo apenas um reino de aparências e convenções. Nha Inácia costumava passar na rua principal com um carrego de gravetos equilibrado na cabeça, cachimbando e com o punho livre posto na cintura. Não sorria nunca, como se estivesse empenhada em não agradar a ninguém. A vida dela, tanto quanto eu podia ver, esgotava-se naquilo: chupar o cachimbinho de lata e acartar coisas na cabeça, feixes de lenha ou latas de água, bacias, sacos de grão. Tanto que nhô Francisco, um português, até inventou um dia uma modinha para cantar quando ela passava com os seus carregos e fazer rir o pagode. Era mais ou menos assim: Lá vem nha Nácia acartando E para ela não olha ninguém; Por muito que a lenha lhe pese É mais leve q a tromba que tem. Latas água trouxe já treze E não se lhe ouve um lamento. Mas por muito que ela carregue Ninguém lhe quer casamento.
7
Era um pândego, o nhô Francisco, e não havia, naquela época, quem lhe fizesse frente nas rimas. Nem mesmo o Armando Zeferino da venda, que ganhou fama fora das ilhas desde que a Cise foi pelo mundo adentro a cantar Sodade, era capaz de se medir com o português. Arre. Parecia que tinha sempre um verso pronto na ponta da língua e, por causa disso, também nunca lhe faltavam as mulheres. As bandidas pelam-se por um poeminha e por um pedaço de pele clara, ai não. Na porta da venda, às horas mortas da ilha, que então eram muitas e continuam sendo incontáveis, o português ficava gabando-se discretamente do que tinha feito, dos seus triunfos amorosos, e do que havia de fazer ainda. Quando alguma mulher mais vistosa passava adiante, sorrindo de esguelha para ver se era notada, logo o sujeito que estivesse mais perto acotovelava nhô Francisco e apontava a ditosa com um gesto do queixo. Quase sem olhar quem passava, ele declarava baixinho, num tom de voz neutro, “marchava”, ou então, “já marchou”, que era a maneira que ele tinha de dividir o mundo em duas metades distintas. E dava de ombros como se aquilo fosse coisa pouca. Uma vez, lembro-me bem, Zeca, o negrinho de nhô Nhelas, acotovelou o português quando Inácia passava com um carrego na cabeça. Rimos. Nhô Francisco sorriu também, fez uma pausa dramática e, por fim, lavrou a sentença: «Já marchou.» E atirou uma sapatada na coxa, gargalhando muito alto e nós todos com ele, como se fosse paródia só, coisa impossível e impensável. Mas agora, às vezes, dou por mim a cismar se foi mesmo uma piada aquilo de o finado Xico ter comido nha Nácia, ou se o fez de verdade e provou do bem bom que ela possuía entre as coxas quando era mais nova (agora já não sei). E quantos somos, afinal, os secretos amantes dela. E se somos tão secretos assim. Estou, porém, divagando e não contei ainda nada que preste, nem expliquei que enleios selvagens há no amor de nha Nácia para ter afirmado o que afirmei. E é tal qual disse. Quem me conhece sabe que não sou homem de brincar quando o assunto é sério, sobretudo sendo mulher o assunto mais grave de todos. Inácia passava todos os dias para trás e para diante e parecia sempre indiferente ao descaso e à mofa que o seu ir e vir provocavam. Creio que era sincera nisso. Os homens não lhe interessavam, ou não tinha interesse nenhum na opinião que sobre ela tivessem. Não é bem a mesma coisa — apenas parecia. E confundiu-me bem. Acho que uma vez, por pilhéria, comentei que ela devia ser a cabrita mais ruim da ilha. «É mais feia e tem mais barbela que qualquer outra». Os homens sorriram e eu achei que tinha dito uma coisa muito espirituosa. «E não tenho memória de ter visto alguma cabra a fumar cachimbo», acrescentei. Nhô Francisco, talvez porque sempre gostava de ser do contra, ou porque já tivesse comido Inácia nessa altura, se é que comeu, deixou que as gargalhadas se extinguissem e
avisou-me de que não devia avaliar o cabrito pela barba que tem, mas pela macieza da sua carne. Sentencioso como de costume, ainda acrescentou aquele dito sobre as panelas chamuscadas e amassadas fazerem a comida mais gostosa. Deixá-lo falar, pensei eu. Céu azul é que faz tempinho bom. Era novo, estava enrabichado por Elida do Rosário e não queria saber de mais nada enquanto não desse conta de beber na cabaça dela e de lhe apertar os predicados todos. Moça bonita estava ali e eu teria casado com ela (se ela quisesse). Mas Elida não quis e nem um beijinho me deu. Safada. O destino, porém, não se distrai: ela veio a casar às pressas com o Setembrino do Juncalinho, que tinha bicicleta e uma voz fatal para atacar as mornas mais açucaradas. E depois pariu seis filhos dele e está mulher gorda e feia — feia de um modo diferente daquele que Inácia tem de ser feia, mas é quase a mesma coisa. Fêmea velha e feia é tudo igual — e isto o Setembrino também deve saber muitíssimo bem, que cada qual nasce para a cruz que lhe cabe carregar e não há como escapar disto. Inácia, porém, e se calhar já o disse, era feia como os trovões mesmo quando era nova. Ninguém a queria para coisa nenhuma que não fosse acartar carregos de um lado para o outro, que para isso ela servia bem. Como outro homem qualquer. Dava-me um certo dó vê-la passar para trás e para diante, curvada e horrível sob o peso daquelas trouxas, mas isto é cá coisa minha. Custam-me as injustiças do mundo. E ainda não encontrei