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ELEGIA A FERNANDO ROCHA
FERNANDO BRAGA: O ADEUS À JOIA RARA DA LITERATURA MARANHENSE
ROGÉRIO ROCHA
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Fernando Braga dos Santos nasceu em São Luís do Maranhão em 29 de maio de 1944. Formou-se pela Faculdade de Direito do Distrito Federal, com pós-graduação em Ciência Política na Universidade de Brasília (UnB), tendo feito estágio em Direito Penal Comparado na Universidade de Paris-Sorbonne. Publicou em poesia: Silêncio Branco, 1967; Chegança, 1970; Ofício do Medo, 1977; Planaltitude, 1978; O Exílio do Viandante, 1982; Campo Memória, 1990; O Sétimo Dia 1997 e Poemas do tempo comum, 2009; O Puro Longe, 2012; Magma, 2017. Após fixar-se no DF, passou a integrar-se dentre os autores que firmaram suas marcas literárias por aquelas terras, fato que o levou a figurar na obra Antologia dos Poetas de Brasília, publicada em 1971 e que incluía nomes como Abgar Renault, Antonio Carlos Scartezini, Clemente Luz, Lenine Fiuza, bem assim a participar, no ano de 1982, da obra Brasília na Poesia Brasileira, da Editora Cátedra, ao lado de Affonso Romano de Sant Anna, Cassiano Ricardo, Domingos Carvalho da Silva e outros mais. O panorama de imersão na riqueza de seus versos pode ser ampliado tanto com a leitura de seus livros dos anos 70 e 80 quanto com de seus dois últimos trabalhos, onde os versos transcritos não nos deixam dúvidas quanto ao fato de estarmos diante de alguém que compreendeu muito bem o poder da palavra (até mesmo de sua leveza), avançando àquele ponto onde vemos somadas a experiência de vida e o amadurecimento do escritor, no que tange à compreensão de sua técnica e estilo, em consonância com a fluidez singular que lhe deu a exploração dos caminhos da forma livre. Muito presentes no temário de Braga, as ideias de finitude e morte andam lado a lado com sua lírica refinada, o sentimento de aproximação e descortino de uma verdade íntima que assiste aos acontecimentos do mundo com a intencionalidade da angústia. Sentimento este que moveu seu olhar crítico em direção a tudo aquilo que é humano, tendo sido tocado muito fortemente pela visão atenta aos meandros da existência social, já observáveis em poemas de seus primeiros livros. Fernando foi daqueles escritores que, embora detentores de grandes virtudes, acabam por se tornar ilustres desconhecidos em suas próprias terras. Nesse sentido, em que pese a inegável qualidade literária, que lhe rendeu não só prêmios, mas também a estruturação de uma obra de perceptível densidade, com lançamentos que surgiam um tanto quanto espaçadamente, dentro da linha temporal integrada pelos seus livros, o poeta não conseguiu alcançar junto ao público maranhense a visibilidade que merecia, sobretudo dentre os leitores deste século. Razão que, penso, deva impor, nos próximos anos, a necessidade da sua verdadeira descoberta e, igualmente, a obrigação da leitura dos textos e reedição de tudo o que produziu essa joia rara de nossa literatura.
O que mais posso dizer acerca dele? Afirmo que Fernando Braga exerceu o ofício de escritor com a alta qualidade de sua poesia, herdeira da grande tradição lírica portuguesa e tributária de momentos tão tocantes e sinceros quanto os de um outro Fernando: o Pessoa. Some-se a isso o belo itinerário realizado com o trabalho de burilamento de reminiscências, feito nas envolventes histórias do seu “Conversas vadias” (antologia inédita de textos em prosa), verdadeira máquina do tempo para quem sofre da nostalgia de uma São Luís que não existe mais, como ele mesmo disse em um de seus belos poemas (Poema Insulano, in: Poemas do Tempo Comum, Prêmio Gonçalves Dias de Literatura, 2009), e em suas crônicas, achadas aqui e ali, em postagens esparsas na internet e em páginas de jornais.
Passando ao capítulo final de sua vida, chego ao momento em que, depois de quatro tentativas, o poeta conseguiu ser eleito, no ano passado, para ocupar uma vaga dentre os membros da Academia Maranhense de Letras. Confesso que comemorei o resultado da escolha, afinal a AML precisa de escritores dessa estirpe. Mas tal regozijo desintegrou-se com a notícia da morte do talentoso poeta, tornando um verdadeiro pecado o fato de haver sido escolhido muito tardiamente (já na casa dos setenta e sete anos de idade) e lutando para recuperar-se dos malefícios a ele provocados por duas infecções da Covid-19. E o que é pior, além do pecado imperdoável na demora da Casa de Antônio Lobo em acolhê-lo, encerrou-se de vez a possibilidade de colaborar com a vida daquela instituição, antes de sua partida. Não custa nada esclarecer aos leigos em matéria de Direito, desconhecedores das leis constitucionais e administrativas, que o autor de “Silêncio branco” e “Ofício do medo” não chegou a tomar posse no cargo de membro da AML. Razão pela qual, os membros da AML precisaram encontrar uma forma de homenageá-lo com essa deferência, tendo a instituição, por reconhecimento público e mobilização de alguns, declarando-o membro “post-mortem”, ao arrepio das normas estatutárias que regem a entidade. O fato é que o poeta nos deixou sem ter participado efetivamente da Academia sequer um único segundo. Ainda assim, prefiro abraçar-me à lembrança imortal dos versos vívidos, intensos e pulsante de Fernando Braga, recordando o que dissera Quintana: “o poema continua sempre.” Ou mesmo ouvir voz poética do próprio autor, acompanhando o que nos deixou escrito: “Voltar não é preciso/ lá fora o mundo me esperava/ com suas mandíbulas pesadas/ abertas e retesadas/ querendo mastigar-me.” *Rogério Rocha é filósofo e poeta.
