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3ª edição, revisada e ampliada.
SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................... 1 I - FILOSOFIA, CONHECIMENTO E VERDADE ............................................................................ 3 O problema do conhecimento .......................................................................................................... 5 Para discutir o conhecimento e a verdade ...................................................................................... 7 Quadro-síntese I - Da verdade ....................................................................................................... 11 O pensamento mítico ....................................................................................................................... 13 O pensamento filosófico .................................................................................................................. 16 Quadro-síntese II - O nascimento da filosofia: Mitos versus Logos ......................................... 22 Quadro síntese III - Elementos do pensamento ........................................................................... 24 II - FILOSOFIA MEDIEVAL ............................................................................................................... 27 A filosofia medieval - Patrística e Escolástica .............................................................................. 29 Os principais períodos da filosofia ................................................................................................ 33 III - A FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA ............................................................... 35 O Renascimento ................................................................................................................................ 37 Os nomes da filosofia moderna e contemporânea ...................................................................... 38 Quadro-síntese IV - Principais "correntes" filosóficas ................................................................ 43 IV - FILOSOFIA E IDEOLOGIA ........................................................................................................ 47 Senso comum, bom senso e pensamento não-ideológico .......................................................... 49 Ideologia ............................................................................................................................................ 51 Quadro-síntese V - Ideologia .......................................................................................................... 54 V – FILOSOFIA MORAL OU ÉTICA ................................................................................................ 57 Moral e ética: a mesma coisa?......................................................................................................... 59 Quadro-Síntese VI – Filosofia Moral ou Ética .............................................................................. 62 Origem da moralidade .................................................................................................................... 65 Características gerais da moralidade ............................................................................................ 66 O juízo moral e seu desenvolvimento ........................................................................................... 68 Quadro-síntese VII – Estágios de Desenvolvimento Moral ....................................................... 70 O relativismo moral ......................................................................................................................... 72 NOTAS................................................................................................................................................... 77 BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................................... 79
INTRODUÇÃO A filosofia, embora não seja considerada uma ciência, é considerada, por outro lado, como a mãe de todas as ciências. Não por sua anterioridade histórica, apenas, mas, sobretudo, pelo rigor e sistematização de conceitos, argumentos e raciocínio que impôs. Como Kant já afirmara, "Não se pode aprender filosofia, mas apenas a filosofar"; ou seja, a filosofia é, mais que um conjunto de conteúdos, conhecimentos sistematizados ou reflexões profundas, uma atitude existencial. Por isso, alguns afirmam que filosofia é "uma visão de mundo", ou "uma concepção de vida". Outros, ainda, como Marx, vão afirmar que a filosofia só tem valor quando impactando a vida e o mundo; daí sua crítica sobre os filósofos que apenas pensaram o mundo, sendo que o importante é transformá-lo. Devido a sua complexidade, o mergulho na filosofia exige muito do mergulhador. Exige, portanto, bastante aplicação do estudante. Como, então, proporcionar o essencial em um curso de filosofia limitado a cerca de 40 horas? Como, ainda mais, estabelecer as bases desse filosofar em um curso a distância? Talvez essas sejam, justamente, as alavancas que impulsionem aquelas pessoas que tenham o espírito aventureiro - mas disciplinado - do aprendiz de filosofia: coragem, vontade pessoal e autonomia. A filosofia, estudada em período curto e na modalidade não presencial solicita do estudante o compromisso com o processo de construção autônoma do saber. Ao menos, de início desse processo; uma modelagem do aprender a aprender, entendendo que não há verdadeira aprendizagem (e, por conseguinte, verdadeiro saber) que não aquela que é construída pelo esforço daquele que aprende. As páginas que se seguem, embora extremamente sucintas, querem ser um convite para essa jornada e caminhada nas margens desse vasto oceano. Quem sabe, despertando o espanto, a curiosidade (um dos fatores originários do pensamento filosófico, diriam os clássicos), aquele que tem seus pés molhados não se sinta atraído a mergulhar nas profundezas das águas abissais?
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I - FILOSOFIA, CONHECIMENTO E VERDADE
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O problema do conhecimento
Das tantas definições que podem ser aplicadas ao ser humano, talvez a que mais lhe seja conveniente diga respeito à sua característica investigativa – a curiosidade!! O ser humano é, enfim, um animal que indaga, que questiona, que tem sede de saber! Para as pessoas, as coisas não estão simplesmente aí, não são “dadas”. As coisas têm um significado além, devendo, portanto, ser decodificadas, interpretadas. O mundo, a vida, as próprias pessoas são um enigma, um mistério... Afinal, o que é a vida? Já dizia o poeta Gonzaguinha: “Mas e a vida? E a vida o que é, diga lá, meu irmão... É a batida de um coração? É uma doce ilusão? Há quem diga que a vida da gente é um nada no mundo... ...É o sopro do Criador...” Também nós podemos ser um mistério para nós mesmos, jamais desvendado. Podemos não problematizar nossa existência. Ou podemos não assumir o desafio de viver. Foi o que afirmou Francisco Otaviano de Almeida Rosa: “Quem passou pela vida em branca nuvem, E em plácido repouso adormeceu, Quem não sentiu o frio da desgraça, Quem passou pela vida e não sofreu, Foi espectro de homem, não foi homem, Só passou pela vida, não viveu.” Seja em busca de segurança, seja em busca de domínio, o desvendamento do mundo, dos mistérios da vida, dos mistérios do ser, impulsiona o ser humano, cada vez mais, na jornada do conhecimento, na conquista dos instrumentos da razão. Mas, como tudo deve ter uma finalidade, não basta o conhecimento pelo conhecimento: deve haver uma finalidade. A finalidade, o destino do ser humano... Qual será? A história da humanidade, de uma certa forma, é a história de suas ideias, de suas buscas, de suas descobertas, de seu crescente domínio dos fenômenos da natureza. Diante de algo hermeticamente fechado sobre si mesmo, ou frente a um objeto ou animal que procede de forma inovadora, o ser humano se coloca as mais variadas questões: Que é? Como pode? Para quê? Por quê?? Aliás, frente a si mesmo a pessoa se coloca em situação de curiosidade. Existem questões que estiveram e certamente sempre vão estar presentes na vida das pessoas; estas, as chamadas “questões existenciais”, envolvem a todo e cada ser humano em ao menos um momento de sua vida. E elas fazem eco às indagações dos primeiros antepassados sapiens: De onde vim? Quem sou eu? Que é isto, a vida, que me envolve? Minha existência se resume a uma linha estendida entre o nada e o lugar nenhum? Para onde vou? É a partir destas questões (assim formuladas ou analogamente), que ao menos uma vez em todo o tempo da vida particular se colocou a cada um dos seres humanos – de um modo ou de outro, em uma linguagem mais figurada ou mais racionalmente formulada – que brotou, de certa forma, a Filoso-
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fia. Porém, a Filosofia pode ser considerada um momento segundo, pois a sua sistematização é decorrência da evolução e suplantação de um tipo de pensamento elementar, fantasioso, ainda que sedento da verdade – o pensamento mítico. O pensamento mítico é um dos tipos de conhecimento humano e, por certo, não o mais rigoroso ou racionalmente convincente. Mesmo assim, deve-se deixar patente, é uma forma de conhecimento. Então, conhecimento, o que é?
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Para discutir o conhecimento e a verdade Sendo definido como animal racional, os temas do “conhecimento” e da “verdade” são bastante significativos para o ser humano. Afinal, é por sua capacidade de “conhecer” as coisas que as pessoas se distinguem, incomensuravelmente, dos outros seres. Nessa busca de conhecer, o que se procura é a verdade das coisas (dos seres). Todavia, há que se questionar: que é conhecer? E, igualmente, que é a verdade? De acordo com o Aurélio (2010), “conhecer” vem do latim cognoscere, que significa “ter noção, conhecimento, informação de; saber”; “ser muito versado em; conhecer bem”; “travar conhecimento com”; “ter conhecimento de causa”; “ter experimentado”; “distinguir, reconhecer”; “apreciar, julgar, avaliar”... De acordo com o Houaiss (2009), o termo provém do latim, significando “aprender a conhecer, procurar saber, reconhecer”, trazendo como significados mais comuns “perceber e incorporar à memória (algo); ficar sabendo”; “tomar ou ter consciência de”; “apreender certa e claramente com a mente ou os sentidos; ter cognição direta de; perceber”... Já o “conhecimento”, segundo o Aurélio, é termo derivado do verbo “conhecer”, significa “ato ou efeito de conhecer”; “ideia, noção”; “informação, notícia, ciência”; “prática de vida, experiência”; “discernimento, critério, apreciação”; “processo pelo qual se determina a relação entre sujeito e objeto”; “a apropriação do objeto pelo pensamento, como quer que se conceba essa apropriação: como definição, como percepção clara, apreensão completa, análise, etc.”; “a posição, pelo pensamento, de um objeto como objeto, variando o grau de passividade ou de atividade que se admitam nessa posição”. O Houaiss registra que “conhecimento” é o “ato ou efeito de conhecer”; “ato de perceber ou compreender por meio da razão e/ou da experiência”; “faculdade de conhecer”; “ato ou faculdade do pensamento que permite a apreensão de um objeto, por meio de mecanismos cognitivos diversos e combináveis, como a intuição, a contemplação, a classificação, a analogia, a experimentação etc.” O eminente filósofo José Ferrater Mora, em seu Dicionário de Filosofia (1978), afirma que, embora existam posições que coloquem ênfase nos objetos e posições contrárias que enfatizem o sujeito – além das que insistam em uma equiparação neutra entre sujeito e objeto, conhecer deve ser entendido como “o ato pelo qual o sujeito apreende o objeto”. Claro que o problema não termina aí, pois existem filósofos de postura cética que discutem a possibilidade de se conhecer e se dediquem com mais afinco às questões relacionadas à origem do conhecimento, bem como existem, também, filósofos de postura dogmática que admitem peremptoriamente a possibilidade de se conhecer, embora com um interesse maior sobre a questão da validade desse mesmo conhecimento. Óbvio que, entre essas duas posições extremadas encontram-se múltiplas vertentes, as quais vão originar várias escolas filosóficas, tais como a empirista, a racionalista, a positivista, etc., às quais faremos breves referências posteriormente. Com relação a “verdade”, essa seria, também de acordo com o Aurélio, “conformidade com o real; exatidão, realidade”; “franqueza, sinceridade”; “coisa verdadeira ou certa”; “princípio certo”; “representação fiel de alguma coisa da natureza”; “caráter, cunho”; “objeto central da reflexão filosófica, fio condutor em relação ao qual, em última instância, se definem, se aproximam e divergem as escolas filosóficas”. De fato. Retomando Ferráter Mora, o filósofo vai afirmar que o termo verdade pode ser utilizado em dois sentidos: para se referir a uma proposição (quando essa não seria falsa) e para se referir a uma realidade (quando essa não fosse aparente, ilusória ou inexistente). Todavia, Ferráter Mora argumenta que o próprio termo “realidade” não é unívoco. Daí que se se assumir que verdade significa o conhecimento da realidade, o problema não se extingue. Antes, o contrário. Esse, um dos pontos de divergência entre empiristas (radicais ou moderados), racionalistas, realistas e idealistas. Em suma, poder-se-ia afirmar que o conhecimento, o ato de conhecer é um “processo” de apreensão do real, do ser das coisas, de tal maneira que se atinja a verdade desse real, desses seres, dessas coisas. Conhecer seria conseguir estabelecer uma relação de plena conformidade entre aquilo que algo
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é e a ideia que se tem desse algo. A verdade seria essa situação de convicção, de certeza de que esse algo é, de fato, aquela ideia que se tem dele e, não, outra coisa. Mas, ainda persistem outros problemas: até que ponto aquilo que alguém julga “saber”/”conhecer” de algo corresponde, de fato, àquilo que esse algo é? E mais: pode, apenas uma pessoa, se arrogar o privilégio de deter conhecimento verdadeiro sobre algo? Ou o contrário: será que algo passa a ser considerado verdadeiro apenas pelo fato de um grande número de pessoas (todas, de uma determinada região e em uma dada época, por exemplo) estarem convictas de que conhecem esse algo? A verdade, então, seria decorrente da mera opinião reinante? Pense-se, a respeito, nos exemplos de Copérnico, Galileu e Giordano Bruno[1]. Mais complexo, ainda: veja-se o exemplo do “cachimbo” do pintor belga René Magritte (1896-1967), referido por Michel Foucault (1926-1984). Frente à produção artística de Magritte, Foucault elabora um discurso em que se pode contestar, se não a verdade, a adequação do uso da linguagem para a discussão e expressão das coisas. Figura 1 - Detalhe do quadro de René Magritte "A Traição das Imagens" - 1929
Michel Foucault discute o paradoxo criado por Magritte: o artista tem ou não razão? Sim, ele tem razão quando afirma que ninguém pode encher de fumo ou fumar utilizando aquela representação. Sim, afinal, é uma representação. Porém, não é feita uma referência direta à “realidade” a partir daquela “autorrepresentação”?
Fonte: http://1.bp.blogspot.com/-d5mTNri3KhA/UHYZKhqu-ZI/AAAAAAAAAIc/3tJlGy3bFgQ/s1600/ceci-n-est-pas-une-pipe.jpg
Então não seria possível encontrar a “Verdade”, mas apenas pequenas “verdades” transitórias ou hipóteses que estariam sempre sujeitas à verificação? Há que se fazer uma distinção entre alguns tipos de “verdade”. De um modo geral, teríamos verdades que são lógicas e que não requerem (ou não podem) ser validadas pela experiência. Seus conteúdos impõem-se por si sós, de maneira necessária e contingente – seriam “verdades a priori”, como, por exemplo a aceitação de que a verdade do bem é de que ele só possa ser reconhecido como aquilo que proporciona o aperfeiçoamento e/ou a realização de algo ou alguém. É contraditório pensar-se em algo que seja, ao mesmo tempo, um bem e cause danos – portanto, é contingente ao bem (faz parte da própria definição, de sua compreensão, de sua “natureza”) o aperfeiçoamento, a realização do ser em quem atua ou que o recebe; e ter essa característica é, sempre, essencial ao bem (é-lhe necessário, não podendo ser de outra forma, porque, então, deixaria de ser aquilo que é, o bem). Há, por outro lado, verdades que não são de caráter meramente lógico, mas, sim, de caráter físico ou empírico; essas são as “verdades” que requerem, para sua validação, uma experimentação, uma averiguação de seus componentes, a constatação de sua regularidade – regularidade, esta, que vai conduzir à construção ou estabelecimento das chamadas “leis físicas”, que buscam ser universais, necessárias e verificáveis. Tais “regularidades”, impropriamente chamadas de “leis” são, todavia, diversas de certezas definitivas; são, sobretudo, hipóteses constantemente experimentadas, desafiadas e validadas (ou contestadas). Esse é o “espírito científico”.
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Diante do desafio de se conceber uma “verdade” relativa, mutável, sujeita a experimentações e o encontro de uma verdade “permanente”, “imutável”, surgem algumas posturas de crença ou dúvida. A essas posturas costuma-se atribuir os nomes de dogmatismo e relativismo. O dogma é, em termos religiosos, um ponto doutrinário indiscutível e fundamental (conf. Aurélio); mas é, também, alguma afirmação ou ponto aceito como pressuposto válido em sistemas científicos e filosóficos (axioma). Dogmatismo, por extensão, é a postura que afirma que existem verdades (imutáveis) e que essas podem ser conhecidas – e, mesmo, que podem ser conhecidas pelo uso da razão, independentemente de experimentos físicos (a priori). O dogmático, portanto, é aquele que tem a firme convicção de que a verdade existe e que pode ser conhecida, e, não raro, está convicto de que ele está com a verdade, a verdade está nele, ou que ele detém a verdade. Contrariamente ao dogmatismo, encontra-se a postura relativista, que pode manifestar-se como cética ou niilista. Cético, de um modo geral, é aquele que duvida, ou seja, que não crê de qualquer forma, sem provas. Existiriam dois tipos de céticos: um seria o que vive conforme um ceticismo relativo, em que se aceita que, se existir a verdade, ela é difícil de ser encontrada, que os meios de que dispomos para conhecer não são capazes de atingir a verdade em toda a sua plenitude. Outro tipo de ceticismo seria o absoluto. O ceticismo absoluto é aquela postura onde se afirma que a verdade não existe e, se existisse, não teríamos condições de conhecê-la. Esse ceticismo absoluto ou radical também é designado por niilismo (do latim nihil, nada), cuja postura radical se caracteriza pela “não-crença”. Essa postura de não-crença é, também, designada de agnosticismo, que significa uma “posição metodológica que só admite os conhecimentos adquiridos pela razão e evita qualquer conclusão não demonstrada” (conf. Aurélio). O agnosticismo (termo derivado de a – não – e gnose – conhecimento – donde, agnose = não conhecimento, sem conhecimento) até aceita a existência de realidades metafísicas (além da matéria), mas não se refere a elas por carecerem de formas de demonstração racional. Pode-se afirmar que, por sobre toda essa discussão paira, ainda, o problema de se saber se as vias pelas quais o conhecimento é construído e a verdade alcançada são válidas. Entra, aqui, a disputa entre racionalistas (idealistas) e empiristas (pragmáticos/materialistas): uns, afirmando que o conhecimento procede principalmente da razão e que as coisas devem se conformar com os princípios racionais (Descartes[2]); outros, ao contrário, afirmando que o verdadeiro conhecimento consiste na adequação da mente com as coisas e que, não raro, esse conhecimento passa pelos sentidos, pela experiência (Bacon[3]). De todo o exposto até aqui, podem-se tecer algumas conclusões, ainda que provisórias. Antes de qualquer coisa, a respeito do conhecimento. Conhecimento é o pensamento que emerge da relação entre um sujeito que conhece – que se aplica racionalmente em descobrir a “verdade” – e um objeto que se dispõe a ser conhecido – que se propõe a “desvelar” sua “verdade”, seu ser. Conhecimento, portanto, pode ser considerado como uma ferramenta mediante a qual o ser humano compreende si mesmo e o “mundo” em que se encontra. É, também, embora sob uma concepção limitada, o instrumento que propicia o “domínio” e “manipulação” da realidade física e social. “O conhecimento é o pensamento que resulta da relação que se estabelece entre o sujeito que conhece e o objeto a ser conhecido. A apropriação intelectual do objeto supõe que haja regularidade nos acontecimentos do mundo; caso contrário, a consciência cognoscente nunca poderia superar o caos.” (ARANHA; MARTINS, 1996, p. 21. Grifos das autoras) O Conhecimento, então, mesmo que não seja explicitado um método – sobretudo no sentido “científico”, em sua concepção atual – vai buscar desenvolver-se mediante uma “lógica” (racional ou não) e, analogamente, procurar encontrar uma outra “lógica” no objeto sobre o qual se debruça ou com o qual se relaciona. Se, contemporaneamente, em geral, referimos o conhecimento à produção científica, acadêmica, ou aos saberes sistematizados e mediatizados racionalmente, não se pode esquecer que ainda co-existem muitas formas de conhecimento, nem todas fundadas na razão. Há, por exemplo, um conhecimento mais intuitivo:
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[...] nós apreendemos o real também pela intuição, que é uma forma de conhecimento imediato, isto é, feito sem intermediários, um pensamento presente ao espírito. Como a própria palavra indica (tueri em latim significa ‘ver’), intuição é uma visão súbita. Enquanto o raciocínio é discursivo e se faz por meio da palavra, a intuição é inefável, inexprimível[...] (ARANHA; MARTINS, 1996, p. 22. Grifos das autoras)
Por ser um tipo de conhecimento mais “espontâneo” e, por isso, menos sistemático, o conhecimento intuitivo se encontra aquém de outras formas de conhecimento, como o conhecimento mítico, por exemplo, porque esse tipo de conhecimento – o mítico – já implica em uma busca de organização e sistematização, ainda que recorrendo a uma linguagem figurativa, fantasiosa. Alguns autores, contudo, argumentam que o pensamento intuitivo é muito mais complexo do que a simples “visão súbita” referida por Aranha e Martins. Goleman, em seu livro Foco (2013), vai afirmar que a intuição tem a ver com a autoconsciência e a compreensão das próprias reações fisiológicas. De acordo com Goleman, a intuição se relaciona com “regras de decisão derivadas das nossas experiências de vida”, as quais criam um como que “leme interno”. Autoconsciência, compreensão das reações fisiológicas e intuição se interpenetram quando “[conhecemos] os nossos valores primeiro sentindo o que parece certo e o que não parece, e então articulando essas sensações no nosso íntimo.” (GOLEMAN, 2013 (ed. digital, sem paginação). Grifos nossos). Isso significa que, embora a intuição possa parecer algo bastante desprovido de base, a não ser uma mera sensação de que algo vai dar certo ou errado, o que está por trás dessa sensação é, sim, um conjunto de experiências que permitem a alguém ter um “norte”, um “leme” para a tomada de posição frente a uma situação ou decisão. A intuição não pode ou deve ser confundida com o popular “senso comum” – sobre o qual falaremos na ocasião adequada. O senso comum pode até parecer intuitivo, mas essa aparente intuição pode ocultar uma “superstição”, um preconceito, uma ideologia, uma crença derivada mais da proximidade de eventos do que decorrente da causalidade efetiva entre eles. O senso comum distingue-se por sua penetração em uma dada cultura, o que pode levar a uma falta de criticidade. É certo, porém, que o senso comum pode incorporar diversos elementos de conhecimento mítico, teológico, filosófico e científico. Aliás, seria praticamente impossível se viver de outra forma, uma vez que as pessoas, pela socialização, incorporam a cultura do grupo ou sociedade onde nascem ou vivem. Desse modo, admitir a vida a pós a morte, ou a superioridade de gênero, ou a evolução das espécies fazem parte do senso comum de algumas culturas, independentemente de serem amparados por concepções teológicas, filosóficas, científicas (biológicas, sociológicas ou antropológicas...); independentemente de serem corretas ou não; independentemente de serem verificáveis ou não; independentemente de serem moral ou eticamente admissíveis ou não. Esses são pontos interessantes para se discutir. E é a isso que nos propomos nas próximas páginas.
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Quadro-síntese I - Da verdade Extraído de MATALLO Jr., Heitor. Mito, Metafísica, Ciência e Verdade. Construindo o Saber. In: __________. Metodologia Científica, Fundamentos e Técnicas. Campinas, SP: Papirus, 1989, p. 35ss Em toda nossa discussão está implícito que existe alguma coisa que pertença à realidade e alguma coisa que se constitui como um discurso sobre esta realidade. A idéia de Verdade aparece, então, como uma correspondência entre este discurso e a realidade. Aristóteles foi o primeiro pensador a formular esta relação quando definiu a verdade como “dizer do que é, que é, e do que não é, que não é”. Há, no entanto, um outro sentido para verdade. É quando de sua aplicação a uma realidade. Dizse de uma realidade que é verdadeira em oposição à aparente, ilusória, etc. Esta tradição de pensar a verdade foi inaugurada por Platão com sua Teoria das Formas e a pressuposição de que existe uma essência verdadeira e permanente em oposição às aparências, que são fugazes e enganadoras. Atingir a verdade seria, então, atingir a essência da realidade. Não está em questão aqui o modo como um mero código de interposição entre a realidade e o sujeito conhecedor, mas sim o fato de que haverá um processo de clarificação do real, eliminando-se tudo aquilo que esconde a essência dos fenômenos, que é permanente e verdadeira. Esta concepção é também chamada de ontológica, por identificar a verdade com o ser (no sentido de existir) da realidade. Para Platão, assim como para os modernos essencialistas Hegel e Marx, somente a essência adquire o estatuto de permanente e, portanto, cognoscível. As aparência são mistificadoras e escondem a verdadeira natureza das coisas. Esta concepção da verdade tem muitas conseqüências epistemológicas. A primeira delas é que a verdade – quando encontrada – será definitiva, pois a essência é permanente. Assim, verdade e essência coincidem, emprestando à teoria uma característica ontológica que por si só já oferece uma tendência à imunização. Se uma teoria é verdadeira porque atingiu a essência da realidade, então não pode ser refutada. Em segundo lugar, se uma dada teoria é considerada verdadeira então não há nenhum motivo para que se realizem pesquisas, pois a essência já é o conhecimento integral e último da realidade. Esta concepção é inibidora da busca de novos conhecimentos e, portanto, do desenvolvimento científico. Há ainda outra característica do essencialismo, que é uma certa visão conspiratória do mundo, coisa que foi bem acentuada por Popper. Se a verdade existe, por que não se instaura, não aparece? É necessário, dizem os essencialistas, que se faça sempre um enorme esforço para desvendar a realidade de sua aparência e falsidade, mas o engano e o erro retornam sob outra forma. É como se houvesse uma constante luta entre o erro e a verdade e esta última perdesse por causa dos interesses egoístas de alguns homens ou classes. A concepção marxista é a típica representante desta visão, onde o interesse de classe burguês conspira contra a instauração da verdade (seja ela no campo teórico ou prático) e do progresso da humanidade. [...] A história da ciência tem mostrado que não existe uma “coisa” (teoria, proposição ou fato) que possa seriamente ser designada como verdadeira. Existem teorias, proposições e fatos que hoje são verdadeiros, ou o são relativamente a uma certa perspectiva, a um certo contexto. Isso significa que, por princípios, todas as teorias, proposições ou fatos que hoje consideramos verdadeiros podem deixar de sê-lo amanhã. Nós jamais teremos a completa e absoluta certeza de termos atingido a verdade. Por mais que uma teoria tenha evidências comprobatórias não há nenhuma garantia de que um fato novo não venha a falsificá-la. Há uma assimetria – como acentuou Popper – entre a confirmação e a falsificação. Este princípio mostra que uma teoria não fica mais forte e nem melhor com a inclusão de novos resultados que a confirmem. Mas, ao contrário, um único fato que lhe seja contrário é suficiente para falseála. Poderíamos caracterizar a tese da verdade como correspondência como a Tese dos Dois Mundos: o mundo dos fatos e o mundo das idéias sobre os fatos, das proposições e teorias. Segundo esta concepção, o mundo das proposições e teorias “fala” sobre o mundo dos fatos e tenta representá-lo o mais fielmente
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possível. A história da ciência revelaria este esforço de representação, bem como a sucessiva aproximação em direção à verdade, na medida em que se aproximaria da “representação fiel dos fatos”. Nesta medida, seria sempre possível – para esta concepção – atingir a verdade, pois bastaria a formulação de uma teoria que representasse fielmente os fatos. Já discutimos a idéia de fatos e mostramos que eles dependem das teorias. Não há esse pretenso mundo dos fatos como algo constante e imutável. Podemos dizer que os dois mundos não são independentes como o realismo ingênuo supõe. Mas, então, o que podemos aceitar como sendo a verdade da Verdade? [...] O rápido progresso científico e a refutação das grandes teorias clássicas, paradigmas de verdade e coerência, geraram uma certa instabilidade na ciência. Como postular a veracidade de uma teoria se, a qualquer momento, ela pode ser refutada e substituída por outra? Isto levou à caracterização das teorias (principalmente na física) como meros instrumentos de entendimentos dos fatos e não propriamente como verdades sobre eles.