coisa mais desigualmente distribuída do que a feiura e o seu oposto. Quando se nasce como nha Nácia nasceu, parece que um demónio qualquer se empenha em rodear a pessoa de uma quantidade absurda de defeitos, um pouco como se fosse um aviso para quem a visse: tomai cuidado que também pode suceder-vos, nesta geração ou noutra qualquer. Uma vez, se não me falha a memória, até disse ao meu compadre Aníbal: «Coitado de quem vem ao mundo condenado pelos pecados que não cometeu». O meu compadre, sendo um homem prático e ponderado, quis desenganar-me do poder da providência e comentou que pecado nenhum, por mais cabeludo que fosse, justificaria um castigo tão severo como o de Inácia, do mesmo modo que não há bem nenhum precedendo a beleza ambulante que, às vezes, desfila diante dos nossos olhos enquanto estamos preguiçando à porta da venda. «Se existisse um deus moldando as pessoas do mundo, ele seria só o mais desastrado dos oleiros», disse nhô Aníbal. Pensando melhor, tive que lhe dar razão. Que remédio. Mas agora, de vez em quando, duvido de uma coisa e da outra. Cogito, enfim, se não haverá alguma verdade quando se diz que deus, existindo, dá com uma mão aquilo que tira com a outra; se o amor gostoso de nha Nácia, e a força que tem para carregar pesos à cabeça, não podem ser a recompensa que lhe coube pela má distribuição dos outros predicados todos. É uma troca, se virmos bem, quase como outra qualquer. Eu mesmo, que em novo não era feio, sempre fui um bocado estúpido — ao ponto de, por exemplo, ter andado enrabichado pela Elida do Rosário, que nem sequer olhava para mim, e de ter
tido vergonha de ser visto na rua com Inácia em vez de lhe ter pedido namoro como, se calhar, devia ter feito, mesmo sendo ela feia e suja. Mas viver é arrepender-se (ainda que seja demasiado tarde). Agora que sei estas coisas, que as aprendi com os erros e com os anos, já estamos ambos muito velhos, Inácia e eu, para voltarmos atrás e sermos aquilo que não fomos quando ainda havia tempo, e eu não sei sequer se ela me quereria ou se já então, naquele tempo, a vida lhe mostrara que não devia desejar mais do que aquilo que podia ter, ou que ela achava que estava ao seu alcance. Ainda hoje não sei, para dizer a verdade toda, se a comi ou se foi ela que me comeu a mim; qual dos dois, Inácia ou eu, gostou mais do amor que fizemos à pressa, escondidos, mordendo-nos um ao outro para que não pudessem ouvir-nos enquanto gemíamos e arfávamos como gatos com cio (se os gatos pudessem sentir prazer e ficar doidos como eu fiquei, desvairado, fora da razão), se a memória não me traiu já e não acabei imaginando coisas que não são tal como sucederam. Pode ter acontecido. Posso, com o passar dos anos, enquanto a solidão em que vivo se adensava, ter chegado a supor que as chuchas de nha Nácia, debaixo das roupas porcas, eram mais perfeitas e mais rijas do que alguma vez tenham sido, e recorde agora movimentos loucos que o quadril dela não fez. Mas também é possível que, naquela época, Inácia nem sequer fosse tão feia assim e que, muito simplesmente, a memória que guardei não seja, de facto, uma memória; que seja apenas um reflexo da mulher feia e muitíssimo acabada que eu ainda vejo passar de vez em quando diante da porta da venda, debaixo dos mesmos carregos de sempre e fumando o seu cachimbinho de lata, velha e feia que eu sei lá, porca também, mas que é a minha Inácia, o meu velho amor secreto e breve. Não sei quando foi que comecei a ter saudades de nha Nácia — do cheiro de animal que ela tinha no corpo e do seu modo desabrido de pxa onde calhasse, meio vestida e às pressas, como se, para além de feia, fosse também muito doida, desvairada e canalha. Houve uma noite, disso recordo-me, em que estava a fazer um amorzinho bom, tranquilo, com a minha defunta senhora. O normal. Eu amava Eunice e respeitava-a. Era uma boa mulher, apesar daquele problema nos ovários que acabou por levá-la ainda nova, matando-a de tristeza mesmo enquanto ainda estava viva. Mas eu amava-a como suponho que se deva amar uma mulher: chegava a horas para o jantar, fazia por andar lavado, evitava beber muito grogue, entregava-lhe a féria e procurava-a na cama (pontualmente). Vivíamos felizes à nossa maneira e acho que foi assim até ao fim. Mas, naquela noite, e a partir daí em outras noites, eu pxava mais ela e pensava em Inácia, nas chuchas de Inácia e no seu jeito maluco de foder como um bicho, de gozar e fugir logo a seguir, não sei se por vergonha ou se por outra teima qualquer. Simplesmente fugia segurando as roupas sujas com as mãos enquanto desaparecia no escuro, correndo. Eu não me importava. Não me atreveria, de todo o modo, a atravessar a vila de mão dada com ela, nem sequer desejava ser visto caminhando ao seu lado. Mas era nela que pensava muitas 10
vezes quando fazia o amor com Eunice, e também depois, quando nha Nicha se foi e eu fiquei sozinho. Agora passo aqui muito tempo na venda. Jogo dominó e cartas, e bebo um bocadinho de grogue para esquecer a desolação que a vida é. Somos cada vez menos e todos velhos. Já quase ninguém se volta para ver quando Inácia passa. Só eu. Nhô Chico também já morreu e mais ninguém inventa versos canalhas quando ela vai e volta com os carregos dela.
Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN
11
—• — Lista de autores, por ordem de saída dos contos:
Pedro Paixão | João Tordo | Rui Zink | Luísa Costa Gomes | Eduardo Madeira | Inês Pedrosa Afonso Cruz | Gonçalo M. Tavares | Manuel Jorge Marmelo | Mário de Carvalho Dulce Maria Cardoso | Pedro Mexia | Fernando Alvim | Possidónio Cachapa | David Machado JP Simões | Rui Cardoso Martins | Nuno Markl | João Barreiros | Raquel Ochoa | João Bonifácio David Soares | Pedro Santo | Onésimo Teotónio Almeida | Mário Zambujal | Manuel João Vieira Patrícia Portela | Nuno Costa Santos | Ricardo Adolfo | Lídia Jorge | Sérgio Godinho
Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN
Contos Digitais DN A coleção Contos Digitais DN é-lhe oferecida pelo Diário de Notícias, através da Biblioteca Digital DN. Autor: Mário de Carvalho Título: A Porrada Ideia Original e Coordenação Editorial: Miguel Neto Design e conceção técnica de ebooks: Dania Afonso ESCRIT ’ORIO editora | www.escritorioeditora.com © 2012 os autores, DIÁRIO DE NOTÍCIAS, ESCRIT ’ORIO editora ISBN: 978-989-8507-14-3 Reservados todos os direitos. É proibida a reprodução desta obra por qualquer meio, sem o consentimento expresso dos autores, do Diário de Notícias e da Escrit’orio editora, abrangendo esta proibição o texto e o arranjo gráfico. A violação destas regras será passível de procedimento judicial, de acordo com o estipulado no Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.
sobre o autor —• —
Mário de Carvalho O primeiro livro de Mário de Carvalho, Contos da Sétima Esfera, (1981) marca o início de um percurso de ficcionista que passa pela escrita de teatro e de cinema, pela novela e pela crónica e, sobretudo, pelo romance, com traduções em Espanhol, Francês, Inglês, Alemão, Italiano, Grego, Búlgaro, Croata e edições no Brasil. Está representado em múltiplas antologias em diversas línguas, incluindo o Árabe. O conto A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho vem sendo, desde há muito, de leitura recomendada na disciplina de Português no ensino secundário. Outras obras são objecto de trabalhos académicos, em Portugal e no Brasil. Os livros têm sido sucessivamente reeditados e obtido vários prémios literários, portugueses e estrangeiros. O seu romance mais conhecido, traduzido e publicado é Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde. Em 2011 publicou A Arte de Morrer Longe (cronovelema) e a recolha de contos O Homem do Turbante Verde. Seguem-se, em 2012, o romance Quando o Diabo Reza, a peça de teatro Não Há Vozes, Não Há Prantos e a obra O Varandim seguido de Ocaso em Carvangel (duas novelas). Mais informações em www.mariodecarvalho.com
A Porrada —• —
Mário de Carvalho
— Olhe, para ser franca, podia usar o espelho do quarto de vestir e deixar-me mais espaço, está bem? Mas que é que você traz posto? Vai jantar assim? Gonçalo murmurava qualquer coisa, cantarolando, sem lhe dar qualquer atenção. Estava a experimentar um blusão azul-marinho. No bolso de dentro, do lado esquerdo, um objecto tumefacto fazia descair ligeiramente o ombro. — Ouviu? Suspirou cavo, antes de responder: — Há que séculos ando a explicar que deves tratar-me por tu. É assim cá em casa, entre marido e mulher — Mas, Gonçalo, meu querido, não dá jeito nenhum. — Então amocha. A minha família é mais antiga que a tua. Não somos “parvenus” do Pombal, como vocês. Vimos dos Visigodos. — Ach, welche Anmassend! — Parece mesmo parva. A exibir-se. Mostro o meu anel? Mas, enfim, Gonçalo lá foi pondo um blaser pelos ombros para o jantar. Carregou-lhe no vinho. Mafalda bem olhou rigidamente para o empregado, dardejando proibições. Mas o hirto Salema não podia contrariar o patrão quando ele lhe estendia o copo ou piparotava o vidro, de unha incomodada. — Ó Salema, saia lá por um bocadinho. — Sai nada! — Só um instante. Tenho de dizer uma coisa ao senhor. Enfado, enfado, mas quem é que tinha posto aquilo na parede? Era uma praia ou lá 6