ELEGIA PARA FERNANDO BRAGA
Estou entre o silêncio e o soluço umedecido, como um rio sem margens buscando os mares. Desaguar a angústia não mais será possível. Quem ontem me ouvia, hoje tornou-se cinzas.
Com a cremação do corpo a alma se purifica para a grande jornada em busca do desconhecido. O batismo foi concluído com a plenitude do fogo. Não mais a sede existe provocada pelo calor.
Morreu o Fernando, sabendo imortalizado o poeta, depois de tanta luta na face deste mundo conturbado. Deixaste a tua Terra para o aprimoramento do amor por esta Ilha que te recebeu quando criança.
Não foram poucas as tuas vitórias além Província: a tua ajuda aos mendigos, hóspedes das palafitas. A escolha de um poeta como padrinho de casamento. Logo estaremos juntos pelos vales da eternidade.
José Maria Nascimento.
São Luís, 13.03.2022.
A Fernando Braga,Minha lágrima.
Fernando,Fernando! Um grito eclode no meio da tarde. É o clamor desta tua ilha naufragada. Fernando!Fernando! Fernando, agora livre como os pássaros, os sabiás de teu mundo, asas abertas navegando infinitos. Fernando, irmão, teu canto expõe ao sol calcinadas vísceras em meio a abismos imersos em saudades. Fernando, Não voltaste... ...ficou um canto-angústia de um sonho no teu "Exílio de Viandante". Fernando, irmão, "as biqueiras dos telhados choram" e os mirantes clamam por teus versos que não mais ouvirão. "nunca mais,nunca mais ". Fernando, companheiro de versos e rumos, aínda ouço teu canto- luz, profecia do último instante. Certamente tens agora teu "corpo nu coberto com as santas túnicas da claridade e das auroras". Fernando,Fernando, Upaon-Açu chora: ..."Nunca mais.Nunca mais"...
Mario Luna Filho.
Partiste, tua voz silenciou, tuas memórias continuam vivas, tuas palavras navegam à procura de um porto seguro. Ainda repousam sobre a mesa páginas que guardam tua inspiração, teus desejos. Guardam inúmeras conversas vadias.
Nas ruas históricas de nossa cidade, sobrados vazios guardam tuas lembranças, cadeiras esperam teu calor, copos, com as marcas de tua mão esperam mais um gole em noites frias, tendo como companhia amigos que, assim como você, partiram, não esperando o dia chegar.
A noite que chega se mistura a gotas de água, que se confundem com o choro de tua partida.
Estamos sós falta de quem falta. És tu, não era ainda tempo de tua viagem, sei que onde chegares um cordão dos teus te esperam
para tomar, enfim, o último gole.
Roberto Franklin
A vida é mais lírica em um cais porque ele é feito de saudades e esperas
Estou só, no tombadilho do meu barco, que rasga as franjas das águas em rumo do puro longe.
Nada há ao meu redor, a não ser um rondó de expectativas...
O puro longe para onde vou, não é apenas Um poema marítimo, mas uma ode silenciosa.
Oh peso imenso! Ó mar sem fundo e sem margens, onde nada acho de mim, senão nada em tudo.
Fernando Braga. O puro longe, 2012.
EXERCÍCIO DO AVESSO
Quero apenas estar-me longe, do ser-me que me quer tão perto e ser levado como folha ao vento dos fastios que de meu recendem.
Bem longe, onde estarei por certo, sentir-me salvo dum outro quando e reinventar-me n' outro ser humano, n' outro poeta, e n outro Fernando.
E voltar mais breve e inconsútil, sem querer-me mais-que-perfeito, do que fizera, quisera, fora e era...
E repensar no que já me passara a soltar-me do que já me prendera e viver mais do que já vivera!
Fernando Braga. O puro longe, 2012.
Meus olhos emigraram para São Luís minha cidade pavorosamente triste, onde um meio de céu esconde o rosto de Deus das vidraças da planície.
Vim aqui tornar-me em arbusto onde sou o argonauta deste verde.
Morto pão esquecido sobre a mesa foi minha ceia incrivelmente tarda.
Noturno vinho em resto abandonado ferve-me o corpo hipertencialmente reto, nesta noite sem data dalguma safra onde me disponho não mais sentir-me.
(Fernando Braga. Ofício do Medo/1977)
O HOMEM EM CÍRCULO
A roda gira a gerar o giro do círculo, que prende o grito no giz do risco.
Gestos causais do nexo, pedras de sal-gema e sexo.
Mordaças a morderem as máscaras, por trás dos muros, no varal do tempo, para que a palavra ou o grito se liberte, túrgido e trêfego, era assim que entendia o poeta de A Terra Devastada, porque enquanto gira, o mundo se transforma.
Há qualquer coisa em mim a dizer-me o que sou...
Cá bem por dentro de mím, a roer-me, uma fantástica coisa que não tem nome diz-me que é isso o que fui.
E me vejo numa multidão, de azul desesperadamente entre pessoas que nunca vi...
Não me sei, talvez, ou poeta, ou a dormir sem acordar nunca.
Fernando Braga. Magma, 2014
EXERCÍCIO CORRETIVO
Passei a caminhar um pouco de banda por carregar do lado esquerdo meus mortos, uma escoliose, e a declinação da rosa.
Juntei tudo de um só tanto para um lado.
Fiquei penso!
Só não disse que, deste mesmo lado esquerdo, guardava ainda escondido, mas que bobagem, manifestos e teorias, credos de arroubos e utopias, e ainda, virginalmente puro, o meu coração mas em muitos pedaços dividido.
Fernando Braga. Poemas do tempo comum, SECMA, 2009.
Nascida no Maranhão, tinha 19 anos quando entrou na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde hoje encontramos a bisneta.