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O pensamento mítico Conforma referimos brevemente na página 10, a intuição tem um profundo componente orgânico e experiencial; conforme Goleman (2013, ed. digital, sem paginação), “demanda imensas quantidades de dados, produtos de toda a nossa experiência de vida, e filtra esses dados através do cérebro humano.” Ora, mas se a intuição é algo valioso, que pode ter aplicações válidas na vida da pessoa, por que as diversas formas de conhecimento lhe seriam, sob certos aspectos, superiores? Poderíamos argumentar que um desses aspectos é a sua disseminação por toda uma coletividade, garantindo à mesma uma apropriação ou compreensão similar do mundo em que vivem. A intuição, por mais vantajosa que possa ser para as tomadas de decisão, ainda que se imponha a um grupo, é essencialmente fundada na experiência individual. Em sendo assim, tem uma validade e uma existência bastante limitadas. Não podem ser transmitidas social e/ou culturalmente. Quanto a esse aspecto, o conhecimento mítico, mesmo considerado como um dos mais primitivos modos de se conhecer ou expressar o conhecimento do mundo pode ser considerado mais evoluído do que a intuição. O conhecimento mítico, apesar de ser um avanço (mesmo que despretensioso) em relação ao conhecimento intuitivo, todavia não consegue esgotar a verdade das coisas de maneira ampla e inquestionável, também devido a uma limitação: seu caráter etnocêntrico ou culturalmente determinado. Essa redução de perspectiva faz com que suas respostas aos problemas ou mistérios do mundo tenham uma limitação própria à identificação com objetos e seres específicos (de uma sociedade ou cultura), limitação que só vai ser suplantada, em grande parte, pelo pensamento filosófico (a Filosofia) e, quase totalmente, pelo pensamento ou conhecimento científico (a Ciência positiva ou experimental). O pensamento mítico, porém, é a primeira das tentativas organizadas de se responder às grandes interrogações que a vida e o mundo impuseram, desde sempre, aos seres humanos. Assim, na busca por respostas que pudessem trazer segurança ao ser que se encontra ou se descobre, um dia, sobre a face da terra, começaram a surgir esboços explicativos às mais diversas indagações. Só que as respostas não se faziam de forma racional, quanto à sua apresentação. Mesmo tentando responder às dúvidas mais diversas, as respostas, contudo, eram feitas segundo um molde específico: mediante alegorias, com um recurso à linguagem figurada. Era a criação mítica! Os mitos são, portanto, as primeiras tentativas de se responder às grandes questões do universo, sobretudo às questões sobre as origens – e não só sobre as origens do universo, mas inclusive das coisas que o integram: seus fenômenos, as plantas, os animais, as pessoas, as paixões... O mito assume diversas manifestações, segundo Aranha e Martins (1996), tais como: na preocupação com a origem divina da técnica; na natureza divina dos instrumentos; na origem da agricultura; na origem dos males; na fertilidade das mulheres; no caráter mágico das danças e desenhos. As mitologias são a tentativa de compreender o mundo e, dessa forma, dominá-lo. Concomitantemente, às narrativas mitológicas associam-se rituais, que revivem aquilo que narram. Os rituais têm um caráter de “atualização”: eles fazem com que aconteça, no tempo em que se realizam, aquilo que as narrativas afirmam. Uma postura possível sobre o que venham a ser os mitos nos é oferecida por Eliade (1972), para o qual todos os povos tiveram e têm os seus mitos. Para este autor, então De modo geral pode-se dizer que o mito, tal como é vivido pelas sociedades arcaicas, 1) constitui a História dos atos dos Entes Sobrenaturais; 2) que essa História é considerada absolutamente verdadeira (porque se refere a realidades) e sagrada (porque é obra dos Entes Sobrenaturais); 3) que o mito se refere sempre a uma “criação”, contando como algo veio à existência, ou como um padrão de comportamento, uma instituição, uma maneira de trabalhar foram estabelecidos; essa a razão pela qual os mitos constituem os paradigmas
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de todos os atos humanos significativos; 4) que, conhecendo o mito, conhece-se a ‘origem’ das coisas, chegando-se, consequentemente, a dominá-las e a manipulá-las à vontade; não se trata de um conhecimento “exterior”, “abstrato”, mas de um conhecimento que é “vivido”, ritualmente, seja narrando cerimonialmente o mito, seja efetuando o ritual ao qual ele serve de justificação; 5) que de uma maneira ou de outra, “vive-se” o mito, no sentido de que se é impregnado pelo poder sagrado e exaltante dos eventos rememorados e reatualizados. (ELIADE, 1972, p. 21-22. Grifos do autor).
Mito, de acordo com Eliade, não é apenas a designação de um tipo específico de discurso – uma narrativa – sem maiores implicações sobre a realidade do que tentar explicar sua origem (dessa mesma realidade). A importância do mito estaria em seu papel de mediador entre as pessoas e a natureza misteriosa do universo e aquilo que o compõe, bem como por integrar a identidade de uma dada sociedade (acima referidas como arcaicas), além de ser capaz de atualizar – ou reatualizar – aquilo que narra. Eliade afirma o mito como um elemento componente da vida das sociedades e que busca, apesar de sua linguagem figurativa, fantasiosa, alegórica, pronunciar-se sobre a verdade última e primeira de todas as coisas, materiais ou não. Como os mitos são a forma mais “primitiva” de se explicar a realidade, como os mitos são a forma pela qual a razão primeiramente ascende ao mistério das coisas, e como todos os povos tiveram, originariamente, seus mitos, importa ressalvar que alguns desses mitos permaneceram, em sua estrutura primeira, outros foram modificados ao longo do tempo, outros foram transformados em uma linguagem mais racional e substituídos. Contudo, afirmar que os mitos desapareceram de todo é um engano. A psicanálise demonstra, de fato, como os meios de comunicação, de persuasão, sobretudo mediante a publicidade, fazem uso de imagens míticas, recorrendo a pessoas que são transformadas em “ídolos”, em estrelas, em... mitos!! Assim, temos alguém que é um “mito” de beleza, alguém que é um “mito” de sucesso, alguém que é um “mito” de solidariedade, alguém que é um “mito” de abnegação, etc. Sinal de que os mitos, ainda que transmutados, continuam presentes nas culturas mais eivadas pela tecnologia. A esse processo pode-se designar de “antropomorfização” – conferir uma forma humana, ou encarnar o ponto central, o âmago da narrativa mítica. Todavia, se os mitos trabalham com conteúdos profundos de nosso ser, se dizem respeito a fenômenos da natureza, da realidade visível ou não, se os mitos são uma busca da “verdade” – dizendo respeito, então, a algo que, atualmente, pode ser expresso e explicado por uma linguagem mais racional, científica – esses mitos, a mitologia em geral não pode ser confundida ou comparada com as lendas. As lendas não visam explicar coisa alguma, não envolvem rituais, não estão ligadas a realidades que pretendem esclarecer e dominar. As lendas são como que passatempo, “invenções” sem qualquer pretensão fora o distrair (mesmo que através do medo), ou propor ensinamentos de cunho moral. E nisso as lendas se associam aos “contos de fada”. Com uma distinção: os contos de fada trabalham com conteúdos do psiquismo humano, elaborando e re-elaborando situações, tensões, dinamismos da personalidade. Os contos de fada encontram-se, ainda, fora do tempo, mas em um tempo que pode ser qualquer tempo, pois é um tempo psíquico: “Era uma vez...”. Por seu lado, as lendas são bem situadas no tempo e no lugar: “...em tal mata, nos idos de mil novecentos e tanto..., apareceu um homem cuja dentadura era toda de ouro...”. Elas podem transcender essa limitação quando incorporadas à cultura (cultura de folk, como afirmam alguns antropólogos e historiadores). O tempo também não existe nos mitos, mas porque eles são sempre atuais e atualizados mediante os rituais. Para a mentalidade “primitiva” os mitos são um elemento integrante da vida. Antes, a vida é uma expressão do mito: as coisas, os elementos da natureza, os aspectos da realidade são posteriores aos mitos – são a prova de que os mitos estão corretos, de que expressam a verdade. Não se pode confundir, então, MITO com mentira, nem com lenda, nem com crendices, nem com contos de fada. Os mitos têm uma dinâmica toda própria em sua busca de verdade, mas se caracteriza por buscar a verdade. A “verdade” dos contos de fada restringe-se ao plano psíquico, no inconsciente, embora seu impacto diga respeito à vida em si mesma. Aliás, quem tiver interesse em aprofundar a
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discussão sobre os contos de fada, dentre outros, pode recorrer ao ilustre Bruno Bettelheim, e seu significativo A psicanálise dos contos de fada. (2002). Na obra se pode ler que os pais da filosofia – Platão e Aristóteles – compreendiam o valor do mito e sua vinculação com a filosofia. Em comum, destaca a derivação dos (ou expressão simbólica que conferem aos) ritos de iniciação ou de passagem. Todavia, a diferença substancial entre o conto de fadas e o mito, nas palavras de Bettelheim, consiste em que o primeiro é otimista quanto a sua dinâmica e resultados enquanto o segundo é pessimista – pois projeta uma “[...] personalidade ideal agindo na base das exigências do superego.” Bem, se falamos, ainda, em crendices, embora de menor importância para o terreno filosófico como tal, vale destacar que a crendice é um meio termo entre a lenda e a superstição, implicando uma leitura distorcida da realidade. Também nós possuímos muitas crendices, pois não nos movemos em um mundo que é constantemente interpelado sobre suas fundamentações. Cremos que... Cremos em... Cremos! Crer é aceitar algo como dado, sem ser submetido a dúvida ou crítica. A crença não busca fundamentações para subsistir, não busca “certezas”: a crença dá a certeza como pressuposta. A postura de dúvida, surgida com a admiração das coisas e seu questionamento, a busca de desvelar o que era “crido” é que vai gerar o espírito filosófico e, posteriormente, científico. Se no campo da mitologia estamos no plano da total possibilidade, no campo filosófico no plano da verdade e certeza racionais, no campo científico estaremos no plano da probabilidade, ou de uma “verdade empírica”. Aliás, como discutiremos mais adiante, o conceito de “verdade” é algo que deve ser tematizado, de forma a se elucidar as diversas concepções de verdade que se ocultam por sob um mesmo termo. Importa, agora, avançar naquela jornada em busca do conhecimento e que, se principiou pelo pensamento mítico, transmuta-se, gradualmente, em pensamento filosófico.
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O pensamento filosófico A característica maior do pensamento de caráter filosófico é que vai procurar questionar a própria natureza do conhecimento. E isso de maneira mais racional que intuitiva ou alegórica, de maneira mais radical que superficial, de maneira mais de conjunto que isoladamente. O conhecimento filosófico, ao menos hipoteticamente, vai se caracterizar por uma postura de humildade diante das coisas, sabedor de que a realidade mesma das coisas não é facilmente acedida pelo pensamento, de que a relação entre sujeito cognoscente e objeto conhecido envolve uma equação muito mais complexa. Devido a esse pressuposto, a primeira ruptura introduzida no pensamento ocidental direciona-se, justamente, contra a suposta pretensão de posse definitiva da verdade – seja lá o que isso quer dizer. A Filosofia, ou melhor, os filósofos, “superando” as limitações figurativas – e bastante concretas – do pensamento mítico ou dos sábios, vão encetar uma postura mais “abstrata”, buscando um conhecimento que, por estar livre das amarras concretas dos objetos em si mesmos, poderia ser mais universal, em extensão, e mais essencial, em profundidade. Essa base do pensamento filosófico é o conceito. Os conceitos, como veremos, têm necessidade de personagens conceituais que contribuam para sua definição. Amigo é um desses personagens, do qual se diz mesmo que ele testemunha a favor de uma origem grega da filosofia: as outras civilizações tinham Sábios, mas os gregos apresentam esses “amigos” que não são simplesmente sábios mais modestos. Seriam os gregos que teriam sancionado a morte do Sábio, e o teriam substituído pelos filósofos, os amigos da sabedoria, aqueles que procuram a sabedoria, mas não a possuem formalmente. Mas não haveria somente diferença de grau, como numa escala, entre o filósofo e o sábio: o velho sábio vindo do Oriente pensa talvez por Figura, enquanto o filósofo inventa e pensa o Conceito. (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 10-11. Grifo dos autores).
Entretanto, o surgimento da Filosofia não se faz de uma hora para outra, com todas as suas características já determinadas: a Filosofia, na verdade, retoma os mesmos temas ou problemas trabalhados pela mitologia e busca dar-lhes uma resposta diversa, mais racional, mais verificável, mais confiável, mais universal. Daí que os primeiros problemas filosóficos tinham como objeto central o conhecimento, ou o questionamento, da própria origem do universo. A mitologia grega tratava da origem do cosmos, mas sob uma linguagem figurativa – o que se denomina cosmogonia (de cosmo = universo, e gonos = origem); a Filosofia vai retomar essa discussão, porém, a partir do aspecto racional, discursivo, o que se denomina cosmologia (de cosmo = universo, e logos = discurso, estudo). Esse recurso ao discurso é que vai fundar o conhecimento filosófico, que é um conhecimento discursivo, o qual pode ser assim compreendido: Chamamos conhecimento discursivo ao conhecimento mediato, isto é, aquele que se dá por meio de conceitos. É o pensamento que opera por etapas, por um encadeamento de idéias, juízos e raciocínios que elevam a determinada conclusão. (ARANHA; MARTINS, 1996, p. 22. Grifos das autoras).
Esse conhecimento discursivo vai se estruturar mediante abstrações cada vez mais complexas e cada vez mais abrangentes, mais gerais, mais universalizáveis, as quais vão subsidiar a razão em seu intento de desenvolver um tal discurso sobre algo. Para tanto, a razão precisa realizar abstrações. Abstrair significa “isolar”, “separar de”. Fazemos uma abstração quando isolamos, separamos um elemento de uma representação, elemento este que não é dado separadamente na realidade (representação significa a imagem, ou a idéia da “coisa” enquanto presente no espírito). (ARANHA; MARTINS, 1996, p. 22. Grifos das autoras).
Não obstante, se podemos conceber o pensamento filosófico como sendo marcado pela abstração em seu ápice, importa destacar que isso é resultado de um processo, e um processo que finca suas raízes na narrativa muito mais “concreta” da mitologia. Nesse sentido, vamos encontrar o pensamento filosó-
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fico “evoluindo”, desde os filósofos “pré-socráticos” – assim designados aqueles filósofos que antecederam, não necessariamente cronologicamente, mas quanto às “escolas” que discutiam os problemas da realidade sob uma nova ótica – até os dias de hoje, ainda que, conjuntamente, enfoque cinco campos de estudo: a lógica, a estética, a ética, a política e a metafísica. A palavra “filosofia” teria sido usada pela primeira vez por Pitágoras (570-490 a.C., aproximadamente), para quem a posse da sabedoria era algo impossível para as pessoas, as quais poderiam, apenas, persegui-la, como o amante persegue a pessoa amada. Daí, que não se pode ser sábio, mas apenas ter amizade, amor (filia, filos) pela sabedoria (Sophia). Os primeiros filósofos, no sentido estrito do termo, teriam surgido na Grécia, embora se designem outros grandes pensadores da Antigüidade de “filósofos”. Mas há uma diferença crucial: [...] os primeiros filósofos da humanidade foram gregos. Isso significa que embora tenhamos referências de grandes homens na China (Confúcio, Lao Tsé) na Índia (Buda), na Pérsia (Zaratustra), suas teorias ainda estão por demais vinculadas à religião para que se possa falar propriamente em reflexão filosófica. (ARANHA; MARTINS, 1996, p. 62).
Tomando o argumento precedente como esclarecedor e justificativa, também assumimos o surgimento dos primeiros passos da Filosofia na Grécia, o que se deu devido a uma série de coincidências, envolvendo aspectos sociais, econômicos e tecnológicos: [...] no decorrer do século VII a.C., a expansão das técnicas – já desvinculadas da primitiva concepção que lhes atribuía origem divina – passa a oferecer ao homem imagens explicativas dotadas de alta dose de racionalidade, conduzindo à progressiva rejeição e à substituição da visão mítica da realidade. (PRÉ-SOCRÁTICOS, 1996, p. 14).
A rejeição e substituição da visão mítica se deveram, igualmente, a outros fatores, tais como a invenção da escrita, o surgimento da cidade (polis), a invenção da moeda e a codificação da lei escrita. É certo que as epopéias (os poemas épicos, como a Ilíada e a Odisséia) também tiveram seu papel, ainda que diminuto, uma vez que mesclava a história dos seres humanos com intervenções divinas, semideuses e heróis, fatos antepassados e invenções. Já os outros fatores têm importância pela crescente responsabilização que atribui às pessoas pelo seu próprio destino, bem como pelo impulso em direção a uma abstração gradual e cada vez mais presente na vida cotidiana. Os primeiros filósofos colocaram-se como problema a descoberta da substância primordial (archè), ou seja, a origem “material/natural/física” de todas as coisas, aquilo que existia de permanente por trás de toda a multiplicidade. Assim, Procurando reduzir a multiplicidade percebida à unidade exigida pela razão, os pensadores de Mileto propuseram sucessivas versões de uma física e de uma cosmologia constituídas em termos qualitativos: as qualidades sensíveis (como “frio”, “quente”, “leve”, “pesado”) eram entendidas como realidades em si (“o frio”, “o quente” etc.). O universo apresentava-se, assim, como um conjunto ou um “campo” no qual se contrapunham pares de opostos. (PRÉ-SOCRÁTICOS, 1996, p. 15).
Os primeiros filósofos, portanto, procuravam indicar um elemento ou substância primordial que conferisse unicidade ao cosmos, tal elemento ou substância (archè) seria: Água (Tales de Mileto, 632-546 a.C.) Indeterminado, Infinito – Apeíron (Anaximandro de Mileto, 610-547 a.C.) Ar (Anaxímenes de Mileto, 588-524 a.C.) Número (Pitágoras de Samos, 570-490 a.C.) Fogo – “vir-a-ser” (Heráclito de Éfeso, 500 a.C., aproximadamente) Ser (Parmênides de Eléia, 510-470 a.C.) Fogo, terra, água, ar – princípios do amor (philia) e ódio (neikos) (Empédocles de Agrigento, 490430 a.C.) Átomo (Demócrito de Abdera, 460-370 a.C.)
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Pode-se perceber pela enumeração acima que, embora buscando superar a concepção mítica e encontrar uma explicação racional para a origem do cosmos, para uma unidade que desse sustentabilidade á realidade, o discurso dos filósofos pré-socráticos ainda se encontrava muito próximo ao mundo material, físico. Com o surgimento dos “três grandes” – Sócrates, Platão e Aristóteles – a filosofia vai dar uma guinada rumo à abstração, ao mundo das idéias, à racionalidade e à busca da “essência” nos conceitos, não mais na matéria, mas na “forma”. Antes, porém, que os “três grandes” irrompessem determinantemente no cenário grego, a filosofia nascente, que demonstrava interesse na própria pessoa e em suas relações com a sociedade, conheceu os primeiros mestres na arte da argumentação – os sofistas (que significa, etimologicamente, sábio). “Os sofistas eram professores viajantes que, por determinado preço, vendiam ensinamentos práticos de filosofia. Levando em consideração os interesses dos alunos, davam aulas de eloqüência e de sagacidade mental. Ensinavam conhecimentos úteis para o sucesso nos negócios públicos e privados.” (COTRIM, 1996, p. 101). O momento político grego favoreceu o surgimento dessa atividade praticada pelos sofistas, uma vez que, em meio a disputas políticas, o que importava era o sucesso nos debates ocorridos nas assembléias (nas ágoras). Um dos resultados da atividade sofística foi o surgimento de concepções filosóficas relativistas, uma vez que a verdade seria relativa “ao homem, ao momento, a um conjunto de fatores e circunstâncias” (Cotrim, 1996, p. 101). Nesse sentido surgem Protágoras de Abdera (480-410 a.C.) instituindo um grande subjetivismo ao erigir o “homem com a medida de todas as coisas”, e Górgias de Leontini (487-380 a.C.), que “aprofundou o subjetivismo relativista de Protágoras a ponto de defender o ceticismo absoluto” (Cotrim, 1996, p. 102). Insistindo na busca da verdade, ainda que não julgasse encontrá-la pronta, mas através de um exercício de humildade e de busca constante, surge Sócrates, considerado o divisor de águas do pensamento ocidental e dos maiores filósofos que já existiu, apesar de não ter deixado nada escrito: andava pelas ruas de Atenas conversando com as pessoas, interrogando-as sobre suas crenças. O que dele se conserva foi registrado por Platão, seu discípulo. Sócrates (nascido em Atenas em 470/469-399 a.C.) teria sido filho de um escultor (Sofronisco) e de uma parteira (Fenareta) e seu estilo de vida assemelhava-se ao dos sofistas, embora não “vendesse” ensinamentos. Seu método, a ironia, consistia em conversar com as pessoas e interrogá-las em busca das razões de suas crenças. De seu próprio conhecimento, dizia que nada sabia: Buscava um conhecimento mais elaborado, mas, quanto mais conhecia, mais tinha consciência de que sabia muito pouco. Por assumir humildemente uma posição de ignorância, foi declarado pelo oráculo de Delfos como o homem mais sábio do mundo. Vivenciando as experiências do dia-a-dia e tentando questionar sempre os acontecimentos da cidade e as relações entre as pessoas, Sócrates, atento ao caminho da perfeição, inquietava os cidadãos atenienses com a magia da arte do diálogo. Ele nos ensinou que a atividade de filosofar não se distingue do próprio ato de viver, que o ato de filosofar consiste em conscientizar-nos de que nada sabemos. Nas suas conversas na praça do mercado de Atenas, ele não queria ensinar, mas aprender com as pessoas. Nesse diálogo, ambos aprendiam. (GALLO, 1999, p. 16).
A arte do diálogo, da dúvida e da ironia completava-se com a maiêutica, que se refere ao processo de concepção de idéias, o momento segundo de construção de idéias próprias e não mais recebidas passivamente. Propagando a teoria de que a verdade pode ser encontrada a partir do exercício da própria razão, Sócrates abre caminho para outro pensador e cidadão ateniense, Platão (nascido em Atenas em 427-347 a.C.), que fora seu discípulo e fundador de uma escola denominada Academia onde se ensinava filosofia, matemática e ginástica. Platão utilizava-se do método dialógico criado por seu mestre. A preocupação central de Platão consistia em perceber a relação entre aquilo que, de um lado, é eterno e imutável, e aquilo que, de outro, flui, ou seja, movimenta-se. Concluiu que aquilo que é eterno e imutável
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está no plano ideal, racional, espiritual. Está naquilo que ele chamou de mundo das idéias. Já aquilo que flui pertence ao mundo dos sentido, dos acontecimentos, e é feito de um material sujeito à corrosão do tempo. [...] Essa divisão entre dois mundos é a marca da filosofia de Platão, aparecendo também em sua visão do homem, separando o corpo da alma. Para ele, o espírito o a alma é intelectiva (racional) e superior. O corpo é irracional (sensível) e inferior. O corpo, com suas inclinações e paixões, contamina a pureza da alma racional, impedindo-a de contemplar as idéias perfeitas e eternas. Como nossos sentidos estão ligados ao corpo, não são totalmente confiáveis. Confiável é a alma imortal, onde existe a morada da razão. E porque a alma não é material, ela pode ter acesso ao mundo das idéias. (GALLO, 1999, p. 17-18).