o que era? — Não é do quadro que eu lhe quero falar, Gonçalo. Sei lá quem pôs? A sua mãe, talvez. Estou muito preocupada é consigo. — Salema! — Não, espere. Estive a pensar… porque é que você não compra um cavalo e faz um bocado de tourada como toda a gente? Ou vai para o grupo de forcados? — Mas tu queres pôr-me a levar cornadas, aos trinta e cinco anos? — Sempre era outra dignidade… — Digno era fazer voluntariado como as outras e levar embrulhos aos necessitados. Pensas que eu não sei como ocupas o teu tempo? — Gonçalo, não lhe admito! — E esse gaiato do ténis, ou lá o que é, o seu amiguinho, baixe os olhos quando eu passar ou ainda leva uma berlaitada que lhe desatarraxo o gorgomilo. — Como é que você pode pensar… — “Tu”! É “tu” que se diz cá na família… Desde sempre! E limpa os olhos ao guarda- napo que esse rímel é descafeinado. Pronto, o tête-à-tête já deu o que tinha a dar. Salema! O resto do jantar decorreu em silêncio. Ligeiro rumor de vidros e roçago de metal em travessas. Já Gonçalo tinha o blusão vestido quando Mafalda o interceptou no corredor de cima. — Gonçalo, veja lá, ao menos deixe que o Salema o leve de carro. — Qual Salema nem meio Salema. — Mas fico tão preocupada. — Ó querida, reza. Não carregaste o oratório da bisavó cá para casa? Aquela porcaria de pau-preto que até assusta a mobília? Põe-te a rezar, pode ser que o Céu se alegre… Antes das escadas ainda voltou para trás. Ela pasmada. — E nada de telefonemas, nem nervoseiras. Dá-me o teu telemóvel. — Ai isso é que não dou. — Bom, não quero telefonemas, hem? Hoje é a primeira Quinta-Feira do mês. Para mim, já sabes, noite sagrada. Relance para o relógio. Daí a nada, ao portão, parava um Laguna, pardo, da cor da noite e dos gatos, meio escondido pelas cedros. — Que é da merda do Porsche? Gonçalo instalava-se no lugar do morto. — Da outra vez riscaram-mo todo. Este é o carro da minha mulher, onde a Miss leva os putos de manhã. Se o riscarem, que se lixe. — Já viu? Gonçalo tirou do bolso do blusão um objecto escuro, maleável, que parecia uma 7
beringela alongada com um laço na ponta: — Não mata, mas elimina. — A esposa — respondeu o outro — escondeu-me a soqueira. Venho de mãos a abanar. — Há sempre cadeiras à mão. — O pior são as navalhas. As criaturas atiram ao nível da cintura e a coisa mal se vê. — Costas com costas, pá. Tomar sempre a iniciativa. Pausa. A monotonia de sombras de árvores a deslizar. Disse o do volante: — O Inglês telefonou. Quer três por cento. — Mande-o lamber sabão. Amanhã a gente fala. E acalque-me nesse prego, homem. Primeiro os néones num acelerar de vermelhos, depois as portadas cheias de nervuras plásticas, os acrílicos, e os calmeirões da segurança. — O aparelho não acusa nada, pois não? Arreda para lá a mãozinha. Umas galdérias dançavam na pista, uns gajos mortiços em volta, tudo muito possidónio e enjoativo. — É cedo — disse o amigo. — A minha garrafa! — Pediu Gonçalo ao balcão. Instintivamente, virou a garrafa de blue label antes de lhe sacar a rolha. O nível estava na marca. Não dava pretexto. Ficaram os dois ali, a olhar, num bocejo. Lá ao longe um dos matulões da segurança, de cabelo rapado e botas de tropa, cruzava os braços sobre os peitorais inchados, numa impassibilidade bojuda. Apareceu outro por uma porta que dizia “Exit”. — Estão aí os viscondes — rosnou ele, para o lado — Olhómetro! — Puta de vida — disse o segurança dos peitorais saídos. Às quatro da manhã, Gonçalo gatinhava pelas escadas, mas a carpete desprendia-se e quanto mais ele gatinhava mais descia. Em vez de se zangar ria, ria desmedidamente, entre o sentado e o estendido, picotando o ar de casquinadas finas que imbricavam umas nas outras. — Gonçalo, credo, você vai sujar a cama toda de sangue. Mafalda tentou segurá-lo por um braço, mas só conseguiu rasgar-lhe mais a camisa. Vinha sem blusão, todo desfraldado. Trazia um pé descalço, a peúga pendente. — Uma ambulância, o caraças. Uma ambulância o caraças. — Era ele num garganteio de coro alentejano. Quando Salema apareceu, de roupão, levaram-no em braços para a casa de banho. Em cima do banco, o amontoado de roupas empastadas deixava livores encarnados por todo o lado. A água do chuveiro cachoava pelo corpo agachado no antiderrapante, dissolvia emplastros de sangue, varria feridas, espiralava no ralo, em revoadas escurecidas. Gonçalo continuava a rir em casquinada. Só interrompia o riso de vez em quando, 8
para um rosnido fugaz, tributo à dor. Mafalda quis saber: —Você não terá alguma coisa partida? Um braço, ou assim? — As minhas ricas quintas-feiras. As quintas-feiras da porrada. Quem mas tira, tira-me tudo. E ria e cantarolava. Também gemia, de vez em quando. A voz saía-lhe empastelada do álcool e dos lábios pisados.