VILMA REIS
Coimbra Coolectiva | A primeira estudante brasileira em Coimbra chamava-se América do Sul Coimbra Coolectiva | Um passeio feminino por Coimbra e quatro mulheres extraordinárias
Domitila de Carvalho é um nome incontornável na História das mulheres portuguesas pelo seu pioneirismo no Ensino Superior. Em 1892, tornou-se a primeira aluna da Universidade de Coimbra (UC). Ela com 20 e a academia com 602 anos de idade. Frequentou os cursos de Matemática, Filosofia e Medicina. Mas enquanto Domitila estudava, ainda sem traje académico que na época era proibido às mulheres, nascia no Brasil outra vanguardista.
No dia 30 de julho de 1898, nasce em casa, no Largo do Carmo, em São Luís do Maranhão, a menina América do Sul Fontes Monteiro (sim, isso mesmo). Não existe registo de como foi a vida desta nordestina brasileira até Setembro de 1917 mas, em Outubro desse ano, América assina um documento onde pede: «Exmo. Sr. Reitor da Universidade de Coimbra. América do Sul Fontes Monteiro, filha de Bernardino Monteiro e Maria de Jesus, natural do Maranhão, Estados Unidos do Brazil, pretende matricular-se e inscrever-se em todas as disciplinas do primeiro ano da Faculdade de Letras – secção de Filologia Germânica – para o que junta os documentos exigidos no referente edital. Pede a Vossa Excelência se digne deferir.»
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Este documento, guardado no Arquivo da UC, é hoje a confirmação do pioneirismo desta brasileira para o estudo das populações universitárias. América do Sul foi a primeira mulher do Brasil a vir para Portugal
estudar na Universidade de Coimbra, mudando o género de uma longa lista que começou em 1586 com
Manuel Cabral, que se licenciou em Leis. Ou seja, o Brasil demorou 331 anos para enviar uma aluna e acrescentar o feminino na lista de brasileiros estudantes.
Na Faculdade de Letras, América do Sul frequentou Língua e Literatura Inglesa e Alemã, Curso prático de Inglês e Alemão, Filologia Portuguesa, História de Portugal, História Geral da Civilização, Filosofia, História Medieval e ainda Geografia de Portugal e Colónias. Era para ter concluído o Curso em 1920, mas cancelou a matrícula um ano antes. O que fez uma mulher como América desistir da empreitada? A família acredita que a culpado se chamava Sebastião: «Não conheci a minha avó América, sei que teve três filhos, todos já desaparecidos e que abandonou o curso para casar com o meu avô que, entretanto, tirou o curso de Direito em Coimbra», explica a neta Maria Hermínia Quintela, professora em Lamego. Quando América transitou para o seu segundo ano do Curso de Letras, Sebastião se tornava caloiro de Direito, os dois nomes aparecem juntos na documentação dos matriculados em 1918. Casaram dois anos depois e foram viver para Vila Real. Foi a história de amor entre América e Sebastião que desviou a
maranhense dos estudos, mas este amor só tirou o diploma à brasileira, Sebastião concluiu o curso e
tornou-se doutor. Viveram relativamente pouco tempo como casal, ele morreu aos 45 e América com 61. Perderam uma filha adolescente e criaram dois rapazes. Os seus descendentes retomaram fortemente os laços com Coimbra: dos 10 netos, seis formaram-se aqui e entre os 18 bisnetos, quatro já passaram pela mais antiga universidade portuguesa.
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Maria Beatriz Claro da Fonseca Cid de Oliveira é um destes frutos nascidos a partir da semente de América do Sul. A mestranda na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação reconhece sua importância: «A
história dela é repassada de geração em geração na minha família e motivo de muito orgulho. Candidateime para Coimbra por realmente querer estudar nesta cidade e talvez o passado de América me tenha influenciado. É um privilégio estudar aqui tendo em conta o exemplo da minha bisavó», diz Beatriz. As mulheres na Universidade de Coimbra podem ter demorado para adentrar no mundo académico mas, uma vez inseridas, trataram de esgarçar o espartilho das barreiras. A partir dos anos 60, a evolução acontece muito rapidamente e a viragem dá-se em 1983, quando o número de alunas suplanta o de alunos na universidade. Hoje, os brasileiros representam a maior comunidade de estudantes internacionais na UC,
são 15% do total discente e destes, as mulheres são maioria e tudo começou na jovem América do Sul Fontes Monteiro.