De acordo com Platão, o conhecimento evolui por etapas, das quais a primeira é a “opinião” (doxa), ainda dominada pelas impressões sensíveis derivadas dos sentidos. Para atingir o conhecimento autêntico (epistéme) há que se recorrer a um método: a dialética, que é a contraposição de uma opinião com sua crítica, ou seja, “... afirmação de uma tese qualquer seguida de uma discussão e negação desta tese, com o objetivo de purificá-la dos erros e equívocos” (COTRIM, 1996, p. 107). Platão desenvolveu seu método recorrendo a “diálogos”, em vez de permanecer na pura conversa. Em seus “diálogos”, personagens conversam, debatendo e defendendo idéias diferentes, dialeticamente, de forma que os erros ou imprecisões de um argumento são contestados por outro argumento, o que conduz à busca de um argumento final mais correto ou, ao menos, mais purificado dos vícios e equívocos.Assim, Platão encabeçou uma postura filosófica que é considerada idealista: as idéias têm primazia sobre a realidade, e estas devem se conformar àquelas, evoluindo de um “mundo sensível” para um “mundo das idéias”, das sombras e ilusão, dos objetos sensíveis e crença para as Idéias e Conceitos. Concluindo a breve visão sobre o início da Filosofia no ocidente, abordemos o último dos “três grandes”. Aristóteles, nascido em Estagira (384-322 a.C.), é considerado o sistematizador primeiro das ciências, inclusive pela divisão em “ciências físicas” e “ciências metafísicas”, ou melhor, ciências “práticas” (ética, retórica, arte...), “produtivas” (referentes aos instrumentos da produção) e “teóricas” (teologia, matemática, ciências naturais...). Contrariamente a seu mestre, Aristóteles afirmava que as idéias não nascem com as pessoas, “... elas não nascem conosco, elas se formam em nós com base nas experiências que temos de vida” (Gallo, 1999, p. 19). Tal postura bem pode ser uma conseqüência de sua própria formação e experiência familiar: Filho de Nicômaco, médico do rei da Macedônia, provavelmente herdou do pai o interesse pelas ciências naturais, que se revelaria posteriormente em sua obra. Aos dezoito anos foi para Atenas e ingressou na Academia de Platão, onde permaneceu cerca de vinte anos, tendo uma atuação crescentemente expressiva. (COTRIM, 1996, p. 110).
Contudo, se as idéias não são inatas na pessoa humana, esta possui uma razão que é inata e que é capaz de ordenar as impressões sensoriais, de forma a propiciar sua classificação em grupos e classes. Esse esforço aristotélico por ordenação vai resultar na elaboração de sua Lógica, onde busca classificar os elementos integrantes do pensamento e que vai instaurar a passagem da sensação (menosprezada por Platão) para o conceito. Aristóteles [...] rejeitava a teoria das idéias de Platão, segundo a qual os dados transmitidos pelos sentidos não passam de distorções, sombras ou ilusões da verdadeira realidade existente no mundo das idéias. Para Aristóteles, a observação da realidade leva-nos à constatação da existência de inúmeros seres individuais, concretos, mutáveis, que são captados pelos sentidos. Partindo dessa realidade, sensorial – empírica – a ciência deve buscar as estruturas essenciais de cada ser. Em outras palavras, a partir da existência do ser, devemos atingir a sua essência, através de um processo de conhecimento que caminharia do individual e específico para o universal e genérico. (COTRIM, 1999, p. 111-112. Grifos do autor).
Em busca desse conhecimento mais confiável, da construção de uma ciência, enfim, Aristóteles afirmava que o ser individual não poderia ser objeto de ciência, mas apenas o universal, generalizável.
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Esse conhecimento generalizável, que comportaria a estrutura essencial de um determinado ser é o conceito. Da essência deve se distinguir o que é não essencial – portanto, o que é atributo circunstancial: o acidente. A partir dessa proposição, então, Aristóteles vai desenvolver seu pensamento, indicando os elementos constitutivos do pensamento; as noções de ato e potência, para explicar as transformações observadas na natureza; os princípios que devem reger o pensamento; a causalidade como explicação para a passagem da potência ao ato. Esquematizando sinteticamente: 1. Taxionomia: divisão da “ciência” – conhecimento – em Física / Metafísica; ciências “práticas”, “produtivas” e “teóricas”. 2. Lógica (elementos do pensamento: conceito, juízo e raciocínio; extensão e compreensão) a. Conceito: designação do ser (nome). Quanto á extensão pode ser: i. Universal: quando se refere à totalidade de um conjunto de seres da mesma espécie – gênero. ii. Particular: quando se refere a uma parcela de indivíduos de um determinado conjunto de seres. iii. Singular: quando se refere a apenas UM indivíduo. 3. Obs.: a extensão é inversamente proporcional à compreensão, de forma que quanto menos compreensível é um ser maior a extensão de seres a que pode se referir sua definição – quanto menos compreensível for uma designação de um ser, mais predicativos devem-se-lhe acrescentar para que seja conhecido pelo sujeito. b. Juízo: é a relação de dois ou mais conceitos tirando dela uma conclusão lógica, decorrente, pertinente (necessária). O juízo pode ser: i. Dedutivo: que parte de Termos (juízos) gerais ou Universais, atribuindo suas características aos Termos (juízos) singulares (ou particulares) ii. Indutivo: que parte de Termos (juízos) particulares ou singulares e, mediante uma enumeração de predicativos comuns a estes mesmos particulares, generaliza suas propriedades para os Termos (juízos) gerais ou Universais. 4. Transformação: passagem da potência e ato, sendo entendida a potência como a capacidade ou qualidade de um ser ainda não manifestada, mas que pode vir a ser, a se atualizar. Ato é o ser em seu estado atual, já realizado. Seres em ato podem conter potencialidades. Uma potencialidade só se atualiza mediante a ação de um ser em ato. 5. Princípios: c. Identidade: o que é, é! d. Não-contradição: nada pode ser e não ser, ao mesmo tempo, e sob o mesmo aspecto. e. Terceiro excluído: de duas afirmações contraditórias, uma é, necessariamente, verdadeira. f. Causalidade: o nada do nada vem; tudo o que existe, enquanto efeito, tem uma causa. 6. Causalidade: g. Material: a “matéria”, aquilo de que é feito um ser. h. Formal: a “essência”, aquilo que é o aparecer, que faz uma coisa ser ela e não outra. i. Eficiente: é o “agente”, a “causa geradora”, transformadora, atualizadora, quem faz. j. Final: é o “fim”, o para que de um ser, a sua razão de ser/existir. Obs.: a causa final é a última na realização, mas a primeira na “intenção”. Essas posturas iniciais de Sócrates, Platão e Aristóteles receberam muitas modificações e críticas por parte dos demais filósofos “pós-socráticos”, mas não se pode deixar de reconhecer que o trabalho intelectual por eles desenvolvido é monumental. Não se pode, atualmente, criticar a ingenuidade de algumas proposições de Aristóteles, sobretudo no que se refere às ciências da natureza, deixando de lado o contexto em que o mesmo se encontrava. É certo, também, que alguns filósofos, como Prado Jr.,
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chegam a atribuir a Aristóteles quase que toda a responsabilidade pelo desenvolvimento de uma ciência, ou melhor, de um conhecimento desconectado da realidade, um conhecimento que se preocupa mais em revestir as coisas por conceitos do que em descobrir, nas próprias coisas, o que elas de fato são – o que poderia ser alcançado por um método dialético. O método dialético, contudo, não é aquele que mais respostas satisfatórias possa oferecer aos problemas do conhecimento, ainda que se caracterize por apontar as contradições da realidade histórico-social e político-econômica em que vivemos. Há linhas de reflexão que interpelam a essência do fenômeno e a intencionalidade da consciência (método fenomenológico), aquelas que buscam um médium adequado para melhor servir à tarefa filosófica (método da análise lingüística), aquelas que buscam uma fidelidade aos fatos a partir da estrutura ou ordem necessária (método estruturalista), e outras.
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Quadro-síntese II - O nascimento da filosofia: Mitos versus Logos “A única coisa de que precisamos para nos tornarmos bons filósofos é a capacidade de nos admirarmos com as coisas.”
Essa observação é repetida, em letras maiúsculas, em uma das primeiras cartas que Sofia encontra em sua casa de correio, no início de O mundo de Sofia, e serve para introduzir a discussão sobre o nascimento da filosofia. O termo filosofia vem do grego: philía, quer dizer amizade; phílos, amigo ou amante; sophia, sabedoria, conhecimento, saber; sophós, sábio. O filósofo seria o amigo da sabedoria; a filosofia indicaria amor ao saber. Hoje há certa segurança em SE afirmar que a filosofia nasceu entre o fim do século VII e o início do século VI a.C., na Grécia Antiga. Nesse momento, mito e religião cedem lugar à razão. Pela comparação dos significados de duas palavras gregas, mýthos e logos, percebe-se o sentido dessa transição. Os mitos eram a explicação para a realidade que os gregos possuíam. A palavra mýthos não tinha, originariamente, o significado de lenda ou fábula que hoje tem. Aos poucos a palavra mýthos vai perdendo o sentido de explicação da realidade e outra palavra vem tomar o seu lugar: logos. Existem centenas de termos registrados em português que terminam com o sufixo logia. Esse sufixo vem do grego logos e tem em português o sentido de “tratado”, “estudo”, “ciência”, “que estuda”, “que trata”. Em grego, quando logos passa a assumir o sentido de explicação da realidade, mýthos passa a significar “fábula”. Mas o que essa discussão filológica tem de interessante para nós? Muito! Essa forma de pensar que nos parece única, natural, normal – a razão, o pensamento racional – surge em certo momento histórico. A razão tem um nascimento, começa a existir, não existiu desde sempre, como forma de explicar a realidade. As reflexões que podemos fazer com base nessa constatação são riquíssimas, e as perguntas, infinitas: se a razão nasce, não poderá também morrer? Não poderá surgir, em algum momento da história da humanidade, outra forma de pensamento que venha substituir o pensamento racional? Podemos explicar tudo por meio da lógica e da ciência? Além da mitologia, não existiriam outras formas de compreender o mundo? A própria mitologia não poderia, ainda hoje, ser fonte de conhecimento? Por que a razão nasce nesse momento histórico específico, a Grécia Antiga? Quais as diferenças entre esse pensamento racional, que começa a se estabelecer na Grécia, e a mitologia? E assim por diante. Para Marshall McLuhan, uma das revoluções que teria acompanhado o surgimento do pensamento racional na Grécia seria o processo de alfabetização: O mito, à semelhança do aforismo e da máxima, é característico da cultura oral, até que a alfabetização privasse a linguagem de sua ressonância multidimensional, cada palavra era em si própria um mundo poético, uma ‘divindade momentânea’, ou uma revelação, como parecia aos homens não-alfabetizados. Na Grécia, uma mentalidade mitopoética é substituída por uma mentalidade teorizante, positiva e abstrata. Determinada forma de inteligência, associada à memória e à audição, é superada por outra, agora apoiada na escrita. Essa nova forma de inteligência, racional, fundará a história, a dialética, o devir e a linearidade. Veremos aqui como isso ocorre e também o que significam essas palavras. Mas que nova forma de inteligência é essa, que surge associada à escrita? Como a comunicação oral exige a presença dos interlocutores, daqueles que falam, o discurso oral é indissociável do momento de sua produção. Ou seja: na situação da comunicação oral, o momento em que ocorre a produção dos discursos (as falas) é essencial e faz parte integrante da própria situação. Não existe comunicação, a não ser naquele instante. Assim, numa sociedade oral e primitiva não é possível haver diálogo ou discurso se não houver pelo menos uma pessoa ouvindo. Assim como na comunicação oral, tanto a teoria quanto a escrita produzem discursos, que são a própria teoria ou o texto escrito. Em ambos os casos, entretanto, esses discursos libertam-se da situação em que são produzidos e passam a ter existência autônoma. Eles não dependem mais do momento em que foram produzidos. Podem ser, até mesmo, criados aos poucos, em momentos diversos. Pode existir comunicação na leitura de um texto escrito, por exemplo, sem que o escritor esteja presente. Pode-se estudar uma teoria sem que seu autor esteja à nossa frente. A escrita e a teoria permitem e geram essa
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desvinculação entre o momento de sua produção e o discurso produzido. A situação de comunicação pode repetir-se indefinidamente, e não é mais necessário que as mesmas pessoas a presenciem, no mesmo local, para que a comunicação se efetive. A necessidade de demonstração por meio da teoria toma, paulatinamente, na Grécia, o lugar do poder de revelação dos mitos. Como afirma Châtelet, “o dizer invocativo ou mesmo simplesmente declarativo da poesia e da religião é cada vez mais vivamente colocado em questão pela tentativa filosófica de demonstração”. Essa necessidade de demonstração e de linearidade pode ser associada à escrita, enquanto na cultura oral a noção de tempo circular e de eterno retorno era essencial, já que qualquer proposição que não fosse periodicamente retomada e repetida em voz alta estava condenada a desaparecer. Pierre Lévy traça uma interessante relação entre a agricultura e a escrita...: [...] Caçando ou colhendo, obtêm-se imediatamente as presas ou colheitas desejadas. O fracasso e o sucesso são decididos na hora. A agricultura, pelo contrário, pressupõe uma organização pensada no tempo delimitado, todo um sistema do atraso, uma especulação sobre as estações. Da mesma forma, a escrita, ao intercalar um intervalo de tempo entre a emissão e a recepção da mensagem, instaura a comunicação diferida, com todos os riscos de mal-entendidos, de perdas e erros que isto implica. A escrita aposta no tempo.
[...] A questão da continuidade ou descontinuidade entre mito e filosofia gera ainda hoje polêmica. Percebe-se que nascem na Grécia Antiga um espírito de observação e um poder de raciocínio inexistentes nas civilizações anteriores. As noções de experiência e razão teriam surgido com a civilização grega. E, conseqüentemente, também os fundamentos de boa parte do pensamento ocidental. Junto com a filosofia nasce e desenvolve-se espantosamente a ciência teórica. Mas não se sabe ainda, com certeza, quanto de originalidade quanto de herança do Oriente a filosofia grega possui. Muitos afirmam que a filosofia grega, na verdade, formou-se pela mescla de idéias vindas do Oriente. Antes dos gregos existiram povos como os egípcios, sumérios, babilônios, assírios, caldeus, persas, hebreus, hititas, hegeus, lídios e fenícios. Todas as religiões e mitos orientais anteriores aos gregos possuem beleza e riqueza indescritíveis, além de que observamos inúmeros pontos de contato entre a filosofia grega e essas religiões e mitos orientais. Afinal, seria a filosofia invenção grega ou herança bárbara? Milagre grego ou tradição oriental? De outro lado, podemos questionar até que ponto essa ruptura mýthos/logos representa, realmente, a passagem de um estado para outro. Até que ponto não temos aqui simples gradação, mudança quase imperceptível de perspectiva? Até que ponto a filosofia realmente supera a filosofia. [...] Na Grécia Antiga, a uma explicação do mundo por meio da religião e dos mitos é contraposta uma nova forma de explicação, de lidar com a admiração com as coisas. A observação da realidade e a estruturação do pensamento e da linguagem passam a ser mais importantes do que a genealogia dos deuses. Marilena Chauí ilustra muito bem esses movimentos de transição e ruptura ao diferenciar os conceitos de teogonia, cosmogonia, e cosmologia.
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Quadro síntese III - Elementos do pensamento Na busca pela verdade, os primeiros filósofos procuraram o estabelecimento de normas que pudessem garantir uma validade para a atividade investigativa do pensamento. Aristóteles foi o primeiro a se colocar o problema e a intentar uma busca de solução. O caminho encontrado chamou-se “Lógica”, que consiste em uma área de investigação que tem por centro os elementos e regras que o pensamento possui e segue, a fim de encontrar conclusões que sejam universalmente válidas. A Lógica postula que o pensamento se estrutura a partir de três elementos básicos: Conceito: que seria um termo designativo da identidade de um ser ou ente – algo como um “nome”. Juízo: é uma operação mental que consiste na relação de dois conceitos, afirmando ou negando a identidade entre eles; Raciocínio: é uma outra operação mental que consiste, porém, na relação de dois ou mais juízos, tirando deles uma conclusão pertinente. A Lógica postula, igualmente, que o Conceito pode ser considerado quanto à sua “extensão”, isto é, quanto à quantidade de indivíduos ou seres da mesma espécie ele que ele envolver, da seguinte forma: Universal: quando diz respeito a todos os indivíduos de uma mesma espécie, sem exceção; faz uso das expressões “todos”, “nenhum”, ou outro termo coletivo; Particular: quando diz respeito a uma parcela de uma totalidade ou universalidade de indivíduos de uma mesma espécie; faz uso das expressões “alguns”, “parte”, ou outro termo semelhante que indique subdivisão, partição; Singular: quando diz respeito a um único indivíduo, seja de que espécie ou categoria for; faz uso de expressões como “este”, “um”, ou outros termos individualizantes. A Lógica, aponta, ainda, para a formação dos raciocínios, indicando três forma de sua constituição:
Dedutivamente: quando o desenvolvimento do raciocínio parte de conceitos universais, generalizando suas atribuições para conceitos particulares ou singulares; Indutivamente: quando o desenvolvimento do raciocínio parte de atribuições pertinentes a vários singulares ou particulares, buscando uma ampliação ou aplicação à totalidade da espécie ou categoria pretendida; Transdutivamente: quando se busca atribuir qualificativos de um conceito para outro, sendo que ambos são da mesma extensão. A estrutura geral mediante a qual os raciocínios se desenvolvem consta de três assertivas: duas premissas e uma conclusão, derivada das premissas. As premissas contêm conceitos que recebem o nome de “termos”, e os termos dizem-se “maiores”, “médios”, ou “menores” conforme sua disposição na estrutura dos raciocínios. Necessariamente, o MAIOR aparece na primeira premissa e na conclusão, o médio nas duas premissas, estabelecendo ligação entre elas (mediando, daí termo médio), e a menor na segunda premissa e na conclusão, segundo o seguinte esquema: Mm mm mM
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Proposição é a elaboração de cada premissa, e argumento é a elaboração de raciocínios. Para que as conclusões sejam válidas, os termos devem ser tomados sempre na mesma acepção e na mesma extensão. Em caso contrário, estaremos elaborando um sofisma, que é um argumento com aparência de verdade, mas que esconde uma não-verdade (falácia, por exemplo, que é quando a conclusão extrapola o conteúdo das premissas).
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II - FILOSOFIA MEDIEVAL
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A filosofia medieval - Patrística e Escolástica Extraído de DURANT, W. De Aristóteles à Renascença. In: __________. A História da Filosofia. Trad. Luiz Carlos do Nascimento Silva. Rio de Janeiro: Nova Cultural, 1996, p. 109-117. (Col. Os Pensadores) Quando Esparta bloqueou e derrotou Atenas em fins do século V a.C., a supremacia política saiu das mãos da mãe da filosofia e da arte gregas, e o vigor da independência ateniense decaíram. Quando, em 399 a.C., Sócrates foi executado, a alma de Atenas morreu com ele, sobrevivendo apenas em seu orgulhosos discípulo, Platão. E quando Filipe da Macedônia derrotou os atenienses em Queronéia em 338 a.C. e Alexandre incendiou a grande cidade de Tebas por completo três anos depois, nem mesmo o fato de a casa de Píndaro ter sido ostensivamente poupada conseguiu encobrir a realidade de que a independência ateniense, no que se referia a governo e pensamento, estava destruída de maneira irrevogável. O domínio da filosofia grega pelo macedônio Aristóteles refletia a sujeição política da Grécia pelos povos viris e mais jovens do norte. A morte de Alexandre (323 a.C.) acelerou esse processo de decadência. O menino-imperador, ainda que continuasse bárbaro depois de toda educação recebida de Aristóteles, havia aprendido a reverenciar a rica cultura da Grécia e sonhara em divulgar essa cultura pelo Oriente, na onda de seus exércitos vitoriosos. O desenvolvimento do comércio grego e a multiplicação dos postos de comercialização gregos por toda a Ásia Menor haviam proporcionado uma base econômica para a unificação daquela região que, a partir daqueles movimentados postos, tanto o pensamento grego como os produtos gregos fossem irradiar-se e conquistar o mundo. Mas ele subestimara a inércia e a resistência da mentalidade oriental, e a massa e a profundidade da cultura oriental. Não passava de um sonho juvenil, afinal, supor que uma civilização imatura e instável quanto a da Grécia pudesse ser imposta a uma civilização incomensuravelmente mais difundida e enraizada nas mais veneráveis tradições. A quantidade da Ásia mostrou-se demasiada para a qualidade da Grécia. O próprio Alexandre, na hora de seu triunfo, foi conquistado pela alma do Oriente; casou-se (dentre várias damas) com a filha de Dario; adotou o diadema e o manto de fala persas; introduziu na Europa a idéia oriental do divino direito dos reis; e por fim assombrou uma Grécia cética ao anunciar, num magnífico estilo oriental, que ele era um deus. A Grécia caiu na gargalhada; e Alexandre bebeu até morrer. Essa sutil infusão da alma asiática no corpo fatigado do senhor dos gregos foi seguida rapidamente da abundante entrada de cultos e fés orientais na Grécia, pelas mesmas linhas de comunicação que o jovem conquistador havia aberto; os diques rompidos deixaram o oceano do pensamento ocidental inundar as terras baixas da ainda adolescente mente européia. As crenças místicas e supersticiosas que haviam adquirido raízes entre os povos mais pobres de Hélade foram reforçadas e divulgadas; e o espírito oriental de apatia e resignação encontrou um solo pronto na Grécia decadente e abatida. A introdução da filosofia estóica em Atenas, pelo mercador fenício Zenon (cerca de 310 a.C.), foi apenas uma das inúmeras infiltrações orientais. Tanto o estoicismo como o epicurismo – a apática aceitação da derrota e o esforço para esquecer a derrota nos braços do prazer – eram teorias sobre como o indivíduo ainda poderia ser feliz, embora subjugado ou escravizado; precisamente como o pessimista estoicismo oriental de Schopenhauer e o desalentado epicurismo de Renan foram, no século XIX, os símbolos de uma Revolução despedaçada e uma França quebrada. Não que essas antíteses naturais da teoria ética fossem de todo novas para a Grécia. Nós as encontramos no sombrio Heráclito e no “filósofo que ri”, Demócrito; e vemos os discípulos de Sócrates dividindo-se em cínicos e cirenaicos sob a chefia de Antístienes e Aristipo e exaltando, uma escola, a apatia, e a outra, a felicidade. No entanto, mesmo naquela época tratava-se de modos quase exóticos de pensamento: a Atenas imperial não aderiu a eles. Mas quando a Grécia havia visto Queronéia em sangue e Tebas em cinzas, passou a ouvir Diógenes; e quando a glória havia partido de Atenas, ela estava no ponto para Zenon e Epicuro.