Este texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.
Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN
9
—• — Lista de autores, por ordem de saída dos contos:
Pedro Paixão | João Tordo | Rui Zink | Luísa Costa Gomes | Eduardo Madeira | Inês Pedrosa Afonso Cruz | Gonçalo M. Tavares | Manuel Jorge Marmelo | Mário de Carvalho Dulce Maria Cardoso | Pedro Mexia | Fernando Alvim | Possidónio Cachapa | David Machado JP Simões | Rui Cardoso Martins | Nuno Markl | João Barreiros | Raquel Ochoa | João Bonifácio David Soares | Pedro Santo | Onésimo Teotónio Almeida | Mário Zambujal | Manuel João Vieira Patrícia Portela | Nuno Costa Santos | Ricardo Adolfo | Lídia Jorge | Sérgio Godinho
Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN
Contos Digitais DN A coleção Contos Digitais DN é-lhe oferecida pelo Diário de Notícias, através da Biblioteca Digital DN. Autora: Dulce Maria Cardoso Título: Coisas Que Acarinho E Me Morrem Entre Os Dedos Ideia Original e Coordenação Editorial: Miguel Neto Design e conceção técnica de ebooks: Dania Afonso ESCRIT ’ORIO editora | www.escritorioeditora.com © 2012 os autores, DIÁRIO DE NOTÍCIAS, ESCRIT ’ORIO editora ISBN: 978-989-8507-17-4 Reservados todos os direitos. É proibida a reprodução desta obra por qualquer meio, sem o consentimento expresso dos autores, do Diário de Notícias e da Escrit’orio editora, abrangendo esta proibição o texto e o arranjo gráfico. A violação destas regras será passível de procedimento judicial, de acordo com o estipulado no Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.
sobre a autora —• —
Dulce Maria Cardoso Publicou em 2001 o seu romance de estreia, Campo de Sangue, Grande Prémio Acontece, escrito na sequência de uma bolsa de criação literária do Ministério da Cultura. Desde então publicou os romances Os Meus Sentimentos (2005), Prémio da União Europeia para a Literatura, e O Chão dos Pardais (2009), Prémio Pen Club. Uma antologia de contos, Até Nós, foi publicada em 2008. A sua obra encontra-se traduzida em várias línguas, está publicada em mais de uma dezena de países e é estudada em diversas universidades. Estão em curso propostas de adaptação cinematográfica de alguns dos seus contos e romances. O seu último romance, O Retorno, foi livro do ano e recebeu o Prémio Especial da Crítica LER/Booktailors 2011.
Coisas Que Acarinho E Me Morrem Entre Os Dedos —• —
Dulce Maria Cardoso
Tomei o pequeno almoço à frente do computador. A chuva escurecia o pátio naquele princípio de manhã. Os dias em que nos acontece alguma coisa importante não começam necessariamente de forma diferente. Daria jeito que não fosse assim. Devia haver uma espécie de aviso. Uma coisa simples. Talvez pudéssemos receber uma sms morning, today is gonna be different, good luck
Acho que Deus fala inglês. Fale Deus a língua que falar, devia fazer-se entender de vez em quando.
O dia em que o vi pela primeira vez começou, então, como outro dia qualquer. Acordei com alergia, dei comida ao meu cão e tomei o pequeno almoço à frente do computador. O meu cão deitou-se junto da tijela de comida e tornou a adormecer. A chuva ia inundando o pátio. Percorri os sites das notícias online. Não me interessa assim tanto o que acontece por esse mundo fora mas ao acordar ainda me interessa menos o que acontece na minha vida. E as notícias que não nos dizem respeito de forma direta distraem-nos Um avião de pequeno porte, o Nanchang PT-6A, prefixo 3806, da Força Aérea de Bangladesh (Bangladesh Air Force - BAF) teve de fazer um pouso de emergência durante uma tempestade na noite desta quarta-feira (25) em Raigram, no distrito
6
indiano de Murshidabad, a 80 quilómetros da fronteira entre os dois países. O piloto, que vinha de Jassor, teve ferimentos leves.
