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FAUSTO: UMA METÁFORA DOS DILEMAS ATUAIS
NAVEGANDO COM JORGE OLIMPIO BENTO
A consagração do direito a uma vida digna, realizada no caminho de perseguição da felicidade, implica a presença acrescida do desporto, a renovação das suas múltiplas práticas e do seu sentido. Sendo a quantidade e qualidade do tempo dedicado ao cultivo do ócio criativo (do qual o desporto é parte) o padrão aferidor do estado de desenvolvimento da civilização e de uma sociedade, podemos afirmar, com base em dados objetivos, que nos encontramos numa era de acentuada regressão civilizacional. Este caminho, que leva ao abismo, tem que ser invertido urgentemente.
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Durante séculos, desde a antiga Grécia até ao século XIX, Prometeu serviu como símbolo inspirador da Civilização e da Humanidade. Representava o princípio do bem e o progresso libertador da opressão do mal, da ignorância e do obscurantismo. O corajoso filho do titã Jápeto afrontou os deuses e roubou-lhes, para doar aos humanos, o fogo do espírito, as artes, a linguagem e as técnicas. E sofreu duras penas pela ingente façanha. O avanço da Modernidade apeou Prometeu da sua função icónica. Esta foi entregue a Frankenstein, que passa a figurar como referência da sociedade industrial e da aspiração a divindade criadora de uma nova humanidade, através da ciência e tecnologia. A rebelião do homem contra a natureza e da criatura contra o criador engendrou ficções científicas e tecnológicas, que hoje se apresentam como uma mescla de ingenuidade e inovação, de curiosidade e leviandade, propensas a ocasionar o desastre e a queda no abismo. Tornamo-nos aprendizes de feiticeiros, incapazes de controlar o feitiço criado, causador dos problemas centrais da era pós-industrial. Requer-se, pois, uma profunda reflexão acerca das pontes entre a nossa ânsia de poder e as leis da natureza, entre a nossa frágil humanidade e a invasão e apoderamento do nosso ser pela máquina, entre a observância dos limites e a ambição de omnipotência, entre contemplação e hiperagitação, entre a aquisição lenta do saber e a pressa da eficiência, entre a predisposição para a egolatria e a assunção de responsabilidades, entre o finito e o infinito, o tangível e o intangível. Pedem resposta urgente questões sintetizadas nestas perguntas: Para onde vamos? Até onde queremos e podemos ir?
Johann Wolfgang Goethe (1749-1832) anteviu os dilemas cruciais e trágicos da nossa era; configurou-os na fascinante obra ‘Fausto’, de cuja elaboração se ocupou durante sessenta anos (1772-1831). Fausto é um génio, tão sequioso de vida plena, de realização absoluta, de quebrar as amarras da finitude, de escapar ao contingente e ocupar o palco do mundo, que não hesita em vender a alma ao diabo (Mefistófeles), visando lograr o seu intento. Obviamente, para atrair Fausto à sua rede e o reduzir a homúnculo, Mefistófeles não assume a figura de diabo, mas a de um sedutor companheiro de aventuras e viagens, com forma esteticamente refinada, que se vai entranhando instintiva e paulatinamente na presa. Tal e qual como a insinuante máquina pós-industrial, semelhante a um mito realizado e ao alcance da nossa mão, que não levanta a suspeita de ser a invenção a controlar o inventor. Porém, com o passar dos anos, Fausto dá-se conta de que a plenitude da vida reside no enfrentamento dos inebriamentos, das tentações, provas e ciladas que Mefistófeles lhe apronta. Pouco a pouco, toma consciência das ambivalências e inquietudes, da tensão permanente entre o frenesim e a volúpia do gozo passageiro e o desejo de ascender a algo duradoiro e perene, no qual se reconheça e sinta de bem consigo próprio. Este impasse de Fausto é o dos dias atuais, de uma existência maquinal, eivada de convulsão, esquizofrenia e excitação incontidas; e sem aroma, paragem, meditação, serenidade, paz e tranquilidade. Para aproveitar e sobrelevar o estado de máquina, ou seja, o homúnculo de Frankenstein, é necessário avivar e acender o Prometeu, que mora dentro de nós, com a chama do ócio criativo, fomentador de necessidades e atividades qualitativas e performativas, do cultivo da beleza, da convivialidade e espiritualidade, do aprimoramento gestual e moral, interior e exterior, ético e cívico.