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Zenon ergueu sua filosofia da apatheia sobre um determinismo que um estóico posterior, Crisipo, achou difícil distinguir do fatalismo oriental. Quando Zenon, que não acreditava na escravidão, estava batendo num escravo seu por causa de algum delito, o escravo alegou como atenuante que, segundo a filosofia de seu senhor, ele tinha sido destinado, por toda a eternidade, a cometer aquela falta; ao que Zenon replicou, com a calma de um sábio, que, de acordo com a mesma filosofia, ele, Zenon, tinha sido destinado a bater nele por causa dela. Assim como Schopenhauer achava inútil a vontade individual lutar contra a vontade universal, os estóicos alegavam que a indiferença filosófica era a única atitude razoável para com uma vida na qual a luta pela existência está tão injustamente condenada a uma derrota inevitável. Se a vitória for inteiramente impossível, deve ser desdenhada. O segredo da paz não é tornar nossas realizações iguais aos nossos desejos, mas baixar nossos desejos ao nível de nossas realizações. “Se o que você possui lhe parece insuficiente”, disse o estóico romano Sêneca (m. 65 d.C.), “então, mesmo que você possua o mundo, irá sentir infeliz.” Um princípio desses bradava aos céus pelo seu oposto, e Epicuro, embora tão estóico em vida quanto Zenon, forneceu-o Epicuro, diz Fenelon, “comprou um belo jardim, que ele mesmo cultivava. Foi lá que instalou sua escola, e ali vivia uma vida tranqüila e agradável com seus discípulos, aos quais ensinava enquanto andava e trabalhava. (...) Era delicado e afável com todos os homens... Afirmava que nada havia de mais nobre do que uma pessoa dedicar-se à filosofia”. Seu ponto de partida é uma convicção de que a apatia é impossível, e que o prazer – embora não necessariamente o prazer sensual – é a única finalidade concebível, e perfeitamente legítima, da vida e da atividade. “A natureza faz com que cada organismo prefira o seu próprio bem a qualquer outro”; até mesmo o estóico sente um prazer sutil na renúncia. “Não devemos evitar os prazeres, mas selecioná-los.” Epicuro, então, não é epicurista; ele exalta os prazeres do intelecto, mais do que os dos sentidos; previne contra os prazeres que excitem e disturbem a alma, à qual, ao contrário, deveriam acalmar e tranqüilizar. No fim, propõe que se procure não o prazer no seu sentido usual, mas a ataraxia – tranqüilidade, equanimidade, a paz do espírito; todos os quais oscilam à beira da “apatia” de Zenon. Os romanos, quando foram saquear Heléia em 146 a.C., encontraram essas escolas rivais dividindo o campo filosófico; e, sem terem tempo nem sutileza para especulações, levaram de volta para Roma essas filosofias, juntamente com outros produtos do seu saque. Os grandes organizadores, tanto quanto os escravos inevitáveis, tendem a estados de espírito estóicos: é difícil ser senhor ou servo se a pessoa for sensível. Por isso, a filosofia que Roma adotava era, em sua maioria, da escola de Zenon, seja em Marco Aurélio, o imperador, ou em Epíteto, o escravo; e até Lucrécio difundia estoicamente o epicurismo (como o inglês de Heine, divertindo-se melancolicamente), e concluiu sua vigorosa pregação do prazer cometendo suicídio. Sua nobre epopéia, Sobre a Natureza das Coisas, acompanha Epicuro em condenar o prazer ao elogiá-lo sem entusiasmo. Quase contemporâneo de César e Pompéia, ele viveu em meio a torvelinhos e alarmes; sua pena nervosa está eternamente compondo orações à tranqüilidade e à paz. Nós o imaginamos como uma alma tímida cuja juventude havia sido obscurecida por temores religiosos; porque ele nunca se cansa de dizer a seus leitores que não existe inferno, exceto aqui, e que não existem deuses, exceto deuses cavalheirescos, que vivem em um jardim de Epicuro nas nuvens e nunca se intrometem nos negócios dos homens. Ao crescente culto do céu e do inferno entre o povo de Roma, ele põe um materialismo implacável. Alma e mente desenvolvem-se com o corpo, crescem com o seu crescimento, sofrem com seus sofrimentos, e morrem com a sua morte. Nada existe a não ser átomos, espaço e lei, e a lei das leis é a da evolução e da dissolução em toda parte (...). [...] À evolução e à dissolução a astronômicas, acrescentem a origem a eliminação das espécies. [...] Também as nações, como os indivíduos, crescem lentamente e, com toda certeza, morrem: “algumas nações prosperam, outras decaem, e em pouco tempo as raças das coisas vivas são alteradas e, como corredores, passam adiante a lâmpada da vida.” Diante da guerra e da morte inevitável, não há sabedoria a não ser na ataraxia – “encarar todas as coisas com serenidade de espírito”. Aqui, evidente-
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mente, toda a velha alegria pagã de viver desapareceu, e um espírito quase exótico toda uma lira quebrada. A história, que nada é a não ser humorista, nunca foi tão brincalhona como quando deu a esse abstêmio e épico pessimista o nome de epicurista. E se for este o espírito do adepto de Epicuro, imaginem o inebriante otimismo de estóicos declarados domo Aurélio ou Epíteto. Nada, em toda a literatura, é tão deprimente quanto as Dissertações do escravo, a menos que se trate das Meditações do imperador. “Não procure fazer com que as coisas aconteçam segundo a sua preferência, mas prefira que elas aconteçam como têm de acontecer, e assim viverá com prosperidade.” Não há dúvida de que é possível assim, ditar o futuro e fingir que dominamos o universo. Segundo consta o senhor de Epíteto, que o tratava com uma crueldade inalterável, certo dia decidiu torcer-lhe a perna para passar o tempo. “Se continuar”, disse epíteto com calma, “vai quebrar a minha perna.” O senhor continuou, e a perna se quebrou. “Eu não lhe disse”, observou Epíteto mansamente, “que o senhor iria quebrar a minha perna?” No entanto, há uma certa nobilidade mística nessa filosofia, como na tranqüila coragem de um pacifista dostoievskiano. “Nunca diga, de qualquer modo, ‘perdi isso assim, assim’; e sim, ‘eu restituí tal coisa’. Tua filha morreu? Foi restituída. Tua mulher morreu? Foi restituída. Perdeste os teus bens? Também não foram restituídos?” Em trechos assim, sentimos a proximidade do cristianismo e seus intrépidos mártires; de fato, não eram a ética crista da abnegação, o ideal político de uma fraternidade quase comunista do homem, e a escatologia cristã da conflagração final do mundo inteiro, fragmentos da doutrina estóica flutuando na corrente do pensamento? Em Epíteto, a alma grego-romana perdeu o seu paganismo e está pronta para uma nova fé. Seu livro teve a distinção de ser adotado como manual religioso pela primitiva Igreja Cristã. Dessas Dissertações e das Meditações de Aurélio há apenas um passo para A Imitação de Cristo. Enquanto isso, o ambiente histórico derretia-se para formar cenas mais novas.. Há um notável trecho em Lucrécio que descreve a decadência da agricultura no Estado romano e a atribui à exaustão do solo. Seja qual for a causa, a riqueza de Toma transformou-se em pobreza, a organização em desintegração, o poder e o orgulho em decadência e apatia. Cidades voltaram a fundir-se com o interior sem distinção; as estradas ficaram sem manutenção e há não ecoavam (sic) a agitação do comércio; as pequenas famílias dos romanos de instrução eram ultrapassadas, em número, pelos vigorosos alemães sem instrução que cruzavam, ano após ano, a fronteira; a cultura pagã cedeu aos cultos orientais; e quase que imperceptivelmente, o império se transformou em papado. A Igreja, apoiada nos primeiros séculos pelos imperadores cujos poderes ela absorveu aos poucos, teve um aumento rápido no aumento de adeptos, na riqueza e no raio de influência. No século XIII, já possuía um terço do solo da Europa, e seus cofres estavam inchados com donativos de ricos e pobres. Durante mil anos, ela uniu, com a magia de uma crença invariável, a maior parte dos povos de um continente; nunca houve, antes ou depois, uma organização tão difundida e tão pacífica. Mas essa unidade exigia, como pensava a Igreja, uma fé comum exaltada por sanções sobrenaturais acima das mudanças e das corrosões do tempo; portanto, o dogma, definitivo e definido, foi colocado como uma concha sobre a mentalidade adolescente da Europa medieval. Era dentro dessa concha que a filosofia escolástica se deslocava acanhadamente entre fé e razão e vice-versa, num desconcertante circuito de pressupostos não criticados e conclusões pré-ordenadas. No século XIII, toda a cristandade ficou assustada e estimulada por traduções árabes e judaicas de Aristóteles; mas o poder da Igreja ainda era suficiente para garantir, através de Tomás de Aquino e outros, a transformação de Aristóteles em um teólogo medieval. O resultado foi a sutileza, mas não a sabedoria. “A inteligência e a mentalidade do homem”, como disse Bacon, “se trabalharem com a matéria, trabalham segundo a substância desta e por ela ficarão limitados; mas se trabalharem consigo mesmo, serão intermináveis e produzirão realmente teias de saber, admiráveis pela delicadeza do fio e do trabalho, mas sem substância ou proveito.” Mais cedo ou mais tarde, o intelecto da Europa iria irromper de dentro dessa concha. Depois de mil anos de cultivo, o solo voltou a florescer; os bens se multiplicaram, criando excedentes que levaram ao comércio; e o comércio em suas encruzilhadas voltou a construir grandes cidades nas quais os homens podiam cooperar para estimular a cultura e reconstruir a civilização. As Cruzadas
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abriram os caminhos para o Oriente e permitiram a entrada de uma torrente de artigos de luxo e heresias que condenaram à morte o ascetismo e o dogma. O papel, agora, chegava barato do Egito, substituindo o caro pergaminho que tornara o saber um monopólio dos sacerdotes; a imprensa, que durante muito tempo esperara por um meio barato, estourou como um explosivo libertado e espalhou sua influência destruidora e esclarecedora por toda parte. Bravos navegantes, armados agora de bússolas, aventuraram-se na imensidão dos mares e conquistaram a ignorância do homem a respeito da Terra; observadores pacientes, armados de telescópios, aventuraram-se para além dos confins do dogma e conquistaram a ignorância do homem quanto ao céu. Aqui e ali, em universidades, mosteiros e retiros escondidos, homens deixaram de disputar e começaram a investigar; por via indireta, graças aos esforços no sentido de transformar metais inferiores em outro, a alquimia foi transformada em química; da astrologia, os homens foram tateando com tímida ousada para a astronomia; e das fábulas dos animais que falavam veio a ciência da zoologia. O despertar começou com Roger Bacon (m. 1294); aumentou com o ilimitado Leonardo (1452-1519); alcançou sua plenitude na astronomia de Copérnico (1473-1543) e Galileu (15641642), nas pesquisas de Gilbert (1544-1603) sobre magnetismo e eletricidades, de Vesálio (1514-1564) em anatomia, e de Harvey (1578-1657) sobre a circulação do sangue. À medida que aumentava o conhecimento, diminuía o medo; os homens pensavam menos em adorar o desconhecido, e mais em dominálo. Todo espírito vital foi estimulado por uma nova confiança; barreiras foram derrubadas; não havia limites, agora, para o que o homem poderia fazer. “O fato de pequenos navios, como os corpos celestes, navegarem à volta do mundo inteiro, é a felicidade da nossa era. Esta época pode usar, com toda justiça , plus ultra” (mais além) “onde os antigos usavam non plus ultra.” Foi uma era de realizações, esperança e vigor; de novos começos e empreendimentos em todos os campos; uma era que esperava por uma voz, uma alma sintética para resumir o seu espírito e decidir. Foi Francis Bacon, “a mais poderosa inteligência dos tempos modernos”, que tocou a sineta que reuniu as inteligências” e anunciou que a Europa havia atingido a maioridade.
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Os principais períodos da filosofia Extraído de CHAUÍ, Marilena. Os Principais períodos da Filosofia. In: __________. Convite à Filosofia. São Paulo: Editora Ática, 1997, p. 44-46. Filosofia antiga (do século VI a.C. ao século VI d.C.) Filosofia patrística (do século I ao século VII) Inicia-se com as epístolas de São Paulo e o Evangelho de São João e termina no século VIII, quando teve início a Filosofia medieval. A Patrística resultou do esforço feito pelos dois apóstolos intelectuais (Paulo e João) e pelos primeiros Padres da Igreja para conciliar a nova religião – o Cristianismo – com o pensamento filosófico dos gregos e romanos, pois somente com tal conciliação seria possível convencer os pagãos da nova verdade e convertê-los a ela. A Filosofia patrística liga-se, portanto, à tarefa religiosa da evangelização e à defesa da religião cristã contra os ataques teóricos e morais que recebia dos antigos. Divide-se em patrística grega (ligada à Igreja de Bizâncio) e patrística latina (ligada à Igreja de Roma) e seus nomes mais importantes foram: Justino, Tertuliano, Atenágoras, Orígenes, Clemente, Eusébio, Santo Ambrósio, São Gregório Nazianzo, São João Crisóstomo, Isidoro de Sevilha, Santo Agostinho, Beda e Boécio. A patrística foi obrigada a introduzir idéias desconhecidas para os filósofos grego-romanos: a idéia de criação do mundo, de pecado original, de Deus como trindade una, de encarnação e morte de Deus, de juízo final ou de fim dos tempos e ressureição (sic) dos mortos, etc. Precisou também explicar como o mal pode existir no mundo, já que tudo foi criado por Deus, que é pura perfeição e bondade. Introduziu, sobretudo com Santo Agostinho e Boécio, a idéia de “homem interior”, isto é, da consciência moral e do livre-arbítrio, pelo qual o homem se torna responsável pela existência do mal no mundo. Para impor as idéias cristãs, os Padres da Igreja as transformaram em verdades reveladas por Deus (através da Bíblia e dos santos) que, por serem decretos divinos, seriam dogmas, isto é, irrefutáveis e inquestionáveis. Com isso, surge uma distinção, desconhecida pelos antigos, entre verdades reveladas ou da fé e verdades da razão ou humanas, isto é, entre verdades sobrenaturais e verdades naturais, as primeiras introduzindo a noção de conhecimento recebido por uma graça divina, superior ao simples conhecimento racional. Dessa forma, o grande tema de toda a Filosofia patrística é o da possibilidade ou impossibilidade de conciliar razão e fé, e, a esse respeito, havia três posições principais: 1. Os que julgavam fé e razão irreconciliáveis e a fé superior à razão (diziam eles; “Creio porque absurdo.”). 2. Os que julgavam fé e razão conciliáveis, mas subordinavam a razão à fé (diziam eles: “Creio para compreender.”). 3. Os que julgavam razão e fé irreconciliáveis, mas afirmavam que cada uma delas tem seu campo próprio de conhecimento e não devem misturar-se (a razão se refere a tudo o que concerne à vida temporal do homens no mundo; a fé, a tudo o que se refere à salvação da alma e à vida eterna futura). Filosofia medieval (do século VIII ao século XIV) Abrange pensadores europeus, árabes e judeus. É o período em que a Igreja Romana dominava a Europa, ungia e coroava reis, organizava Cruzadas à Terra Santa e criava, à volta das catedrais, as primeiras universidades ou escolas. E, a partir do século XII, por ter sido ensinada nas escolas, a Filosofia medieval também é conhecida com o nome de Escolástica. A Filosofia medieval teve como influências principais Platão e Aristóteles, embora o Platão que os medievais conhecessem fosse o neoplatonismo (vindo da Filosofia de Plotino, do século VI d.C.), e o
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Aristóteles que conhecessem fosse aquele conservado e traduzido pelos árabes, particularmente Avicena e Averróis. Conservando e discutindo os mesmos problemas que a patrística, a Filosofia medieval acrescentou outros – particularmente um, conhecido com o nome de Problema dos Universais – e, além de Platão e Aristóteles, sofreu uma grande influência das idéias de Santo Agostinho. Durante esse período surge propriamente a Filosofia cristã, que é, na verdade, a teologia. Um de seus temais mais constantes são as provas da existência de Deus e da alma, isto é, demonstrações racionais da existência do infinito criador e do espírito humano imortal. A diferença e separação entre infinito (Deus) e finito (homem, mundo), a diferença entre razão e fé(a primeira deve subordinar-se à segunda), a diferença e separação entre corpo (matéria) e alma (espírito), o Universo como uma hierarquia de seres, onde os superiores dominam e governam os inferiores (Deus, arcanjos, anjos, alma, corpo, animais, vegetais, minerais), a subordinação do poder temporal dos reis e barões ao poder espiritual de papas e bispos: eis os grandes temas da Filosofia medieval. Outra característica marcante da Escolástica foi o método por ela inventado para expor as idéias filosóficas, conhecido como disputa: apresentava-se uma tese e esta devia ser ou refutada ou defendida por argumentos tirados da Bíblia, de Aristóteles, de Platão ou de outros Padres da Igreja. Assim, uma idéia era considerada uma tese verdadeira ou falsa dependendo da força e da qualidade dos argumentos encontrados nos vários autores. Por cauda desse método de disputa – teses, refutações, defesas, respostas, conclusões baseadas em escritos de outros autores –, costuma-se dizer que, na Idade Média, o pensamento estava subordinado ao princípio da autoridade, isto é, uma idéia é considerada verdadeira se for baseada nos argumentos de uma autoridade reconhecida (Bíblia, Platão, Aristóteles, um papa, um santo). Os teólogos medievais mais importantes foram: Abelardo, Duns Scoto, Escoto Erígena, Santo Anselmo, Santo Tomás de Aquino, Santo Alberto Magno, Guilherme de Ockham, Roger Bacon, São Boaventura. Do lado árabe: Avicena, Averróis, Alfarabi e Algazáli. Do lado judaico: Maimônedes, Nahmanides, Yeudah ben Levi.
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III - A FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA
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O Renascimento O Renascimento, assim como a Idade Média, não pode ser tomado como um momento histórico uno e claramente demarcado. O nominalismo medieval, por exemplo, tem sido destacado como essencial para o espírito naturalista e científico do Renascimento. A civilização sarracena e bizantina (cujos monges e sábios trazem seus manuscritos helênicos para o Ocidente após a tomada de Constantinopla pelos turcos, renovando assim o interesse pelos estudos clássicos nos mosteiros e nas catedrais), o desenvolvimento do comércio, o crescimento das cidades, as universidade e suas bibliotecas, o surgimento da impressão tipográfica, entre outros fatos em geral tidos como determinantes do espírito renascentista, anunciam-se todos na segunda parte da Idade Média. A utilização do papel como substituto do pergaminho pode ser destacada como uma das mais importantes inovações do Renascimento: A introdução e a vulgarização do papel na Europa decidiu os destinos da nossa civilização porque ele vinha responder às necessidades que todos sentiam de um material barato, praticamente inesgotável, capaz de substituir com infinitas vantagens o preciosos pergaminho. A “democratização” da cultura é, antes de mais nada, o resultado dessas substituições: pode-se dizer que, sem o papel, o humanismo não teria exercido a sua enorme influência. Toda a fisionomia de um mundo estaria, então, completamente mudada.
Podemos afirmar que, com o Renascimento, o homem volta a ocupar o lugar central do pensamento. Por isso podemos falar em humanismo renascentista. O homem prático (artistas e artesãos) predomina sobre os homens meditativos. Os filósofos são menos importantes nesse período: “A impressão comum de que a Renascença representa em todos os campos nítido progresso em relação à Idade Média não corresponde rigorosamente à verdade. Tal não se deu, em especial, no campo da filosofia”. Podemos, de qualquer maneira, distinguir algumas correntes filosóficas no Renascimento: o neoplatonismo (principalmente com Marcílio Ficino), os averroístas (que liam Aristóteles como um filósofo naturalista), os sábios ou cientistas (cujo modelo é o grego Arquimedes, 287-212 a.C., considerado o maior matemático da Antigüidade), os moralistas e os políticos (cujo expoente é Maquiavel ...). Mas nenhuma dessas correntes filosóficas pode ser comparada à importância do progresso na anatomia e na medicina após a Idade Média; ao espírito geral panteísta do Renascimento; ao novo método científico e empírico de livre exame que se impõe a partir desse momento; à substituição da visão geocêntrica pela visão heliocêntrica (aperfeiçoada por Kepler); às obras de Isaac Newton; à Reforma protestante associada a interesses comerciais, com Lutero, na Alemanha, Calvino, na Suíça, Henrique VIII, na Inglaterra, e John Knox, na Escócia (o que, com a proliferação de diferentes seitas contrárias ao cristianismo, acabou contribuindo para um clima de maior tolerância religiosa e individualismo); à Contra-Reforma católica e ao Concílio de Trento; à importância dos jesuítas como propagadores da fé fora da Europa; às barbaridades da Inquisição e à resistência ao progresso da ciência e à própria razão; à Revolução Comercial, ao mercantilismo e aos descobrimentos marítimos; ao espírito nacionalista do Renascimento, precursor do Absolutismo; ao surgimento das línguas nacionais em substituição ao latim; ao Humanismo de Erasmo de Roterdã; à incrível personalidade de Leonardo da Vinci; às descobertas de Galileu Galilei; ao pensamento exzperimental e científico de Francis Bacon; ao desenvolvimento das artes (principalmente na pintura, escultura e música); aos franceses Rabelais e Montaigne; ao Dom Quixote, de Cervantes; à Utopia, de Thomas More; à extensa e maravilhosa obra de Shakespeare etc. O Renascimento é, curiosamente, o movimento essencial na história da razão ocidental, mas a filosofia, em seu sentido mais estrito, parece banida de seu desenrolar. E o individualismo, que como veremos começará a delinear-se no discurso filosófico a partir de Descartes e que marcará toda nossa Idade Moderna e Contemporânea, já aparece nas mais diversas manifestações do Renascimento de forma decisiva.
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Os nomes da filosofia moderna e contemporânea As discussões filosóficas a partir do que costumamos chamar de Idade Moderna encontram-se em geral bem mais próximas das necessidades e experiências do homem contemporâneo, em comparação com a filosofia antiga e medieval. Além disso, em grande parte temos conservadas todas as obras produzidas pelos filósofos. (...) Na filosofia, a partir da modernidade, alguns nomes destacam-se tanto, seja pela qualidade e originalidade de sua obra, seja pela importância que adquiriram com o tempo, que se acaba, em geral, traçando a história da filosofia moderna como se ela se caracterizasse como um diálogo entre alguns pensadores. O subtítulo da obra História da Filosofia, de Will Durant, é, nesse sentido, significativo: “Vida e idéias dos grandes filósofos”. Com exceção de Platão e Aristóteles, todos os outros nomes aqui incluídos, desde Francis Bacon, são considerados filósofos modernos ou contemporâneos. Segue apenas um brevíssimo panorama, em que se destacam alguns filósofos e movimentos que serão, em sua maioria, estudados com mais detalhes à frente. René Descartes (1596 – 1650) constitui-se no marco da filosofia moderna. Uma vez que sua ênfase na razão e no mundo sensível, como fontes de conhecimento, determinará todo o futuro da reflexão filosófica, sua teoria do conhecimento será estudada à parte. A matemática é essencial em seu pensamento, assim como a metafísica. Baruch Spinioza, filósofo holandês (1632 – 1677), é outro nome de destaque na história da filosofia moderna. A ética e a metafísica são os traços mais importantes de sua obra. Sua Ética é um dos trabalhos mais influentes na filosofia ocidental. Ela é apresentada como um sistema dedutivo, à maneira de Euclides, geômetra da Grécia Antiga, que viveu no século III a.C. Gottfried Wilhelm Leibniz (1646 – 1716), filósofo e matemático alemão, é outro nome que deve também ser lembrado. Para ele, a mônada seria a substância simples que comporia tanto o mundo espiritual quanto o material. O processo cognitivo, segundo Leibniz, dar-se-ia por meio da memória, da razão e do sentido. Leibniz será essencial no desenvolvimento da lógica, principalmente a lógica simbólica. O empirismo inglês, com John Locke, George Berkeley e David Hume, também será estudado à parte domo modelo essencial da teoria do conhecimento. A filosofia política e ética de Jean-Jacques Rosseau (1712 – 1778), escritor e pensador suíço de língua francesa, merece também ser lembrada, e será estudada em filosofia do direito. O idealismo alemão, principalmente com Immanuel Kant (1724 – 1804) e George Wilhelm Friedrich Hegel (1770 – 1831), será retomado em teoria do conhecimento, pela decisiva importância na discussão da filosofia contemporânea. Outros nomes de destaque no idealismo são Johann Gottlieb Fichte (1762 – 1814 ) e Friedrich Wilhelm Schelling (1775 – 1854). Nome um tanto quanto ímpar na história da filosofia é o do pensador alemão Arthur Schopenhauer (1788 – 1860). Sua filosofia pessimista influenciará sobremaneira, por exemplo, tanto o simbolismo francês quanto a literatura portuguesa. Sua influência sobre o pensamento de Nietzsche é também decisiva. O mundo como vontade e representação é sua obra-prima. O idealismo alemão se desenvolveu no início do século XIX, a partir da filosofia de Kant. O seu fundador é o filósofo Johann Gottleib Fichte (1726 – 1814). Podemos dizer que, para Kant, a condição para o conhecimento é a existência do Eu como princípio da consciência, ou seja, é a existência do sujeito como centro que torna possível o conhecimento. Isso significa que é o sujeito que organiza o conhecimento do objeto. O objeto, por sua vez, se encaixa nos “moles” da percepção humana. Fichte transforma esse Eu de Kant de princípio da consciência em princípio criado, a partir do qual a realidade é concebida. Dessa forma ele funda o idealismo, ou seja, a doutrina segundo a qual a
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realidade objetiva é produto do espírito humano. Fichte se refere às coisas da realidade, ao que é exterior ao homem, como o não-Eu criado pelo Eu. Essa idéia, um tanto estranha para o entendimento comum das pessoas, é desenvolvida por outro pensador alemão Friedrich Schelling (1775 – 1854), que procurou explicar como se dá a existência do mundo real, das coisas, a partir do Eu. Schelling discorda de Fichte, porém, no que se refere à determinação do mundo como puro não-Eu. Ou seja, ele discorda da idéia de Fichte de que a realidade exterior é produto da imaginação do Eu. Schelling afirma a existência de um único princípio, uma Inteligência exterior ao próprio Eu, que nega todas as coisas. Essa inteligência se manifesta de forma visível em todos os níveis da natureza até alcançar seu nível amis alto, isto é, “o homem ou, mais geralmente, o que nós chamamos razão”. O termo positivismo foi adotado por Augusto Comte para designar toda uma diretriz filosófica marcada pelo culto da ciência e pela sacralização do método científico. O positivismo expressa um tom geral de confiança nos benefícios da industrialização, bem como um otimismo em relação ao progresso capitalista, guiado pela técnica e pela ciência. Manifestando-se de modo variado em diversos países ocidentais, a partir da segunda metade do século XIX, o positivismo reflete, no plano filosófico, o entusiasmo burguês pelo progresso capitalista e pelo desenvolvimento técnico-industrial. Embora criticada no plano teórico, é uma doutrina muito influente no plano prático. Um dos temas centrais da obra filosófica de Comte é a necessidade de uma reorganização completa da sociedade. Nessa tarefa, ele próprio pretendeu desempenhar o papel de um reformador universal “encarregado de instituir a ordem de uma maneira soberana”. Mas essa reconstrução da sociedade consistia, para Comte, na regeneração das opiniões (idéias) e dos costumes (ações) dos homens. Tratava-se, portanto, de uma reestruturação intelectual das pessoas e não de uma revolução das instituições sociais, como propunham filósofos socialistas franceses de sua época, como Saint-Simon (1760 – 19825), Fourier (1772 – 1837) e Proudhon (1809 – 1865).