CERES COSTA FERNANDES
Tem circo novo na cidade. Circo moderno, visual de circo da Disney, com lona que não é de lona e sim de plástico. Circo de asfalto, asséptico, sem animais, a não ser um gracioso elefante, um casal de macacos e uns gatos (?). Ué! E pode ter circo assim, me perguntei? Pode. É o tal circo-show, concepção moderna e um tanto diferente do que os meninas e meninas, meus contemporâneos, entendíamos por circo. Mas em sendo um espetáculo itinerante, preserva-se a essência do mambembe, o estar hoje aqui e amanhã não mais, e com ela a mobilidade do arma/desarma e a aura romântica de seus artistas saltimbancos. É circo, pois. E quero crer que este circo modelo Terceiro Milênio, continue transmitindo às crianças de hoje, corrijo, às crianças cujos pais possuem os difíceis reais requeridos para o ingresso, o mesmo encanto e a mesma fascinação dos tradicionais circos de lona de outros tempos. Voltando à mingua de animais no circo em pauta. Não creio tratar-se de estilo de espetáculo ou apenas do patrulhamento mais intenso dos órgãos de proteção dos ditos cujos. É sem dúvida um sinal dos tempos bicudos deste país mágico, onde curiosamente não há inflação, mas os preços aumentam todos os dias. Lembram do leão, aquele rei dos animais, principal atração de todos os circos? De atração virou ameaça. Tem leão no circo? Então não vou lá, diz o vulgo. Nem eu. Vai que, justo no dia da minha visita, esqueceramse de comprar a comida da fera, e o tratador, danado com o salário atrasado, deixou a jaula propositadamente mal fechada. Melhor não arriscar. E pensar que, quase ontem, no Circo Orlando Orfei, perante espectadores despreocupados, o grande domador deitava e rolava, literalmente, com um magote desses valentes animais... Ora, e nem faz tanto tempo assim, eu tinha apenas doze anos, chegavam aqui circos cheios de animais exóticos, camelos, macacos, tigres, e os solenes elefante, campeões no gosto das crianças. Eles e os macacos. Acho que por isso, apesar do trato dispendioso, eles permanecem, só que eles apresentam-se solitários. Famílias de elefantes? Nem pensar, comem toneladas de feno e fazem outras tantas toneladas de cocô. Um trabalhão para alimentar elimpar. Para não dizerem que minto, basta dizer que, em um dos espetáculos de Beto Carreiro, a elefanta (aliá, para os não íntimos), mimoseou o público com uma bala de canhão, daquelas de navio pirata, enrolada em feno, e justo no instante em que o treinador disse: agora agradeça os aplausos. Foi preciso um carrinho de mão para tirar o mimo do picadeiro. O circo me faz lembrar minha trêfega amiga Doralina Gonçalves, que gostava de ser chamada Dodô. Deixem recordar. Por volta dos meus doze anos, eu morava no Monte Castelo, quase no canto da Fabril, quando foi armado, ali perto, no Largo do Diamante, num espaço que não existe mais, um circo sem igual, o Circo Garcia no auge de sua grandeza. Trazia bichos de todas as qualidades, inclusive um hipopótamo, -coisa de espantar, quem jamais havia visto um? –cuja única habilidade era rodear a mureta do picadeiro, seguindo o tratador que carregava um pesado saco de macaxeira, e abrir a bocarra de dentes grossos como porretes serrados para mastigar os enormes pedaços que lhe eram atirados. Uma sensação! Todos os dias, na saída do colégio, fugíamos eu, Dodô e Açucena, apelidada Susy, desde que Dodô decidiu não ser Açucena nome de gente, para olhar o circo, os animais, as jaulas e os artistas acampados, gente que vivia em carroções. Logo, logo, Dodô, mais velha um tanto e bem mais avançadinha que nós outras, bateu o olho em um dos irmãos trapezistas, lindo como um deus, vindo de um desses países balcânicos que a gente custa a gravar onde, porque vivem mudando de nome. Rostos de anjos das igrejas, corpos de estátuas, mobilidade e graça nos voos, quem conseguia tirar os olhos? Educadíssimos, agradeciam a todos. As famílias, muito unidas, estavam sempre de mãos dadas, transferindo os aplausos para os outros. Quedávamos boquiabertas, Dodô foi mais longe, decidiu-se pela ¬conquista, abandonou as duas tolinhas e passou também a frequentar o circo no horário das aulas, para isso montou o seu QG na casa de Helena, colega de classe, promovida a melhor amiga desde a descoberta de que sua casa era vizinha ao circo. Para encurtar conversa, narro o acontecido em poucas palavras, obedecendo ao recomendado pelo Manual do Bom Escritor e, adianto que, antes que você possa dizer gaderipoliti, aconteceu. Dodô e o belo trapezista
estavam vendoum pelos olhos do outro, tomados pela paixão, tanto que, quando do desarme do circo do Circo Garcia e de sua iminente saída da cidade, minha amiga, após declarar não poder viver longe do amado, arrumou meia dúzia de roupas em uma valise e plantou-se no trailer dos irmãos, pronta a correr o mundo. Szabo, chamava-se assim o deus grego, já coçava a cabeça, imaginando como sair da encrenca armada, quando foi salvo pela intervenção do pai de Dodô. Dr. Durvalino, homem prático e decidido demais, avisado pela família de Helena, arrancou a filhota de dentro do carroção dos trapezistas, com pesados argumentos e, talvez, uns leves catiripapos, tirando assim, quem sabe, a oportunidade de termos tido uma famosa artista circense de naturalidade maranhense. Dodô, com toda a justiça, declarou-se morta para o mundo e após três dias de intenso luto, recuperou-se num ensaio da quadrilha de seu Barbosa. Não lancemos apressadas culpas à sofrida menina, que a quadrilha era porreta e o São João estava às portas. Digo a vocês que não se fazem mais circos com tantos animais selvagens e exóticos como antigamente e nem com trapezistas belos como deuses, de nomes impronunciáveis, vindos de países distantes. iguais àquele do Diamante.