Do Bangladesh, pouco mais sabia do que o nome. Não é difícil familiarizarmo-nos com o nome das coisas mas depois... Depois fazemos como fazemos com tudo aquilo a que chamamos família: convivemos com o desconhecido como se o conhecessemos. Fingimos tanto e tão bem que acabamos por esquecer-nos de tentar conhecê-lo. Bastamo-nos com a sensação de que aquilo nos pertence ou que lhe pertencemos. De que podemos usar aquilo. E para que não haja dúvidas sobre isso, passeamos juntos aos domingos à tarde.
Googlei Bangladesh. About 571,000,000 results (0.4 seconds) Official site with information on officials, ministries, constitution, annual budget, tourism and updated news Information on Bangladesh — geography, history, politics, government, economy, population statistics, culture, religion, languages, largest cities Bangladesh officials are seeking talks with U.S. State Department diplomats over the arrest of a Bangladeshi man on charges that he wanted to Almost everything you wanted to know about Bangladesh. Visit Bangladesh. See Bangladesh. Be Bangladesh The Al Qaeda wanna-be accused of plotting to bomb the Manhattan Federal Reserve building came from a middle-class Bangladeshi family
Terá sido naquela manhã que pronunciei pela primeira vez a palavra Bangladesh. Baixinho: Bangladesh. When’s Bangladesh going to disappear? Lembro-me de estar sentada com ele no café, ao fim daquela manhã, e de esta pergunta absurda não me sair da cabeça. When’s Bangladesh going to disappear? Não disse, no entanto, uma palavra sobre o Bangladesh durante todo o encontro. O que nos passa pela cabeça é quase sempre inconfessável. When’s Bangladesh going to disappear? Quando estava a tomar o pequeno almoço, à frente do computador, a pergunta ainda não tinha surgido.
7
Tínhamos combinado encontrar-nos às 10:30. Eu iria ter ao trabalho dele e depois tomaríamos um café. Gosto de conhecer pessoas. Não tenho a nossa espécie em grande conta mas gosto de conhecer pessoas. Apesar disso não é meu hábito encontrar-me com desconhecidos que me contactam a propósito do meu trabalho. Há sempre demasiada formalidade mesmo quando o fazem, como ele fez, através do facebook. Cria-se um constrangimento que afasta a possibilidade de qualquer encontro. No caso dele não foi assim e até fui eu que propus o encontro. Ele era um homem bonito mas não foi isso que me levou a convidá-lo para tomar um café. Marquei o encontro por curiosidade, a eterna curiosidade. Queria saber se ele era o Machina ex Deus.
Há uns anos consultei um psicólogo que me disse que a minha curiosidade acerca de o Outro era um dos traços mais positivos do meu Eu. O psicólogo devia gostar de espeleologia porque nunca o meu Eu teve tantos abismos interiores. As minhas obsessões, traumas, medos, manias, não passavam de abismos que o psicólogo espreitava de lanterna em riste tentando romper as sombras densas que aprisionavam o meu Eu. Mas não temos todos abismos, perguntei. Que sim. Só que além dos abismos eu tinha a vertigem dos abismos e era a vertigem que me fazia mergulhar no negro. Uma pulsão destrutiva que me levaria a ficar fechada em mim, não fosse a enorme curiosidade que tenho pelo Outro, não fosse a enorme vontade de chegar ao Outro. Um Outro exterior. Não os Outros que também existiam escondidos nos meus abismos interiores. O psicólogo garantia que esses outros Outros só me puxavam ainda mais para dentro de mim. Por vezes enredavamo-nos de tal maneira no meu Eu e nos Outros que era difícil percebermos do que falávamos. Andei mais de um ano nesse psicólogo. Gostava de o ouvir. Os abismos não se apequenavam nem as vertigens desapareciam mas gostava de o ouvir. Se o psicólogo não tivesse metido na cabeça que não estávamos a evoluir, se calhar ainda hoje lá andava. Lembrei-lhe que o facto de não ter piorado podia ser considerado uma evolução. Mas o psicólogo foi irredutível. Despedimo-nos com um aperto de mão no cruzamento da Avenida 5 de Outubro com a Avenida João Crisóstomo, em frente a uma loja que, apesar de ser janeiro, ainda tinha na montra uma árvore de natal com bolas azuis. Feliz ano novo, desejei. E seguimos cada um pela sua avenida. Consultei um novo psicólogo que gastou a primeira consulta a tentar fazer-me esquecer tudo o que o anterior me tinha dito, especialmente a treta dos abismos interiores e das vertigens. Não iríamos lá com alpinismos, a psicologia era outra coisa. Aparentemente uma coisa menos musculada mas mais agressiva. A minha curiosidade pelo Outro, o meu desejo de chegar ao Outro, não era afinal um dos traços mais positivos da minha personalidade mas antes um dos maiores responsáveis pelos meus 8
ataques de ansiedade. Se eu não tinha a nossa espécie em grande conta, a minha curiosidade, a minha procura, refletia apenas uma vontade permanente de me desiludir, de me frustrar. Em suma, de sofrer. Passei a ser uma masoquista. Uma junkie agarrada a uma esperança vã, sempre à procura de uma dose de dor. Eu tentava resistir, defendia-me, em tantos biliões de pessoas tem de haver algumas que me façam feliz. Que não. Que todos existimos sozinhos e que eu tinha de aprender a ser feliz sozinha e quanto mais cedo melhor. O novo psicólogo tentava convencer-me que eu estava a ser vítima da minha mente doente, que a esperança não era mais do que uma vil armadilha da minha mente doente. Acabei por desistir das consultas. Acho que me fartei das armadilhas e das vilezas da minha mente. Ou melhor, de ter notícias delas. Ainda pensei ir a um terceiro psicólogo mas acabei por nunca o fazer. Passei a controlar os ataques de ansiedade com químicos que a médica de família me receita e tem corrido bem.