Acreditava ser possível a criação de uma “sociedade-modelo”, tendo AMOR como princípio ORDEM como base PROGRESSO como fim Estados de Desenvolvimento (humano e social), segundo Comte: Estado Teológico FETICHISTA (Culto de objetos materiais, magias, místico) POLITEÍSTA (Presença de vários deuses para explicar e justificar as coisas) MONOTEÍSTA (Um único Deus. Período em que se fazem algumas abstrações) Estado Metafísico Reunião de todas as forças numa só, chamada natureza. Explicação da realidade por abstrações racionais. Autodestrutível, levando a “sociedade” ao terceiro estado, que é o positivo. Estado Positivo CIENTÍFICO (Conhecimento da realidade e das suas explicações através da observação e da experimentação, buscando leis científicas que regem a natureza das causas. Matemática, Astronomia, Física, Química, Biologia, Sociologia. Igreja Positiva
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O termo existencialismo designa o conjunto de tendências filosóficas que, embora divergentes em vários aspectos, têm na existência humana o ponto de partida e o objeto fundamental e reflexões. Por isso, podemos designá-las mais propriamente filosofias da existência, no plural. Se refletirmos sobre o que é existir, veremos que existir implica a relação do homem consigo mesmo, com outros seres humanos, comas coisas e com a natureza. São relações múltiplas, concretas e dinâmicas. E também relações determinadas e indeterminadas, isto é, possíveis de acontecer ou não. Nas diversas definições elaboradas pelos filósofos existencialistas sobre esses temas, encontramos algumas concepções básicas, cujo traço comum é a visão dramática do destino do homem. Ilustrativa dessa visão é a frase do filósofo e escritos francês Albert Camus (1913 – 1960): “a única questão filosófica séria é o suicídio”. Vejamos alguns traços que caracterizam o existencialismo: O ser humano é representado como uma realidade imperfeita, aberta e inacabada, que foi “lançada” ao mundo e vive sob riscos e ameaças. A liberdade humana não é plena, mas condicionada às circunstâncias históricas da existência. Nesse sentido, o querer não se identifica ao poder. O homem age no mundo superando ou não os obstáculos que se lhe apresentam. A vida humana não é um caminho linear em direção ao progresso, ao êxito e ao crescimento. Ao contrário, é marcada por situações de sofrimento, como a doença, a dor, as injustiças, a luta pela sobrevivência, o fracasso, a velhice e a morte. Assim, não podemos ignorar o sofrimento humano, a angústia interior, a exploração social. É preciso considerar esses aspectos adversos da vida e encará-los de frente. Friedrich Nietzsche (1844 – 1900) nasceu em Rocken, uma localidade da Alemanha atual. Filho de um culto pastor protestante, possuía um gênio brilhante, tendo estudado grego, latim, teologia e filosofia. Em 1869, tornou-se professor titular de Filosofia na Basiléia. A partir da leitura de O mundo como vontade e representação, de Schopenhauer, sentiu-se profundamente atraído pelas reflexões filosóficas. Em sua obra, Nietzsche critica a tradição da filosofia ocidental a partir de Sócrates, a quem acusa de ter negado a intuição criadora da filosofia anterior, pré-socrática. Nessa análise, estabelece a distinção entre dois princípios: o apolíneo e o dionisíaco – a partir, respectivamente, de Apolo (deus da razão, da clareza, da ordem) e Dionísio (deus da aventura, da música, da fantasia, da desordem). Para Nietzsche, esses dois princípios ou dimensões complementares da realidade, o apolíneo e o dionisíaco, foram separados na Grécia socrática, que, optando pelo culto à razão, secou a seiva criadora da filosofia, contida na dimensão dionisíaca. Posteriormente, Nietzsche desenvolveu uma crítica intensa dos valores morais, propondo uma nova abordagem: a genealogia da moral, isto é, o estudo da origem e da história dos valores morais. A conclusão de Nietzsche foi de que não existem as noções absolutas de bem e de mal. Para ele as concepções morais surgem com os homens, a partir das necessidades dos homens. Ou seja, são produtos da história humana. Os homens são os verdadeiros criadores dos valores morais, sobretudo as religiões, como o judaísmo e o cristianismo para a civilização ocidental, que impõem muitos desses valores humanos como se fossem produto da “vontade de Deus”. Para o filósofo, grande parte das pessoas adota uma “moral de rebanho”, baseada na submissão irrefletida aos valores dominantes da civilização cristã e burguesa. Ser niilista significa não crer em nenhuma verdade moral ou hierarquia de valores pré-estabelecidos. O niilismo de Nietzsche baseava-se na afirmação da “morte de Deus”, isto é, na rejeição à crença de um ser absoluto, transcendental, capaz de traçar “o caminho, a verdade e a vida” para todo o ser humano. Edmund Husserl nasceu a 8 de abril de 1859, na cidade de Prossenitz, situada na Moravia, região que pertencia ao império austro-húngaro. Estudou matemática e entrou para a filosofia influenciado
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pelo filósofo alemão Franz Brentano (1838 – 1917). Morreu em 1938, aos 79 anos de idade, proibido de lecionar e perseguido pelos nazistas devido a sua origem judaica. Husserl formulou um método de investigação filosófica conhecido como fenomenologia. A fenomenologia husserliana surgiu primeiramente na atmosfera rarefeita da matemática. Depois desenvolveu-se na psicologia e a na filosofia e acabou desembocando nas preocupações humanistas dos filósofos existencialistas contemporâneos. O método fenomenológico consiste, basicamente, na observação e descrição rigorosa do fenômeno, isto é, daquilo que se manifesta, aparece ou se oferece aos sentidos ou à consciência. Dessa maneira, busca-se analisar como se forma, para nós, o campo de nossa experiência, sem que o sujeito ofereça resistência ao fenômeno estudado nem se desvie dele. O sujeito deve, portanto, orientar-se por ele. Nascido em Messkirch, na região de Baden, Alemanha, Martin Heidegger (1889 – 1976) desenvolveu sua formação filosófica na Universidade de Freiburg, onde foi discípulo de Edmund Husserl. Em 1933, ano em que Adolf Hitler se tornou chanceler da Alemanha, Martin Heidegger foi nomeado reitor da Universidade de Freiburg, aderindo formalmente ao Partido Nazista. No discurso que proferiu como reitor, Heidegger anunciou, efusivamente, suas esperanças no nazismo, julgando-o capaz de promover a redenção do povo germânico. Para manter-se coerente com o nazismo, afastou-se do seu antigo amigo Husserl, que era judeu. Não muito tempo depois, talvez por tomar consciência das crescentes atrocidades praticadas pelos nazistas, Heidegger demitiu-se da reitoria da universidade de Freiburg. Durante os anos da Segunda Guerra Mundial, buscou o isolamento em sua casa nas montanhas da Floresta Negra. Até sua morte, manteve raros contatos sociais, relacionando-se apenas com reduzido grupo de amigos. Heidegger sempre negou que fosse um existencialista. Para ele, a questão fundamental da filosofia não é o homem e eim o ser, a essência, não só do homem mas de todas as coisas. Para ele, uma filosofia que colocasse o homem como centro de preocupação seria antes uma antropologia: “a questão que me preocupa não é a existência do homem e sim a questão do ser em seu conjunto e enquanto tal”. Essa sua intenção, no entanto, só ficou clara a partir de 1930, quando publicou Da essência da verdade. A filosofia heideggeriana criticou basicamente a antiga confusão entre ente e ser, ocorrida ao longo de toda a história da filosofia. Para Heidegger, o ente é a existência, o modo de ser do homem. O ser é a essência, aquilo que determina a existência ou o modo de ser do homem. A partir dessa diferenciação é possível estabelecer duas fases da filosofia heideggeriana. Na primeira, ela busca o conhecimento do ser através da análise do ente. Na segunda, o ente é abandonado e o próprio ser torna-se a chave para a compreensão da existência. Nascido em Paris, Jean-Paul Sartre (1905 – 1980) tornou-se o filósofo mais conhecido da corrente existencialista. Grande parte de sua fama deve-se não propriamente à sua obra filosófica, mas às suas peças de teatro e romances, dentre os quais se destacam A náusea, O muro, A idade da razão, O diabo e o bom Deus. Sartre recebeu significativa influência filosófica de Heidegger. Durante os anos da Segunda Guerra Mundial, participou da luta da resistência francesa contra o nazismo. Também aderiu ao marxismo, considerando-o a filosofia de sua época, mas, diante da intervenção soviética na Hungria, em 1956, rompeu com o Partido Comunista, acusando-o de se desviar do sentido autêntico do marxismo. Em 1964 foi agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura, mas se recusou a recebê-lo. Não desejava reconhecer a autoridade dos juízes que lhe ofereceram o prêmio nem aderir a essa instituição. A principal obra filosófica de Sartre é O ser e o nada, publicada em 1939. Nessa obra, ele ataca duramente a teoria aristotélica da potência. Para Sartre, o ser é o que é. Trata-se, na linguagem sartriana, do ente em si. Esse ente “não é ativo nem passivo, nem afirmação nem negação, mas simplesmente repousa em si, maciço e rígido”.
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Mas, além do ente-em-si, Sartre concebe a existência do ser especificamente humano, denominando-so ente para-si. O ente para-si específico do homem se opõe ao ente em-si, que representa a plenitude do ser. Portanto, para Sartre, a característica tipicamente humana é o nada: um “espaço aberto”. Esse nada, próprio da existência, faz do homem um ente não-estático, não-compacto, acessível às possibilidades de mudança. Se o homem fosse um ser cheio, total, pleno, com uma essência definida, ele não poderia ter nem consciência, nem liberdade. Primeiro, porque a consciência é um espaço aberto a múltiplos conteúdos. Segundo, porque a liberdade representa a possibilidade de escolha. Por intermédio dela, o homem revela suas aspirações por algo que ele ainda não é. Assim, para Sartre, se o homem não expressasse esse “vazio de ser”, sua consciência já estaria pronta, acabada, fechada. E, nesse caso, o homem não poderia manifestar liberdade, pois estaria totalmente preso à realidade estática do ser pleno. Por isso, o homem tem como característica específica o não-ser, algo indefinido e indeterminado. Por esse mesmomotivo, não podemos falar da existência de uma natureza humana universal, mas sim de uma condição humana...
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Quadro-síntese IV - Principais "correntes" filosóficas IDEALISMO – Ontológico / objetivo – dos pré-socráticos até Occam (1300 d.C.) Busca a conciliação entre idéia e realidade, entre a mutabilidade e multiplicidade das coisas e a unidade e a permanência exigidas pela razão. Gnosiológico / subjetivo Dos racionalistas, apresenta-se, inicialmente, como crítica do conhecimento; tem, como ponto de partida, o sujeito pensante na sua interioridade. Assim, exclui-se o mundo exterior e a experiência sensível. Especulativo / absoluto Por tal perspectiva o Ser o Pensamento desenvolvem-se em unidade e se expressa em dois níveis: a) no mundo, o ser puro se expressa como princípio de ordem que governa tudo que existe; b) no pensamento e na experiência humana, como idéias de ordem no mundo. Traz o conceito de idéia como geradora da realidade. MATERIALISMO – Entendem-se, por materialismo, as doutrinas que consideram a matéria como fonte do pensamento: a matéria determina a fonte de pensamento. Materialismo marxista / materialismo dialético O movimento da matéria é a base de todo o fenômeno da Natureza; pelo movimento se compreende a contradição: a contradição é movimento, manifestação de vida, passagem de um ser a um ser superior, a superação do ser (pela negação). Segue as leis: - da transformação da quantidade em qualidade e vice-versa; - da interpenetração dos contrários; - da negação da negação. Materialismo histórico Volta-se para a análise dos movimentos políticos, sociais e intelectuais da História, apontando a determinação da razão econômica. Para tanto, desenvolve os conceitos de infra-estrutura (as forças produtivas e as relações de produção), superestrutura (formas sociais determinadas de consciência ideológica), alienação, mais-valia... Para essa corrente materialista, “a classe que é a força material dominante da sociedade é, também, a força espiritual dominante”. PRAGMATISMO – Filosofia norte-americana, iniciada com a defesa (por Pierce) de que “toda a função do pensamento é produzir hábitos de ação”. Segundo esse pensamento, verdade é o que funciona na existência humana, o que é útil, o que resolve problemas, que obtém êxito na prática. Rejeitando o intelectualismo, o debate erudito, considera verdadeiro e falso sinônimos de bom e mau, assumidos como valores-lógicos: o verdadeiro sendo o oportuno, desenvolve-se (manifesta-se) em uma prática utilitarista e relativista. FILOSOFIA DA LINGUAGEM – Fenomenologia Principia com Husserl, que sustenta ser a linguagem um objeto auxiliar do pensamento, que se presentifica no cotidiano dos falantes; a visão de mundo de uma pessoa circunscreve-se à sua relação com a palavra, a qual só tem sentido quando empregada em contexto próprio de uma comunidade. Husserl examina o que precede o saber, o pré-reflexivo, o irreflexivo, contestando o psicologicismo e o nominalismo, afirmando que o fenômeno é um fato que se automanifesta.
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Estruturalismo Busca tratar a língua como objeto, investigando a sua formação, a constituição das palavras, dos discursos. Pode assumir duas tendências: - diacrônica: onde a língua é examinada em uma perspectiva histórica; - sincrônica: onde a língua é examinada circunscrita a um determinado momento histórico, de uma forma descritiva, comparativa, estática, possível por ser a língua uma instituição. EXISTENCIALISMO – Preocupação filosófica que acentua mais a vivência que o ser: a existência é mais importante que a essência. Nega as idéias e leis absolutas, a identidade entre ser e pensar, destacando o valor da pessoa, sua independência, liberdade (cada pessoa é considerada um caso único, não havendo essência humana igual para todos), condena as estruturas dominantes. O ser humano, sendo o único que pensa, dá-se conta de sua limitação e contingência; isso o angustia, frustra. Daí que a filosofia existencialista contemporânea parte da angústia e da consciência da perspectiva de que o homem foi lançado ao mundo que não escolheu (com um nome, classe social, compleição física, língua, etc.), tendo sempre que assumir uma decisão: portanto, o homem está condenado à liberdade, à escolha – escolher a vida, a própria liberdade, o que leva à tensão, à angústia, ao desespero. Das tantas formas de expressão que assume o existencialismo, o que há de comum, pode-se dizer, é a aceitação, pelos existencialistas, de que a existência precede a essência. Poderíamos destacar alguns existencialistas, com suas visões que constituíram “escolas”: - Kierkegaard: o indivíduo e sua imersão no mundo (angústia e desespero); - Nietzsche: do julgamento da civilização à questão da existência (nihilismo); - Husserl: o retorno às próprias coisas (ser e fenômeno)*; - Heidegger: o sentido do ser (ser e angústia)*; - Sartre: a responsabilidade da pessoa sobre tudo aquilo que faz (liberdade). *São considerados, por muitos, conforme citamos acima, fenomenólogos. PERSONALISMO – Acusado de não ser filosofia, mas reflexão sobre formas de como superar coisas e coflitos atuais, sua característica fundamental seria destacar os valores da pessoa humana. As demais discussões (sobre o ser, o espírito, matéria...) só importam quando contribuem para a discussão dos valores das pessoas; valores que devem encarnar uma realidade histórica e subsistir na busca de uma coletividade livremente criada pelas pessoas. Nesse sentido, pode apresentar-se como uma filosofia da ação, mas colocando-se contra a idéia marxista de uma sociedade socialista, coletivista, anônima, e o individualismo existencialista. OUTRAS FORMAS DE EXPRESSÃO FILOSÓFICA – Existem muitas escolas filosóficas, que não são consideradas contemporâneas ou modernas, que têm suas raízes na Antigüidade clássica, mas que continuam influenciando atualmente. Assim, poderse-iam destacar: Hedonismo É uma corrente de pensamento que afirma que todo o valor reside no prazer, e todas as ações encontram sua justificativa na busca desse fim. Pode ser refletido a partir da expressão “Comamos, bebamos, que amanhã morreremos!”. Estoicismo Prega a renúncia como virtude, o saber dominar as paixões, fugindo, assim, às dores da existência, resistindo às próprias dores e sofrimentos, sem convulsão do espírito. Seu lema gira em torno de algo como “Aprende a sofrer sem te queixares!”.
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Ceticismo É uma visão filosófica que afirma a dúvida sobre a realidade. Essa dúvida pode ser parcial (ceticismo relativo) ou total (ceticismo absoluto). Apregoa que a verdade, em si, não existe; e, se existisse, as pessoas não teriam condições de alcançá-la. Decorre daí a ausência de parâmetros de juízos de valores. A dúvida metódica dos idealistas cartesianos não estaria contemplada aqui, pois eles têm, ao menos, a certeza de que pensam (e por isso existem). A pergunta cética, ecoando em Pilatos: “O que é a verdade?”. Nihilismo É a radicalização do ceticismo. Representado pela figura vultosa de Nietzsche, prega a falência de estruturas, de instituições, de valores, da civilização, enfim. À diferença de um amargo existencialismo, como o foram o de Camus, Kierkegaard e outros, não se aborrece e angustia com os dissabores da existência, pura e simplesmente, mas vê, na própria existência, um absurdo sem justificativa, a partir da inexistência de algo real e concreto que a preencha.
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IV - FILOSOFIA E IDEOLOGIA
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Senso comum, bom senso e pensamento não-ideológico (Extraído de ARANHA & MARTINS. Filosofando. 2ª ed. São Paulo: Moderna, p. 35-39). Chamamos senso comum ao conhecimento adquirido por tradição, herdado dos antepassados e ao qual acrescentamos os resultados da experiência vivida na coletividade a que pertencemos. Trata-se de um conjunto de idéias que nos permitem interpretar a realidade, bem como de um corpo de valores que nos ajuda a avaliar, julgar e portanto agir. [...] o senso comum não é refletido e se encontra misturado a crenças e preconceitos. É um conhecimento ingênuo (não-crítico), fragmentário (porque difuso, assistemático e muitas vezes sujeito a incoerências) e conservador (resiste a mudanças). Com isso não queremos desmerecer a forma de pensar do homem comum, mas apenas enfatizar que o primeiro estádio de conhecimento precisa ser superado em direção a uma abordagem crítica e coerente, características estas que não precisam ser necessariamente atributos de formas mais requintadas de conhecer, tais como a ciência ou a filosofia. Em outras palavras, o senso comum precisa ser transformado em bom senso, este entendido como a elaboração coerente do saber e como explicitação das intenções conscientes dos indivíduos livres. Segundo o filósofo Gramsci, o bom senso é o “núcleo sadio do senso comum”. Qualquer pessoa, não sendo vítima de doutrinação e dominação, e se for estimulada na capacidade de compreender e criticar, torna-se capaz de juízos sábios porque vitais, isto é, orientados para sua humanização. Geralmente os obstáculos à passagem do senso comum ao bom senso resultam da exclusão do indivíduo das decisões importantes na comunidade em que vive. Em sociedades não-democráticas as informações não circulam igualmente em todas as camadas sociais e nem todos têm igual possibilidade de consumir e produzir cultura. [...] A superação de tal estado de coisas decorre não só da democratização do acesso à escola e da negação da escola dualista (formação acadêmica versus formação técnica) como também depende da conquista de espaços possíveis de atuação nos sindicatos e nas organizações representativas dos mais diversos tipos. No entanto, não são apenas os trabalhadores manuais que não têm conseguido passar do senso comum para o bom senso. Funcionários de empresas, empresários, especialistas de qualquer área, inclusive cientistas, podem estar restritos a formas fragmentárias do senso comum quando se acham presos a preconceitos, a concepções rígidas, quando sucumbem à ação massificante dos meios de comunicação de massa. Outras vezes renunciamos ao exercício do bom senso quando nos submetemos ao poder dos tecnocratas, seduzidos pelo “saber do especialista”. Basta observar a timidez de decisão dos pais que, ao educarem os filhos, delegam poderes a psicólogos, pedagogos, pediatras. Não pretendemos, ao dizer isso, desvalorizar a contribuição tão importante da ciência, muito ao contrário! Apenas ressaltamos que o homem leigo não precisa permanecer passivo diante do saber do técnico, demitindo-se das ações que ele próprio poderia exercer. Ele tem o direito de informar-se ativamente a respeito do tratamento a eu se acha submetido e dos seus efeitos. Em última análise, convém desmistificar a tendência de cultuar as pessoas “estudadas” em detrimento do homem “sem letras” ou simplesmente não-especialista. Qualquer homem, se não foi ferido em sua liberdade e dignidade, e se teve ocasião de desenvolver a habilidade crítica, será capaz de autoconsciência, de elaborar criticamente o próprio pensamento e de analisar adequadamente a situação em que viver. É nesse estado que o bom senso se aproxima da filosofia... Podemos perceber que não é automática a passagem do senso comum ao bom senso, e um dos obstáculos ao processo se encontra na difusão da ideologia...
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A ação e o pensamento humano nunca se acham totalmente determinados pela ideologia. Sempre haverá espaços de crítica e fendas que possibilitem a elaboração do discurso contra-ideológico. Não é simples, no entanto, o trabalho de desvelamento do real, pois a ideologia penetra em setores insuspeitáveis: na educação familiar e escolar, nos meios de comunicação de massa, nos hospitais psiquiátricos, nas prisões, nas indústrias, impedindo de todas as formas a flexibilidade entre o pensar e o agir, determinando a repetição de fórmulas prontas e acabadas. Por outro lado, é exatamente nesses mesmos espaços em que é veiculada a ideologia que se inicia o processo de conscientização. O que distingue o discurso ideológico do não-ideológico, que podemos chamar simplesmente de teoria? Se o discurso ideológico é abstrato e lacunar, faz uma análise invertida da realidade e separa o pensar do agir, o discurso não-ideológico é aquele que visa o preenchimento das lacunas pela procura da gênese do processo. Isto não significa que se deva contrapor ao discurso lacunar um discurso “pleno”, mas sim a elaboração da crítica, do contradiscurso que revele a contradição interna do discurso ideológico e que o faça explodir. É esse justamente o papel da teoria, que está encarregada de desvendar os processos reais e históricos dos quais se origina a dominação de uma classe sobre outra, enquanto a ideologia visa exatamente o contrário, ou seja, a dissimulação dessa diferença ou a justificação dela. Além disso, a teoria estabelece uma relação dialética com a prática, ou seja, uma relação de reciprocidade e simultaneidade, e não hierárquica, como no discurso ideológico. Explicando melhor: a práxis é justamente a relação indissolúvel teoria-prática, de modo que não há agir humano que não tenha sido antecedido por um projeto, da mesma forma que a teoria não é algo que se produza independentemente da prática, pois seu fundamento é a própria prática. Nós conhecemos as coisas na medida em que as produzimos, daí toda teoria se tornar lacunar (e portanto ideológica), sem o “vaivém” entre o fato e o pensado. Ora, o saber que resulta do trabalho é um saber instituinte e, nesse sentido, é “vivo”, móvel, com toda a força decorrente do processo de se fazer. Ao contrário, o saber ideológico é o saber instituído, esclerosado, morto. Por isso, é importante o papel da filosofia como crítica da ideologia, para romper as estruturas petrificadas que justificam as formas de dominação.
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Ideologia (Adaptado de GARCIA & JUSTINIANO, Instituição educacional e gestão da qualidade: mito e ideologia). O conceito de ideologia não é unívoco. Mas o conceito de ideologia, por ter uma “história” mais longa e, não raro, belicosa, controversa, pressupõe uma análise que não vem desacompanhada de um posicionamento: a opção por uma ou outra noção de ideologia pressupõe uma forma de situar-se no mundo, frente aos acontecimentos, às outras pessoas, a si mesmo. O termo ideologia traz em seu bojo muitas concepções. Poderíamos recorrer a diversos teóricos que as relacionam e refletem, mesmo àqueles que afirmam que a ideologia não encontra mais espaço digno de referência ou reflexão. Vamos, contudo, nos restringir a alguns pensadores que aceitam a permanência da ideologia, uma vez que essas concepções apontarão a deficiência nos argumentos que querem decretar a “morte” das ideologias. Iremos pautar nossa explanação principalmente pelos argumentos de Thompson (Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 1995), pensador que se propõe a formular uma concepção diferenciada ou revisada do que se possa compreender por ideologia, uma vez que procura conjugá-la com o fenômeno da comunicação social (de massa) e da construção ou produção simbólica – elementos importantes e característicos de nossas sociedades contemporâneas ocidentais e “industrializadas” (tecnologicizadas e informatizadas, talvez soe melhor). Thompson em seu Ideologia e cultura moderna reconhece o caráter multíplice que o significado do conceito ideologia adquiriu ao longo de uma história até certo ponto longa – considerando que o termo teria sido usado pela primeira vez por Destutt de Tracy em 1796, desejando, com ele, designar uma nova ciência que pretendera criar, inspirado nos propósitos iluministas e racionalistas. Segundo Thompson, o termo ideologia sofreu muitas mutações, ao longo de sua trajetória até nossos dias, passando de um significado científico para um significado político, de um significado neutro a um significado negativo, de um significado natural a um significado crítico. Em um primeiro momento, de âmbito científico, o termo buscava indicar uma nova disciplina, uma nova ciência: Seguindo Condillac, de Tracy argumentou que não podemos conhecer as coisas em si mesmas, mas apenas as idéias formadas pelas sensações que temos delas. (...) Através de uma análise cuidadosa das idéias e das sensações, a ideologia possibilitaria a compreensão da natureza humana e, desse modo, possibilitaria a reestruturação da ordem social e política de acordo com as necessidades e aspirações dos seres humanos. A ideologia colocaria as ciências morais e políticas num fundamento firme e as preservaria do erro e do "preconceito"... (THOMPSON, 1995, p. 45).
Tal concepção, contudo, não teve uma “vida longa”, pois a mesma se forjara em solo francês, que em breve se encontraria às voltas com questões políticas (leia-se “conflitos entre republicanos e Napoleão”). Estando Napoleão perdendo apoio popular, investiu contra os teóricos da nova ciência, escolhendo esta e aqueles como responsáveis pelos fracassos de sua “Revolução”. Em um segundo momento, então, o termo ideologia assume uma conotação negativa, pejorativa. E será esse segundo momento que fornecerá elementos para a evolução de um seguinte, não só negativo, mas também crítico, que se dará com Marx. Mesmo que pesem algumas ambiguidades em suas alusões à ideologia, Marx vai oferecer uma contribuição inegável para o desenvolvimento de uma nova concepção do termo ideologia, posto que sua concepção – designada por Thompson como “polêmica” – adquire importância não tanto pela concepção em si, mas por sua vinculação com três pressupostos: Pressuposto 1a: As formas de consciência dos seres huma-nos (sic) são determinadas pelas condições materiais de sua vida. O pensar, o conceber e, mais geralmente, a produção de idéias devem ser vistos não
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como processos autônomos, e muito menos como processos que prescrevem o curso da história; antes, porém, como processos que estão interligados com a – e essencialmente determinada pela – atividade mundana dos seres humanos produzindo coletivamente seus meios de subsistência. Pressuposto 1b: O desenvolvimento das doutrinas teóricas e das atividades teóricas que vêem as idéias como autônomas e eficazes se torna possível pela divisão, historicamente emergente, entre trabalho material e trabalho mental. Pressuposto 1c: As doutrinas e as atividades teóricas que constituem a ideologia podem ser explicadas pelo estudo científico da sociedade e da história, e por tal estudo devem ser substituídas.”(THOMPSON, 1995, p. 51-53).