CERES COSTA FERNANDES
Moro numa mesma cidade em duas dimensões diversas, em uma ando lesta, passos firmes, passada elástica; em outra ando lenta, passos cansados, pisada incerta. Em ambas, sinto a mesma brisa de todos os setembros, tenho o olhar aguçado para o caleidoscópio das cores dos poentes, e para os detalhes dos casarios, o semblante das pessoas, o vai-e-vem das ruas, seus sons e cheiros. Cruzo a Ponte José Sarney, sobre o Rio Anil, rumo à Beira-Mar, nas apertadas pistas, os ônibus fumarentos disputam espaço com automóveis e motos. Entro na Avenida Beira-Mar e as frondosas figueiras benjamim, que vicejavam entre as duas pistas da avenida, levantam-se, copadas, retomando seu lugar, e eu desço a rampa do Cais da Sagração para entrar na canoa de vela azul de Pedro Olhudo, com meus filhos, velejo, contornando as croas, rumo à Praia da Ponta d’Areia, moradia de pescadores e lugar paradisíaco e quase deserto, para o banho de mar. Vou conferir as reformas feitas na Praça Deodoro, olho com prazer o Pantheon refeito, os espaços largos agora livres de barraquinhas de comidas, e a estrada de Oz me leva à biblioteca branca, de alta escadaria, entro e rumo direto ao espaço infantil, lá me esperam horas de aventuras, Monteiro Lobato, Emília, Narizinho, o Visconde, o Barão de Münchaussen e Gulliver são meus companheiros. Que belo está ficando o Largo do Carmo com a reposição do piso das ruas, canteiros refeitos, relógio recuperado, iluminação nova, que belo as andorinhas em revoada nas torres da igreja do Carmo, desço do bonde São Pantaleão, no abrigo dos bondes, e vou ao Moto Bar, com minha tia Amália e seu noivo –sou a obrigatória acompanhante do casal –comer pastel de carne com Guaraná Champanhe, talvez um sanduíche de fiambre especialidade do Serafim. As calçadas largas foram refeitas, o Beco da Pacotilha, parece novo, ué, nunca tomei pega-pinto na Fonte Maravilhosa, as bancas estão cheias de revistinhas, bem que meu pai podia ser dono de uma delas pra eu ler todos os gibis do mundo. Modernizaram a Rua Grande, nos moldes das calles das grandes cidades, tiraram os camelôs, já podemos andar sem os tropeços do piso esburacado, bancos de madeira servem aos passantes cansados e as meninas de saia rodadas passam pela porta da Sodiscos, cheia de rapazes, é a rota do footing, cuidado com as saias na esquina do Caiçara, aquele edifício novo, sinônimo de progresso, outro grupo de boys lá está à espera do redemoinho que varre as folhas e levanta as saias dos brotinhos. Embora sem flores, a Praça Gonçalves Dias, ganhou beleza com a saída do pátio dos trens, sem os muros, a vista é prologada com a toda branca, bela e desolada Praça Maria Aragão, o que será que Niemayer tem contra as árvores, tirados ostapumes, surgiu outra graciosa pracinha frente à imponente estação de trens que será um museu. Aplausos. Desvio de um skatista alucinado e o bonde Gonçalves Dias está virando a lança, cheio de alunos do Santa Tereza, Maristas e Colégio São Luís. Alguns descem para namorar no coreto florido de buganvílias. Eu fico no bonde, olhos baixos, um rapaz do Maristas pagou a minha passagem, diz o cobrador. E se ele vier falar comigo? Que faço, agora? Chego a minha casa, que é um compósito dos lugares que habitei e que me habitam, olho para a Baía de São Marcos da qual nunca me afastei nas minhas três residências de vida adulta e sinto que esta Ilha, este mar, este sal, esta brisa constante, estes rios, poentes e praças estão em mim em todas as dimensões, idades e situações que já tive e porventura ainda terei. Indelevelmente, para sempre.
OSMAR GOMES DOS SANTOS
“Aqui não falta sol, aqui não falta chuva. A terra faz brotar qualquer semente. Se a mão de Deus protege e molha nosso chão, por que será que tá faltando pão?”. A letra é de Zezé Di Camargo e retrata muito bem a situação atual do nosso país. O que acontece com a nação que a cada ano bate recordes de produção em alimentos, mas uma grande parcela da sua população ainda passa fome ou não tem acesso ao mínimo necessário para viver com dignidade? Números recentes divulgados por vários institutos e entidades, com destaque para o IBGE, confirmam o aumento da pobreza no país. Embora tenha um peso relevante, a pandemia da covid-19 não pode ser considerada a única culpada. Prefiro analisar a desigualdade e as consequências dela advindas por uma ótica estrutural. Não se pode querer cobrar desenvolvimento e progresso se as condições básicas, capazes de promover o bem-estar social, não estão presentes no seio da nação. Nos primeiros anos do período de redemocratização, na década de 1990, o país assistiu à instituição de políticas de transferência de renda. Programas como Vale Gás, Bolsa Escola, Bolsa Família e o mais novo Auxílio Brasil são importantes, mas se mostraram pouco edificantes. Antes de qualquer crítica dos apedrejadores de plantão, quero dizer que não sou contra qualquer programa de assistência social. No entanto, ele precisa ser temporário e transformador, possibilitando que cidadãos possam ser capazes de lutar pelo seu sustento. Em bom e popular português, é ensinar a pescar. O que vemos, infelizmente, são gerações que se sucedem na extrema dependência do assistencialismo estatal. Ao primeiro sinal de crise e redução no valor repassado, instala-se o caos econômico visto na recente crise sanitária, com impactos nefastos no social. Segundo os dados mais recentes do IBGE, o país tinha 13,5 milhões de pessoas em situação de extrema pobreza, de acordo com critérios do Banco Mundial. Somadas aos que estão na linha da pobreza, o número corresponde a 25% da população do país, a maior parcela constituída de pretos ou pardos. O fracasso em políticas emancipatórias reflete nos estados, a exemplo do nordeste, que quase metade da população vive abaixo da linha de pobreza e um grande número depende da transferência de renda. O Maranhão, por exemplo, ampliou de 6 para 8 o número de municípios entre os 10 mais pobres do país. Entre os 100 nessa condição, o peso da participação maranhense também aumentou. O Estado nordestino é, hoje, o que amarga a pior posição no quadro de renda per capita, com apenas R$ 676,00. Considere que estamos falando de média, o que denota termos milhares de famílias com renda por pessoa bem abaixo desse valor. Como não poderia deixar de ser, novamente, grande parte formada por pretos e pardos. Vale destacar que pela dimensão territorial e fatores que interferem nas economias dos estados, não se pode pretender uma equidade na renda por habitante. Mas, pelo menos, é possível diminuir o abismo existentes entre os detentores das mais altas rendas daqueles que a cada novo estudo divulgado dão provas de que apenas subsistem. A pobreza não apenas impede uma boa alimentação, como também prejudica o acesso a uma gama de serviços públicos, a exemplo da saúde, educação, cultura e lazer. Soma-se essa escassez à criação de crianças em ambientes com todo tipo de violência social. Nesses espaços urbanos ou rurais, crianças que muitas vezes são privadas do essencial: a sala de aula. Crescem tendo que ganhar a vida nas ruas, agravando o problema da exploração do trabalho infantil, problema que diminui as perspectivas de oportunidades e agrava o vicioso círculo da pobreza.