Quando ele me escreveu pela segunda vez, novamente a propósito do meu trabalho, googlei o nome dele. About 1,720 results (0.25 seconds)
O primeiro link levou-me a um blogue cujo header dizia Procurei Deus em todas as religiões. Procurei-o em ti. Aceitei procurá-lo em mim. Encontrei-o aqui. Machina ex Deus.
O último post tinha quase meio ano, 30 de novembro de 2011, e o poema intitulado Confesso
Tenho as mãos grandes demais e sou desajeitado Sim sou eu quem desata um por um os nós do teu corpo quando o deixas à minha guarda ...
Daí para cá, nada. Cliquei no link dos arquivos. O post inicial era do dia 31 de Dezembro de 1999 e tinha uma fotografia de um homem com um chapéu de papel como 9
os que os norte-americanos usam nas festas de fim de ano. Quis ampliar a fotografia para ver se aquele homem de chapéu era o mesmo que me tinha escrito, ou melhor, se aquela fotografia correspondia à mesma cara que aparecia na página do facebook do homem que me tinha escrito. Infelizmente não dava para aumentar. Só podia ver que partilhavam o mesmo tipo de beleza vinda de um imaginário do cinema dos anos 50. Entre uma fotografia e outra teriam passado vários anos o que também não facilitava a comparação. Nessa noite e nas seguintes li tudo que havia nos arquivos do Machina ex Deus. Gostei dele por coisas que não sei explicar. O Machina ex Deus vivia em Lisboa e passava férias perto do sítio para onde vou no verão. Se calhar até já me tinha cruzado com ele. Se calhar era eu a mulher do post que passeava o cão em frente ao mar, a mulher do post que todas as manhãs comprava pão de sementes na padaria. Eu podia ser quase todas as mulheres de que ele falava porque elas faziam coisas que eu costumo fazer. O Machina ex Deus era um solitário. E parecia prestar-me atenção. Ou prestar atenção a mulheres como eu. Havia também a pergunta por que nos deixaste tão sós? O único post que ia sendo repetido ao longo do arquivo, por que nos deixaste tão sós? Mente-se tão bem na internet como na vida e aquilo tudo podia ser inventado. Podia ser só uma questão de estilo. Mas quis acreditar que não e li como se fosse verdade. Era verdade tudo o que tinha lido. O homem do facebook, o Machina ex Deus e aquele com quem me iria encontrar dali a pouco eram todos o mesmo homem. Mesmo assim, não sabia quase nada sobre ele. Das mensagens que tínhamos trocado, para além de saber que gostava do meu trabalho, sabia o nome, a profissão e pouco mais. Ah, e havia as fotografias. Que podiam ser falsas. Who is he? What does he want? About 4. 130.000.000 results (0,29 seconds) Is he Machina ex Deus? About 15.100.000 results (0,13 seconds)
Não há nada a que o computador não responda. O meu cunhado diz que o computador, a internet e os motores de busca são uma invenção do diabo. O meu cunhado não é crente e não percebe nada de Deus e do diabo. Mas talvez tenha razão.
Tinha acordado com alergia. As alergias são uma guerra que o meu corpo trava com o mundo ou com algumas coisas do mundo. Coisas indefinidas ou de difícil identificação que provocam o sistema imunitário fazendo o meu corpo reagir exageradamente. Como quando me apaixono, só que ao contrário. Aí o sistema imunitário afrouxa as defesas. Se é que há sistema imunitário para os afectos. 10
Espirros, olhos raiados de vermelho, nariz congestionado. Definitivamente não era um bom dia para conhecer o homem do facebook, o Machina ex Deus ou fosse quem fosse. Tomei dose dupla do anti-histamínico. Pensei em desistir do encontro, descer as persianas e deitar-me outra vez. A chuva convidava a isso. O meu cão a dormir no sofá também. Cliquei num das centenas de links que fornecem previsões metereológicas. Lisboa. Escolhi previsão horária. A chuva ia parar e a manhã terminaria com sol. Talvez não houvesse razão para cancelar o encontro e o Sinatra podia continuar a cantar no YouTube Let’s do it. Let’s fall in love Se bem que o frio ia continuar. E talvez, também, a alergia. O efeito do anti-histamínico tardava. Talvez fosse tudo mais fácil no Bangladesh. Comecei a escrever Bangl no site da meteorologia, à frente de O tempo em. O computador percebeu o que eu queria e completou Bangladesh, Ásia. Não precisei de escrever mais nada. O computador deu-me uma lista de cidades e eu escolhi a primeira, Barisal. Céu limpo, 35ºC. Talvez fosse mesmo tudo mais fácil no Bangladesh. Ou talvez não. A verdade é que não podia saber. Mesmo com toda a informação que tinha lido e que podia continuar a ler até à eternidade, About 571,000,000 results, só havia uma maneira de conhecer o Bangladesh: ir ao Bangladesh. Momondo. Pesquisei um voo. De: Lisbon (LIS), Portugal. Para: Barisal (BZL), Bangladesh. Só ida. Data da partida: 27-04-2012. Se houvesse um voo ao fim do dia, mesmo indo ao encontro, daria tempo de fazer a mala. A pesquisa demorou uns instantes. 0 resultados. Não foi possível encontrar quaisquer voos que correspondam ao seu pedido. Por favor, tente novamente, talvez com datas ou aeroportos alternativos.