Esses três primeiros grupos de pressupostos vão desembocar em um segundo grupo de pressupostos que têm por fio comum uma concepção epifenomênica, no sentido de expressarem interesses de uma classe dominante, escamoteando, todavia, a divisão entre as classes (dominantes e dominadas). Nesse segundo grupo de pressupostos, portanto, primeiramente se encontra que [...] as condições econômicas de produção têm um papel primário na determinação do processo de mudança sócio-histórica e que, por isso, elas devem ser vistas como o meio mais importante para explicar as transformações sócio-históricas particulares. Esse primeiro pressuposto nos leva diretamente a um segundo. Pressuposto 2b: as formas ideológicas de consciência não devem ser tomadas como se mostram, mas devem ser explicadas em referência às condições econômicas de produção. (THOMPSON, 1995, p. 55).
Thompson vai indicar que, para Marx, a própria dinâmica interna do capitalismo levaria as pessoas que vivem sob a sua égide à percepção do tipo de relações que as envolve: Pressuposto 2c: o desenvolvimento do capitalismo moderno cria as condições para uma compreensão clara das relações sociais e para a eliminação dos antagonismos de classe, dos quais depende a ideologia. (THOMPSON, 1995, p. 57).
A partir dessas ideias emergentes das obras de Marx, Thompson afirma ser possível depreender outro sentido, uma concepção “latente”, a qual fornecerá elementos importantes para uma análise das relações construídas nas sociedades, inclusive, estruturadas como as que vivemos atualmente. Tal concepção, de acordo com Thompson, poderia ser assim formulada: [...] ideologia é um sistema de representações que servem para sustentar relações existentes de dominação de classes através da orientação das pessoas para o passado em vez de para o futuro, ou para imagens e ideais que escondem as relações de classe e desviam da busca coletiva de mudança social.” (THOMPSON, 1995, p. 58).
Mas a essa concepção vai suceder outra, que pode ser designada como concepção “neutra”, uma vez que, no seguimento da expansão das lutas de classe, atribui o termo ideologia a todos os grupos sociais (classes dominantes e classes dominadas): haveria, assim, uma ideologia dos “dominadores” (“burguesia”), como haveria uma ideologia dos “dominados” (“proletariado”). A atribuição de ideologias a grupos antagônicos implodiria a percepção da ideologia como sendo negativa ou, conforme Thompson, eliminaria seu “aspecto assimétrico” (pressupondo desigualdades, manipulações, dominação). Se essa concepção epifenomêmica – neutra – perdurou até o ponto de se afirmar que não só todos os grupos sociais têm suas ideologias, como também nenhum grupo social ou sociedade tem mais ideologia, Thompson enfatiza a retomada da concepção negativa, ou melhor, crítica de ideologia. E o faz recorrendo a Mannheim, para quem Marx teve o mérito de fazer a noção de ideologia passar de uma concepção particular para uma concepção total: Por concepção "particular" de ideologia Mannheim entende uma concepção que permanece no nível de disfarces mais ou menos conscientes. [...] A concepção "total" de ideologia emerge quando volvemos nossa atenção para as características da estrutura mental global de uma época, ou de um grupo sócio-histórico como, por exemplo, uma classe. (THOMPSON, 1995, p. 66).
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Estas concepções de ideologia, de acordo com Thompson, espelham, na verdade, uma sociologia do conhecimento, sendo uma “concepção restrita” de ideologia, a qual, sob determinada ótica, tange a concepção de “utopia”, enquanto o não existente. Todavia, a concepção “restrita” de Mannheim conserva o aspecto negativo, seja pelas divergências (ou discordâncias) entre as concepções particular e total, seja pelo aspecto de não realização das ideias. Porém, é preciso se avançar além dessa visão de Mannheim, afirma Thompson, uma vez que “O que é esquecido, nessa teoria, é o fenômeno da dominação” (THOMPSON, 1995, 71). Assim é que Thompson vai propor sua concepção de ideologia a partir da distinção entre dois tipos gerais de concepções de ideologia: as concepções neutras e as concepções críticas. As concepções críticas assim o são devido a vários critérios: por serem abstratas ou impraticáveis, errôneas ou ilusórias, expressarem interesses dominantes ou sustentarem relações de dominação. Todas essas variáveis irão ceder espaço para a concepção de Thompson, a qual se especifica objetivando “... como as formas simbólicas se entrecruzam com relações de poder. Ela está interessada nas maneiras como o sentido é mobilizado, no mundo social, e serve, por isso, para reforçar pessoas e grupos que ocupam posições de poder. Deixem-me definir este enfoque mais detalhadamente: estudar a ideologia é estudar as maneiras como o sentido serve para estabelecer e sustentar relações de dominação. Fenômenos ideológicos são fenômenos simbólicos significativos desde que eles sirvam, em circunstâncias sócio-históricas específicas, para estabelecer e sustentar relações de dominação.” (THOMPSON, 1995, p. 75-76. Grifos do autor).
Ao contrário e além de Marx, Thompson não restringe a noção de dominação apenas à dominação de uma classe sobre outra, mas estende-a aos mais variados tipos de dominação e subordinação que permeiam as relações humanas (entre gêneros, etnias, gerações...). Consequentemente, Thompson vai reformular essas concepções anteriores de ideologia de forma a [...] conceituar ideologia em termos das maneiras como o sentido, mobilizado pelas formas simbólicas, serve para estabelecer e sustentar relações de dominação: estabelecer, querendo significar que o sentido pode criar ativamente e instruir relações de dominação; sustentar, querendo significar que o sentido pode servir para manter e reproduzir relações de dominação através de um contínuo processo de produção e recepção de formas simbólicas. (THOMPSON, p. 79. Grifos do autor).
“Formas simbólicas”, estas, que Thompson entende como sendo ações, falas, imagens, textos, as mais variadas formas de expressão midiática, que são produzidas e reconhecidas como significativos. Tais formas simbólicas, portanto, não estão “neutras”, suspensas acima do corpo social e suas relações, mas desenvolvem-se em contextos que se estruturam socialmente e que, devido a isso, estão sujeitas aos diversos graus de “poder” que essas pessoas ou grupos possuam ou consigam articular. Esse “poder” deve ser entendido como a capacidade que algumas pessoas ou classes detêm de tomar decisões, mobilizar situações e sentidos, conferir significações, realizar interesses, interferir na organização e desenvolvimento do todo social. Esse “poder” exige uma “preparação” dos sujeitos que o exercem, ou mediante o qual se manifestam. Será a disseminação desse “poder”, bem como a capacidade de utilizá-lo nas relações sociais, determinada pela localização social das pessoas e por suas qualificações, que irá caracterizar o tipo de relação vigente na sociedade como um todo: [...] Podemos falar de ‘dominação’ quando relações estabelecidas de poder são ‘sistematicamente assimétricas’, isto é, quando grupos particulares de agentes possuem poder de uma maneira permanente, e em grau significativo, permanecendo inacessível a outros agentes, ou a grupos de agentes, independentemente da base sobre a qual tal exclusão é levada a efeito. (THOMPSON, 1995, p. 80).
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Quadro-síntese V - Ideologia (Extraído de GUARESCHI, Pedrinho. In: Sociologia Crítica – Alternativas de Mudança. Porto Alegre: Ed. Mundo Jovem, 1991). O assunto ideologia é tão amplo e tão complexo, que o melhor é começar tentando dizer o que é ideologia, ir dando uns exemplos. Cada um vai, aos poucos, tentando compreender, ver, na prática, como a ideologia acontece. A ideologia não significa mais o que por sua etimologia deveria significar, isto é, estudo das idéias Passou a significar coisa bem diferente e a ter uma figura negativa e pejorativa. Acontece que alguns ainda usam a palavra “ideologia” para significar o conjunto de idéias, valores e maneira de pensar de pessoas e grupos. Então é preciso distinguir bem. Ideologia pode significar: 1) O estudo das idéias (sentido etimológico). 2) Conjunto de idéias, valores, maneira de sentir e pensar de pessoas e grupos. 3) Idéias erradas, incompletas, distorcidas, falsas sobre fatos e a realidade. Daqui para a frente nós só vamos usar a palavra ideologia no último sentido, isto é, como uma maneira errada de ver as coisas. Vamos então discutir algumas coisas sobre como e porque as pessoas podem ter idéias erradas sobre as coisas. Será que é culpa delas? Quem pode dizer que não tem ideologia? Para entender isso, é preciso ver como nós ficamos sabendo das coisas e quem é que nos diz as coisas. É preciso ver se aqueles que nos dizem as coisas, não nos dizem apenas metade das coisas, ou só um jeito de ver as coisas. Você já pensou por que você acha que é o que é? Por que se define como sendo estudante, brincalhão, rapaz, bom jogador de futebol? Quem ensinou para você as palavras, quem deu as definições das palavras “estudante”, “brincalhão”, etc.? Aí você começa a ver que nós somos, em grande parte, o que os outros nos dizem, ou acham que somos. E à medida em que nós vamos percebendo o que os outros pensam e acham a nosso respeito, nós vamos formando nossa identidade. É claro que não é só isso que forma nossa identidade. Nós podemos também refletir, tomar consciência do processo de como a gente é o que é , e tentar mudar. Mas em grande parte nós ficamos condicionados à influência dos outros, inclusive pelo fato de termos de aceitar a própria linguagem e as definições das coisas que os outros nos deram. Agora começa, contudo, a parte mais importante, que nos ajuda a entender o que é ideologia. Você acha que todas as definições, todas as explicações das coisas são dadas sempre com sinceridade, procurando sempre dizer a verdade e toda a verdade? Será que por trás das definições das coisas (inclusive do próprio conceito que os outros fazem de nós), atrás das explicações que as pessoas dão para as coisas, não há algum interesse em esconder algo, em acentuar alguns aspectos e diminuir outros? Pois é isso que precisamos descobrir. E quando nós chegarmos a constatar que as coisas não são exatamente como no-las estão contando, então nós estamos diante das ideologias. Quem é inteligente e vivo fica sempre de olho para descobrir como as pessoas, se não chegam a mentir de fato, ao menos dizem apenas parte da verdade. (...) [...] Se você abrir um jornal, qualquer jornal, vai ver imediatamente muitas meias-verdades, em cada página. Os jornais publicam só o que querem e onde querem. A gente não pode dizer que eles mentiram. Talvez tudo o que está no jornal tenha acontecido. O problema é que o jornal, conforme sua ideologia, seleciona o que quer, combina o que quer e publica o que quer. E nós saímos acreditando que o jornal diz toda a verdade... Antes de ler o jornal, a gente precisa saber que ideologia tem esse jornal... [...] Você já se perguntou se você mesmo não é o que você pensa que é, porque os outros lhe botaram isso na cabeça? Será que você já se deu conta de quem fez sua cabecinha, quem deu a definição
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de você mesmo para você? Há muita gente que nem sabe quem são seus pais “ideológicos”, que é ideologicamente bastardo... Só com muita reflexão e consciência crítica você será realmente você, você será livre, você saberá porque é assim, e essa verdade o libertará. Gostaria de terminar com um ponto bastante importante. Você já conversou com alguma pessoa pobre, algum favelado? Se você tentar descobrir o que ele pensa dele mesmo, vai ver que a imagem que ele tem de si mesmo é bastante negativa. Ele acha que não presta, que é ignorante, que é mau, que vale menos que o pessoal “de bem”, isto é, os que sabem ler e escrever, são ricos, vivem no centro da cidade. Eles, os favelados, são da “vila”. Agora, será que isso é verdade mesmo? Os “da vila”, “da favela”, são piores, têm menos dignidade que os outros? Ou será que os “do centro”, que têm os jornais, os rádios, as TVs, isto é, que têm “a voz e a vez” não estarão dando a definição negativa e pejorativa para os da periferia? Será que a própria escola, os Meios de Comunicação Social, e até mesmo certas religiões e certos pregadores não estão a serviço dos que têm o poder e, para eles se garantirem no poder, não estão tentando dizer para os outros que eles não prestam, são menos? Veja você como isso é importante: se você consegue convencer alguém que ele não presta, vale menos, é ignorante, etc., você pode dominar totalmente essa pessoa, pois ela já está dominada “na alma”, “na consciência”. Ela mesma já não vai querer subir, exigir mais, ter os mesmos direitos que os outros, pois ela já está convencida de que vale menos! Essa pessoa assim definida e convencida nunca mais vai dar trabalho para as outras pessoas! Ela interiorizou a imagem negativa que fazem dela os que têm poder e acabou acreditando na história de que ela, afinal, vale menos mesmo! Através da linguagem e da comunicação, que também são produções históricas, são transmitidos significados, representações e valores existentes em determinados grupos: é a ideologia do grupo. A reprodução ideológica se manifesta através de representações que a pessoa elabora sobre si mesma, sobre os homens, a sociedade, a realidade, enfim, sobre tudo aquilo a que implícita ou explicitamente são atribuídos valores: certo-errado, bom-mau, verdadeiro-falso. A ideologia está presente na superestrutura, que são as instituições políticas, jurídicas, morais (...). Já no plano psicológico individual, as ideologias se reproduzem em função da história de vida e da inserção específica de cada pessoa. Essas colocações podem espantar alguém e levá-lo a pensar que não há remédio, que estamos fatalmente condenados a sermos presas das ideologias. Mas não é assim. No plano pessoal, o indivíduo pode se tornar consciente ao detectar as contradições entre as representações que existem na sociedade ou no plano superestrutural, e as atividades específicas que ele desempenha na produção de sua vida material. [...] O processo de conscientização se desencadeia tanto a nível de (sic) consciência pessoal como a nível de consciência de classe. A consciência de classe é um processo grupal e se manifesta quando indivíduos conscientes de si se percebem sujeitos das mesmas determinações históricas que os tornaram membros de um mesmo grupo, inseridos nas relações de produção que caracterizam a sociedade num dado momento. Isso pode levar a um processo de conscientização de si e conscientização social. De um lado, o indivíduo consciente de si necessariamente tem também consciência de pertencer a uma classe. Mas enquanto indivíduo, essa consciência se processa transformando tanto suas ações como a ele mesmo.
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V – FILOSOFIA MORAL OU ÉTICA
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Moral e ética: a mesma coisa? É corrente a afirmação de a pessoa ser um “animal social”. Não é tão comum, por outro lado, a consideração das implicações que tal característica humana possa trazer. A convivência em sociedade não se faz sem um ônus, qual seja: o confronto com outras vontades e a necessidade de respeitá-las; ou, ao menos, ter consciência de que existem, mesmo que seja para contestá-las. Dessa existência forçosamente social por meio de que o ser humano se constrói depreende-se a necessidade de padrões ou regras que orientem a conduta de cada indivíduo em função do bem do grupo. A esse conjunto de regras e normas de conduta é que vai se dedicar o campo de estudo da Ética ou a Filosofia Moral. Ainda que possa parecer estarem se referindo ao mesmo objeto e da mesma forma, poder-se-á perceber, gradativamente, que há aspectos distintivos. O objeto a que irão se referir, tanto a Ética quanto a Moral, será, grosso modo, o “agir humano em sociedade”. Assim, moral vem de “mos-mores”, querendo significar costume. Por seu turno, ética deriva de “ethos”, que se refere a habitação, modo ou forma de viver... caráter. O sentido ainda permanece, portanto, o “agir humano”. Não obstante estarem se referindo ao “agir humano (em sociedade)”, a Moral mostra-se mais vinculada com o próprio agir do que a Ética, que estaria voltada para um conjunto de princípios e valores que norteariam os procedimentos morais. Ou seja, a Moral é decorrência da própria vivência e dos costumes aceitos e sancionados por um dado grupo, em função de sua sobrevivência, de sua história, de sua cultura. Já a Ética seria um conjunto ideal de princípios, valores, objetivos (de perfeição, de bem comum, de realização plena) que se propõe aos procedimentos morais, orientando-os, corrigindo-os, repreendendo-os. Se a Moral é cultural e historicamente condicionada, a Ética busca ser mais perene, universal: a Moral diz respeito ao conjunto de normas, regras, costumes que orientam o agir humano em uma dada sociedade; está, portanto, no âmbito da concretude, da prática. A moral é como que a consciência do agir humano. a Ética diz respeito à reflexão sobre o agir humano, sendo não apenas uma justificação, mas uma orientação, ou uma crítica da moral; está, portanto, no âmbito da abstração, dos princípios. É uma “[...] teoria ou ciência do comportamento moral dos homens em sociedade.” (SANCHEZ VÁZQUEZ, 2002, p. 23). A ética é como que a consciência da consciência moral. Resumindo, se a Moral é a consciência reflexiva e julgadora do agir humano, a Ética pode ser considerada a “consciência da consciência moral”: aquela instância que vai questionar o que a consciência moral assume como padrão de conduta. Será possível uma discussão nestes termos, confrontando-se uma “Ética” universal face à diversidade das “morais particulares”? Qual a legitimidade desse confronto? Que exemplos poderiam ser citados, atualmente, em que se dá esse tipo de “disputa” pela supremacia de uma sobre outra? Deve-se ter presente que o agir moralmente imputado – a responsabilização moral – exige a consciência (o conhecimento), a vontade/intenção (o querer agir ou deixar de fazê-lo) e a liberdade (a deliberação de escolher os fins e os meios, sem coação): a consciência (a razão) da ação e de suas implicações, o que pode gerar a culpa ou o dolo, uma vez que a ação ou manipulação de um objeto está implicando na perícia, zelo e prudência (ou, na falta destes, na imperícia, negligência e imprudência); a liberdade, que é a capacidade de dispor de si próprio, de sua vontade, com o intuito de se direcionar a um determinado objetivo, a uma meta específica; e, também, a intenção/vontade, que é o propósito autônomo de alcançar a meta escolhida livremente, de forma consciente, conhecendo as decorrências de seu ato, intenção ou omissão. Daí que uma pessoa que, externamente, age em conformidade com um grupo, mas sem convicção, tão só para ficar bem com o mesmo grupo, tem seu comportamento moral questionado. Um ato não
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pode ser considerado apenas pelo ângulo moral, ou da ação contextualizada em um determinado grupo, uma vez que a constituição de cada grupo se faz de forma histórica, com avanços e retrocessos face à humanidade como um todo. O que se pretende afirmar é que, para além da Moral, concreta, histórica, contextualizada, encontra-se a Ética, buscando apontar horizontes onde possa se dar um maior desenvolvimento da moralidade de cada grupo. Afinal, até que ponto uma pessoa é, de fato, livre? Quais os condicionamentos que podem afetar a vontade de alguém e de que forma? Como a consciência é formada e qual seu grau de autoformação? Sanchez Vázquez é categórico ao afirmar que a moralidade diz respeito a comportamentos, à conduta prática de um ser que vive e age em comunidade, e cujos resultados ou consequências de suas ações e decisões afetam o outro. A moral, portanto, é um comportamento social e com efeitos sociais; é um comportamento avaliado ou confrontado normativamente, e em relação às normas de um grupo historicamente situado. [...] na vida real, defrontamo-nos com problemas práticos [...] dos quais ninguém pode eximir-se. E, para resolvê-los, os indivíduos recorrem a normas, cumprem determinados atos, formulam juízos e, às vezes, se servem de determinados argumentos ou razões para justificar a decisão adotada ou os passos dados. [...] De fato, o comportamento humano prático-moral, ainda que sujeito a variação de uma época para outra e de uma sociedade para outra, remonta até as próprias origens do homem como ser social. (SANCHEZ VÁZQUEZ, 2002, p. 16-17).
Segundo Sanchez Vázquez, a distinção entre problemas morais e problemas éticos está em sua extensão: os problemas morais se colocam em situações concretas, práticas, do dia a dia, para cada sujeito em sua lida diária. Os problemas éticos são problemas genéricos, elaborados a partir de princípios, de valores... estão em um plano mais filosófico – daí, filosofia moral. Em suma, ética e moral poderiam se distinguir da seguinte forma: Moral Sempre coletiva, social. Histórica. Diz respeito ao agir concreto. Seus problemas se apresentam nas relações concretas entre indivíduos ou quando se julgam decisões e ações dos mesmos; sua decisão e consequências podem atingir terceiros. Ética Busca uma universalização, uma transculturação. Busca ser supra histórica, a-histórica. Diz respeito à reflexão sobre o agir. Seus problemas se caracterizam pela generalidade, mas podem ajudar a fundamentar e/ou justificar o comportamento moral. Então, alguém se arriscaria a colocar as seguintes questões: “Bem, então é possível alguém ser, ao mesmo tempo, ético e imoral? Ou comportar-se moralmente e ser antiético? Ou alguém poderia ser considerado imoral ou antiético, mesmo que sua conduta fossa pautada pelas leis? Essa é uma discussão pertinente, que será retomada quando falarmos do relativismo moral. Por enquanto devemos entender que, por se situar no plano de princípios, no âmbito teórico, a ética está profundamente vinculada a valores. De um modo geral, pode-se afirmar que a marca maior do “Valor” (axiologicamente falando) é a “indiferenciação” que provoca nas pessoas. Valores podem ser definidos, segundo Vargas, como “Critérios absolutos de preferência, habitualmente não questionados pelo indivíduo, que orientam as suas decisões e ações na vida, indicando o que está certo ou errado sob a perspectiva individual.”
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Os valores, enquanto algo último, determinante da vida e das escolhas que alguém faz durante a vida (uma obrigatoriedade moral), embasa dois distintos enfoques éticos. Um é denominado “teleologia” ou ética do bem, ou ética dos fins; aquela em que o agir moralmente admitido consiste na busca desse valor maior, ainda que algumas normas consideradas válidas por um grupo tenham de ser questionadas ou subvertidas. A obrigatoriedade moral, nesse caso, se dá em exclusiva dependência das consequências de uma ação. A essa concepção se antepõe a postura ética denominada “deontologia” ou ética do dever; aquela em que o agir moralmente admitido consiste no cumprimento de preceitos colocados e seguidos pela sociedade – devendo ser entendidos que, por isso mesmo, são legítimos. Sanchez Vázquez oferece um exemplo bastante ilustrativo dessas duas posturas na situação de um amigo enfermo que interroga sobre sua real condição de saúde, pois a mesma não lhe teria sido confirmada pelos familiares ou médicos. Exemplifica Sanchez Vázquez (2002, p. 190): [...] o que devo fazer neste caso? Enganá-lo ou dizer-lhe a verdade? De acordo com a doutrina deontológica da obrigação moral, devo dizer-lhe a verdade, seja quais forem as consequências: mas, se me atenho à teoria teleológica, devo enganá-lo tendo em vista as consequências negativas que podem resultar, para o doente, do conhecimento do seu verdadeiro estado.
De todo modo, os valores sempre estarão por trás dos atos morais, uma vez que os preceitos morais se respaldam em condutas apreciadas como válidas, valorosas, segundo o entendimento de um grupo ou sociedade. Todavia, como já afirmamos, não basta o mero cumprimento de uma norma moral para que a pessoa possa ser considerada como moralmente correta: além da prescrição moral ainda deve ser levada em conta a motivação moral; quer dizer, as razões pelas quais alguém anuiu em praticar aquelas ações.