Cada vez mais se faz necessária a consolidação de bases governamentais e parlamentares efetivamente comprometidas com a mudança desse quadro que assola o país. Nosso progresso enquanto nação depende dessa mudança de postura. Agentes públicos, sejam eles federais, estaduais ou municipais precisam direcionar mais seus esforços para pessoas e menos para as propagandas institucionais, muitas das quais, embora importantes, “mascaram” graves problemas sociais. A manutenção dos auxílios é importante? Não há dúvidas que sim. Mas em um país rico como o Brasil, urge encontrar caminhos que permitam romper, definitivamente, com o ciclo que condena crianças e jovens a um futuro de limitadas oportunidades.UMA PENA! É preciso ser mais gestor que divulgador de programas que ajudam na política mas cruelmente matam sonhos dos que mais necessitam. Isso se chama hipocrisia social.
OSMAR GOMES DOS SANTOS
Não é de hoje que o termo judicialização sugere, pelo menos ao leigo, a compreensão de levar à Justiça uma demanda que a ela não caberia tutelar. Situações cuja resolução seria noutra esfera, a exemplo da administrativa, evitando-se, pois, buscar o Judiciário. O termo ganhou ainda mais destaque com a polarização política e a chamada "judicialização da política", fortalecendo o estigma dito alhures. Da mesma forma como ocorreu com a judicialização da saúde e de tantos outros temas.
Agora a questão ambiental, especificamente do clima, também chegou à esfera judicial. Tribunais, não apenas no Brasil, começaram a ser acionados para decidir sobre a responsabilidade de eventos que impactam na mudança do clima. Mundo afora, notadamente após o Acordo de Paris (2015), aumentaram as ações judiciais climáticas contra a administração pública. Em que pese parecer mais uma daquelas pautas que muitos entendem não caber ao aplicador da lei, vale lembrar que tudo que está regulamentado ou que encontra suporte em alguma norma, pode ser apreciado pela Justiça. Decerto que há diversas normas e regulamentos que atravessam o tema, muitos dos quais na própria esfera administrativa. No entanto, o que se viu nas últimas décadas, especialmente após o encontro Rio 92 (Eco 92) foi um sistemático desrespeito a diversos desses normativos. Desde então, a comunidade científica já estabeleceu entendimento sobre eventos associados às mudanças do clima. O uso sistemático de tecnologias vem reforçando esse consenso da ciência em nível global, estabelecendo relações diretas de causa e efeito. A causa em si, bom que se diga, não decorre apenas da ação intencionada em causar dano ao meio ambiente, mas, também, da omissão no cumprimento de normas que reduzem, mitigam ou mesmo eliminam o risco de uma atividade desenvolvida.
Os exemplos são inúmeros. Cito os casos das barragens de Mariana e Córrego do Feijão; o avanço do mar em grande parte do nosso litoral; as chuvas torrenciais em várias regiões do país, com destaque para as mais recentes no sul de Minas Gerais e Região Serrana do Rio de Janeiro. Obviamente que esse rol é imenso. Desastres ambientais, causados pela rápida mudança climática, vêm se avolumando diariamente em todo o globo. São perdas materiais quase impossíveis de calcular e vidas perdidas que nenhum valor monetário poderá devolver. Problemas como aquecimento global, efeito estufa, deterioração da camada de ozônio, desertificação, aumento ou escassez de chuvas, tempestades compete a todos, principalmente ao poder público. Cabe o desenvolvimento de ações para a manutenção do meio ambiente equilibrado, onde se incluem a exigência do cumprimento, por todos, da legislação vigente. Com o afrouxamento da fiscalização e a falta de efetividade nas políticas públicas voltadas para preservação ambiental, é natural que houvesse um movimento para a judicialização. Com destaque para as ações movidas por entidades ligadas à defesa do meio ambiente, os tribunais já começam a encarar essa pauta global. Aqui, começamos a trilhar esse caminho da litigância climática. No momento atual, o Supremo Tribunal Federal analisa ações propostas em face do governo brasileiro no tocante à má gestão de políticas para equacionar as mudanças no clima. As ações devem ser julgadas nas próximas semanas.
Na Suprema Corte a tutela jurisdicional está em debate acerca da chamada “pauta verde”, como o Fundo Amazônia e o Fundo Nacional de Meio Ambiente. Da mesma forma, estão em discussão falhas na execução da Política Nacional de Mudança do Clima (PNMC). Nossa Constituição Federal traz o termo “meio ambiente” em, pelo menos, 19 dispositivos, todos eles relacionados à proteção, ao uso equilibrado e à manutenção dos recursos naturais. Dentre eles, destaco pelo menos três casos emblemáticos. No tão completo Art. 5º consta que o cidadão pode propor ação popular contra ato lesivo ao meio ambiente. Mais adiante, o Art. 23 estabelece a competência dos entes federados na proteção do meio ambiente e no combate à poluição. Por fim, o Art. 225 ressalta que todos têm direito ao meio ambiente equilibrado, sendo imposto ao Poder Público e à coletividade o dever de preservá-lo. Embora a competência preponderante, fica evidente que o dever não recai apenas sobre o Estado, sendo dever de todos. Assim, empresas, em diversos países, têm enfrentado processos e cumulado penas em ações de danos ao meio ambiente. O mesmo pode ocorrer contra pessoas comuns, físicas, quando comprovado ato lesivo ao meio ambiente.
A conta da crise climática chega ao Judiciário. Tal fato nos abre espaço para uma profunda reflexão, pois o tema nos atinge, a todos, igualmente; todos os continentes, ambos os hemisférios, do Polo Norte ao Polo Sul.
Diante de um cenário de permanente descumprimento de normativos, é natural que o número de ações envolvendo o clima continue a crescer. Recai ao Judiciário, portanto, o protagonismo e o importante papel de assegurar as condições para a a manutenção da vida.