Um bom conselho. Assim faria.
Mais tarde.
Não gosto de chegar atrasada mas estranhamente continuava sentada à frente do computador. Ainda não tinha tomado banho, ainda não tinha apontado a morada do trabalho dele na minha agenda, ainda não tinha gravado no meu telemóvel o número do telemóvel dele, não fosse dar-se o caso de me perder. Ele trabalhava perto de minha casa mas para quem não tem sentido de orientação o perto pode ser tão longe como o fim do mundo. Abri os mapas do Google e escrevi a minha morada. Só as primeiras letras, o computador já memorizou o resto. No destino, a morada do trabalho dele. Introduzidos o ponto de partida e o de chegada, cliquei para obter indicações. Nas opções, escolhi a pé. Segundo o computador, iria precisar de onze minutos para percorrer a pé a distância que separa a minha casa do sítio onde ele trabalhava. Essa informação, saber que precisava apenas de onze minutos para lá chegar, fez atrasar-me mais. Continuei ao computador enquanto ia eliminando tarefas por falta de tempo, não fazer a cama, não secar o cabelo, não me maquilhar. Pensei em enviar uma sms surgiu um imprevisto, não posso ir, lamento muito, combinamos em breve
11
Invocar um imprevisto é o melhor. Se se inventa uma doença obriga-se o Outro à gentiliza de desejar as melhoras. Um imprevisto é igualmente incontornável e não chega sequer a ser uma mentira, já que estão sempre a acontecer-nos coisas que não podemos prever. Não me apetecia sair de casa porque nunca me apetece sair de casa. Uma vez na rua, também nunca me apetece sair da rua e voltar para casa. As mudanças custam-me sempre. Mas nunca me ocorreria enviar-lhe uma sms a dizer a verdade. A verdade só pode ser praticada com os muito conhecidos ou com os muito desconhecidos. Acontece que quase ninguém é tão conhecido e raramente alguém permanece tão desconhecido. O sol continuava sem aparecer. Ele podia não ser o Machina ex Deus. Podia até nem ser o homem da fotografia do facebook. Nunca cheguei a conhecê-lo. Mas encontrei-me com ele naquela manhã. E depois dessa, encontrámo-nos ainda outras vezes. Demorei cerca de onze minutos a chegar ao trabalho dele e o sol apareceu ao fim da manhã como o computador tinha previsto. Ele era igual à fotografia do homem do facebook. Disse-me não ser o Machina ex Deus e eu acreditei. Não vale a pena falar com os Outros se não acreditarmos no que nos dizem. Nesse sentido, falar com os Outros também é uma questão de fé. O blogue do Machina ex Deus continua a não ter nada depois do final do poema ... até que amanhece
Sei que partiste meu pequeno pássaro ferido Abro lentamente os olhos Nas minhas mãos teu corpo desfeito num montículo de penas Uma brisa passa quase nada e leva-mas para longe
Coisas que acarinho e me morrem entre os dedos
Naquele dia, ao chegar a casa, depois de me encontrar com o homem do facebook, 12
sentei-me ao computador, o meu cão a abanar muito a cauda à minha volta. When’s Bangladesh going to disappear? About 12,100,000 results (0.21 seconds) Bangladesh happens to be situated at sea level in a region of the world where flooding and monsoons are already a problem. As it stands, each year roughly half the country is under water at one point or another. But because of possible rising sea levels in the next 20 years (even a 20-centimeter rise) could devastate 10-million Bangladeshis
Vinte anos. Daqui a vinte anos o Bangladesh, este Bangladesh, terá desaparecido. A ameaça do provisório sempre me assustou. Já perdi tanta coisa. Perdi um continente e a cidade em que cresci, perdi o meu pai, perdi uma caneta de tinta permanente e um guarda-chuva com um arco-íris, perdi a minha cadela Fly e a coleira com sininho que ela usava. Perdi tempo. Não sei ir ao Bangladesh. Não quero amar o que não possa aceitar-me de regresso. Por favor tente novamente, talvez com datas ou aeroportos alternativos
Desisti da viagem. Por favor, tente novamente Por favor Por favor Por favor
14