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Quadro-Síntese VI – Filosofia Moral ou Ética (O que é ética? / Problemas morais e problemas éticos. / O campo da ética. / Definição de ética. Extraído de SANCHEZ VÁZQUEZ, Adolfo. Ética. 22ª ed. Trad. João Dell’Anna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 15-23. (Grifos no original). Nas relações cotidianas entre os indivíduos, surgem continuamente problemas como estes: [1] Devo cumprir a promessa que fiz ontem ao meu amigo, embora hoje perceba que o cumprimento me causará certos prejuízos? [2] Se alguém, à noite, se aproxima de mim de maneira suspeita e desconfio que vá me atacar, devo agredi-lo primeiro a fim de não correr o risco de ser agredido, aproveitando que ninguém descobrirá o meu ato? [3] Com respeito aos crimes cometidos pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, os soldados que os executaram, cumprindo ordens militares, podem ser moralmente condenados? [4] Devo dizer sempre a verdade ou há ocasiões em que devo mentir? [5] Quem, numa guerra de invasão, sabe que o seu melhor amigo está colaborando com o inimigo, deve calar, por causa da amizade, ou deve denunciá-lo como traidor? [6] Podemos considerar bom o homem que se mostra caridoso com o mendigo e com instituições, mas que como patrão explora impiedosamente os operários e os empregados da sua empresa? [7] Se um indivíduo procura fazer o bem e as consequências de suas ações são prejudiciais àqueles que pretendia favorecer, porque lhes causa mais prejuízo do que benefício, devemos julgar que age corretamente de um ponto de vista moral, quaisquer que tenham sido os efeitos de sua ação? Em todos estes casos, trata-se de problemas práticos, isto é, de problemas que se apresentam nas relações concretas entre indivíduos ou quando se julgam certas decisões e ações dos mesmos. Trata se, por sua vez, de problemas cuja solução não concerne somente à pessoa que os propõe, mas também a outras pessoas que sofrerão as consequências da sua decisão e da sua ação. As consequências podem afetar somente um indivíduo (devo dizer a verdade ou devo mentir?); em outros casos, trata-se de ações que atingem vários indivíduos ou grupos sociais (os soldados nazistas deviam executar as ordens de extermínio emanadas de seus superiores?). Enfim, as consequências podem estender-se a uma comunidade inteira, como a nação (devo guardar silêncio em nome da amizade, diante do procedimento de meu amigo traidor?). Em situações como estas que acabamos de enumerar, os indivíduos se defrontam com a necessidade de pautar o seu comportamento por normas que se julgam mais apropriadas ou mais dignas de ser cumpridas. Estas normas são aceitas intimamente e reconhecidas como obrigatórias. De acordo com elas, os indivíduos compreendem que têm o dever de agir desta ou daquela maneira. Nestes casos, dizemos que o homem age moralmente e que neste seu comportamento se evidenciam vários traços característicos que o diferenciam de outras formas de conduta humana. Sobre este comportamento, que é o resultado de uma decisão refletida e, por isto, não puramente espontânea ou natural, os outros julgam, de acordo também com normas estabelecidas, e formulam juízos como os seguintes: “X agiu bem mentindo naquelas circunstâncias”; “Z devia denunciar o seu amigo traidor”, etc. De um lado, temos atos e formas de comportamentos dos homens em face de determinados problemas, que chamamos morais. De outro lado, há juízos que aprovam ou desaprovam moralmente os mesmos atos. Todavia, tanto os atos quanto os juízos morais pressupõem certas normas que apontam o que se deve fazer. Assim, por exemplo, o juízo: “Z devia denunciar o seu amigo traidor”, pressupõe a norma “os interesses da pátria devem ser postos acima dos da amizade”. Na vida real, defrontamo-nos com problemas práticos do tipo dos enumerados, dos quais ninguém pode eximir-se. Para resolvê-los, os indivíduos recorrem a normas, cumprem determinados atos,
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formulam juízos e, às vezes, se servem de determinados argumentos ou razões para justificar a decisão adotada ou os passos dados. Tudo isto faz parte de um tipo de comportamento efetivo, tanto dos indivíduos quanto dos grupos sociais; tanto de ontem quanto de hoje. De fato, o comportamento humano prático-moral, ainda que sujeito a variação de uma época para outra e de uma sociedade para outra, remonta até as próprias origens do homem como ser social. A este comportamento prático-moral, que já se encontra nas formas mais primitivas de comunidade, sucede posteriormente, uma reflexão sobre ele. Os homens não só agem moralmente (isto é, enfrentam determinados problemas nas suas relações mútuas, tomam decisões e realizam certos atos para resolvê-los e, ao mesmo tempo, julgam ou avaliam de uma ou de outra maneira estas decisões e estes atos), mas também refletem sobre esse comportamento prático e o tomam como objeto da sua reflexão e de seu pensamento. Dá-se assim a passagem do plano da prática moral para o da teoria moral; ou, em outras palavras, da moral efetiva para a moral reflexa. Quando se verifica esta passagem, que coincide com o início do pensamento filosófico, já estamos propriamente na esfera dos problemas teóricos morais ou éticos. Diferentemente dos problemas práticos morais, os problemas éticos são caracterizados pela sua generalidade. Se na vida real um indivíduo enfrenta uma determinada situação, deverá resolver por si mesmo o problema de como agir de maneira a que sua ação possa ser boa, isto é, moralmente valiosa. Será inútil recorrer à ética com a esperança de encontrar nela uma norma de ação para cada situação concreta. A ética poderá dizer-lhe, em geral, o que é um comportamento pautado por normas, ou em que consiste o fim visado pelo comportamento moral, do qual faz parte o procedimento do indivíduo ou o de todos. O problema do que fazer em cada situação concreta é um problema prático-moral e nãoteórico ético. Ao contrário, definir o que é o bom não é um problema moral cuja solução caiba ao indivíduo em cada caso particular, mas um problema geral de caráter teórico, de competência do investigador da moral, ou seja, do ético. Sem dúvida, a investigação teórica não deixa de ter consequências práticas, porque, ao se definir o que é o bom, se está traçando um caminho geral para que os homens possam orientar sua conduta nas diversas situações particulares. Neste sentido, a teoria pode influir no comportamento moral prático. Mas, apesar disso, o problema prático que o indivíduo deve resolver na sua vida cotidiana e o problema teórico cuja solução compete ao investigador (a partir da análise do material que lhe é proporcionado pelo comportamento efetivo dos homens) não podem ser identificados. Muitas teorias éticas organizaram-se em torno do problema da definição do bom, na suposição de que, se soubermos determinar o que ele é, poderemos saber o que devemos fazer ou não fazer. As respostas sobre o que é o bom variam, evidentemente, de uma teoria para outra: para uns, o bom é a felicidade ou o prazer; para outros, o útil, o poder, a auto-criação do ser humano, etc. Juntamente com o problema da definição do bom colocam-se, também, outros problemas éticos fundamentais, tais como o de definir a essência ou os traços essenciais do comportamento moral que o diferencia de outras formas de comportamento humano, como a religião, a política, o direito, a atividade científica, a arte, o trato social, etc. O problema da essência do ato moral remete para outro problema importantíssimo: o da responsabilidade. É possível falar em comportamento moral somente quando o sujeito que assim se comporta é responsável pelos seus atos. Entretanto, isto envolve o pressuposto de que ele pôde fazer o que queria fazer, ou seja, ele pôde escolher entre duas ou mais alternativas, e agir de acordo com a decisão tomada. O problema do livre arbítrio é inseparável do problema da responsabilidade. Decidir e agir numa situação concreta é um problema prático moral; mas investigar o modo pelo qual a responsabilidade moral se relaciona com o livre arbítrio e com o determinismo é um problema teórico, cujo estudo é da competência da ética.
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Problemas éticos são também o da obrigatoriedade moral, isto é, o da natureza e fundamentos do comportamento moral enquanto obrigatório, bem como o da realização moral, não só como empreendimento individual, mas também como empreendimento coletivo. Os homens, em seu comportamento prático-moral, realizam determinados atos. Ademais, julgam ou avaliam os mesmos, isto é, formulam juízos de aprovação ou de reprovação deles e se sujeitam consciente e livremente a certas normas ou regras de ação. Tudo isto toma a forma lógica de certos enunciados ou proposições. Neste ponto, abre-se para a ética um vasto campo de investigação que, em nosso tempo, constituiu uma seção especial sob o nome de metaética, cuja tarefa é o estudo da natureza, função e justificação dos juízos morais. A justificação dos juízos morais é precisamente um problema metaético fundamental: ou seja, examinar se é possível apresentar razões ou argumentos para demonstrar a validade de um juízo moral e, particularmente, das normas morais. Os problemas teóricos e os problemas práticos, no terreno moral, se diferenciam, portanto, mas não estão separados por uma barreira intransponível. As soluções dadas aos primeiros não deixam de influir na colocação e na solução dos segundos, isto é, na própria prática moral. Por sua vez, os problemas propostos pela moral prática, assim como as suas soluções, constituem a matéria de reflexão, o fato ao qual a teoria ética deve retornar constantemente para que não seja uma especulação estéril, mas sim uma teoria de um modo efetivo de comportamento do homem. Assim, os problemas éticos caracterizam-se pela sua generalidade e isto os distingue dos problemas morais da vida cotidiana, que são os que se nos apresentam nas situações concretas. Mas, desde que a solução dada aos primeiros influi na moral vivida, a ética pode contribuir para fundamentar ou justificar certa forma de comportamento moral. A ética é teoria, investigação ou explicação de um tipo de experiência humana ou forma de comportamento dos homens, o da moral, considerado porém na sua totalidade, diversidade e variedade, o que nela se afirme sobre a natureza ou fundamento das normas morais deve valer para a moral da sociedade grega, ou para a moral que vigora de fato numa comunidade humana moderna. É isso que assegura o seu caráter teórico e evita sua redução a uma disciplina normativa ou pragmática. O valor da ética como teoria está naquilo que explica, e não no fato de prescrever ou recomendar com vistas à ação em situações concretas. A ética parte do fato da existência da história da moral, isto é, toma como ponto de partida a diversidade de morais no tempo, com seus respectivos valores, princípios e normas. Como teoria, não se identifica com os princípios e normas de nenhuma moral em particular e tampouco pode adotar uma atitude indiferente ou eclética diante delas. Juntamente com a explicação de suas diferenças, deve investigar o princípio que permita compreendê-las no seu movimento e no seu desenvolvimento. A ética estuda uma forma de comportamento humano que os homens julgam valioso e, além disto, obrigatório e inescapável. Mas nada disto altera minimamente a verdade de que a ética deve fornecer a compreensão racional de um aspecto real, efetivo, do comportamento dos homens. Assim como os problemas teóricos morais não se identificam com os problemas práticos, embora estejam estritamente relacionados, também não se podem confundir a ética e a moral. A ética não cria a moral. Conquanto seja certo que toda moral supõe determinados princípios, normas ou regras de comportamento, não é a ética que os estabelece numa determinada comunidade. A ética depara com uma experiência histórico-social no terreno da moral, ou seja, com uma série de práticas morais já em vigor e, partindo delas, procura determinar a essência da moral, sua origem, as condições objetivas e subjetivas do ato moral, as fontes da avaliação moral, a natureza e a função dos juízos morais, os critérios de justificação destes juízos e o princípio que rege a mudança e a sucessão de diferentes sistemas morais. A ética é a teoria ou ciência do comportamento moral dos homens em sociedade. Ou seja, é ciência de uma forma específica de comportamento humano.
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Origem da moralidade Mas, como os seres humanos, enquanto espécie, elaboraram e continuam a elaborar sua moralidade? Talvez a pergunta deva ser feita de outra forma. Vejamos: como as regras de conduta – que foram assumidas como normas morais – surgiram? Não vamos nos restringir ao que Nietzsche afirmou, que as noções de “bom” e “mau”, “bem” e “mal” são estipuladas pelos mais fortes, os poderosos, enquanto indivíduos. Pensemos um pouco mais amplamente, enquanto grupos, coletividades. É possível se admitir que os grupos considerassem válidas aquelas práticas que garantissem a sobrevivência de seus membros – embora algumas dessas práticas pudessem incluir a agressão a outros grupos concorrentes. É possível, até mesmo, vislumbrar que alguns grupos aceitassem determinadas práticas violentas contra seus próprios membros, desde que isso significasse a preservação de uma maioria, em um contexto adverso. E essa admissão talvez não levasse em consideração status de gênero ou geração: uma criança com limitações físicas poderia ser eliminada, uma vez que não demonstrasse aptidões físicas ou mentais para viver de forma competente, no habitat natural de seu grupo. Ora, em um momento histórico determinado, uma prática determinada foi admitida como favorável à sobrevivência de um grupo determinado. Para aquele grupo, portanto, aquela prática passou a ser entendida como “boa”, no sentido de vantajosa; de vantajosa a desejosa e prescrita como válida – admissível – pelo grupo, foi questão de grau. É possível se entender que esse, em grandes linhas, tenha sido o nascimento da moralidade. O quando isso ocorreu confunde-se com o próprio alvorecer da humanidade. É uma visão igualmente propugnada por Sanchez Vázquez (2002, p. 39, grifos no original), que afirma: A moral só pode surgir – e efetivamente surge – quando o homem supera a sua natureza puramente natural, instintiva, e possui já uma natureza social: isto é, quando já é membro de uma coletividade (gens, várias famílias aparentadas entre si, ou tribo, constituída por vários gens). Como regulamentação do comportamento dos indivíduos entre si e destes com a comunidade, a moral exige necessariamente não só que o homem esteja em relação com os demais, mas também certa consciência – por limitada e imprecisa que seja – desta relação para que se possa compotar de acordo com as normas ou pescrições que o governam.
Podem-se considerar, ainda, as proposições das teorias de base evolucionista, como discute – além dos autores já referidos (Wright e Changeux) – com bastante propriedade, James Rachels, sobretudo em Created from animals (1990). Discutindo “as implicações morais do darwinismo” (aliás, o subtítulo do livro citado), Rachels (1990, p. 158-160) ressalva – em conformidade com a teoria darwinista – que os instintos sociais, muito mais que o impulso de autopreservação, são a fonte da moralidade (embora Darwin admitisse que os instintos sociais viessem à tona devido à vantagem que conferia na luta pela sobrevivência). E embora a racionalidade não torne os humanos diferentes dos outros animais, que têm seus níveis de racionalidade e, inclusive, de moralidade, a racionalidade mais aprimorada dos seres humanos é responsável pelos mais altos estágios de moralidade humana, uma vez que essa resulta dos instintos sociais mais a inteligência. A teoria evolucionista considera, afirma Rachels, que o comportamento, quanto mais evoluídos os animais, tanto mais resulta da combinação entre atitudes e crenças. Ora, se se tem o pressuposto de que os instintos sociais são um conjunto de atitudes voltadas para o bem-estar do grupo, resulta daí a implicação de que aqueles animais que têm menos inteligência também têm menos capacidade de adequar ou escolher as ações que melhor realizem tais atitudes. Essa assertiva não invalida o que propusemos anteriormente, mesmo sem recorrer à perspectiva darwinista: pode-se entender, de uma forma ou outra, pois, que a moralidade é resultante de um conjunto de práticas admitidas como vantajosas a um grupo em um determinado instante de sua organização e busca de sobrevivência.
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Características gerais da moralidade Admitindo-se o ser humano como um ser que vive de acordo com normas morais, que tem de se adequar, em sua vida social, a normas morais, impõem-se a questão: “‘Tá bom! Mas que são normas morais?” Para início, pode-se assumir que as normas morais são todas aquelas normas que um grupo assume como orientadoras a um fim entendido como o “Bem”. Alguns estudiosos do Direito referem-se a “normas éticas”, em lugar de normas morais, como é o caso do jurista Miguel Reale, ao qual retornaremos em breve. Entendendo-se a moral como um conjunto de normas que regulam a vida das pessoas em coletividade, poder-se-ia afirmar “normas morais”, em detrimento de “normas éticas”. Todavia, a moral refere-se a problemas práticos, é mais concreta; já a ética é generalista, colocando problemas mais teóricos. Daí porque uns assumem normas éticas: por sua generalidade. Existem outras discussões que envolvem questões éticas e questões morais, normas éticas e normas morais. Não é o caso de entrar nas mesmas, aqui. Vamos nos restringir, portanto, a entender que as normas morais, que são todas as normas que se constroem na convivência entre pessoas, possam se subdividir em vários tipos, que se distinguem entre si pela presença – maior ou menor – de alguns requisitos entendidos como específicos às leis jurídicas, de acordo com Reale. Vamos assumir, a partir do descrito por Miguel Reale em seu Lições preliminares de direito (2001), mas com uma ou outra adequação nossa, que as normas morais se subdividem em regras morais propriamente ditas, leis jurídicas, preceitos religiosos e normas de trato social (ou regras de etiqueta). De uma forma ou outra, todas as regras ou normatizações da vida humana, em grande ou pequena escala, enquadram-se ao menos em um desses tipos. Verifiquemos. Regras morais propriamente ditas são aquelas normas morais relacionadas diretamente com aquilo que alguns moralistas entendem como “boa vida” ou “bem-estar”, o aprimoramento da vida e dignidade humana. Referem-se às regras que definem o “bom” e o “mau”, o “bem” e o “mal”, em vista de preservar e potencializar a vida. Normas de trato social ou regras de etiqueta são aquelas normas morais relacionadas à convivência social, aos preceitos que visam um relacionamento social amistoso, refinado, “educado”, em uma acepção mais genérica. Não impactam a vida humana, em si, sua realização ou aprimoramento. Preceitos religiosos são as normas vinculadas e derivadas da adesão a uma confissão religiosa, tendo validade somente para os membros de uma determinada agremiação religiosa, igreja ou religião – exceto em casos de estados teocráticos, cujas leis religiosas se mesclam com as leis civis ou onde as leis de uma religião interpenetram as leis de um estado. Em estados laicos, tais preceitos não se aplicam às demais pessoas que não compartilham da religião. Leis jurídicas, o Direito em sentido amplo, conforme Reale (1988, p. 311, grifos do autor), tem a “[...] finalidade de alcançar a coexistência e a harmonia do bem de cada um com o bem de todos.” Ou seja, o bem comum, “[...] uma ordem proporcional de bens em sociedade[...]”, o “[...] objeto mais alto da virtude justiça [...]”.São as normas “positivadas”; quer dizer, instituídas como instrumento de direito, mediante a determinação de um objeto, uma conduta típica, requisitos dos agentes, indicação de responsabilizações, sanções... Colocam-se o objeto da regulação da vida em sociedade em seus diversos âmbitos, de modo a garantir uma existência justa, fundada na reciprocidade, respeito isonômico inerente à condição de todo cidadão (ou ser com possibilidade de sê-lo ou que com ele possa formar um sistema existencial). A partir da centralidade das leis jurídicas, no âmbito das normas morais (normas éticas, frisa Reale), Miguel Reale discute a caracterização de tais normas à luz de quatro atributos, quais sejam a heteronomia, a coercibilidade, a bilatelaridade e a atributividade (REALE, 2001). Tais atributos poderiam assim ser entendidos:
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Heteronomia: é a “exterioridade” da regra; é a criação ou aplicação de uma regra independentemente da vontade ou adesão do sujeito. Atem-se à mera conduta externa em conformidade (ou não) com o preceito. Coercibilidade: é a ameaça ou a possibilidade do recurso à força com a finalidade de garantir a conduta esperada do sujeito. Coerção é a suposição de poder obrigar alguém a agir de acordo com uma determinação ou acordo. Bilateralidade: é a relação de duas ou mais pessoas, estabelecendo um “contrato” entre as partes. A bilateralidade supõe obrigações mútuas – direitos e deveres para os envolvidos em um acordo. Atributividade ou “garantia”: é a pretensão de ver assegurada a contrapartida de um acordo ou contrato. A atributividade é ter um amparo de que o que foi acordado será cumprido ou, pelo menos, compensado de alguma forma. Ora, nem todas as normas morais apresentam esses atributos. O quadro abaixo explicita essa caracterização.
Quadro 1 – Características das normas morais
Fonte: elaborado e adaptado pelo autor a partir da concepção de Reale (2001).
Como indica que os atributos caracterizam diversamente as normas morais. Existe aquela que possui todos os atributos, como as leis jurídicas (e nem podia ser de modo diverso, pois é a partir delas que os juristas discutiram os atributos), e aquela que não possui um atributo sequer, como os preceitos religiosos. E nem poderia ser diferente, pois é a partir das leis jurídicas que os juristas discutiram os atributos das normas éticas ou morais, buscando estabelecer diferenciações em relações a elas. Também não é de causar estranheza o fato de os preceitos religiosos não apresentarem nenhum dos atributos, uma vez que se referem a normas que, ainda quando propostas por uma instituição humana, procuram estabelecer uma vinculação com o transcendente. Daí que não podes apresentar o atributo de bilateralidade, por exemplo, pois a pessoa não estabelece relação com uma outra parte humana, a qual deve se submeter a exigências contratuais – e, analogamente, não pode impor tais exigências aos humanos, a não ser àqueles que a isso se submeterem. Se as leis jurídicas pedem a adesão formal, externa, aos códigos, não se exigindo uma convicção na execução ou obediência deles, o mesmo não se pode afirmar em relação às questões de fé: ou se crê e assume voluntária, consciente e devotamente a elas ou não. Não é possível apresentar uma fé apenas externa, sem convicção íntima. Da mesma forma que não se pode fingir ser bom. Essas posturas têm um nome: hipocrisia.
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O juízo moral e seu desenvolvimento Uma observação se impõem: se os seres humanos podem ser entendidos como “animais morais”, se a moralidade é uma característica que se sobressai nas condutas sociais, se a moralidade está vinculada com a própria solidariedade, os instintos sociais... Então, por que nos deparamos com tantas transgressões morais, revestidas, até mesmo, da capa da violência, da crueldade, do crime? Jean Piaget (1896-1980) – biólogo e psicólogo suíço famoso por seus estudos relacionados à criança e seu desenvolvimento, bem como pelo delineamento de uma linha de investigação denominada epistemologia genética – discutiu o desenvolvimento do juízo moral em seu livro O juízo moral na criança. Livro divisor de águas, sobretudo quanto à metodologia investigativa empregada, justifica sua elaboração porque, conforme o próprio Piaget (1994, p. 22) afirma: “A moral infantil esclarece, de certo modo, a do adulto.” E mais. Piaget destaca a grande vinculação que se dá entre o desenvolvimento moral e a evolução intelectual – como biólogo, não poderia deixar passar esse aspecto evolutivo, como ressaltou Rachels. Por isso afirma, peremptório: “a lógica é uma moral do pensamento, como a moral é uma lógica da ação.” (PIAGET, 1994, p. 295). Claro – e a leitura de Piaget, no livro referido e em outros, demonstra – que o simples juízo moral, por mais desenvolvido e elaborado que seja, não é garantia de uma conduta moralmente adequada. Mas, se a responsabilização moral decorre da liberdade (não determinação, livre arbítrio) e da consciência (capacidade de discernimento, de compreensão de meios e fins e autoconhecimento), quanto mais esses atributos se desenvolverem, mais a responsabilização moral aumenta. E o juízo moral, como explica Piaget, evolui com a inteligência, a capacidade do uso da razão. De acordo com a teoria piagetiana, são três os níveis de desenvolvimento moral: anomia, heteronomia e autonomia. Bastante sucintamente, anomia é quando a pessoa age sem levar em conta os preceitos morais; heteronomia é quando a pessoa segue os preceitos morais, porém por convenção, exteriormente, sem adesão interna ou reflexão; autonomia é o seguimento conscientemente convicto dos preceitos morais, independentemente de sanções ou testemunhas – é uma espécie de reconhecimento da necessidade de se seguir o preceito moral em função de um imperativo universal e logicamente válido. Retomando e aprofundando os estudos de Piaget acerca da moralidade, vamos encontrar na proposta do filósofo e psicólogo americano Lawrence Kohlberg (1927-1987) uma esquematização mais detalhada do desenvolvimento do juízo moral. Kohlberg (1992), assim como Piaget, divide o desenvolvimento moral em três níveis (nível pré-moral, nível da moralidade de conformidade com o papel convencional, e nível da moralidade de princípios morais autoaceitos); porém, subdivide esses três níveis em seis estágios (dois estágios para cada nível). Conforme Kohlberg (1992) explica, os níveis de desenvolvimento moral (aqui designados pela terminologia mais comumente aceita e difundida) se caracterizariam pelos seguintes conteúdos: Nível pré-convencional: interesse pela aprovação social; o sujeito não entende ou não mantém as normas sociais convencionais. As normas são externas ao próprio sujeito. Nível convencional: interesse pela lealdade às pessoas, grupos e autoridades; identificação com as regras dos outros, especialmente de autoridades. Nível pós-convencional: interesse pelo bem-estar dos outros e da sociedade; aceitação e compreensão das regras baseadas em princípios morais gerais. Diferencia seu eu das normas dos outros e define seus valores conforme princípios que escolheu. Nas palavras de Caldeira (2001, p. 150-151), a partir de Kohlberg e Habermas: O nível pré-convencional (estágios 1 e 2) representa a forma mais primitiva de raciocínio moral, pois se trata de uma moralidade orientada a satisfazer seus próprios desejos ou fundamentada na obediência e preocupada com o castigo. Na realidade, o indivíduo não compreende o significado e função das normas, cumprindo, na medida do possível, todas as regras que estão respaldadas por sanções, para evitar o castigo. [...]
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No nível convencional (estágios 3 e 4) a pessoa compreende que uma das funções das normas e leis sociais é proteger a sociedade, salvaguardar o bem da coletividade. O típico deste nível é a preocupação pelo respeito à lei, adotando uma perspectiva de membro da sociedade, além de seus interesses particulares, ou seja, “ir contra a lei” significa pôr em perigo a ordem social. Há uma intensa preocupação em obter o respeito das outras pessoas e, portanto, por viver em conformidade com o que os demais esperam de sua pessoa. A expectativa convencional obriga o sujeito a cumprir seus “contratos” com a sociedade, isto é, todos os que derivam de seu papel de cidadão, de profissional, de marido, de pai. O sujeito convencional preocupa-se com o sofrimento alheio, porém, quando entra em situação conflitante que venha a violar alguma lei, defende a tese de que deve haver alguma pena, ainda que seja suave. [...] Para o indivíduo pós-convencional, justiça e legalidade são aspectos da realidade social que se diferenciam, sendo que a justiça prevalece sobre a legalidade, nunca o inverso, por exemplo: salvar a vida de uma pessoa é um dever moral, independente da relação que tenhamos com ela. As leis devem ser práticas e benéficas, pois as decisões morais são geradas a partir de direitos, valores ou princípios com os quais os indivíduos concordam ou não.
Para complementar, indicamos que os estágios que integram os três níveis de desenvolvimento moral delineado por Kohlberg são: Estágio 1: estágio do castigo e da obediência. Estágio 2: estágio do objetivo instrumental individual e da troca. Estágio 3: estágio das expectativas interpessoais mútuas. Estágio 4: estágio da preservação do sistema social e da consciência. Estágio 5: estagio dos direitos originários e do contrato social ou da utilidade. Estágio 6: estágio de princípios éticos universais. Mais adiante, em um quadro-síntese correspondente, apresentaremos mais detalhadamente a correlação entre os níveis e respectivos estágios de desenvolvimento moral. Por ora, interessa argumentar que o desenvolvimento moral vai se caracterizar, cada vez mais, por uma descentração, ou seja, pelo afastamento de uma compreensão egoísta ou egocêntrica das circunstâncias. O que parece ir ao encontro do que afirmou Rachels, em relação à perspectiva evolucionista da moralidade: a moral resulta de um instinto social, mais que de um impulso de sobrevivência individual – a sobrevivência individual manteria uma perspectiva egoísta.
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Quadro-síntese VII – Estágios de Desenvolvimento Moral Apresentamos um quadro que traz a descrição dos conteúdos dos níveis e estágios de desenvolvimento moral conforme delineado por Lawrence Kohlberg em sua obra Psicologia del desarrollo moral. O quadro foi organizado, a partir da obra kohlberguiana por Elizabeth Caldeira (2001). 1 – Nível Pré-convencional (estágios 1 e 2) É onde se encontram crianças até nove anos e delinquentes (adolescentes e adultos). Neste estágio o sujeito não entende ou não mantém as normas sociais convencionais. As normas são externas ao próprio sujeito. 2 – Nível convencional (estágios 3 e 4) É onde se encontra a maioria dos adolescentes e adultos de nossa sociedade e de outras sociedades. Identificação com as regras dos outros, especialmente de autoridades. 3 – Nível Pós-convencional (estágios 5 e 6) É onde se encontra a maioria dos adultos após 20 anos de idade. O estágio caracteriza-se pela aceitação e compreensão das regras baseadas em princípios morais gerais. Diferencia seu eu das normas dos outros e define seus valores conforme princípios que escolheu.