OSMAR GOMES DOS SANTOS
Bom, aprendi com alguns mestres das letras e da escrita jornalística que o termo Justiça, assim, com “J” maiúsculo, remete à instituição Poder Judiciário. Por outro lado, justiça com “ j” minúsculos seria o resultado dos demais casos, o direito no caso concreto, que alcança a todos e que se traduz em forma do sentimento de que a justiça foi feita. Em alguns escritos, assim como no próprio meio jurídico, o emprego das maiúsculas visa conferir algum destaque para algumas palavras dentro de um contexto. Uso aqui, portanto, um misto da forma usual e aquela considerada mais rebuscada para enaltecer a Justiça. O Poder Judiciário nunca foi tão essencial e em nenhum momento da sua história avançou tanto em tão pouco tempo. Hoje, resguarda os direitos e garantias da nação, dos mais elementares aos mais complexos. Uma Justiça que de norte a sul, de leste a oeste, acompanha as mudanças sociais, que participa de novos embates, consolida jurisprudência e está pronto para atuar nos casos específicos de momentâneo vácuo legislativo. Essa é uma instituição que repousa no uso de novas ferramentas, na modernização de seu parque tecnológico, na gestão racional de recursos materiais e em respeito aos recursos que a Terra oferece à humanidade.
Há cerca de uma década, talvez menos, a virtualização dos procedimentos, baseados em modernos sistemas de informática, era realidade em alguns poucos tribunais. A dependência de insumos materiais e da presença física dos operadores do Direito, dos servidores e das partes na lide processual era grande. No entanto, se por um lado a pandemia da Covid-19 trouxe perdas para milhões de pessoas; por outro lado contribuiu para que a humanidade pudesse rever conceitos, posturas, comportamentos e se reinventar. Provável que tenha sido este o momento da história em que mais rapidamente a tecnologia avançou. Novas ferramentas, especialmente de relacionamento, interligaram pessoas em tempo real com máxima eficiência. O Judiciário surfou nessa onda de modernização e o que se vê atualmente é a concretização daquele sonho de uma década atrás. Vivemos hoje uma Justiça 4.0, significando que suas bases estão fincadas na tecnologia. A justiça chega em bites, que transitam a uma velocidade jamais vista. Petições, liminares, despachos, decisões, mandados. Aos poucos, o Judiciário volta a trilhar o caminho do tempo razoável, assegurando a celeridade processual. Hoje, a tecnologia permite a participação em audiências a distância. Juízes, advogados, promotores, partes, testemunhas que estão a centenas de quilômetros, podem se encontrar em uma sala virtual e exercer seus papeis na trama processual. Essa nova configuração garantiu um ganho em escala na produtividade da Justiça. A exemplo do Maranhão, no último biênio o que se viu foi algo surpreendente. Foram mais de 38 milhões de atos realizados, com destaque para quase 1,5 milhão de decisões e sentenças. Para a Justiça, e também a justiça, definitivamente o futuro chegou. Bom que se diga, um futuro que não para, pois a tecnologia passa por um franco progresso e, mais que nunca, está na palma das mãos e ao alcance de todos.
MANOEL SANTOS NETO: TALENTOSO, BOÊMIO E BOM DE REGGAE
NONATO REIS
Manoel dos Santos Neto, o Manoelzinho, é um caso atípico na imprensa brasileira de jornalista metódico e pesquisador por excelência. Que outro profissional teria um banco de dados capaz de dar suporte a reportagens de cunho histórico e um obituário com texto completo sobre os principais personagens da política nacional?
No dia em que José Sarney vier a óbito, o Jornal Pequeno, que tem a honra de mantê-lo em seu quadro funcional, poderá publicar material precioso sobre a vida e obra desse que é, seguramente, o maranhense de maior destaque do século XX.
Eu conheci Manoelzinho no Jornal de Hoje, e apesar de fazermos parte da mesma geração de jornalistas, à época eu ainda era um profissional em início de carreira, ao passo que ele já havia percorrido uma vasta estrada.
Não esqueço os conflitos recorrentes entre ele e Regis Marques, por conta de suas matérias. Regis era então chefe de reportagem do JH e Manoelzinho, repórter de cidade. Ocorre que Manoelzinho, identificado com a luta de classes, ignorava as pautas de Regis, para dar prioridade a temas de natureza sindical, o que provocava bate-boca e inconformismo.
Iríamos nos encontrar novamente na redação de O Estado, em 1991; e ali era ele quem dava as cartas como chefe de reportagem, para o meu privilégio, que ficava com as matérias mais interessantes e os ângulos tão bem sugeridos. Coube a mim e a ele escrever sobre a visita do papa João Paulo II a São Luís, numa cobertura memorável, que teve a coordenação de Ederaldo Koza, então editor-chefe do jornal.
Nosso último encontro de trabalho foi como assessores de imprensa do Governo do Estado, entre 1994 e 1996. Manoelzinho é simples, humilde, de fala mansa e sorriso fácil, extremamente tímido, mas que surpreende após alguns copos de cerveja, quando então se transforma num sujeito extrovertido, brincalhão e às vezes irreverente.
Lembro de uma cena exótica na redação da Secom, que tirou a todos do sério. Era por volta do meio-dia, os repórteres concentrados na elaboração de seus textos. De repente, Manoelzinho adentra a redação, os olhos em brasa. Sem dizer palavras, se dirige ao cavalete com as edições dos jornais do dia, retira um exemplar, senta numa mesa e começa a folhear o jornal, detendo-se numa matéria de estatística que aborda a proporção entre mulheres e homens, dessas que, com um viés machista, indica quantas mulheres caberiam para cada homem.
Manoelzinho não se conforma e, bufando de raiva, dá um murro na mesa, seguido de um palavrão. “Porra! Vocês, mulheres me desculpem, mas é xiri demais”. Nem as meninas da redação conseguiram segurar o riso.