Isto implica encarar e praticar a ciência com a atitude de missão e humildade, que lhe é peculiar, indagando o que é investigável e respeitando o misterioso, não como fim em si mesma, mas como meio de conferir novos horizontes e sentidos à vida, e de alargar as margens da admiração e compreensão humana, de si e do universo. A fórmula e a via desta reabilitação são similares àquelas a que Fausto, chegado à velhice e cego, recorreu para driblar os ardis satânicos de Mefistófeles, superar o desassossego e a nostalgia,
recuperar a alma e alcançar a salvação eterna: a entrega ao amor e paixão pelo Outro, a empreendimentos de filantropia ecológica e social, drenando pântanos e possibilitando, assim, a milhões de pessoas arar, plantar e colher os frutos da felicidade em campos verdes e férteis. Eis a Cidade da Humanidade, edificada em terreno limpo e habitada por gente livre! A metáfora é evidente: ninguém se salva sozinho, a salvação é coletiva e solidária. Como na Arca de Noé, salvamo-nos conjuntamente, seres humanos e não humanos, os animais e as plantas, a natureza e a sociedade. Salvamo-nos, se deitarmos fora a competitividade e hostilidade agressivas e feias; e, no lugar delas, implantarmos os padrões da verdade e bondade, da estética, da emotividade cativante e da flexibilidade tolerante. Se não ficarmos reféns do aventesma científicotecnológico de Frankenstein, vazio de poética e sensibilidade, fechado na sua proveta e incapaz de abertura e doação, de amar e ser amado, e que se aproveita das sombras do crepúsculo para trair o pai criador. Salvamo-nos, se a ele sobrepusermos o sopro de Prometeu, feito de beleza e sabedoria, de luz e magia, de dias ensolarados e noites de lua-cheia, de galáxias estreladas, de utopias e paisagens oníricas, de equilíbrio, harmonia e rigor, de grandezas unificadoras do espírito do Homem e da Natureza, e constituintes de uma vida deslumbrante. Se disto fizermos a nossa Casa Comum.
DA FELICIDADE E DO CRESCIMENTO DO PIB
A Modernidade proclamou o direito universal à felicidade, e a garantia de condições propícias à busca individual da mesma. Após esse, outros direitos tiveram a consagração constitucional e deram origem a programas políticos de estruturação da sociedade, visando supostamente realizar aquele fim. Todos os anos são publicados relatórios e rankings de países, mostrando os índices de satisfação com a vida, em paralelo com o crescimento do PIB. Os dados revelam que a satisfação aumenta com a eliminação das várias formas da pobreza, da injustiça e da corrupção, mas não sobe automaticamente com a acumulação da riqueza. Os bens cruciais para a felicidade (amor e amizade, cuidar dos entes queridos, ajudar os vizinhos e concidadãos, o reconhecimento e a estima dos colegas de profissão, a proteção contra a afronta, o desrespeito e a humilhação), alerta Zygmunt Bauman (‘A Arte da Vida’), não são ‘comercializáveis’ ou ‘negociáveis’. Não estão à venda nas lojas, ao lado dos produtos milagrosos para as depressões e os desvarios da insanidade neoliberal. Ou seja, não figuram no rol dos artigos apreciados pelos edis do mercado. Bauman recorda, a propósito, o ataque lançado por Robert Kennedy, em 18.03.1968, no auge da candidatura a presidente dos EUA, contra a mentira da avaliação da felicidade mediante o PIB ou PNB. Eis uma passagem: “Ele inclui a produção de napalm, de armas nucleares e dos veículos armados usados pela polícia para reprimir a desordem urbana. Ele regista (…) programas de televisão que glorificam a violência para vender brinquedos a crianças. Por outro lado, o PNB não observa a saúde dos nossos filhos, a qualidade da nossa educação ou a alegria dos nossos jogos. Não mede a beleza da nossa poesia e a solidez dos nossos casamentos. Não se preocupa em avaliar a qualidade dos nossos debates políticos e a integridade dos nossos representantes. Não considera a nossa coragem, sabedoria e cultura. Nada diz sobre a nossa compaixão e dedicação ao nosso país. Em resumo, o PNB mede tudo, menos o que faz a vida valer a pena.” Robert Kennedy foi assassinado em 05.06.1968, depois de anunciar um programa de restauração das coisas importantes para a vida. Se ressuscitasse, veria que o mercado goza de autoestradas reais, abertas para roubar felicidade e sentido à existência. Quem sabe, seria novamente morto, se reincidisse na denúncia! Hoje continua em alta a lengalenga da necessidade de ‘crescer’, ‘crescer’, ‘crescer’. De que crescimento se trata? Há mesmo necessidade de ‘crescer’ economicamente? Quais os benefícios disso? À custa do quê e de quem? É tempo de parar esta corrida louca, de repensar o caminho percorrido e a percorrer, de nos tornarmos mestres da arte de viver. O mundo grita por uma nova economia, que tire da gaveta a bandeira da felicidade, e balize com ela o trajeto existencial, o trato inter-humano e o uso da natureza extrínseca e intrínseca.