Os seis estádios morais CONTEÚDO O que é o Bem Evitar romper as normas por causa dos castigos, obedecer por obedecer e evitar causar dano físico a pessoas e às propriedades.
FORMA Razões para agir corretamente Evitar o castigo e o poder superior das autoridades.
Estágio 2: Individualismo, finalidade instrumental e intercâmbio
Seguir as normas só quando está em imediato interesse de alguém; atuar para conseguir os próprios interesses e necessidades e deixar que os demais façam o mesmo. É correto o que é justo, o que é um intercâmbio, um acordo, um trato.
Servir as necessidades e interesses próprios em um mundo em que há que reconhecer que outras pessoas têm também seus interesses.
Perspectiva social do estágio Ponto de vista egocêntrico. Não considera os interesses de outros nem reconhece que sejam diferentes dos próprios; não relaciona dois pontos de vista. Consideração física dos fatos antes que das intenções dos outros. Confusão de perspectiva da autoridade com a própria. Perspectiva individualista concreta. Consciência de que todo mundo tem seus interesses a perseguir e isto leva a um conflito, de forma que o correto é relativo (no sentido individualista concreto)
N II: Convencional Estágio 3: mútuas perspectivas interpessoais, relações e conformidade interpessoal
Viver da forma que as pessoas ao redor esperam ou que as pessoas, em geral, esperam do papel de filho, irmão, amigo, etc. “Ser bom” é importante e significa que se tem boas intenções, preocupando-se com os demais. Significa, também, manter umas mútuas relações de gratidão, lealdade e confiança Cumprir as obrigações combinadas. Devem se manter as leis em casos extremos, nos quais entram em conflitos com outros deveres sociais estabelecidos. É igualmente o bem contribuir cm a sociedade, o grupo ou com a instituição.
A necessidade de ser uma pessoa boa frente a si mesmo e aos demais. Cuidar dos outros. Crença na Regra de Ouro, desejo de manter as normas e a autoridade que mantenham os estereótipos de boa conduta.
Perspectiva do indivíduo em relação com outros indivíduos. Consciência de sentimentos compartilhados que têm preferência sobre os interesses individuais. Relaciona pontos de vista através da Regra de Ouro concreta, pondo-se no lugar de outra pessoa. Não considera, todavia, a perspectiva do sistema geral.
Manter a instituição em funcionamento como um todo, evitar o colapso do sistema, “se todo o mundo o fizesse”, ou o imperativo de consciência para levar a cabo as obrigações marcadas por alguém.
Faz distinção entre o ponto de vista da sociedade e os motivos ou acordos interpessoais. Assume o ponto de vista do sistema que define as normas e os papéis. Considera as relações individuais segundo o lugar que ocupam no sistema.
Ser consciente de que as pessoas mantêm uma variedade de valores e opiniões, que a maioria dos valores e normas são relativos a seu grupo. Estas
Um sentido da obrigação frente à lei estabelecida mediante o contrato social que um tem de qualquer um tem de fazer e ser fiel às leis para o bem-estar de
Perspectiva anterior à sociedade. Perspectiva de uma consciência individual racional dos valores e direitos anteriores aos contratos e compromissos sociais. Integra perspectivas por
Nível e Estágio N I: Pré-convencional Estágio I: Moralidade heterônoma
Estágio 4: Sistema Social e Consciência
N III: Pós-convencional ou de princípios Estágio 5: Contrato social ou utilidade e direitos individuais
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Estágio 6: Princípios éticos universais
normas relativas deveriam, sem dúvida, manter-se no interesse da imparcialidade, e porque são o acordo social. Alguns valores e direitos não relativos como a vida e a liberdade, devem também manterse em qualquer sociedade e independentemente da opinião da maioria. Seguir princípios éticos autoescolhidos. As leis particulares ou os acordos sociais são normalmente válidos porque se baseiam em tais princípios. Quando as leis violam estes princípios, atua-se de acordo com o princípio. Os princípios são princípios universais de justiça: a igualdade dos direitos humanos e o respeito à dignidade dos seres humanos como pessoas individuais.
todos e a proteção dos direitos de todos. Um sentimento de compromisso, livremente aceito frente aos amigos, à família e obrigações de trabalho. Interesse em que as leis e obrigações se baseiem em um cálculo racional de utilidade total, “o melhor possível para o maior número de pessoas”. A crença como pessoa racional na validez de princípios morais universais e um sentido de compromisso social frente a eles.
mecanismos formais de acordo, contrato, imparcialidade objetiva e o devido processo. Considera os pontos de vista legal e moral; reconhece que, às vezes, entram em conflito e é difícil integrá-los.
Perspectiva de um ponto de vista moral, do qual derivam os acordos sociais. A perspectiva é a de qualquer indivíduo racional que reconhece a natureza da moralidade ou o fato de que as pessoas são fins em si mesmas e devem ser tratadas como tais.
Fonte: Kohlberg (1992, p. 188-189), adaptado por Caldeira, 2001, p. 152-154.
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O relativismo moral Antes de encerrarmos essa discussão sobre a ética e a moral, julgamos interessante fazer uma breve menção aos relativismos ético, moral e/ou cultural. Deve ter ficado claro para todas aquelas pessoas que acompanharam nosso raciocínio ao longo das páginas destinadas à discussão da eticidade e da moralidade que, embora ambas se refiram ao comportamento humano, não são a mesma coisa. A nota mais característica e distintiva talvez se encontre na concretude e na generalidade da moral e da ética, respectivamente. Essa abrangência lata ou particular dos princípios ou valores éticos e das normas morais é o foco do relativismo, seja ele denominado ético, moral ou cultural. Ao tratarmos do dogmatismo, quando da discussão sobre conhecimento e verdade, fizemos brevíssima e superficial menção ao termo relativismo, vinculando-o ao ceticismo e ao niilismo. No âmbito da ética e da moral, o relativismo é uma postura que afirma que o juízo moral, e os valores éticos que lhe dão sustentação, são relativos: relativos às pessoas, relativos aos grupos, às culturas. Harry Gensler, em seu livro Ethics (2011), oferece uma descrição bastante sucinta, mas também bastante compreensiva, daquilo que se pode entender por relativismo cultural: “‘bom’ significa ‘socialmente aprovado’.” “O Relativismo Cultural (RC) afirma que bom e mau são relativos à cultura. O que é ‘bom’ é aquilo que é ‘socialmente aprovado’ em uma dada cultura. Nossos princípios morais descrevem convenções sociais e devem estar baseados em normas de nossa sociedade.” (GENSLER, 2011, p. 8). Recorrendo ao exemplo de uma jovem fictícia, denominada Ima Relativista, Gensler, procura destacar aqueles que seriam os benefícios do relativismo cultural – assim entendidos por Ima, não por Gensler, esclareça-se. Dentre os benefícios do RC poder-se-iam destacar a tolerância, o respeito pela diversidade cultural e o respeito às liberdades individuais. Embora um pouco extenso, olhemos o caso de Ima Relativista, para verificar os argumentos morais e suas justificativas. Recorremos, aqui, a uma tradução feita por Paulo Ruas (publicada no site criticanarede.com, a partir da primeira edição, a qual não difere, quanto ao trecho referido, de nossa segunda edição. Apenas a personagem tem seu nome alterado para Ana Relativista. Adaptamos para o português brasileiro). O meu nome é Ana Relativista. Aderi ao relativismo cultural ao compreender a profunda base cultural que suporta a moralidade. Fui educada para acreditar que a moral se refere a factos objetivos. Tal como a neve é branca, também o infanticídio é um mal. Mas as atitudes variam em função do espaço e do tempo. As normas que aprendi são as normas da minha própria sociedade; outras sociedades possuem diferentes normas. A moral é uma construção social. Tal como as sociedades criam diversos estilos culinários e de vestuário, também criam códigos morais distintos. Aprendi-o ao estudar antropologia e vivi-o no México quando estive lá a estudar. Considere a minha crença de que o infanticídio é um mal. Ensinaram-me isto como se se tratasse de um padrão objetivo. Mas não é; é apenas aquilo que defende a sociedade a que pertenço. Quando afirmo "O infanticídio é um mal" quero dizer que a minha sociedade desaprova essa prática e nada mais. Para os antigos romanos, por exemplo, o infanticídio era um bem. Não tem sentido perguntar qual das perspectivas é "correta". Cada um dos pontos de vista é relativo à sua cultura, e o nosso é relativo à nossa. Não existem verdades objetivas acerca do bem ou do mal. Quando dizemos o contrário, limitamo-nos a impor nossas atitudes culturalmente adquiridas como se se tratassem de "verdades objetivas". "Mal" é um termo relativo. Deixem-me explicar o que isto significa. Quero dizer que nada está absolutamente "à esquerda", mas apenas "à esquerda deste ou daquele" objeto. Do mesmo modo, nada é um mal em absoluto, mas apenas um mal nesta ou naquela sociedade particular. O infanticídio pode ser um mal numa sociedade e um bem noutra. Podemos expressar esta perspectiva claramente através de uma definição: "X é um bem" significa "a maioria (na sociedade em questão) aprova X". Outros conceitos morais como "mal" ou "correto", podem ser definidos da mesma forma. Note-se ainda a referência a uma sociedade específica. A menos que o contrário seja
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especificado, a sociedade em questão é aquela a que pertence a pessoa que formula o juízo. Quando afirmo "Hitler agiu erradamente" quero de fato dizer "de acordo com os padrões da minha sociedade". O mito da objetividade afirma que as coisas podem ser um bem ou um mal de uma forma absoluta — e não relativamente a esta ou àquela cultura. Mas como poderemos saber o que é o bem ou o mal em termos absolutos? Como poderíamos argumentar a favor desta ideia sem pressupor os padrões da nossa própria sociedade? As pessoas que falam do bem e do mal de forma absoluta limitam-se a absolutizar as normas que vigoram na sua própria sociedade. Consideram as normas que lhes foram ensinadas como factos objetivos. Essas pessoas necessitam de estudar antropologia, ou viver algum tempo numa cultura diferente. Quando adotei o relativismo cultural tornei-me mais receptiva a aceitar outras culturas. Como muitos outros estudantes, eu partilhava a típica atitude "nós estamos certos e eles errados". Lutei arduamente contra isto. Apercebi-me de que o outro lado não está "errado" mas que é apenas "diferente". Temos, por isso, que considerar os outros a partir do seu próprio ponto de vista; ao criticá-los, limitamo-nos a impor-lhes padrões que a nossa própria sociedade construiu. Nós, os relativistas culturais, somos mais tolerantes. Através do relativismo cultural tornei-me também mais receptiva às normas da minha própria sociedade. O RC dá-nos uma base para uma moral comum no interior da cada cultura — uma base democrática que abrange as ideias de todos e assegura que as normas tenham um amplo suporte. Assim, posso sentir-me solidária com pessoas que partilham comigo uma mesma comunidade, ainda que outros grupos possuam diferentes valores.
Gensler vai confrontar essa argumentação relativista em termos internos à mesma. Afinal, de acordo com Gensler, se bom é tudo aquilo que a maioria de uma sociedade admite, não seria válida – antes, seria imoral, “má” – a postura de um ou alguns membros de uma sociedade que, racista ou machista, viessem a se opor ao racismo ou ao machismo, a atos de discriminação ou violência, ou a expressões preconceituosas embasadas em critérios étnico-raciais ou de gênero. E, ademais, essas sociedades não são ilhas, isoladas e não causadoras de impactos sobre outras sociedades. Mas, em termos éticos, de justificativa moral, como seria possível um posicionamento frente ao relativismo ético, moral ou cultural? Será que o relativismo, de fato, promove a tolerância, o respeito à diversidade, aprimora a sociabilidade e a humanidade como um todo? Sanchez Vázquez (2002, p. 259) reconhece que o relativismo ético parte do princípio de “[...] que diferentes comunidades julgam de maneira diferente o mesmo tipo de atos ou postulam diversas normas morais diante de situação semelhantes.” Por conseguinte, “[...] os juízos morais, relativos a diferentes grupos sociais ou comunidades e que, por conseguinte, são diferentes entre si e, inclusive, contraditórios, justificam-se pelo contexto social correspondente.” Para tanto é necessária uma referência às próprias justificativas, motivações, critérios de justificação moral, a fim de se estabelecer uma crítica pertinente, racionalmente aceitável, dos pressupostos do relativismo ético, moral ou cultural. E é o mesmo Sanchez Vázquez quem aponta cinco critérios nos quais se embasam as justificativas morais, critérios, esses, que permitirão uma análise mais acurada dos fundamentos do relativismo ético. Os critérios são (conf. SANCHEZ VÁZQUEZ, 2002, p. 253-259, itálicos no original): I. Justificação Social: “[...] numa comunidade em que se verifica a necessidade de x ou o interesse y, justifica-se a norma que exige o comportamento adequado.” II. Justificação Prática: “[...] numa determinada comunidade na qual se verificaram as condições necessárias, justifica-se a norma que corresponde a tais condições.” III. Justificação Lógica: “[...] uma norma se justifica logicamente se demonstra a sua coerência e nãocontraditoriedade com respeito ás demais normas do código moral do qual faz parte.” IV. Justificação Científica: “[...] dado o nível de conhecimentos alcançados pela sociedade, uma norma moral se justifica cientificamente somente se baseada nesses conhecimentos ou compatível com os mesmos.” V. Justificação Dialética: “[...] uma norma moral se justifica dialeticamente quando contém aspectos ou elementos que, no processo ascensional moral, se integram em um novo nível numa moral superior.”
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Jürgen Habermas, importante intelectual alemão contemporâneo e delineador da Teoria da Ação Comunicativa, argumenta que se faz necessária, atualmente, uma superação dos particularismos éticos em vistas de um universalismo moral, fundado na validade do processo de elaboração de tais regras morais. Por outras palavras, Habermas (2002) reconhece que os grupos particulares, as minorias, ao defenderem os valores que lhes são caros, garantem uma afirmação identitária e consequente reconhecimento; todavia, esse particularismo deve ser superado pelo ingresso dos indivíduos e grupos em uma comunidade de comunicação onde, a partir de “regras comuns” derivadas de um processo deliberativo, todos poderão buscar aquilo que, consensualmente, for entendido como o mais vantajoso para todos os envolvidos na negociação. Como discutimos em outra ocasião (JUSTINIANO, 2007), para Habermas, a distinção principal entre questões ou problemas éticos e problemas ou questões morais está no fato de que o cerne ético reside nas interpretações, que são feitas a partir das valorações, próprias a um grupo (ou indivíduo) e sua identidade. O cerne moral, por seu turno, encontra-se nas normas ou princípios que sejam reconhecidos como bons para o conjunto dos participantes de uma mesma situação, a partir de sua abertura para o consenso. Nas palavras de Habermas: As normas morais devem poder encontrar, acima dos limites históricos e culturais dos mundos sociais tão variados, o reconhecimento racionalmente motivado de todos os sujeitos capazes de linguagem e ação. A idéia de uma sociedade ordenada moralmente, sem exceção, implica na extensão contrafática do mundo social, no qual nos encontramos, para um mundo inclusivo completo de relações interpessoais completamente ordenadas: todos os homens se tornam irmãos (e irmãs). (HABERMAS, 2002a, p. 63, grifos do autor).
Ora, James Rachels, já referido, postula uma definição de moralidade que vai ao encontro da posição habermasiana. Para Rachels (2012, p. 13), “[...] moralidade é, basicamente, o esforço de alguém para orientar sua conduta pela razão – isto é, fazer o que tenha as melhores razões para ser feito – dando peso igual para os interesses de cada indivíduo afetado por sua decisão.” O agir moral exige uma justificativa moral, igualmente. E essa justificativa implica em um juízo ou raciocínio moral, que deve, necessariamente, atender a duas exigências: apoiar-se em boas razões (razões que se imponham por si mesmas, logicamente, pela força do argumento – lembrando Piaget, para quem a moral é uma “lógica da ação”) e ser imparcial na consideração dos interesses de cada indivíduo. A busca do atendimento à lógica do argumento validamente convincente e imparcial vai colocar as bases para a superação do relativismo, que é um “estágio” natural e comum dos julgamentos morais de pessoas, grupos e sociedades. Afirmei aqui “estágio” e é esse um termo que vamos aprofundar logo mais, e que é de singular importância para o propósito da contestação do relativismo. Não obstante, embora tenhamos admitido que o relativismo seja uma postura comum, seja em indivíduos ou coletividades, Rachels afirma ser possível a identificação de, pelos menos, alguns valores que são compartilhados por todas as culturas; mais que isso, Rachels radicaliza, afirmando que todas as sociedades devem assumir tais princípios, transmutados em regras morais, de modo a poderem subsistir: [...] existem algumas regras morais que toda sociedade deve abraçar, porque essas regras são necessárias para a sociedade existir. As regras contra a mentira e o assassinato são dois exemplos. E, de fato, nós vamos encontrar tais regras em vigor em todas as culturas. As culturas podem diferir quanto ao que consideram como legítimas exceções às regras, mas essa discordância existe contra um amplo pano de fundo de concordância. Portanto, não devemos superestimar a medida em que as culturas são diferentes. Nem toda regra moral pode variar de sociedade para sociedade. (RACHELS, 2012, p. 23-24. Itálicos no original. Negritos nossos).
É sobre essa base mínima de princípios universais que vai se buscar a superação do relativismo. Observa Rachels que “princípios universais” não significa o mesmo que “princípios absolutos”. Tanto é assim, que tais princípios admitem exceções, em situações extraordinárias. Universalidade quer dizer existência, presença em todas as culturas; já princípio absoluto se referiria a princípio que seria, sempre, praticado, jamais podendo ser transgredido ou deixado de lado. Um princípio universal nem sempre é absoluto, ao passo que um princípio absoluto é (tem a pretensão de ser), sempre, universal. Daí que, à
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mentira e ao assassinato, acrescenta o dever de proteção das crianças como princípios universais ou valores compartilhados por todas as culturas e grupos. E com entender ou refutar, pois, o relativismo. Uma explicação estaria na teoria do desenvolvimento moral de Lawrence Kohlberg, já referida. Assim como Piaget afirmou que a moral da criança pode ajudar a entender a moralidade do adulto, seja com relação a sua organização e desenvolvimento, de forma análoga poderia ser feita uma observação sobre a moralidade dos grupos ou sociedades: estes também, enquanto coletividades, estão sujeitos a níveis de desenvolvimento do juízo moral. Kohlberg “[...] considerava o relativismo cultural uma abordagem relativamente imatura da moralidade, típica de adolescentes e de adultos jovens.” (GENSLER, 2011, p. 13). Mas, se a teoria do desenvolvimento moral de Kohlberg afirma que todos, a despeito da cultura de cada um desenvolve seu julgamento moral mediante uma série de estágios, quais seriam as fases seguintes ao relativismo? De acordo com Gensler (2011, p. 13-14), Por vezes, confusão e ceticismo; de fato, um curso de ética pode promover esta atitude. A seguir, passamos para o estádio 5 (semelhante ao utilitarismo das regras) ou para o estádio 6 (próximo da Regra de Ouro). Ambos procuram avaliar as normas convencionais racionalmente. Não estou a referir Kohlberg com o objetivo de argumentar que, sendo correta a sua perspectiva, o relativismo cultural está errado. [...] Kohlberg e muitos outros especialistas em ciências sociais rejeitam enfaticamente o relativismo cultural. Veem nele um estádio imaturo do pensamento moral que nos faz conformar com a nossa sociedade. A abordagem de Kohlberg coloca, no entanto, um problema acerca do significado de "bem". As pessoas podem querer dizer com esta palavra diferentes coisas em estádios diferentes; numa criança, "bem" pode significar "o que agrada à mamãe e ao papai". Logo, devemos dirigir a nossa atenção para aquilo que as pessoas com maturidade moral têm em vista com esta palavra. Se o nosso argumento estiver correto, pessoas moralmente maduras, quando utilizam este termo, não pretendem afirmar que "bem" significa "socialmente aprovado".
Atenção! Ao se afirmar uma sequência nos estágios de desenvolvimento moral não se está afirmando um reducionismo etnocêntrico: que todos os povos têm de se adaptar a um conjunto de valores que, em geral, confundem-se com a própria civilização ocidental. Não. É que algumas condições dadas por boa parte das organizações sociais desta configuração cultural podem potencializar o exercício racional e a discussão dos próprios fundamentos culturais que embasam a vida desses povos e sociedades. Sanchez Vázquez nos auxilia a melhor compreender esses pressupostos, tanto os valores universais destacados por Rachels quanto o processo de desenvolvimento do julgamento moral de Kohlberg: Existe um progresso rumo a uma moral verdadeiramente universal e humanista, que parte das morais primitivas e que passa pelas morais de classe com as limitações e particularismos. E se pode falar de progresso, de elevação a níveis morais mais altos, na medida em que se afirmam os aspectos propriamente morais: domínio de si mesmo, decisão livre e consciente, responsabilidade pessoal, harmonização do individual e do coletivo, libertação da coação externa, predomínio da convicção interna sobre a adesão externa e formas às normas, ampliação da esfera moral na vida social, primazia dos estímulos morais sobre os materiais nas nossas atividades etc. Todos estes aspectos do comportamento moral nos servem para definir o lugar ocupado por uma norma ou um código, ou determinada moral no seu conjunto, dentro do processo histórico-moral. E, ademais, permitem-nos compreender até que ponto a sua validade caducou ou se conserva dentro desse processo. Da mesma maneira, permite-nos justificar assim – isto é, dialeticamente – a validade de uma norma ou de um código moral diante de outra norma ou de outro código eu postulem atos humanos diametralmente opostos. Esta justificação dialética nos proíbe – contra as afirmações do relativismo ético – situar normas diversas, relativas a diferentes comunidades ou a diversas épocas, no mesmo plano, considerando-as igualmente válidas. (SANCHEZ VÁZQUEZ, 2002, p. 263-264).
Logo, nem tudo é relativo. Aliás, a própria afirmação “tudo é relativo” transborda, ela mesma, uma tentativa de absolutização. Apoiamo-nos, mais uma e derradeira vez, recorrendo a Sanchez Vázquez.
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Conclui-se que a relatividade da moral não acarreta necessariamente um relativismo, dado que nem todas as morais se encontram no mesmo plano, porque nem todas – consideradas historicamente como etapas ou elementos de um processo ascensional, progressivo – têm a mesma validade. O que, afinal, quer dizer: todas as normas, os códigos ou as morais efetivas são relativas a... e, por isto, podem ser justificadas pelos critérios I, II e III [justificações social, prática e lógica]; mas, ao colocar umas em relação com as outras, como elementos de um processo histórico-moral, nem todas estas relações ou relatividades têm o mesmo alcance do ponto de vista do progresso moral. E disto decorre a necessidade de justifica-las dialeticamente. (SANCHEZ VÁZQUEZ, 2002 p. 264. Grifos do autor).
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NOTAS 1. Giordano Bruno (1548-1600) foi um pensador italiano condenado à morte na fogueira por causa de suas ideias e teorias que tinham como ponto principal a contestação do sistema cosmológico vigente na época, que considerada a Terra como centro do universo. Esse modelo de universo se baseava nas proposições do astrônomo grego Ptolomeu. Nicolau Copérnico (1473-1543) foi um sacerdote polonês que escreveu o livro Da revolução das esferas celestes, onde combatia o paradigma (a concepção de mundo) vigente na época, que afirmava que a Terra era o centro do universo (Teoria Geocêntrica): Copérnico defendeu a tese, ao contrário, de que o Sol era o centro do universo e que esse universo era infinito. Galileu Galilei (1564-1642) é considerado um dos pais da Física moderna, mas se tornou conhecido por sua posição de defesa do modelo cosmológico proposto por Copérnico. Considerado herege, teve de optar entre retratar-se (renuncia às suas teorias, afirmando que estava errado) ou morrer queimado na fogueira. Sua teoria e seus estudos permaneceram e provaram, posteriormente, a veracidade de suas convicções. A esse trio pode ser associado, ainda, Johannes Kepler (1571-1630), um dos grandes nomes da astronomia e da ciência moderna. Kepler, apesar da perseguição religiosa de que foi vítima, defendeu e divulgou os fundamentos teóricos de Copérnico, o que foi feito mediante a publicação de sua obra Mysterium Cosmographicum. Kepler elaborou três leis astronômicas que foram determinantes para a compreensão dos movimentos e organização dos corpos celestes. [Voltar] 2. René Descartes (1596-1650) foi um pensador que colocou em xeque os fundamentos da ciência de sua época, ao postular um princípio fundamentalmente racional (e, não, apenas místico) para a origem do conhecimento. Desenvolveu, de fato, um “método” de conhecimento, expresso em sua obra Discurso do método, o qual principia por um “dogma” cético: a dúvida, mas dúvida metódica, a partir da qual, tendo relativizado ou duvidado de tudo o que se professara até então como verdadeiro, teria condições de construir as bases de um novo conhecimento, fundado em ideias claras e distintas. É dele o lema “Cogito ergo sum” (Penso logo existo). [Voltar] 3. Francis Bacon (1561-1626) é considerado um dos pais da moderna ciência, tendo desenvolvido um sistema de pensamento que passou a ser designado de positivismo, onde busca a constituição de um sistema, baseado na experiência, na pesquisa, que passou a constituir o fundamento da ciência moderna. É dele o lema “Saber é poder”, demonstrativo de sua profunda crença no poder da razão – e, por extensão, da ciência. [Voltar]
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