Manoelzinho, que eu trato, carinhosamente, de chefe Manoel, é um boêmio por excelência, apaixonado por reggae, ritmo do qual se tornou um verdadeiro pé de valsa.
Numa abertura de Expoema, em que a então governadora Roseana participou, em cumprimento a um ritual de décadas, que obrigava o chefe do Executivo a se fazer presente, Manoelzinho e Isaurina Nunes foram escalados para fazerem a cobertura. Concluído o trabalho, ainda cedo, Manoelzinho, que andava a bordo de uma moto, sugeriu à colega que recusasse o carro da Secom e deixasse para voltar com ele; não demoraria, era só o tempo de dar uma olhada nos stands.
Isaurinha topou. Manoelzinho descobriu o Sonzão do Carne Seca, que tocava pedras de responsa. O chefe Manoel, como bom regueiro, adentrou o recinto e começou a dançar, uma pedra atrás da outra.
Isaurina, do lado de fora do barracão, olhou o relógio, começou a ficar impaciente. Entrou e foi ter com o chefe Manoel, que a essa altura, já exibia a camisa molhada de suor. O chefe pediu paciência à colega. Era só mais uma música. Logo iriam embora. Nisso, deu uma, duas, três horas da manhã, e nada do chefe largar as pedras. Isaurina teve que pegar um táxi.
Chefe Manoel, além de excelente jornalista, é um escritor por excelência, já com vários livros publicadas, todos obras de grande interesse histórico, resultado de minuciosa pesquisa em jornais e fontes bibliográficas de época, como “O Negro no Maranhão: A escravidão, a liberdade e a construção da cidadania”; “A Ressurreição do Padre”, que faz um resgate da vida e da obra do Padre João Miguel Mohama, e mais recentemente “Othelino: o herói da imprensa livre”, que retrata a trajetória do jornalista Othelino Nova Alves.
Como se não bastasse os diversos momentos em que dividimos o ambiente de trabalho, coube ao chefe Manoel o papel de porta-voz do Jornal Pequeno no episódio que marcaria o meu desligamento do JP, após seis anos como autor de uma coluna dominical. Um dia o meu celular toca e ao atender, dou com a saudação que se tornara um hábito entre nós. “Chefe Reis, você me desculpa, mas fiquei com a atribuição de lhe explicar o porquê da sua crônica não ter sido publicada”. A crônica a que ele se referia tinha como título: “Alvinho e a maria cinco dedos”, um texto bem humorado que narra as peripécias de um jovem adolescente do interior que, às voltas com altas taxas de testosterona, e diante da escassez de sexo, apela à masturbação, como forma de aliviar a tensão hormonal.
O JP, como ficaria sabendo, julgara o texto ofensivo à moral e aos bons costumes. Eu, que nunca aceitei qualquer forma de censura, entendi que o único caminho possível era o da porta, até porque, para um jornal que fez história clamando por liberdade de expressão, aquilo era controverso, para dizer o mínimo.
Restou-me o reconhecimento ao chefe Manoel pela forma cortês e elegante com que me esclareceu o episódio, e também a gratidão ao JP, pelos anos de parceria.
CINEAS SANTOS
Fosse uma história infantil, poderíamos iniciá-la assim: era uma vez um menino negro e pobre que, mesmo sem existência civil, tinha o passaporte para o coração do mundo: a poesia. Como a história é verídica, que fale o poeta: “Até os dezesseis anos de idade, eu praticamente nem tinha existência civil, já que não tinha nem sequer uma certidão de nascimento. A minha desimportância era tamanha que só a poesia poderia me resgatar do nada. Então, ela foi-se achegando a mim e eu a ela, numa simbiose tão profundo que, contrariando a lei da Física, passamos a ocupar, ao mesmo tempo, o mesmo espaço”. Vista pelo prisma da poesia, a trajetória de Salgado Maranhão pode parece simples e até glamourosa. Eu lhes asseguro que não foi. Nascido no interior do Maranhão (Canabrava das Moças), filho de agricultores pobres, Salgado passou a infância “ correndo atrás do sol/pés descalços pelos matagais/ por entre cascavéis e beija-flores”. Aos 16 anos de idade, semianalfabeto, veio para Teresina onde, em pouco mais de dois anos, cursou, via supletivo, o primeiro e o segundo graus. Como já trazia a poesia, em estado bruto, no embornal do peito, começou a escrever e a publicar poemas nos jornais da cidade. Mas, entre um poema e outro, era preciso ganhar o sagrado feijão de cada dia... Ásperos tempos. Em 1973, com a cara e a coragem, mudou-se para o Rio de Janeiro “para construir uma carreira literária”. O Cristo Redentor, apenas ele, o recebeu de braços abertos... Salgado Maranhão já sabia que não seria fácil, mas com aquele atrevimento dos que nada têm a perder, agarrou-se à poesia e foi em frente. Tantas fez que, em 1978, publicou, pela Civilização Brasileira, Ebulição da Escrivatura, uma antologia de poemas dele e de outros náufragos como ele. O Brasil começava a descobrir o poeta de Canabrava das Moças. O mais é do conhecimento de todos: com “ardente paciência”, tendo apenas a poesia como chave e passaporte, Salgado Maranhão foi se tornando uma voz reconhecível. E vieram mais livros, aplausos, prêmios, traduções em vários idiomas, do inglês ao hebraico. Poeta full time, Salgado trabalha como alguém que bem aprendeu a lição de Drummond: “Lutar com palavras é a luta mais vã”. Esta semana, foi publicada, em Portugal, a antologia A Cor da Palavra, obra premiada pela Fundação Biblioteca Nacional em 2009. Para nós, que acompanhamos a trajetória do Salgado, nenhuma surpresa: poeta apolíneo, Salgado Maranhão sabe, desde sempre, que ainda há muitos azuis a avançar. É da natureza das borboletas e dos poetas buscarem o infinito. Assim seja.